Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
405/09.1TMCBR.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: FALTA DE NOTIFICAÇÃO
TESTEMUNHA
ARGUIÇÃO DE NULIDADE
NULIDADE DE SENTENÇA
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO
GRAVAÇÃO DA PROVA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/19/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO RELATIVA À MATÉRIA DE FACTO.
Doutrina:
- “Notas sobre o novo regime dos recursos no Código de Processo Civil”, in O Novo Processo Civil, Contributos da doutrina para a compreensão do novo Código de Processo Civil, caderno I, Centro de Estudos Judiciários, Dezembro de 2013, p. 395 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 201.º, 205.º, 685.º-B, 690.º-A, 712.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC) / 2013: - ARTIGOS 640.º, 662.º.
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EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS DA PROPOSTA DE LEI Nº 113/XII APRESENTADA À ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA, DE CUJA APROVAÇÃO VEIO A RESULTAR O ACTUAL CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, DISPONÍVEL EM WWW.PARLAMENTO.PT .
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 9 DE OUTUBRO DE 2008, WWW.DGSI.PT , PROC. Nº 07B3011, OU DE 18 DE JUNHO DE 2009, WWW.DGSI.PT , PROC. Nº 08B2998.
-DE 4 DE NOVEMBRO DE 2010, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 7006.05.1TBBRG.G1.S1 E JURISPRUDÊNCIA NELE CITADA, E AINDA OS ACÓRDÃOS DE 29 DE NOVEMBRO DE 2011, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 39/2002.E1.S1 OU DE 30 DE JUNHO DE 2011, WWW.DGSI.PT, PROC. 6450/05.9TBSXL.L1.S1.
Sumário :
I - Uma eventual não notificação de uma testemunha não determina, por si só, a nulidade da sentença, carecendo de ser invocada nos termos e prazos previstos nos arts. 201.º e 205.º do CPC.

II - A impugnação da decisão de facto, feita perante a Relação, não se destina a que este tribunal reaprecie global e genericamente a prova valorada em 1.ª instância, razão pela qual se impõe ao recorrente um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.

III - Não observa tal ónus o recorrente que identifica os pontos de facto que considera mal julgados, mas se limita a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham que cada um desses pontos fosse julgado provado ou não provado.

IV - A apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do NCPC (2013).

V - O incumprimento de tais ónus – prescritos para a delimitação e fundamentação do objecto do recurso de facto – impedem a Relação de exercer os poderes-deveres que lhe são atribuídos para o respectivo conhecimento.

Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:




1. Em 9 de Maio de 2009, AA instaurou uma acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra BB, com que casou em 25 de Setembro de 1966, sem convenção antenupcial. Como fundamento, invocou separação de facto durante mais de um ano (artigos 1781º e 1782º do Código Civil), por se terem separado definitivamente em 10 de Janeiro de 1982, data a partir do qual requereu que fossem fixados “os efeitos do divórcio (patrimoniais e outros) (…), nos termos e condições previstas no nº 2 do artigo 1789º e 1790º do Código Civil”.

A ré contestou, invocando incompetência territorial do tribunal e negando que o pedido tivesse fundamento; mas pediu, em reconvenção, que fosse decretado o divórcio, por “violação dos deveres conjugais, designadamente, dos de fidelidade, cooperação, respeito, assistência e coabitação”, nos termos dos artigos 1672º, 1674º, 1675º, 1676º e 1779º e 1781º, d), do Código Civil.

Requereu ainda que fosse “liminarmente indeferida” a pretensão de fixar os efeitos do divórcio desde a data indicada pelo autor e requereu que lhe fosse provisoriamente atribuída a casa de morada de família, que indicou.

O autor replicou, nomeadamente contestando a reconvenção.

A fls. 191, foi indeferido o pedido de atribuição provisória da casa de morada de família.

A acção e a reconvenção foram julgadas procedentes pela sentença de fls. 2360, que marcou, “nos termos do art. 1789º/2 do CC, porque tal foi requerido, (…) a data em que começou a separação, no ano de 1982/1983”.

A ré recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra.

Pelo acórdão de fls. 3674, e quanto ao que agora especialmente releva, foi decidido: rejeitar “o recurso no que se refere à impugnação da decisão que fixou a matéria de facto provada”; “não pode[r] haver lugar a um juízo sobre a necessidade da renovação da prova”, requerida pela recorrente, por não estarem preenchidos os requisitos para a reapreciação da decisão de facto; confirmar o acórdão recorrido, desatendendo as alegações de inconstitucionalidade “da desconsideração da culpa no divórcio” e de “aplicação do novo regime do divórcio a casamentos anteriormente celebrados”.

A ré recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça.

2. Nas alegações que apresentou, formulou as seguintes conclusões:


«I. O Douto Tribunal da Relação, ao rejeitar a reapreciação da matéria de facto, invocando impedimentos formais levados ao extremo, sustenta a manutenção da decisão de primeira instância não no exame da argumentação do Senhor Juiz a quo e análise da matéria discutida em audiência de discussão e julgamento, mas antes numa pura e simples não apreciação.

II. O que implica naturalmente um diverso enquadramento jurídico, ou seja, a confirmação pelo Tribunal da Relação da decisão do tribunal a quo, assenta em justificação diferente da que fundamentou a sua prolação pela primeira instância.

III. De toda a alegação do Recurso interposto, e não obstante não ter havido uma reapreciação da prova, resulta claro que no entender da Recorrente, toda a prova carreada para os autos e dele constante, implicaria necessariamente uma decisão diversa da proferida.

IV. Conforme se argumentou, tratando-se de uma acção em que são discutidas situações de carácter familiar e, portanto, com um cariz muitas vezes pessoal, a prova recai essencialmente no âmbito da prova testemunhal, sendo particularmente relevantes os depoimentos dos familiares mais directos.

V. Todavia, resulta da douta decisão, que o Senhor Juiz a quo valorizou substancialmente os depoimentos de pessoas estranhas ao casal, em termos de convivência familiar, em detrimento das declarações prestadas pelos filhos da Recorrente e Recorrido, fundamentando a sua opção na emotividade dos mesmos.

VI. Se é verdade que os mesmos depuseram com sentimento, não é menos verdade que o referido estado emocional é mais do que natural e espectável, não sendo por isso passível de censura ou desvalorização.

VII. Tanto mais que tais depoimentos foram corroborados pelos documentos supra referidos juntos pela Recorrente, que comprovam a existência de vida e economia em comum, bem como agressões à Ré pelo marido.

VIII. E ainda, os depoimentos das restantes testemunhas arroladas pela BB, nomeadamente vizinhos, antigas colegas de trabalho e pessoas com conhecimento directo dos factos ou que tiveram negócios com o casal (CC), que não foram valorados apesar de credíveis e conformes com os documentos supra referidos.

IX. Foram preteridos face a outros prestados por funcionários do Autor ou pessoas que nunca frequentaram a casa de ... ou que estavam de relações cortadas com a BB.

X. Facto este não reapreciado pelo Venerando Tribunal da Relação, apesar de estar na sua inteira disponibilidade, sendo certo que se trata de um poder-dever da Relação, que esta deve usar de acordo com a percepção que recolher dos autos (vide António Santos Abrantes Geraldes - Recursos no Novo código Processo Civil, 2a ed. Almedina).

XI. O que equivale a dizer, que a não reapreciação da matéria de facto nos termos do artigo 640° do C.P.C, não preclude, nem vincula ou prejudica a autonomia do Tribunal da Relação em efectuar a referida reapreciação, não colhendo a argumentação aduzida pelo Venerandos Juízes Desembargadores, sob pena, de se esvaziar todo efeito útil da nova consagração no C.P.C com as alterações introduzidas pela Lei 41/2013, do artigo 662°, que prevê a intervenção oficiosa do Douto Tribunal da Relação, sem necessidade ou vinculação da arguição de parte.

XII. Até porque, a rejeição apenas e tão só se refere à prova testemunhal, uma vez que já no que respeita à prova documental, a Recorrente não só cumpriu com o ónus que lhe competia, como também referiu expressamente porque é que a mesma impunha decisão diferente do da douta decisão. 

XIII. Assim sendo, devia ter sido a prova existente nos autos reapreciada, como também, foi cabalmente demonstrado que particularmente os documentos autênticos e oficiais fazem prova plena em juízo, não podendo ser elididos com prova hierarquicamente inferior, 364°, 371° e 376° do CC.

XIV. Pelos documentos juntos aos autos ressalta notoriamente “à vista” que o Recorrido manteve uma economia comum com a Recorrente, pelo menos até à entrada da primeira acção de divórcio, não meramente no sentido do seguimento da administração do património comum, mas antes de forma efectiva em que ambos partilhavam as despesas e lucros emergentes do referido património, impondo-se uma decisão totalmente diversa, quanto a esta matéria, do que ficou a constar na douta decisão.

XV. A verdade é que o Recorrido, manteve uma economia comum com a Recorrente, pelo menos até à entrada da primeira acção de divórcio, não meramente no sentido do seguimento da administração do património comum, mas antes de forma efectiva em que ambos partilhavam as despesas e lucros emergentes do referido património.

XVI. Apesar do princípio da livre apreciação da prova, não pode haver dois pesos e duas medidas para a mesma situação. Se quem elogia tem credibilidade, então quem critica, e com algum fundamento, também merece ser credível.

XVII. Assim, e atento ao supra exposto, a separação de facto entre o casal nunca poderia ter sido fixada a partir da data de 1982/1983, mas muito posteriormente, cerca de 2005, requerendo-se nos termos do artigo 662° n.º 2 do N C.P.C que seja determinada a renovação de prova conforme a Douta Relação entender por conveniente.

XVIII. Mais se diga que quanto à não admissão da impugnação da matéria de facto, que o Douto Tribunal da Relação fez uma interpretação limitadora e “strictu sensu" do preceituado no artigo 640º do CP.C

 XIX. A Recorrente, transcreveu, indicou o nome das testemunhas consideradas, indicou a data de prestação do depoimento, e a referência informática do seu iniciou e final em minutos, não sendo tecnicamente e humanamente possível, indicar o segundo, minuto ou hora em que a testemunha disse determinado facto ou indicou determinado evento, existindo para o efeito a devida transcrição, que serve de apoio para que o Douto Tribunal da Relação possa analisar o depoimento devidamente referenciado e identificado.

XX. O ónus que recai sobre o recorrente e imposto pelo artigo 640º do CP.C. não pode ser entendido como norma “castradora" e de teor restritivo, já que a identificação de todos os pontos concretos de determinado depoimento que se julga indevidamente decididos é uma tarefa impossível e incompatível com os prazos estabelecidos e meios disponíveis, particularmente se atendermos à complexidade do processo e duração de cada depoimento nos presentes autos.

XXI. Deste modo, o Douto Tribunal da Relação, não pode sob pena de vedar o segundo grau de recurso e de defesa à Recorrente, onerar “escolasticamente" a interpretação do artigo 640º do CP.C, que consideramos ter sido devidamente cumprido.

XXII. Pelo que nunca o Recurso poderia ter sido rejeitado na parte tangente à impugnação da matéria de facto testemunhal por falta de cumprimento do artigo 640º n.º 2 a).

XXIII. Assim, Subsidiariamente:

Invoca-se, nos termos e para efeitos do artigo 672º n.º l c), a contrariedade do presente Acórdão com outro já proferido, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito.

XXIV. Pois, na verdade resulta do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, e publicado no DR, I Série, n.º 77 de 18/04/2012, pg. 2068, que concluiu que (…)

XXV. Esta interpretação dada à equivalente norma penal do artigo 640º do C.P.C, mostra claramente que o Douto Acórdão em crise, faz uma análise restritiva e redutora do preceito em causa, o que não se concede.

XXVI. Há por isso Erro na Interpretação e Aplicação do Direito.

XXVII. Violou pois o Tribunal da Relação entre outras, as normas constantes dos artigos, 640º e 662º n.º 2 do N C.P.C.

XXXIII. Conforme se alegou em 22, 23, 24 e 25 deste articulado, foi junta aos autos pela Recorrente abundante prova documental destinada a efectuar contra-prova dos quesitos 2 a 5 e prova dos quesitos 1l, 12, 17, 18, 19, 20, 21,38,47,48,49,50 e 51, bem como declarações fiscais de IRS de IV A conjuntas até ao ano de 2007, assinadas por Autor e Ré, as quais se encontram junto à Contestação.

XXXIV. Em sede de recurso para o Venerando Tribunal da Relação, foi suscitada a questão documental com o intuito de proceder à alteração da resposta à matéria de facto e, em face da requerida alteração, o divórcio ser decretado com efeitos a partir da prolação da sentença, ou, se assim não se entendesse, após Maio de 2006, data da proposição da primeira acção de divórcio, a que corresponde a separação de facto de Recorrente e Recorrido a título pessoal e económico.

XXXV. A matéria em causa encontrava-se plasmada nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação, nomeadamente em 5,6,7,8,14,33 das alegações apresentadas e II, IV, V, VI, IX, XV das conclusões formuladas.

XXXVI. Porém, o Acórdão recorrido não se pronuncia sobre a alteração da resposta dada aos quesitos por via dos documentos apresentados no decurso do processo, nem sobre o efeito e valor probatório dos mesmos para alteração da fixação da data da separação de facto, questão esta objectivamente suscitada no recurso.

XXXVII. Isto é, o Douto Acórdão Recorrido, não se pronuncia sobre a questão objectiva que a Recorrente pretendia validar com a prova documental carreada para os autos.

XXXVIII. Verificando-se, por tal motivo, a omissão de pronúncia sobre questão objectivamente formulada, tendo ocorrido violação expressa dos artigos 615°, al. d) do C.P. C. e 674°, alo c) do mesmo Diploma Legal.

XXXIX. A omissão de pronúncia aqui alegada tem como consequência a nulidade do Acórdão total ou parcial, nulidade essa que se requer ver decretada, com as consequências legais daí decorrentes, nomeadamente a remessa dos Autos ao Tribunal da Relação para que este se pronuncie sobre a questão suscitada, ou se assim não se entender, o próprio Supremo Tribunal venha a suprir a nulidade, alterando a resposta aos quesitos a que os documentos se destinavam a fazer prova e contra-prova e, em consequência, igualmente, alterando a decisão tomada, por forma a ser decretado o divórcio com efeitos a partir da prolação da sentença, ou se assim não se entender, após Maio de 2006, data da primeira acção de divórcio, a que corresponde a separação de facto de A e R, a título pessoal e económico.

XL. O Douto Acórdão Recorrido entendeu que a irregularidade decorrente da falta de notificação da testemunha DD deveria ter sido suscitada em acto processual anterior à sentença. Ao decidir desta maneira, inviabilizou a pretensão da Recorrente que ao alegar a invocada nulidade, pretendia a repetição do julgamento.

XLI. Em nosso entender, a decisão proferida versa matéria de natureza legal e constitucional, porquanto ficou prejudicada a produção de prova por parte da Recorrente, uma vez que se tratava de um familiar seu com conhecimento directo dos factos, o qual poderia dar um contributo em termos probatórios, importante para a matéria em discussão e, consequentemente, no esclarecimento da verdade material e resposta aos quesitos a que viesse a ser indicado.

XLII. A não audição da testemunha, por motivo alheio à Recorrente que pagou a respectiva taxa que lhe foi solicitada para a audição em causa e, não foi, sequer, notificada pelo Tribunal da devolução da carta nem do motivo pelo qual a mesma foi devolvida, impossibilitando a sua substituição ou audição em, data posterior. Ao não ser notificada, naturalmente não poderia tomar posição sobre a questão em causa.

XLIII. Operou, assim, violação dos direitos legais e constitucionais de defesa, igualdade das partes e contraditório, impedindo a Ré de produzir prova plena e litigar em igualdade como Autor (artigos 3° e 4° do CPC e lº, 2°, 13° e 20° da CRP).

 Houve ainda violação dos artigos 629°, nº1 e n° 3 do CPC, com a redacção do Dec.Lei nº 303/2007 em vigor à data da inquirição e, actualmente, artigo 502°, nº 4, 508° e 521° do CPC, da Lei 41/2013 de 26/06.

 XLIV. O Douto Acórdão Recorrido viola também os artigos 615°, nº4 e 616° do CPC, porquanto ao não ser comunicado a devolução da notificação da testemunha DD, nada impedia que a questão viesse a ser levantada no recurso da decisão final, o que efectivamente veio a acontecer.

XLV. Os quesitos 2°, 3° e 5° deveriam ter sido dados como não provados, e todos os restantes, dados provados, com a excepção do quesito 36º, uma vez que só mais tarde é que o A se envolveu com a referida EE. Não foram em total contradição com a prova produzida em julgamento e documentos juntos aos autos. Situação tanto mais grave quanto grande parte dos documentos são autênticos (escrituras, contratos, notificações, citações e hipotecas), feitas por um, outro ou ambos em plena comunhão de vida e actividade económica e cujas datas se prolongaram, pelo menos durante 25 anos.

XLVI. Outros implicaram o pagamento e recebimento de dinheiro e ainda declarações perante a Administração fiscal para beneficiar das deduções e benefícios inerentes até 2007. Ou seja, o Autor não só afirmou perante a Administração Fiscal que era casado e tinha rendimentos comuns com a esposa como beneficiou daquele estatuto para pagar menos impostos.

Termos em que nos Doutamente supridos e nos mais de Direito, devem Vossas Excelências julgar procedente o presente Recurso, ordenando-se a reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação de Coimbra, de acordo com os fundamentos expostos, ou se assim não se entender, a renovação da prova nos termos do artigo 662º nº 2 do N C.P.C, e em consequência deve ser decretado o divórcio entre Recorrente e Recorrido com efeitos a partir da prolação da Douta Sentença, ou se assim não se entender, a partir de Maio de 2006, data da proposição da primeira acção de divórcio, a que corresponde a separação de facto de A e R a título pessoal e económico.

Mais se requer que seja decretada a nulidade do Acórdão Recorrido, por omissão de pronúncia relativamente à prova documental focada no Recurso, com a consequente reapreciação da mesma pelo Tribunal da Relação ou directamente pelo Supremo Tribunal, dando-se por provados os quesitos a que os mesmos se referiam e enumerados neste recurso e como não provados os quesitos 2 a 5 aos quais se destinavam a fazer contra-prova, alterando-se a decisão nos termos aqui já explicitados, isto é, com efeitos a partir da prolação da sentença ou da data de interposição da primeira acção de divórcio, Maio de 2006.

Por último, deverá também o Supremo Tribunal dar resposta à questão da não audição da testemunha DD, ordenando-se a repetição do julgamento para a sua audição.»

O recorrido contra-alegou, concluindo desta forma:


«I - Não vislumbramos, nem existe, qualquer deficiência no douto Acórdão objecto do

Recurso. Damos por reproduzido tudo o quanto já se disse nas presentes Contra-Alegações.

II - Pede a Recorrente a reapreciação da matéria de facto alegando que esta deveria ter ocorrido por intervenção oficiosa do Venerando Tribunal da Relação como garantia de Duplo Grau de Jurisdição. (…)

Julgando a Apelação interposta pela R, a Relação negou-se a apreciar a impugnação de parte da decisão sobre a matéria de facto, porque a apelante incumpriu os ónus que lhe eram impostos pela Lei. (…)

Tendo como base a gravação, a impugnação da matéria de facto, não foi efectuada tendo em atenção o preceituado no artigo 640° do CPC. A Recorrente não especificou os pontos de facto que considerava incorrectamente julgados, bem como não indicou os concretos meios de prova constantes da gravação ou outros elementos probatórios que, no seu entender, levariam a uma decisão divergente da tomada sobre a factualidade posta em crise e, ainda, em que sentido é que esta prova deveria ser interpretada. (…)

III - Possibilitando à prova produzida o recurso a um verdadeiro Duplo Grau de Jurisdição, faculta uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito. A consagração de um efectivo Duplo Grau de Jurisdição quanto à matéria de facto não deverá redundar na criação de factores de agravamento da morosidade na administração da justiça.

A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente) no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação. Não basta dizer que existem documentos "autênticos" e "oficiais". É preciso alegar quais são esses documentos e qual o teor que implica um julgamento diferente dos Autos. Não chega afirmar "Escrituras, contratos, notificações, citações e hipotecas feitas por um ou por outro". É preciso dizer quais e como devem ser tomados em consideração. O como é o mais importante. Todos os documentos foram tomados em conta nas respostas dadas à BI.

IV - Existe o Acórdão do Venerando Supremo Tribunal de Justiça para Fixação de Jurisprudência publicado no Diário da República (I Série, nº 77 de 18/04/2012). Este fixa Jurisprudência no seguinte sentido:

(…) Aquele Acórdão refere-se ao disposto na alínea b) do n° 3 do artigo 412° do CPP o que não permite uma interpretação extensiva ao CPC, (…)

V - A recorrente vem requerer a renovação da prova nos termos do n° 2 do 6620 do CPC por a Separação de Facto entre o casal ter sido fixado em 1982/1983. Não lhe assiste razão, pois, a renovação da prova nos termos do artigo 662° do CPC ocorre, apenas, quando os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, o que terá, necessariamente, que ser alegado pelo menos de forma sumária, mas fundamentada nas Alegações de Recurso.

Sem fundamento não pode haver renovação de prova. Não se descortina no processo qualquer razão que o fundamente (…)

VI - Não há, como a Recorrente alega, omissão de pronúncia relativamente à prova documental com violação da alínea d) do artigo 6150 e alínea c) do artigo 674°, ambos, do CPC (…)

VIII - Entende a recorrente que toda a prova carreada para os Autos e deles constante implicaria uma decisão diversa da proferida, isto é, que toda ela devia ser dada em sentido contrário. Fez o mesmo pedido em relação à matéria fáctica por si alegada como impugnação e causa de pedir na Contestação/Reconvenção. O que quer dizer que o que a R alegou na Contestação é falso.

IX - A recorrente, obrigatoriamente, deveria indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, indicar os concretos meios probatórios que teriam imposto uma decisão factualmente diversa da recorrida e indicar a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida em cada uma das questões de facto impugnadas. Com a sua actuação a recorrente violou o estatuído no artigo 640º do actual CPC devendo as suas alegações quanto à matéria de facto serem rejeitados como o foram (no 2 do artigo 640º do CPC).

X - Acresce, nos termos do preceito indicado, que a recorrente tem de indicar a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre cada uma das questões de facto impugnadas. Não lhe basta o "generalizar" dizendo impugna-se toda a matéria de facto dando como provados ou não provados. Não basta dizer "Impugna-se a resposta a todos os quesitos". Tem de indicar com exactidão os concretos meios probatórios e a resposta pretendida.

XI - Incumbe, ainda, à recorrente sob pena de imediata rejeição do recurso indicar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considera relevantes. No nosso entender a recorrente não procedeu à indicação com, exactidão, das passagens da gravação em que funda o seu recurso nem procedeu à transcrição dos excertos que considerasse relevantes (al. a) do nº 2 do citado artigo e Diploma). Dado que a recorrente não procedeu, como devia, obedecendo ao estatuído no artigo 640° do CPC deverão as alegações quanto à matéria de facto serem rejeitadas como foram pelo Venerando Tribunal da Re1ação.

(…) XIV - Não há qualquer erro na apreciação da prova e na aplicação do direito. Não se encontram violadas quaisquer normas jurídicas, mormente, as indicadas pela Recorrente.

XV - Não houve no Acórdão nem em qualquer outra peça processual violação de qualquer princípio, erro na apreciação da prova, na aplicação do direito ou quaisquer inconstitucionalidades.

XVI - Não se consideram violados quaisquer dos artigos, Diplomas Legais ou Constituição da República Portuguesa focados nas Conclusões.

XVII - Deverá o, douto, Acórdão e Sentença recorridos manterem-se nos seus precisos termos decretando-se, totalmente, improcedente o Recurso de Revista a que se responde.

Nestes termos e nos mais de direito, cujo douto e muito sábio suprimento se invoca, não deve dar-se provimento ao Recurso mantendo-se o, douto, Acórdão recorrido nos seus precisos termos.

Assim, se fazendo inteira e sã JUSTIÇA”.


Pelo acórdão de fls. 3861, a Relação pronunciou-se no sentido de não ocorrer a nulidade por omissão de apreciação da prova documental, arguida pela recorrente.


O recurso foi admitido.

3. Vem provado o seguinte (transcreve-se do acórdão recorrido):

«I – Autor e Ré contraíram casamento católico em 25-09-1966, sem convenção antenupcial de bens. – al. A) dos factos assentes;

II – Dessa relação, não existem filhos menores. – al. B) dos factos assentes;

III – A contestação-reconvenção foi junta aos autos em 15 de Fevereiro de 2010. – al. C) dos factos assentes;

IV – Após o casamento, o casal fixou residência na Rua …, Cadima – Cantanhede. – resposta ao quesito 1º;

V – Desde o ano de 1982/1983 que A. e Ré não partilham cama, mesa e habitação. – resposta ao quesito 2º;

VI – Passando a partir dessa data (ano de 1982/1983) o A. a viver em … com a Drª EE. – resposta ao quesito 3º;

VII – Permanecendo a R. até hoje a viver na casa de morada de família identificada em 1º. – resposta ao quesito 4º;

VIII – Desde a data referida no quesito 2º, apenas foi dado pelo A. seguimento à administração do património comum, intervindo ele sem a intervenção da R. ou representado pelos filhos, a quem outorgava procuração quando era exigida a intervenção de ambos. – resposta ao quesito 5º;

IX – O R. antes de iniciar o seu relacionamento com a Drª EE, teve outros relacionamentos. – resposta ao quesito 7º;

X – Desinteressando-se ele completamente, da mulher. – resposta ao quesito 9º;

XI – Em 1986 deixaram de ser pagas as prestações do crédito à habitação, na CAIXA FF, do imóvel da Rua …, em Coimbra. – resposta ao quesito 11º;

XII – A dívida foi liquidada em 1991, tendo sido usados na sua amortização cheques, uns sacados pela R. de conta pessoal sua, outros sacados pelo A. de conta conjunta com a Drª EE e ainda outros sacados pelo filho de conta conjunta deste, à ordem do A. – resposta ao quesito 12º;

XIII – Apresentaram A. e R. declaração conjunta de IRS e IVA comuns, até 2007, na sequência do seguimento da administração do património comum referido em 5º. – resposta ao quesito 14º;

XIV – O Autor deslocava-se diariamente a …, onde viviam os seus pais e a irmã (que sofre de trissomia 21) na casa por baixo da Casa de Morada de Família, bem como onde mantinha cães – o que ocorre até à actualidade – e guardava a sua colecção de viaturas (automóveis e motos) antigas. – resposta ao quesito 15º;

XV – Existiu uma empregada agrícola que se reformou em 1984, aí continuando a viver até à actualidade com a R., esclarecendo-se que nunca houve vacaria, o aviário acabou no final dos anos 70 e a pocilga em data indeterminada do início da década de 90. – resposta ao quesito 18º;

XVI – Na sequência da administração do património comum até data não apurada da década de 90, cultivou o casal géneros alimentícios – ervilhas, feijões e favas –, que vendiam a empresas, recolhendo os lucros. – resposta ao quesito 19º;

XVII – Nos mesmos termos (na sequência da administração do património comum até data não apurada da década de 90), cultivou também o casal as vinhas do casal, recebendo o A., sócio da Adega Cooperativa de Cantanhede, os lucros. – resposta ao quesito 20º;

XVIII – O Autor fez obras nuns anexos (aviários e pocilgas), para albergar o “museu” de automóveis e motos, em data não concretamente apurada. – resposta ao quesito 24º;

XIX – A Ré intentou em 20-02-2008 acção de anulação de negócios, que corre termos no Tribunal de Cantanhede. – resposta ao quesito 63º;

XX – A Ré é pessoa honesta, de boa formação moral e cívica, sendo considerada socialmente no meio em que vive. – resposta ao quesito 64º.

4. A recorrente coloca as seguintes questões:

– Indevida rejeição do recurso de apelação, na parte relativa à impugnação da decisão de facto;

– Dever de reapreciação da decisão de facto, pela Relação;

– Nulidade do acórdão recorrido, por omissão de reapreciação da prova documental;

– Repetição do julgamento, por falta de audição de uma testemunha, sem notificação da recorrente.

Subsidiariamente, a recorrente invoca contradição de jurisprudência, no contexto da revista excepcional (artigo 672º, nº 1, c) do Código de Processo Civil). Tal questão não será apreciada, por ser admissível o recurso apresentado a título principal.


5. Cumpre começar pela pretensão de repetição do julgamento, por “não audição da testemunha DD”. A recorrente insurge-se contra a rejeição da nulidade que arguiu perante a Relação, alegando não ter sido “notificada da devolução da carta” para comparecer no consulado “nem do motivo pelo qual a mesma foi devolvida” (alegações da apelação, fls. 2416), afirmando que, ao considerar que a eventual nulidade deveria ter sido arguida antes da sentença, a Relação “inviabilizou a pretensão da recorrente que ao alegar a invocada nulidade, pretendia a repetição do julgamento”.

No entanto, nada há a censurar ao acórdão recorrido. Independentemente de saber se a notificação foi efectuada, como sustenta o recorrido, a verdade é que a eventual omissão não provocaria a nulidade da sentença e teria de ser invocada nos termos então previstos nos artigos 201º e 205º do Código de Processo Civil, sendo manifesto que o prazo de arguição estava ultrapassado quando a questão foi suscitada nas alegações. É este o motivo da impossibilidade de apreciação da irregularidade que a recorrente aponta e que o recorrido nega; não tem fundamento atribuir ao acórdão recorrido a inviabilização de qualquer pretensão da recorrente de obter a repetição do julgamento nela fundada, nem, muito menos, sustentar que o acórdão recorrido lesou quaisquer “direitos legais e constitucionais de defesa, igualdade das partes e contraditório”.

Improcede, pois, a pretensão da recorrente.


6. A recorrente argui a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia; a apreciação desta nulidade está dependente de ter sido infringido o dever de apreciação da impugnação da decisão de facto com base na prova documental indicada, razão pela qual se passa à questão de saber (1) se a recorrente, na apelação, cumpriu os requisitos exigidos pelo artigo 640º do Código de Processo Civil para a impugnação da decisão de facto, (2) se, em caso de incumprimento, a Relação tinha o dever de reapreciação oficiosa, nos moldes do artigo 662º do Código de Processo Civil e (3) se há que distinguir entre a prova testemunhal e a prova documental, nos termos sustentados neste recurso


7. Como este Supremo Tribunal tem repetidamente recordado (cfr. por exemplo o acórdão de 4 de Novembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 7006.05.1TBBRG.G1.S1 e jurisprudência nele citada, e ainda os acórdãos de 29 de Novembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. nº 39/2002.E1.S1 ou de 30 de Junho de 2011, www.dgsi.pt, proc. 6450/05.9TBSXL.L1.S1), a impugnação da decisão de facto, feita perante a Relação, não se destina a que este tribunal reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, ainda que apenas se pretenda discutir parte da decisão, como sucede no caso presente, no qual a recorrente apenas pretende a alteração da “fixação da data em que começou a separação (…), 1982/1983” (alegações da apelação, a fls. 2401).

Como se diz no preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95 (…), “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.

Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.”

Nesse sentido, impôs-se ao recorrente um “especial ónus de alegação”, no que respeita “à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”, em decorrência “dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redacção do artigo 712º [actual 662º]) – e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1ª instância – possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito e julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta.

Daí que se estabeleça”, continua o mesmo preâmbulo, “no [então] artigo 690º-A, que o recorrente deve, sob pena de rejeição do recurso, além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, impunham diversa decisão sobre a matéria de facto. Tal ónus acrescido do recorrente justifica, por outro lado, o possível alargamento do prazo para elaboração e apresentação das alegações, consentido pelo nº 6 do [então] artigo 705”

O ónus especificamente criado foi, assim, justificado pela necessidade de impor ao recorrente uma “delimitação do objecto do recurso” e uma “fundamentação”, repete-se, tendo em conta o âmbito possível do recurso da decisão de facto, tal como foi concebido (cfr. acórdãos de 9 de Outubro de 2008, www.dgsi.pt, proc. nº 07B3011, ou de 18 de Junho de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 08B2998).

O artigo 690º-A do Código de Processo Civil foi posteriormente alterado pelo Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de Agosto. Continuou a incumbir ao recorrente que pretenda impugnar a decisão de facto proferida em primeira instância, para o que agora releva, “especificar (…) os concretos pontos de facto que [o recorrente] considera incorrectamente julgados” e “os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”. Mas, se “os meios probatórios invocados como fundamento de erro na apreciação das provas [tiverem] sido gravados”, passou a caber-lhe, “sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 522ºC”.

O artigo 690º-A veio a ser revogado pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, que em sua substituição acrescentou ao Código o artigo 685º-B, mantendo os ónus referidos (indicação dos concretos pontos de facto incorrectamente julgados e dos concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que implicassem decisão diversa da proferida, se for possível, “indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição”.


8. Como também se teve já a ocasião de observar (cfr. “Notas sobre o novo regime dos recursos no Código de Processo Civil”, in O Novo Processo Civil, Contributos da doutrina para a compreensão do novo Código de Processo Civil, caderno I, Centro de Estudos Judiciários, Dezembro de 2013, pág. 395 e segs)., a reforma do Código de Processo Civil de 2013 não pretendeu alterar o sistema dos recursos cíveis, aliás modificado significativamente pouco tempo antes, pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto; mas teve a preocupação de “conferir maior eficácia à segunda instância para o exame da matéria de facto”, como se pode ler na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII apresentada à Assembleia da República, de cuja aprovação veio a resultar o actual Código de Processo Civil, disponível em www.parlamento.pt .

Essa maior eficácia traduziu-se no reforço e ampliação dos poderes da Relação, no que toca ao julgamento do recurso da decisão de facto; mas não trouxe consigo a eliminação ou, sequer, a atenuação do ónus de delimitação e fundamentação do recurso, introduzidos em 1995. Com efeito, o nº 1 do artigo 640º vigente:

– manteve a indicação obrigatória “dos concretos pontos de facto” que o recorrente “considera incorrectamente julgados” (al. a),

– manteve o ónus da especificação dos “concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos de facto impugnados diversa da recorrida” (al.b),

exigiu ao recorrente que especificasse “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (al. c), sob pena de rejeição do recurso de facto. E à mesma rejeição imediata conduz a falta de indicação exacta “das passagens da gravação em que se funda” o recurso, se for o caso, sem prejuízo de poder optar pela apresentação da “transcrição dos excertos” relevantes.

Cumpridos os requisitos assim definidos para a delimitação e fundamentação da impugnação da decisão de facto, então caberá à Relação julgar o recurso, dispondo para o efeitos dos poderes reforçados do actual artigo 662º (correspondente ao anterior artigo 712º, com alterações). Assim, e em breve síntese, resulta deste preceito que a Relação deve

– nº 1 – proceder à alteração da decisão de facto, utilizando as provas constantes do processo,

 – nº 2, a) – proceder a essa alteração, com renovação de prova (a requerimento ou oficiosamente), se houver dúvidas quanto à “credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento”, e não só em caso de ser “absolutamente indispensável ao apuramento da verdade”, como se exigia no anterior artigo 712º,

– nº 2, b) – proceder a essa alteração, determinando (a requerimento ou oficiosamente) a produção de novos meios de prova, em complemento da prova produzida, se houver “dúvida fundada sobre a prova realizada”, o que constitui novidade,

– nº 2, c) – em último caso, anular a decisão recorrida, em caso de insuficiência, obscuridade ou contradição na decisão de facto.


9. Da leitura atenta das alegações apresentadas no recurso de apelação resulta claramente que a recorrente identificou os pontos de facto que considera mal julgados, por referência aos quesitos da base instrutória, mas limitou-se a indicar os depoimentos prestados e os documentos que listou, sem fazer a referência indispensável àqueles pontos de facto, especificando que concretos meios de prova impunham que cada um desses pontos fosse julgado provado ou não provado. Ao que acresce que a apresentação das transcrições globais dos depoimentos não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do nº 2 do artigo 640º do Código de Processo Civil.

Tanto basta para se concluir que não procedem as observações dirigidas ao acórdão recorrido, no que respeita à rejeição do recurso relativo à matéria de facto. Apenas se reitera que o incumprimento dos ónus prescritos para a delimitação e fundamentação do objecto do recurso de facto, impostos pelos nºs 1 e 2 do artigo 640º, impedem a Relação de exercer os poderes-deveres que lhe são atribuídos para o respectivo conhecimento.


10. Fica igualmente justificada a improcedência da arguição de nulidade, por falta de consideração da prova documental junta. Em qualquer caso, caberia ao recorrente ter especificado o concreto efeito de cada um dos documentos, quanto aos pontos de facto que tem por mal decididos.


11. Nada mais havendo que apreciar, resta negar provimento ao recurso.


Custas pela recorrente



Lisboa, 19 de fevereiro, 2015



Maria dos Prazeres Beleza (Relatora)


Salazar Casanova


Lopes do Rego