Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
196/11.6TCGMR.G2.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS FUTUROS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADAS AS REVISTAS
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
Doutrina:
-João António Álvaro Dias, Dano Corporal, p. 13, 365 a 368;
-Maria Manuel Veloso, Danos não patrimoniais, Comemorações dos 35 anos do Código Civil, Volume III, Direito das Obrigações, p. 519 a 522;
-Nuno Duarte Vieira, A missão de avaliação do dano corporal em direito civil, Sub Judice – Justiça e Sociedade, n.º 17, p. 23 a 30;
-Rui Soares Pereira, A Responsabilidade por danos não patrimoniais, Coimbra Editora, 2009, p. 110 a 114.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 635.º, N.º 4 E 639.º, N.º 1.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 496.º, N.º 3, E 566.º, N.º 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 05/11/2009 (PROC. Nº 381-2002.S1), DE 07/10/2010 (PROC. N.º 839/07.6TBPFR.P1.S1), DE 04/03/2014 (PROC. 856/07.6TVPRT.P1.S1), DE 18/06/2015 (PROC. N.º 4323/12.8TBVNG.P1.S1), DE 05/12/2017 (PROC. N.º 1452/13.4TBAMT.P1.S1), DE 14/12/2017 (PROC. N.º 1520/04.3TBPBL-A.C1.S1), E DE 14/12/2017 (PROC. N.º 589/13.4TBFLG.P1.S1), TODOS ACESSÍVEIS EM WWW.DGSI.PT.; DE13/07/2017 (PROC. N.º 3214/11.4TBVIS.C1.S1), DE 25/05/2017 (PROC. N.º 2028/12.9TBVCT.G1.S1), DE 16/03/2017 (PROC. N.º 294/07.0TBPCV.C1.S1), DE 26/01/2017 (PROC. N.º 1862/13.7TBGDM.P1.S1), DE 12/01/2017 (PROC. N.º 3323/13.5TJVNF.G1.S1), DE 14/12/2016 (PROC. N.º 5572/05.0TVLSB.L1.S1), DE 10/11/2016 (PROC. N.º 175/05.2TBPSR.E2.S1, DE 03/11/2016 (PROC. N.º 1971/12.0TBLLE.E1.S1), DE 15/09/2016 (PROC. 492/10.0TBBAO.P1.S1), DE 05/12/2017 (PROC. N.º 505/15.9T8AVR.P1.S1), DE 14/12/2017 (PROC. N.º 1520/04.3TBPBL-A.C1.S1), E DE 14/12/2017 (PROC. N.º 589/13.4TBFLG.P1.S1), TODOS ACESSÍVEIS EM WWW.DGSI.PT; DE 04/12/2007 (PROC. 07A3836), ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT; DE 02/05/2012 (PROC. N.º 1011/2002.L1.S1), ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - A lesão corporal sofrida em consequência de um acidente de viação constitui em si um dano real ou dano-evento, designado por dano biológico, na medida em que afecta a integridade físico-psíquica do lesado, traduzindo-se em ofensa do seu bem “saúde”, dano primário, do qual podem derivar, além de incidências negativas não susceptíveis de avaliação pecuniária, a perda ou a diminuição da capacidade do lesado para o exercício de actividades económicas, como tal susceptíveis de avaliação pecuniária.

II - A vertente patrimonial do dano biológico tem como base e fundamento a substancial e relevante restrição às possibilidades de exercício de uma profissão ou de uma futura mudança, desenvolvimento ou reconversão de emprego pela lesada, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente a vai afectar.

III - Em conformidade com a jurisprudência consolidada na matéria, os valores obtidos através da aplicação de auxiliares matemáticos fornecem apenas uma orientação com o objectivo de uniformização de soluções para casos idênticos ou de contornos semelhantes, sem prejuízo da indemnização dever ser sempre ajustada ao caso concreto, recorrendo o julgador, para alcançar esse desiderato, à equidade.

IV - No cálculo do dano patrimonial futuro, deverá ser ponderada a incapacidade da lesada para exercer a profissão habitual bem como a impossibilidade de, na prática, obter um novo emprego, apesar de as limitações funcionais sofridas, em consequência do acidente, não serem impeditivas de exercer uma outra actividade.

V - Essa impossibilidade, no caso concerto, advém do previsível agravamento do seu estado de saúde e necessários tratamentos, mas também da ausência de formação profissional, de competências laborais, da idade, das exigências e dificuldades do mercado de trabalho, que inviabilizam, na prática, a empregabilidade da lesada.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Relatório

I – AA, residente em …, intentou acção declarativa destinada à efetivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, sob a forma de processo ordinário, contra “BB Seguros, S.A.”, alegando, em síntese, que:

No dia 2 de outubro de 2008, pelas 08h00, na Rua …, …, ocorreu um acidente de viação, envolvendo o veículo motorizado de duas rodas, com a matrícula ...-...-HI, no qual seguia como passageira, e o veículo automóvel com a matrícula ...-...-MI.

O acidente ficou a dever-se a culpa exclusiva do condutor deste último veículo, que, provindo de um estacionamento, iniciou a marcha, invadindo a meia faixa de rodagem por onde circulava o referido veículo motorizado, provocando o embate entre os dois veículos.

Em consequência do embate sofreu os danos patrimoniais e não patrimoniais que descreveu (graves lesões físicas e sequelas), alguns ainda não quantificáveis, por cujo ressarcimento é a ré responsável, dado ter assumido tal responsabilidade, através de contrato de seguro celebrado com o proprietário do veículo automóvel causador do acidente.

Com tais fundamentos concluiu por pedir a condenação da Ré a pagar-lhe:

a) a quantia de €322.240,10, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos, em consequência do acidente de viação, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento;

b) a indemnização, a liquidar em execução de sentença, relativamente aos danos patrimoniais e não patrimoniais que eventualmente venham a ser apurados no futuro.

A Ré, regularmente citada, ofereceu contestação em que reconheceu a culpa do seu segurado na produção do acidente e impugnou parte da extensão dos danos peticionados, que considerou exagerados.

Saneado o processo, com fixação dos factos assentes e elaboração da base instrutória, procedeu-se a julgamento, seguido de prolação de sentença, que, na parcial procedência da acção, decidiu:

a) condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de €45.000,00 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais, a quantia de €123.439,48, a título de indemnização pelos danos patrimoniais, acrescida de juros de mora sobre as quantias acima referidas, à taxa de 4%, desde a citação e até integral pagamento, e a quantia a liquidar ulteriormente, relativa aos danos que no futuro venham a ser apurados e que se encontram mencionados nos art.ºs 120.º, 121.º, 122.º, 123.º, 124.º, 125.º, 126.º, 127.º, 130.º e 131.º da petição inicial;

b) absolver a Ré de tudo o mais que foi peticionado pela Autora.

Inconformada a Autora apelou, tendo a Relação de … anulado o julgamento, no tocante aos pontos 45º e 46º da base instrutória, e ordenado a ampliação da matéria de facto bem como a elaboração de relatório pericial complementar (cfr. fls. 599 a 618).

Juntas as respostas complementares dos Peritos e concluída a audiência final, foi proferida sentença, com segmento decisório idêntico à anteriormente proferida.

Inconformada com tal decisão, apelou novamente a Autora, com parcial êxito, tendo a Relação de … alterado a sentença e condenado a Ré a pagar-lhe a quantia de €162.000,00€, a título de dano patrimonial futuro, mantendo-a, no mais.

Discordando dessa decisão, interpuseram recursos de revista a Autora e a Ré, tendo a primeira finalizado a sua alegação, com as seguintes conclusões que se transcrevem:

1 - Os danos não patrimoniais e patrimoniais da Autora fixados pelo Acórdão da Relação mostram-se ainda desvalorizados, considerando as especificidades do caso concreto, devendo ser elevados para os valores peticionados.

2 - Quanto aos danos não patrimoniais, há que ter em conta toda a factologia que se mostra descrita nos factos provados e o que dela decorre.

3 - Nunca é demais lembrar que os danos provieram de quando a recorrente tinha apenas quarenta e três anos de idade. A situação espelhada na matéria de facto provada demonstra que as componentes do dano não patrimonial acima mencionadas alcançam níveis relevantes. Não pode também descurar-se o prejuízo de afirmação pessoal - tanto maior quanto é certo tratar-se de uma mulher jovem.

4 - Não se pode olvidar o prejuízo da saúde geral e da longevidade, considerando as consequências das lesões. No geral, importa atender ao facto de à recorrente ter sido imposta, para toda a sua vida, uma diminuição da sua qualidade de vida (não só menor desfrute dos prazeres da vida, como maiores sacrifícios físicos e psíquicos no normal acontecer dos dias).

5 - Mas, para além de tudo o já exposto, importa ainda destacar, no âmbito do conjunto de toda a factualidade provada, a seguinte especificidade do caso: foi a recorrente vítima de acidente muito grave, para cuja ocorrência em nada contribuiu do sinistro, antes ficou ele a dever-se in totum ao condutor do veículo, o que não pode outrossim deixar de refletir-se no montante da compensação por danos não patrimoniais.

6 - Impõe-se assim concluir, em razão de tudo o já exposto, com o devido respeito pela opinião das demais instâncias, temos como mais adequado, equitativo e justo, considerar que a indemnização a atribuir à lesada/autora (a título de ressarcimento dos danos morais sofridos) e com o desiderato de lhe proporcionar uma vantagem capaz de consubstanciar um lenitivo para a dor moral, os sofrimentos físicos, e o desgosto sofridos, não deve ser inferior ao valor de €150.000,00, quantitativo este que de resto se reputa como o mais consentâneo com os padrões que, numa jurisprudência atualista, vêm sendo seguidos em casos "julgados" e equiparáveis.

7 - Por outro lado, a indemnização fixada no Acórdão da Relação de €162.000,00 pelos danos patrimoniais não permite compensar a recorrente, lesada, dos danos em virtude da perda aquisitiva ou de trabalho.

8 - A lei não nos dá a este propósito qualquer orientação que não seja a constante dos artigos 564°, n° 2 do CC - atendibilidade dos danos futuros previsíveis - e 566°, n° 2 e 3 do CC - a vulgarmente chamada teoria da diferença, a conjugar com o recurso à equidade se não puder ser averiguado o valor exato dos danos.

9 - Por isso não há que proceder a cálculos aritméticos rígidos, eventualmente concebidos pela lei noutras matérias; no âmbito da responsabilidade civil há outros fatores e ter em conta, designadamente a culpa do lesante e as situações económicas deste e do lesado, que privilegiam o papel da equidade com vista à solução justa para o caso concreto. Assim, a primeira operação intelectual a fazer está na determinação do prejuízo patrimonial a compensar, o qual é, evidentemente, futuro.

10 - A operação de cálculo da indemnização deve reportar-se a uma situação factual concreta que implica a reconstituição, tão rigorosa quanto possível, das duas situações patrimoniais em confronto: a anterior ao facto lesivo e a que lhe é posterior. A falta de dados exatos sobre esta pode, não obstante, ser superada com recurso a outras considerações.

11 - Como tem sido frisado em vários arestos dos Tribunais Superiores, a último ratio do cálculo da indemnização em referência é sempre a equidade, prevista nos arts. 494° e 566° n.° 3 do CCiv., e não qualquer tabela (financeira) ou fórmula (matemática).

12 - No caso em apreço, não podemos deixar de ter em conta a situação concreta e de certo modo especial quanto à incapacidade da autora. Ora, provou-se que as lesões sofridas pela Autora a impossibilitam de continuar a exercer a função de …. Não é caso de poder continuar a exercer, ainda que com esforços suplementares essa profissão que desenvolvia desde os 14 anos de idade. Ficou pura e simplesmente impedida de a exercer.

13 - A isto acresce que esse trabalho de … foi o que a Autora sempre exerceu. Por outro lado, a impossibilidade de execução do seu trabalho decorre da inviabilidade de manuseio da máquina em função das características desta, sem que haja máquinas com outras características que o permitissem. Há que considerar, ainda, que a Autora não tem formação profissional para o exercício de outra atividade, bem como que ficou a padecer, em razão das lesões sofridas, de fortes limitações ao nível da sua mobilidade, sentindo dificuldades em andar e em permanecer em pé ou sentada.

14 - Acresce que as lesões sofridas pela Autora, incidindo sobre um dos membros inferiores, tem fortes repercussões ao nível da sua mobilidade, o que, associado ao sentimento de desconforto daí adveniente, reduz drasticamente as hipóteses de obtenção de emprego compatíveis com esse estado físico. E isto com a agravante de a Autora contar neste momento com 49 anos de idade, o que, associado às crescentes exigências no mercado laboral e à forte competitividade que o caracteriza em termos de procura de emprego, torna praticamente impossível à Autora a obtenção de um trabalho estável e permanente, à semelhança daquele que possuía anteriormente ao acidente e que, não fora o acidente, manteria - cfr. a este propósito a avaliação pericial da IPP fixada em 49,2495% (fls. 628 e 629; 649 a 651) e o relatório do Centro de Reabilitação Profissional de … de fls. 671 a 673.

15 - O relevo do dano em causa deve, no que à sua capacidade de obtenção de ganho diz respeito, ser visto como incapacidade total, na certeza de que a Autora não pode fisicamente continuar a desempenhar o trabalho que anteriormente exercia e socialmente não está em condições de arranjar um outro trabalho.

16 - O grau de incapacidade sofrido pela Autora decorrente das lesões que sofreu com o acidente dos autos deve ser perspetivado em função de uma incapacidade total de exercício do trabalho que anteriormente exercia e da inexistência de capacidade residual para a obtenção de outro tipo de atividade, o que nos leva a considerar, na tarefa que aqui nos ocupa, uma percentagem de 100%. A recorrente ficou a sofrer de um prejuízo anátomo - funcional que prejudica a sua atividade em geral.

17 - Na fixação da indemnização dos danos patrimoniais, deve ter-se também em conta que a Autora provou que, desde 13 de outubro de 2010, está em casa sem trabalhar, em situação de "baixa médica" (artigo 62 dos factos provados) e provou também (ver artigo 63 dos factos provados) que não aufere subsídio de doença, uma vez que a Segurança Social entende que a responsabilidade pertence a terceiros, isto é, à Ré; A reconstituição da situação da Autora no que diz respeito à impossibilidade de exercício da sua profissão não foi pois devidamente valorada em sede de fixação do dano futuro pelo Acórdão recorrido.

18 - Com efeito, na petição inicial, a autora, ora recorrente, pediu, também, a condenação da Ré a pagar-lhe uma quantia pecuniária a liquidar ulteriormente, correspondente ao que deixou de receber desde que foi dispensada pela sua entidade patronal por não estar em condições de executar o seu trabalho. Tal pedido foi desatendido pelo tribunal a quo e pela Relação e, a nosso ver fê-lo mal, devendo ser atendido agora em sede de recurso, sob pena de a indemnização que lhe foi atribuída não contemplar a incapacidade total para o exercício da sua profissão.

19 - Ainda na fixação da indemnização dos danos patrimoniais, a autora logrou também provar no artigo 40 dos factos provados que o não pagamento dos descontos obrigatórios para a Segurança Social lhe prejudica a carreira contributiva, sobretudo a reforma. Também com este fundamento se alega que a importância fixada pela Relação à autora, a título de indemnização pela perda da capacidade de ganho, se mostra ainda desvalorizada, devendo a decisão recorrida ser alterada também nesta parte, condenando a Ré a pagar à Autora os descontos obrigatórios para a Segurança Social, conforme pedido.

20 - Por isto tudo e pela restante matéria dada por provada, a recorrente considera ainda desvalorizado o montante de indemnização fixado no Acórdão de que se recorre, de € 162.000,00 pelos danos patrimoniais (danos futuros), devendo alterar-se a quantia devida a título de indemnização pela perda da capacidade de ganho da autora para o montante peticionado de € 170.000,00.

21 - Ao decidir como o fez, o douto Acórdão violou, entre outros, o disposto nos artigos 562°, 563°, 564°, 2, 566°, 2 e 3, 496°, n° 3, 494°, todos do Código Civil.

Por sua vez, a Ré rematou a sua alegação, com a seguinte síntese conclusiva:

1 – A indemnização fixada, a título de dano patrimonial futuro deve ser alterada, na medida em que o respectivo valor é exagerado e excessivo.

2 - Tal indemnização deve ser reduzida para o valor de €123.439,48, por este se mostrar bem mais conforme à equidade e à situação real da lesada.

3 – No mais, o acórdão recorrido deve manter-se integralmente.

A Autora ofereceu contra-alegação a pugnar pelo insucesso do recurso interposto pela Ré.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir apenas da justeza dos montantes indemnizatórios devidos à Autora, a título de dano patrimonial futuro e não patrimonial.


II - Fundamentação de facto

A factualidade dada como provada, nas instâncias, é a seguinte:

1 - No dia 2 de outubro de 2008, cerca das 8 horas, CC conduzia o veículo motorizado de duas rodas, com a matrícula ...-...-HI, na Rua …, freguesia de …, concelho de ….

2 - A Autora seguia como passageira do veículo identificado em 1.

3 - O HI circulava no sentido Intermarché - Cemitério de … pelo lado direito da faixa de rodagem e o mais próximo possível da respetiva berma.

4 - Do lado direito da rua referida em 1, atento o sentido referido em 3, existem vários lugares para estacionamento de viaturas.

5 - Num desses lugares estava estacionado o veículo de matrícula ...-...-MI.

6 - Quando o HI se aproximou do lugar onde o MI estava estacionado, este iniciou a sua marcha.

7 - O MI invadiu a faixa de rodagem da Rua … por onde circulava o HI.

8 - O MI foi embater com a parte lateral da frente esquerda na frente e parte lateral do lado direito do HI.

9 - O embate referido em 8 provocou a projeção do condutor do HI e da Autora para o chão.

10 - A Autora bateu com a cabeça no chão, arrastando-se pela estrada fora e ficou imobilizada na via pública uns metros mais à frente do local do embate.

11 - Entre 11 de Novembro de 2008 e 11 de Outubro de 2010 a Autora seguiu os tratamentos médicos e consultas sob a alçada dos serviços clínicos da Ré, na cidade do Porto.

12 - A Autora deslocou-se aos serviços clínicos da Ré em:

- 11, 18 de Novembro e 11 de Dezembro de 2008;

- 5, 27 de Janeiro, 17 de Fevereiro, 16 de Março, 6, 28 de Abril, 21 de Maio, 2, 25 de Junho, 20 de Julho, 13 de Agosto, 7, 8 de Setembro, 8, 27 de Outubro, 19, 27 de Novembro e 22 de Dezembro de 2009;

- 5, 12, 19 de Janeiro, 23 de Fevereiro, 30 de Março, 27 de Abril, 25 de Maio, 22 de Junho, 13 de Julho, 17 de Agosto, 28 de Setembro e 11 de Outubro de 2010.

13 - Por solicitação dos serviços clínicos da Ré, a Autora efectuou tratamentos de fisioterapia para recuperação, todos os dias, com início em 18 de Novembro de 2009, com uma fisioterapeuta que se deslocava a sua casa, por impossibilidade física de a mesma o fazer.

14 - Como as dores da Autora se intensificavam, apesar da fisioterapia e dos tratamentos médicos, os serviços clínicos da Ré concluíram pela necessidade de a Autora ser submetida a nova intervenção cirúrgica para reparar as mazelas físicas na perna direita provocadas pelo acidente.

15 - Em 5 de janeiro de 2010 a Autora foi submetida a uma cirurgia de compensação na DD, na cidade do Porto.

16 - Após a cirurgia referida em 15 permaneceu internada até 8 de Janeiro de 2010.

17 - Como tratamento e em consequência da intervenção cirúrgica referida em 15, a Autora permaneceu em total repouso, limitada nos seus movimentos.

18 - A Autora reiniciou os tratamentos de fisioterapia em 12 de janeiro de 2010, que se prolongaram até 11 de outubro de 2010.

19 - Na segunda data referida em 18 os serviços médicos da Ré atribuíram alta à Autora.

20 - Durante o período compreendido entre a data do acidente e 11 de Outubro de 2010 a Ré pagou à Autora o salário líquido mensal.

21 - Durante o período compreendido entre a data do acidente e 11 de Outubro de 2010 a Ré suportou o montante mensal de € 225 a título de “ajuda de terceira pessoa”, a fim de auxiliar a Autora a movimentar-se e a fazer as lides domésticas.

22 - A Autora nasceu a 3 de Abril de 1965.

23 - Por contrato de seguro titulado pela apólice nº 010…3 EE transferiu para a Ré a responsabilidade decorrente da circulação do veículo de matrícula …- …-MI.

24 - Em consequência do acidente a Autora sofreu lesões, nomeadamente, fratura supracondiliana do fémur direito e, além doutras, ferida com oito centímetros de comprimento na região frontal.

25 - Logo após o acidente foi socorrida no local.

26 - Foi de imediato transportada para a urgência do Centro Hospitalar do Alto Ave, E.P.E., em ….

27 - Permaneceu internada e em regime de observações no serviço de ortopedia até 15 de Outubro de 2008, sujeita a medicação, vários tratamentos e exames médicos, nomeadamente, Rx, TAC, soroterapia, administração de soros, injeções e analgesias.

28 - Nesse período, foi submetida a uma intervenção cirúrgica - osteossíntese com placa DCS e aplicação de parafusos interfragmentários.

29 - Foi submetida a tratamentos médicos às feridas que sofreu na face, sendo suturada com pontos.

30 - No dia 15 de outubro de 2008, a Autora regressou à habitação onde, por indicação médica, permaneceu em total repouso.

31 - Desde então e até, pelo menos, ao mês de Abril de 2009, só se deslocava em cadeira de rodas.

32 - A partir de abril de 2009 só se conseguia movimentar com a ajuda de terceiros ou com canadianas.

33 - Por força das lesões sofridas no acidente, a Autora ficou afetada de sequelas de carácter permanente, nomeadamente:

- cicatriz na zona da face externa do 1/3 distal da coxa, com 21 cm;

- cicatriz arciforme, com 8 cm na região frontal;

- cicatriz, com 2 cm, no mento;

- cicatriz, com 1 cm, na região orbitaria esquerda;

- flexo do joelho de 20 graus;

- rigidez articular do joelho direito na flexão de 70º.

34 - As sequelas referidas em 33 representam para a Autora um défice funcional permanente da sua integridade físico-psíquica de, pelo menos, 26 pontos.

35 - Essa desvalorização reduz a capacidade de trabalho da Autora e tem vindo a agravar-se.

36 - Causa-lhe dificuldades no dia-a-dia.

37 - À data do acidente a Autora era trabalhadora por conta de outrem numa empresa têxtil denominada FF, Lda em …, exercendo as funções próprias da categoria profissional de ….

38 - Auferia €450 de vencimento e €82,50 de subsídio de alimentação.

39 - Descontava mensalmente €49,50 para a Segurança Social.

40 - O não pagamento dos descontos obrigatórios para a Segurança Social prejudica a carreira contributiva da Autora, sobretudo a reforma.

41 - A Autora despendeu:

- €285, em sessões de fisioterapia;

- €285, em cinco consultas médicas da especialidade de ortopedia;

- €120, na instituição hospitalar aquando da cirurgia de 5 de Janeiro de 2010, a título de diferença de enfermaria para quarto e dormida do marido que ali compareceu a acompanhá-la antes, durante e após a operação.

42 - A Autora despendeu um total de €110,05 nas deslocações ao Centro de Saúde para ser consultada e medicada pela médica de família, aos serviços clínicos da Ré e aos médicos de especialidade para apuramento das lesões.

43 - A Autora reside na freguesia de …, a cerca de 4 km do centro de …, onde se localizam o Centro de Saúde, Clínicas e a estação de comboio.

44 - Os serviços clínicos da Ré distam cerca de 90 km (ida e volta) do local de residência da Autora.

45 - A Autora estava impedida de andar em transportes públicos, com receio de desequilibrar-se e cair, agravando as lesões.

46 - A Autora teve de suportar despesas com as refeições, para si e para a família, quando se deslocava aos serviços clínicos da Ré, no montante de €78,80.

47 - A Autora era uma mulher trabalhadora, dinâmica e alegre.

48 - Gozava de boa saúde e não apresentava qualquer deficiência motora ou estética.

49 - Realizava de forma autónoma as tarefas domésticas (refeições, limpezas, arrumações e outras próprias de qualquer lar) e as de higiene pessoal.

50 - A Autora ocupava ainda parte dos seus tempos livres a dar caminhadas.

51 - A Autora ficou com lesões permanentes na perna direita, sobretudo ao nível do joelho.

52 - Essas lesões impossibilitam a Autora de continuar a exercer a profissão de … como vinha fazendo desde os 14 anos.

53 - Durante toda a sua vida a Autora apenas exerceu a função de costureira, no sector da indústria têxtil, afecta a uma máquina de costura.

54 - Para essa máquina dar produção a sua utilizadora tem de pressionar um mecanismo existente no lado direito da máquina.

55 - Não há na indústria têxtil máquinas de costura sem pedal, nem com o mecanismo referido em 54 no lado esquerdo.

56 - A Autora é dextra.

57 - A Autora não consegue esticar a perna direita.

58 - Por isso, não pode pressionar o mecanismo da máquina de … referido em 54.

59 - Não consegue estar sentada com permanência durante as horas de trabalho.

60 - Após a alta médica atribuída pelos serviços clínicos da Ré, em 12 de Outubro de 2010, a Autora regressou ao seu posto de trabalho.

61 - A entidade patronal dispensou-a, uma vez que as lesões de que ficou a padecer a impossibilitavam de continuar a exercer as funções que vinha desempenhando até ao momento do acidente.

62 - Desde 13 de Outubro de 2010 a Autora permanece em casa sem trabalhar, de baixa médica.

63 - Não aufere subsídio de doença, uma vez que a Segurança Social entende que a responsabilidade pertence a terceiros.

64 - É imprevisível a data em que a Autora poderá retomar o seu posto de trabalho ou qualquer outro.

65 - Ou se alguma vez poderá trabalhar.

66 - A Autora não tem formação profissional que lhe permita exercer outra profissão que não a de ....

67 - Em consequência do acidente a Autora ficou com uma IPP de 49,2495%.

68 - A Autora ficou com dificuldades em andar, em permanecer de pé, em subir e descer escadas.

69 - Tem dificuldade ao ajoelhar-se.

70 - Anda com claudicação e necessita, por vezes, de canadianas ou de apoio de outras pessoas.

71 - A Autora sofreu dores de grau 5 numa escala de 1 a 7.

72 - Sofreu abalo psíquico decorrente de se ver acidentada.

73 - Durante a ocorrência do acidente e após o mesmo chegou a recear perder a vida.

74 - Durante os períodos de internamento hospitalar e de total repouso viu-se privada da companhia assídua de familiares, amigos e de desempenhar as actividades domésticas, de recreio e lazer a que estava habituada.

75 - Foi submetida a duas intervenções cirúrgicas com anestesia geral, bem como a dolorosos e numerosos tratamentos intensivos, incómodos e prolongados.

76 - Foi sujeita a aplicação de próteses que se manterão por toda a vida.

77 - Em consequência do acidente a Autora ficou com o membro inferior direito encurtado em cerca de 2 cm.

78 - Deixou de realizar de forma totalmente autónoma as tarefas domésticas como preparação de refeições, limpezas, arrumações e outras próprias de qualquer lar.

79 - Devido às cicatrizes e claudicação, padece de dano estético de grau 4 numa escala de 1 a 7.

80 - Devido às dores de que ainda padece foi forçada a abandonar as caminhadas que fazia.

81 - Nos dias de mudança de tempo, tem dores no joelho direito.

82 - Padece de dores musculares desde a data do acidente.

83 - Esses factos provocam-lhe tristeza, inibição e depressão.

84 - As dificuldades físicas com que ficou após o acidente trazem-lhe dificuldades de relacionamento com mulheres saudáveis da sua idade.

85 - Em consequência do acidente passou a ter dores de cabeça frequentes.

86 - Passou a ter insónias, dificuldades em dormir e grande irritabilidade.

87 - Passou a ter de tomar calmantes e ansiolíticos.

88 - Teve necessidade de acompanhamento psicológico a fim de tentar superar o trauma causado pelo acidente.

89 - As lesões físicas causadas pelo acidente têm vindo a agravar-se desde a data da alta.

90 - A Autora necessita de continuar a fazer fisioterapia para atenuar as dores que sente na perna direita.

91 - Necessita, ainda, de fisioterapia para dobrar mais o joelho direito.

92 - No futuro irá necessitar de tratamento cirúrgico, nomeadamente, artroplastia total do joelho.

93 - Tal obrigá-la-á a submeter-se a períodos de internamento hospitalar, medicação e tratamento médico.

94 - Bem como à aquisição de medicamentos, próteses e, eventualmente, cadeira de rodas para se movimentar.

95 - Quando se concretizar esse tratamento cirúrgico será sujeita a um período de repouso total.

96 - Estará novamente impossibilitada de trabalhar.

97 - Tal situação poderá implicar perdas salariais, se, nessa data, estiver empregada.

98 - Poderá fazer uma ou mais operações plásticas para eliminar as cicatrizes de que passou a padecer na face.


III – Fundamentação de direito

A apreciação dos dois recursos de revista, que assinale-se será conjunta, por envolver as mesmas temáticas, passa, atentas as conclusões das alegações das recorrentes (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil[1]), pela aferição da justeza dos montantes indemnizatórios que foram atribuídos à Autora, a título de dano patrimonial futuro e não patrimonial.

Fora da nossa análise ficam, assim, a génese e dinâmica causais do acidente que as instâncias imputaram, em exclusivo, ao condutor do veículo de matrícula ...-...-MI, relativamente ao qual a Ré assumira a responsabilidade civil pelos danos emergentes da sua circulação, bem como os restantes pressupostos da responsabilidade civil extracontratual previstos no artigo 483º do Cód. Civil, que convergentemente as instâncias deram como verificados e cujo veredicto as partes não colocaram sequer em causa.

Além disso, convém frisar ainda que não se questiona, no âmbito dos recursos, a ressarcibilidade dos danos sofridos pela Autora, mas apenas o seu quantum, e, tendo presidido à fixação dos mesmos juízo equitativo (artigos 496º, n.º 3, e 566º, n.º 3, do Código Civil), não cabe ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar os valores exactos dos montantes indemnizatórios concretamente arbitrados, por não envolver a resolução de uma questão de direito, «cingindo-se a sua apreciação ao controle dos pressupostos normativos do recurso à equidade e dos limites dentro dos quais deve situar-se o juízo equitativo, nomeadamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade conducentes à razoabilidade do valor encontrado»[2].

Dito isto, viremo-nos, agora, para a determinação dos montantes indemnizatórios, tendo presente que a lesão corporal sofrida em consequência de um acidente de viação constitui em si um dano real ou dano-evento, designado por dano biológico, na medida em que afecta a integridade físico-psíquica do lesado, traduzindo-se em ofensa do seu bem “saúde”.

Trata-se de um “dano primário”, do qual, podem derivar, além de incidências negativas não susceptíveis de avaliação pecuniária (vertente não patrimonial), a perda ou diminuição da capacidade do lesado para o exercício de atividades económicas, como tal susceptíveis de avaliação pecuniária (vertente patrimonial)[3], sendo certo que as duas vertentes relevam em sede de cálculo da indemnização a atribuir à Autora, pois que, segundo o princípio geral consagrado no artigo 562.º do Cód. Civil, “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”, no caso o acidente de viação de gravosas consequências para aquela.

Começando pelo dano patrimonial futuro, conexionado com as relevantes limitações decorrentes das sequelas das lesões sofridas pela mesma e o rebate funcional que a atingiu, temos que a 1ª instância, fazendo uso da habitual fórmula matemática[4] e tomando como referência o vencimento mensal de €450,00 que aquela auferia, na data do acidente, acrescido do respectivo subsidio de alimentação, no montante mensal de €82,50, e a sua idade também nessa altura (43 anos), fixou a correspondente indemnização em €121.199,38, valor resultante da redução de ¼ de €161.599,18, pelo recebimento imediato e de uma só vez, da indemnização (cfr. fls. 715 e verso), enquanto a 2ª instância entendeu não se justificar tal redução e, com recurso à equidade, fixou a indemnização, a tal título, em €162,000,00 (cfr. fls. 824 e 830).

Não oferece dúvida que a situação da Autora, a quem foi atribuída uma desvalorização funcional permanente de 26 pontos e uma IPP (incapacidade permanente para o trabalho) de 49,2495%, equivale na prática a uma incapacidade total[5], na medida em que ficou impossibilitada de exercer o trabalho de costureira, que sempre exerceu desde os 14 anos de idade, não tem formação profissional para o exercício de outra atividade, ficou a padecer de fortes limitações ao nível da sua mobilidade, o que, associado à idade actual (53 anos de idade) e crescentes exigências do mercado laboral, torna praticamente impossível a obtenção de um trabalho estável e permanente, à semelhança daquele que possuía e que, não fora o acidente, manteria.

Ponderando, pois, a total perda de rendimentos e a significativa perda de capacidades, com a inerente restrição ao exercício de uma profissão ou de futura mudança, desenvolvimento ou reconversão de emprego pela Autora, sufragamos inteiramente o juízo da Relação em não operar a redução levada a cabo pela 1ª instância. Por um lado, o recebimento de uma só vez do montante indemnizatório não releva actualmente como em tempos não muito recuados já relevou, tendo em conta que a taxa de juro remuneratório dos depósitos pago pelas entidades bancárias é muito reduzido (cerca de 0,5%), o que implica, por si só, a elevação do capital necessário para garantir o mesmo nível de rendimento, e, por outro, a dramática situação em que a Autora ficou em que avulta a privação de futuras oportunidades profissionais, precludidas irremediavelmente em razão das graves sequelas que a afectam, bem como no esforço acrescido que o relevante grau de incapacidade irá envolver para o desempenho de quaisquer tarefas por banda daquela, justificam que a justa indemnização, a este título, ascenda a € 162.000,00.

Este montante, por calculado com referência à idade da Autora, no momento do acidente (cfr. fls. 714), contempla já o período de baixa médica subsequente a 13 de Outubro de 2010, sendo irrelevante, por isso, que não lhe tenha sido abonado o subsídio de doença. Nem releva também o que consta do ponto 40. do elenco factual provado, ou seja, que «o não pagamento dos descontos obrigatórios para a Segurança Social prejudica a carreira contributiva da Autora, sobretudo a reforma», pois os seus rendimentos, na altura do acidente, eram, como se vê do ponto 38. desse elenco, o vencimento mensal de €450 e o subsídio de alimentação de €82,50, sendo certo que foram esses os elementos tidos em conta no cálculo da indemnização. Aliás, como se alcança do ponto 39. desse elenco, o desconto para a Segurança Social era suportado pela Autora, com os aludidos proventos, não constituindo, nessa medida, rendimento a considerar no cálculo da indemnização.

Vale isto por dizer que não descortinamos motivos para, como pretende a Ré, reduzir a indemnização para o valor fixado pela 1ª instância, nem a sua elevação para o montante preconizado pela Autora, cujas argumentações ex adversu não devem ser acolhidas.

Focando-nos, por fim, na valoração do dano não patrimonial sofrido pela Autora em consequência do ajuizado acidente, interessa ter presente, antes de mais, que o fundamento para o ressarcimento deste tipo de dano encontra-se no artigo 496º, n.º 1 do Cód. Civil, estabelecendo o n.º 3 do mesmo preceito, através de remissão para o artigo 494º do Cód. Civil, que o montante indemnizatório será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.

Nele inserem-se, nomeadamente, o (pretium doloris) ou compensação das dores físicas e angústias, que compreendem não só a valorização da dor física resultante dos ferimentos sofridos e dos tratamentos que implicaram, como a dor vivenciada do ponto de vista psicológico[6]; o (pretium pulchritudinis), também designado por dano estético caracterizado por cicatrizes, deformações, dissimetrias e mutilações, com diminuição ou reflexo na beleza ou harmonia física do lesado[7]; o dano da distracção ou passatempo[8] (em francês: dommage «d'agrément»), correspondente à privação de actividades extra-profissionais de carácter lúdico e o dano existencial ou de afirmação pessoal[9].

No caso, há que sublinhar a via crucis em que a Autora se viu envolvida sem qualquer culpa sua, bem espelhada no seguinte quadro factual:

- Bateu com a cabeça no chão, arrastando-se pela estrada fora e ficando imobilizada uns metros mais à frente do local do embate.

- Logo após o acidente foi socorrida no local e transportada para a urgência do Centro Hospitalar do Alto Ave, E.P.E., em ….

- Permaneceu internada e em regime de observações no serviço de ortopedia até 15 de Outubro de 2008, sujeita a medicação, vários tratamentos e exames médicos, nomeadamente, Rx, TAC, soroterapia, administração de soros, injeções e analgesias.

- Foi submetida a tratamentos médicos às feridas que sofreu na face, sendo suturada com pontos.

- Nesse período, foi submetida a uma intervenção cirúrgica - osteossíntese com placa DCS e aplicação de parafusos interfragmentários.

- Entre 11 de Novembro de 2008 e 11 de Outubro de 2010 seguiu os tratamentos médicos e consultas sob a alçada dos serviços clínicos da Ré, na cidade do Porto, onde se deslocou a 11, 18 de Novembro e 11 de Dezembro de 2008, 5, 27 de Janeiro, 17 de Fevereiro, 16 de Março, 6, 28 de Abril, 21 de Maio, 2, 25 de Junho, 20 de Julho, 13 de Agosto, 7, 8 de Setembro, 8, 27 de Outubro, 19, 27 de Novembro e 22 de Dezembro de 2009, 5, 12, 19 de Janeiro, 23 de Fevereiro, 30 de Março, 27 de Abril, 25 de Maio, 22 de Junho, 13 de Julho, 17 de Agosto, 28 de Setembro e 11 de Outubro de 2010.

- Por solicitação dos serviços clínicos da Ré, efectuou tratamentos de fisioterapia para recuperação, todos os dias, com início em 18 de Novembro de 2009, com uma fisioterapeuta que se deslocava a sua casa, por impossibilidade física de a mesma o fazer.

- Como as dores se intensificavam, apesar da fisioterapia e dos tratamentos médicos, os serviços clínicos da Ré concluíram pela necessidade de ser submetida a nova intervenção cirúrgica para reparar as mazelas físicas na perna direita provocadas pelo acidente.

- Em 5 de janeiro de 2010 foi submetida a uma cirurgia de compensação, na cidade do Porto, aí permanecendo internada até 8 de Janeiro de 2010, em total repouso, limitada nos seus movimentos.

- Reiniciou os tratamentos de fisioterapia em 12 de janeiro de 2010, que se prolongaram até 11 de outubro de 2010.

- Teve a ajuda de terceira pessoa, durante largo período, a fim de a auxiliar a movimentar-se e a fazer as lides domésticas.

- Em consequência do acidente sofreu lesões, nomeadamente, fratura supracondiliana do fémur direito e, além doutras, ferida com oito centímetros de comprimento na região frontal.

- No dia 15 de outubro de 2008, regressou à habitação onde, por indicação médica, permaneceu em total repouso.

- Desde então e até, pelo menos, ao mês de Abril de 2009, só se deslocava em cadeira de rodas e, a partir de abril de 2009, só se conseguia movimentar com a ajuda de terceiros ou com canadianas.

- Por força das lesões sofridas no acidente, ficou afetada de sequelas de carácter permanente, nomeadamente, cicatriz na zona da face externa do 1/3 distal da coxa, com 21 cm, cicatriz arciforme, com 8 cm na região frontal, cicatriz, com 2 cm, no mento, cicatriz, com 1 cm, na região orbitaria esquerda, flexo do joelho de 20 graus, rigidez articular do joelho direito na flexão de 70º, o que representa um défice funcional permanente da sua integridade físico-psíquica de, pelo menos, 26 pontos.

- Essa desvalorização reduz a sua capacidade de trabalho, tem vindo a agravar-se e causa-lhe dificuldades no dia-a-dia.

- Reside a cerca de 4 km do Centro de Saúde de … e a 45 km dos serviços clínicos da Ré.

- Era uma mulher trabalhadora, dinâmica e alegre, gozava de boa saúde e não apresentava qualquer deficiência motora ou estética.

- Realizava de forma autónoma as tarefas domésticas (refeições, limpezas, arrumações e outras próprias de qualquer lar) e as de higiene pessoal.

- Ocupava ainda parte dos seus tempos livres a dar caminhadas.

- Ficou impossibilitada de continuar a exercer a profissão de … como vinha fazendo desde os 14 anos.

- Não tem formação profissional que lhe permita exercer outra profissão que não a de ….

- Em consequência do acidente ficou com uma IPP de 49,2495% e com dificuldades em andar, em permanecer de pé, em subir e descer escadas e ao ajoelhar-se.

- Anda com claudicação e necessita, por vezes, de canadianas ou de apoio de outras pessoas.

- Sofreu dores de grau 5 numa escala de 1 a 7 e abalo psíquico decorrente de se ver acidentada.

- Durante a ocorrência do acidente e após o mesmo chegou a recear perder a vida.

- Durante os períodos de internamento hospitalar e de total repouso viu-se privada da companhia assídua de familiares, amigos e de desempenhar as actividades domésticas, de recreio e lazer a que estava habituada.

- Foi submetida a duas intervenções cirúrgicas com anestesia geral, bem como a dolorosos e numerosos tratamentos intensivos, incómodos e prolongados.

- Foi sujeita a aplicação de próteses que se manterão por toda a vida

- Ficou com o membro inferior direito encurtado em cerca de 2 cm e deixou de realizar de forma totalmente autónoma as tarefas domésticas como preparação de refeições, limpezas, arrumações e outras próprias de qualquer lar.

- Devido às cicatrizes e claudicação, padece de dano estético de grau 4 numa escala de 1 a 7 e devido às dores de que ainda padece foi forçada a abandonar as caminhadas que fazia.

- Nos dias de mudança de tempo, tem dores no joelho direito.

- Padece de dores musculares desde a data do acidente.

- Esses factos provocam-lhe tristeza, inibição e depressão.

- As dificuldades físicas com que ficou após o acidente trazem-lhe dificuldades de relacionamento com mulheres saudáveis da sua idade.

- Em consequência do acidente passou a ter dores de cabeça frequentes, insónias, dificuldades em dormir e grande irritabilidade.

- Passou a ter de tomar calmantes e ansiolíticos e teve necessidade de acompanhamento psicológico a fim de tentar superar o trauma causado pelo acidente.

- As lesões físicas causadas pelo acidente têm vindo a agravar-se desde a data da alta, necessita de continuar a fazer fisioterapia para atenuar as dores que sente na perna direita e, no futuro, irá necessitar de tratamento cirúrgico, nomeadamente, artroplastia total do joelho.

Ponderando este quadro factual, em especial, as circunstâncias em que ocorreu o acidente (sem qualquer culpa da Autora), a extrema gravidade das lesões sofridas por esta, os dolorosos tratamentos a que foi sujeita, com destaque para as duas intervenções cirúrgicas, com anestesia geral, o longo período de clausura hospitalar e de tratamentos, as deslocações que teve que realizar para curativos e consultas, quer ao Porto quer a Vizela, a enorme incomodidade daí resultante, as graves e extensas sequelas anátomo-funcionais decorrentes do acidente, que se traduzem num deficit funcional permanente de elevado grau (26 pontos), correspondente a uma IPP de 49,2495% e a um dano estético de grau 4, numa escala de 1 a 7, as intensas dores sofridas (de grau 5, numa escala de 1 a 7), o desgosto e amargura de, com 43 anos de idade, se ver fisicamente limitada e sem perspectivas futuras, em termos laborais, consideramos que, não obstante a apontada limitação deste Tribunal, no que concerne à sindicância de indemnização com recurso à equidade, a indemnização de €45.000,00, a título de dano não patrimonial, foi fixada prudencialmente pelas instâncias e apresenta-se como razoável, ajustada, equilibrada e adequada às circunstâncias concretas do caso vertente.

Assim, também não se justifica, quanto a este tipo de dano, a sua elevação para o montante de €150.000,00 que pretende a Autora, cuja argumentação ex adversu não merece acolhimento. Tal montante apresenta-se desfasado do que é habitual atribuir em casos similares, sendo útil lembrar até que para o mais elevado dano desta natureza, o dano morte, o Estado atribuiu aos herdeiros das vítimas mortais dos fatídicos incêndios florestais que assolaram o país, no passado verão, montante bem inferior, abonando-se e tendo como referência, para o efeito, os valores fixados pela mais recente jurisprudência.   

Improcedem, pois, ou mostram-se deslocadas as conclusões das recorrentes a quem não assiste razão para se insurgirem contra o acórdão recorrido que não merece os reparos que lhe apontam nem viola as disposições legais que indicam.


IV – Decisão

Nos termos expostos decide-se negar ambas as revistas e confirmar o acórdão recorrido.

Custas de cada um dos recursos pela respectiva recorrente.


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         Anexa-se sumário do acórdão (art.ºs 663º, n.º 7, e 679º, ambos do CPC).

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Lisboa, 19 de Abril de 2018


António Joaquim Piçarra (relator)

Fernanda Isabel Pereira

Olindo Geraldes

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[1] Na versão aprovada pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, uma vez que o recurso tem por objecto decisão proferida já depois de 01 de Setembro de 2013 e o processo é posterior a 01 de Janeiro de 2008 (cfr. os seus art.ºs 5º, n.º 1, 7º, n.º 1, e 8º).
[2] Cfr, a título de exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 05/11/2009 (proc. nº 381-2002.S1), de 07/10/2010 (proc. n.º 839/07.6TBPFR.P1.S1), de 04/03/2014 (proc. 856/07.6TVPRT.P1.S1), de 18/06/2015 (proc. n.º 4323/12.8TBVNG.P1.S1), de 05/12/2017 (proc. n.º 1452/13.4TBAMT.P1.S1), de 14/12/2017 (proc. n.º 1520/04.3TBPBL-A.C1.S1), e de 14/12/2017 (proc. n.º 589/13.4TBFLG.P1.S1), todos acessíveis em www.dgsi.pt..
[3] Cfr, a este propósito, entre outros, os acórdãos do STJ de13/07/2017 (proc. n.º 3214/11.4TBVIS.C1.S1), de 25/05/2017 (proc. n.º 2028/12.9TBVCT.G1.S1), de 16/03/2017 (proc. n.º 294/07.0TBPCV.C1.S1), de 26/01/2017 (proc. n.º 1862/13.7TBGDM.P1.S1), de 12/01/2017 (proc. n.º 3323/13.5TJVNF.G1.S1), de 14/12/2016 (proc. n.º 5572/05.0TVLSB.L1.S1), de 10/11/2016 (proc. n.º 175/05.2TBPSR.E2.S1, de 03/11/2016 (proc. n.º 1971/12.0TBLLE.E1.S1), de 15/09/2016 (proc. 492/10.0TBBAO.P1.S1), de 05/12/2017 (proc. n.º 505/15.9T8AVR.P1.S1), de 14/12/2017 (proc. n.º 1520/04.3TBPBL-A.C1.S1), e de 14/12/2017 (proc. n.º 589/13.4TBFLG.P1.S1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[4] Seguida e preconizada, por exemplo, no acórdão do STJ de 04/12/2007 (proc. 07A3836), acessível em www.dgsi.pt.
[5] Cfr, neste sentido, o acórdão do STJ de 02/05/2012 (proc. n.º 1011/2002.L1.S1) que se reporta a caso muito similar, acessível em www.dgsi.pt.
[6] Cfr. Nuno Duarte Vieira, A missão de avaliação do dano corporal em direito civil, Sub Judice – Justiça e Sociedade, n.º 17, págs. 23 a 30, por João António Álvaro Dias, Dano Corporal, págs 365 a 368.
[7] Pode, porém, apresentar-se sob a vertente de dano patrimonial, no caso do artista de cinema ou de teatro, apresentador de televisão, manequim ou modelo, se o desfeiamento implicar a perda do emprego.
[8] Cfr., sobre estas componentes do dano não patrimonial, Rui Soares Pereira, A Responsabilidade por danos não patrimoniais, Coimbra Editora, 2009, págs. 110 a 114, e sobre a mudança do paradigma do homo economicus da época industrial para o homo ludicus ou aestheticus da época do lazer, cultura e informação, Cristopher Stanley, citado por João António Álvaro Dias, Dano Corporal, pág. 13.
[9] Cfr., a este propósito, Maria Manuel Veloso, Danos não patrimoniais, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil, Volume III, Direito das Obrigações, págs. 519 a 522.