Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
108/10.4PEPRT-G. S1
Nº Convencional: 5ª SESSÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: PRISÃO ILEGAL
REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DO RECURSO
TRÂNSITO EM JULGADO
FÉRIAS JUDICIAIS
PROCESSO URGENTE
Data do Acordão: 08/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: DEFERIDO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – ACTOS PROCESSUAIS / TEMPO DOS ACTOS E ACELERAÇÃO DO PROCESSO – MEDIDAS DE COACÇÃO E DE GARANTIAS PATRIMONIAL / MEDIDAS DE COACÇÃO / MODOS DE IMPUGNAÇÃO / HABEAS CORPUS EM VIRTUDE DE PRISÃO ILEGAL.
DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS / HABEAS CORPUS.
Doutrina:
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, Volume I, Coimbra Editora, 2007, p. 508.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 104.º, N.º 2 E 222.º, N.º 2, ALÍNEAS A), B) E C).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 31.º, N.ºS 1 E 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 5/95.
Sumário :
I - Nos termos do art. 222.º, n.º 2 do CPP, o pedido de habeas corpus, em relação a pessoa presa, a ilegalidade da prisão deve ser proveniente de aquela prisão: a) ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.
II - Tem sido entendimento unânime que os prazos legais para a prática de atos processuais correm em férias sempre que haja arguidos presos e ainda que nem todos os arguidos estejam presos. Todavia, aqueles prazos não correm em férias quanto à prática de actos processuais no âmbito de processos em que nenhum dos arguidos esteja preso (AFJ 5/95). Há um interesse de celeridade processual relativamente à prática de todos os atos que de algum modo, quer directa quer indirectamente, possam obstar àquela celeridade e com isso lesar de forma agravada a liberdade daqueles que se encontram presos.
III - Entende-se que atos relativos a arguidos não presos, em processos em que outros co-arguidos estão presos, devem ser entendidos como atos urgentes cujos prazos correm em férias, de modo a não se permitir que incidentes provocados por co-arguidos não presos diminuam a celeridade processual necessária para aqueles que se encontram privados da liberdade.
IV - Mas, esta celeridade deixa de ser relevante quando já ocorreu o trânsito em julgado (relativamente a todos os arguidos) da decisão condenatória. Nestes casos, o interesse subjacente à execução consagrada no art. 104.º, n.º 2, do CPP, deixa de existir. Aquela exigência de celeridade na tomada da decisão de modo a encurtar o mais possível o processo até que se obtenha uma decisão definitiva sobre a necessidade (ou não) de privação de liberdade já não existe; já foi decidido de forma definitiva a privação (ou não) da liberdade relativamente a todos os sujeitos processuais.
V - No caso, temos uma decisão de revogação da suspensão da execução da pena, em que o arguido estava em liberdade, pelo que a interposição do recurso e a contagem do prazo para a sua interposição, se não correr em férias judiciais não lesa nem agrava a liberdade do arguido. E apesar de vários co-arguidos estarem presos à ordem deste processo, o certo é que qualquer recurso sobre a decisão de revogação da suspensão da execução da pena de prisão em nada, afecta, nem directa nem indirectamente, ou outros co-arguidos presos, pelo que não se justifica uma alteração da regra geral em matéria de contagem de prazos.
VI - Tendo em conta que a decisão de revogação de suspensão da execução da pena de prisão é de junho de 2018 e considerando-se notificado o arguido em 25-06-2018 então, quando o peticionante foi preso, em início de agosto, ainda não tinha transitado em julgado a decisão de revogação da suspensão da execução da pena de prisão, pelo que não poderia ter sido o arguido preso, uma vez que o decurso do prazo para interposição do recurso ainda não tinha expirado. Estando o arguido preso ilegalmente, fundando-se em facto pelo qual a lei não permite aquela prisão, está preenchido o fundamento de habeas corpus previsto no art. 222.º, n.º 2, al. b), do CPP.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I Relatório

1.1.AA, arguido no âmbito do processo n.º 108/10.4PEPRT, foi condenado (entre outros), por acórdão de 27.02.2015 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto (Juízo Central Criminal do Porto, Juiz 9), pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, nos termos do art. 21.º, n.º 1, do Decreto Lei n.º 15/93, de 22.01, com referência às tabelas I-A, I-B e I-C (anexas ao diploma referido), na pena de prisão de 4 anos e 3 meses, substituída pela pena de suspensão da execução da pena de prisão por igual período, com regime de prova, mediante plano individual de readaptação social, com a imposição dos seguintes deveres (para além de outros que se viessem a revelar necessários de acordo com o plano individual a estabelecer pelo DGRS): aquisição de competências pessoais e sociais, exercício de atividade profissional e comparência no Tribunal e na DGRS sempre que convocado.

O agora peticionante não recorreu da decisão condenatória, pelo que se considerou que a decisão transitou em julgado tal como decorre do despacho (de 27.05.2015) a fls. 316 e ss, em particular, fls. 317 e 318, destes autos; o trânsito em julgado desta decisão ocorreu a 27.05.2015 (cf. certidão a fls. 9).

O período de suspensão da execução da pena de prisão do peticionante acabaria a 27.08.2019 (cf. fls. 319/verso destes autos).

1.2. AA esteve em prisão preventiva de 11.03.2016 até 19.04.2017 à ordem de um outro processo — processo n.º 1/16.7SFPRT (a 19.04.2017, AA retomou o acompanhamento pela DGRSP). No âmbito do processo n.º 1/16.7SFPRT, que correu os seus termos no Juízo Central Criminal, Juiz 14, foram prolatados o acórdão a 19.04.2017 e, a 14.12.2017, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de onde resultou a condenação do arguido AA pela prática, entre 07.01.2016 e 10.03.2016, de um crime de tráfico de estupefacientes, de menor gravidade, nos termos do art. 25.º, al a), do Decreto Lei n.º 15/93. de 22.01, na pena de prisão (efetiva) de 1 ano e 3 meses (cf. fls. 319/verso e 320, destes autos).

Encontra-se igualmente a decorrer contra o arguido o processo n.º 2/18.0SFPRT, estando indiciado pela prática, em 09.01.2018, de um crime de tráfico de estupefacientes; foi proferida acusação, e o arguido encontra-se sob a medida de coação de permanência na habitação com vigilância eletrónica.

1.3. Neste seguimento, e após audição do arguido, por decisão de 13.06.2018, foi revogada a suspensão da execução da pena de prisão e determinado o seu efetivo cumprimento (cf. em particular fls. 321).

Esta decisão foi notificada, a 14.06.2018, por via postal simples com prova de depósito (cf. fls. 322); o depósito ocorreu a 19.06.2018 (cf. fls. 323 e certidão a fls. 9) e considerou-se o arguido notificado a 25.06.2018 (cf. certidão a fls. 9); porque, até 25.07.2018, o arguido não recorreu, esta decisão considerou-se transitada em julgado na data referida (cf. certidão a fls. 9).

1.4. Foram emitidos os competentes mandados de detenção e o peticionante foi preso, para cumprimento de pena aplicada nos presentes autos, a 09.08.2018 (cf. fls. 333-335).

1.5. A liquidação de pena homologada considera que o cumprimento de metade da pena ocorrerá a 24.09.2020, a 09.06.2021 estarão decorridos dois terços do tempo a cumprir, terminando o cumprimento a 09.11.2022 (cf. fls. 336 e 339).

2.AA vem agora, por intermédio do seu advogado, e em peça processual autónoma, requerer a providência de habeas corpus ao abrigo do disposto nos arts. 103.º, n.º 1, 104.º, n.º 1 e 222.º, n.º 2, al. b), do CPP (Código de Processo Penal) e no art. 32.º, da CRP (Constituição da República Portuguesa), com os seguintes fundamentos:

«1.º — O arguido foi condenado, em primeira instância, à ordem destes autos, na pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período - Tudo conforme certidão da condenação do arguido em primeira instância, de onde conste expressamente que o mesmo não interpôs recurso daquela decisão, que ora se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais - DOCUMENTO N.º 1.

 2.º — Não obstante os diversos recursos interpostos pelos vários coarguidos, a decisão condenatória acabou por transitar em julgado no que se refere ao aqui suplicante, ficando este condenado na mesma pena que havia sido decidida em primeira instância, ou seja, em 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período. - Cfr. Jurisprudência uniforme e reiterada do Supremo Tribunal de Justiça, entre outros, Acórdão do STJ de 07-07-2005 - Tudo conforme certidão de onde conste a data de trânsito em julgado da decisão definitiva, que ora se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais - DOCUMENTO N.º 2

3.º — Sendo que, com o trânsito em julgado daquela decisão, todos os arguidos que estavam presos à ordem destes autos passaram a estar em cumprimento efetivo das penas que lhe foram aplicadas.

4.º — Posteriormente, em 13 de junho de 2018, pelos motivos constantes do despacho de fls_, dos autos, foi proferida decisão, relativamente ao arguidoAA, que revogou a suspensão da pena de 4 anos e 3 meses em que o mesmo havia sido condenado. - Tudo conforme certidão daquela decisão, a qual ora se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais - DOCUMENTO N.º 3

5.º — Tal decisão foi notificada ao arguido com prova de depósito, por carta expedida no dia 14 de junho, a qual veio a ser depositada no passado dia 19 de Junho - Tudo conforme certidão da decisão de revogação da suspensão da pena aplicada e, de onde conste expressamente a data em que o arguido se considerou notificado.- DOCUMENTO N.º 3

 6.º — O que significa que o arguido apenas se pode considerar notificado da decisão da revogação daquela pena, nos termos do disposto no artigo 113.º n.º 3 do Código Processo Penal, no 5.º dia posterior à data do depósito, ou seja, no dia 24 de junho de 2018.

7.º — E, como nos autos, com o trânsito em julgado da decisão, todos os arguidos que se encontravam presos preventivamente, passaram a estar em cumprimento efectivo de pena, extinguiram-se, por conseguinte, os motivos que determinam a classificação do processo como urgente, deixando assim os prazos de correr em férias.

8.º — Pois, como o processo deixou de ter natureza excepcional decorrente da alínea a) do n.º 2 do artigo 103.º do Código de Processo Penal, os prazos para a prática dos actos processuais passaram a obedecer ao regime normal para a prática dos demais actos.

9.º — Pelo que, o prazo de 30 dias para a interposição do respetivo recurso não corre em férias e, como tal, só terminará no próximo dia 10 de Setembro de 2018.

10.º  — Pois, o disposto nos artigos 103.º n.º 2 alínea a) e 104.º n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, não é aplicável ao recurso interposto em processo à ordem do qual inexistam arguidos presos, ainda que o recorrente esteja preso à ordem de outro processo. - Cfr. Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 5/95, de 27 de setembro de 1995 (DR, I Série, de 14 de dezembro de 1995).

11.º — Sucede que, nestes autos, foi ordenado que o arguido fosse desligado do processo em que se encontrava sujeito a O.P.H.V.E - Processo n.º 2/18.0SFPRT - e colocado à ordem destes autos para cumprimento da pena - Tudo conforme certidão do despacho de fls , com a referência 395315075 e 395327981, notificação do desligamento do arguido e consequente ligamento aos presentes autos, que se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais - DOCUMENTO N.º 4 e 5.

12.º — Tendo os mandados de detenção sido cumpridos no passado dia 09/08/2018.

13.º — Ou seja, quando a decisão de revogação de suspensão da pena ainda não tinha transitado em julgado, nem, conforme assinalado, o processo tinha, naquele momento, a natureza de urgente, pelo que o arguido estava ainda em prazo para interpor o respetivo recurso.

14.º — Impõe-se, pois, concluir que o arguido está ilegalmente preso desde 9 de Agosto de 2018.

 15.º — Atento tudo quanto se referiu, e se tratava de um erro manifestamente grosseiro e evidente na aplicação do direito, que podia ter resultado de um mero lapso do Tribunal, o arguido requereu a sua imediata libertação, no passado dia 9 de Agosto - Tudo conforme consta da certidão do requerimento apresentado pelo arguido que ora se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais - Documento n.º 6

16.º — No entanto, o Tribunal entendeu considerar, ainda assim, ser de manter o recorrente preso, por entender que:

"...Requerimento de fls. 20367-20368: Salvo o devido respeito por entendimento diverso, afigura-se-nos que tendo sido proferida decisão considerando transitado despacho anterior que determinou a revogação da suspensão da execução da pena imposta ao requerente, o meio próprio para lograr a respectiva revogação é a interposição de recurso (que, destinando-se a garantir a liberdade do arguido, tem carácter urgente), o que o requerimento em apreço não constitui.

Sendo assim, pois, e nessa medida, indefere-se o requerimento de fls. 20367- 20368.

Tudo conforme consta da certidão do despacho que se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais - Documento n.º 7

17.º — De acordo com a lógica daquele despacho, sempre que estivesse em causa uma decisão condenatória - maxime de prisão efectiva - e, mesmo estando o arguido ainda em liberdade, o processo passaria a revestir a natureza urgente pois, em todos esses casos, o recurso destinar-se-ia, também, a garantir a liberdade do arguido, o que de todo não corresponde à realidade processual vigente.

18.º — Certo é que a posição vertida naquele despacho adultera em absoluto a lógica legislativa e em nada altera a natureza de prisão ilegal em que o arguido se encontra.

19.º — Salvo o devido respeito, relativamente ao aqui arguido, antes da prisão (ilegal) de 09-08-2018, o processo continuava a não ter a natureza de processo urgente, quanto aos prazos processuais, pelo que haveria que aguardar-se pelo trânsito em julgado do despacho que revogou a suspensão da pena - o que só acontece depois do dia 10 de setembro.

20.º — Trata-se pois de uma situação de violação directa, imediata, patente, e grosseira, que determina uma prisão flagrantemente ilegal, merecendo por isso a tutela da presente providência.

21.º — Nesta conformidade, o arguido encontra-se desde 09/08/2018, data em que foi dado cumprimento ao despacho que considerou transitado em julgado a revogação da suspensão da pena que lhe foi aplicada, em situação de prisão ilegal, nos termos do disposto nos artigos 32.º da Constituição da República Portuguesa, 103.º n.º 1, 104.º n.º 1 e 222.º n.º 2 alínea b) do Código de Processo Penal.

 22.º — Pelo que se impõe a libertação imediata do arguido.

Termos em que, requer a V. Ex, ao abrigo do disposto no artigo 222º n.º 2 alínea b) do Código de Processo Penal, se digne conceder providência de habeas corpus, ordenando a libertação imediata do suplicante, em face da violação do disposto nos artigos 32.º da Constituição da República Portuguesa, 103.º n.º 1, 104.º n.º 1 e 222.º n.º 2 alínea b), todos do Código de Processo Penal.»

            2. Ao abrigo do disposto no art. 223.º, n.º 1, do CPP, foi prestada a seguinte informação:

« A) Síntese factual (factos e incidências processuais):

1) Por acórdão datado de 2/3/2015, transitado em julgado, foi o arguido AA condenado na pena de 4 anos e 3 meses de prisão, cuja execução ficou suspensa por igual período temporal, com regime de prova, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º, nº 1, do DL nº 15/93, de 22/1.

2) No decurso da execução da referida pena suspensa, foi proferida decisão de revogação da suspensão, por se ter considerado que, com a prática de novo crime doloso, o arguido demonstrou o fracasso da suspensão.

Tal decisão, datada de 13/6/2018 (cfr. fls. 20.283 e seguintes do processo principal), foi notificada ao arguido, por via postal, tendo a respectiva carta para notificação sido depositada no dia 19/6/2018 (cfr. fls. 20.289)

3) Através do requerimento constante de fls. 20.367/20.369, e perante a detenção para cumprimento da pena de prisão aplicada nos presentes autos – ocorrida no dia 9/8/2018 -, veio o arguido requerer que o pedido de desligamento do processo à ordem do qual estava sujeito a OPHVE – processo 2/18.0SFPRT – e colocação à ordem dos presentes autos, para cumprimento de pena, fosse considerado “sem efeito”, uma vez que, na sua perspectiva, não tendo o presento processo carácter urgente, o prazo para interposição de recurso do despacho que determinou a revogação da suspensão apenas terminaria no dia 10/9/2018.

4) Pronunciou-se o Ministério Público, nos termos da promoção constante de fls. 20.370 (cujo teor aqui se dá por reproduzido), e foi proferido o despacho de fls. 20.371/20.372, que indeferiu a pretensão do arguido.

5) Por despacho constante de fls. 20.383, foi homologada a liquidação da pena de prisão aplicada ao arguido AA (cfr. fls. 20.381).


*

B) Síntese jurídica e conclusão:

Nos termos do art. 31.º, n.º 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, o interessado pode requer, perante o tribunal competente, a providência de habeas corpus em virtude de detenção ou prisão ilegal. “Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade” constituindo uma “garantia privilegiada” daquele direito (cf. Gomes Canotilho, /Vital MOREIRA, Constituição da República Portuguesa — Anotada, vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, anotação ao art. 31.º/ I, p. 508 – citação constante do acórdão do STJ de 29/6/2017, disponível em www.dgsi.pt).

Exigem-se cumulativamente dois requisitos: 1) abuso de poder, lesivo do direito à liberdade, enquanto liberdade física e liberdade de movimentos e, 2) detenção ou prisão ilegal (cf. neste sentido, ibidem, anotação ao art. 31.º/ II, p. 508). Nos termos do art. 222.º, n.º 2, a ilegalidade da prisão deve ser proveniente de aquela prisão “a) ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”.

O arguido AA, requerente desta providência, entende que deve ser libertado, por considerar que a privação da liberdade a que está sujeito é ilegal, uma vez que, não dispondo o presente processo, quanto a ele, natureza urgente, encontrava-se ainda em curso o prazo para interposição de recurso do despacho que determinou a revogação da suspensão e consequente cumprimento efectivo da pena de prisão.

Consideramos, contudo, não lhe assistir razão.

Na verdade, como salientou o digno Procurador da República na promoção de fls. 20.370, tratando-se de um processo de natureza urgente, por à sua ordem estarem diversos arguidos a cumprir penas de prisão efectiva, os prazos correm em férias.

Dispõe o nº 2 do artigo 104º do Código de Processo Penal sobre a epígrafe “contagem dos prazos de actos processuais” que “Correm em férias os prazos relativos a processos nos quais devam praticar-se os actos referidos nas alíneas a) a e) do nº 2 do artigo anterior”.

Por seu turno o artigo anterior, 103º, preceitua o seguinte:

1. Os actos processuais praticam-se nos dias úteis, às horas do expediente dos serviços de justiça e fora do período de férias judicias.

2. Exceptuam-se do disposto no número anterior

a) Os actos processuais relativos a arguidos detidos ou presos, ou indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas.

Deste modo, e como é salientado no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24/1/2018 (e também disponível em www.dgsi.pt), resulta de forma cristalina da letra da lei que correm em férias judiciais os prazos relativos a processos (artigo 104º, nº 2) em que haja arguidos detidos ou presos (artigo 103º, nº 2, a)), independentemente de no mesmo processo existirem arguidos que não se encontrem nessa situação.

A tese do arguido/requerente escamoteia, pois, completamente a previsão do artigo 104º do Código de Processo Penal, clarividente na sua referência a processos e não a actos, sendo certo que é neste preceito que vem previsto que os prazos correm em férias.

Pelo exposto, e uma vez que, à data da prisão do arguido/requerente (9/8/2018), o despacho que determinou a revogação da suspensão já havia transitado em julgado, consideramos inexistir qualquer ilegalidade inerente à sua prisão.»

3. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, teve lugar a audiência pública, nos termos dos arts. 223.º, n.º 3, e 435.º do CPP.

Há agora que tornar pública a respetiva deliberação e, sumariamente, a discussão que a precedeu.

II Fundamentação

1. Nos termos do art. 31.º, n.º 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, o interessado pode requerer, perante o tribunal competente, a providência de habeas corpus em virtude de detenção ou prisão ilegal. “Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade” constituindo uma “garantia privilegiada” daquele direito (cf. Gomes Canotilho, /Vital Moreira,  Constituição da República Portuguesa — Anotada, vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 20074, anotação ao art. 31.º/ I, p. 508).

Exigem-se cumulativamente dois requisitos: 1) abuso de poder, lesivo do direito à liberdade, enquanto liberdade física e liberdade de movimentos e, 2) detenção ou prisão ilegal (cf. neste sentido, ibidem, anotação ao art. 31.º/ II, p. 508). Nos termos do art. 222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), a ilegalidade da prisão deve ser proveniente de aquela prisão “a) ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente; b) ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”.

2.  AA encontra-se preso, em cumprimento de pena, após revogação da pena de substituição da suspensão da execução da pena de prisão, uma vez que se considerou ter transitado em julgado a decisão revogatória.

Na verdade, se se considerar que o prazo de interposição de recurso para decisão que revogou a pena de prisão já havia sido ultrapassado, porque aquele prazo corre em férias uma vez que havia arguidos presos à ordem deste processo, pese embora o agora peticionante não estivesse preso, o arguido AA está legalmente preso, pois foi deliberada por autoridade competente, e por facto que a lei admite — a prática dos crimes por que vem condenado.

Pelo contrário, se se entender que o prazo ainda não havia expirado, porque o seu decurso não corre em férias, uma vez que o arguido não estava preso à ordem deste processo, então a sua prisão é ilegal, porque a decisão de revogação ainda não tinha transitado em julgado, pelo que ainda valia a suspensão anteriormente decretada no acórdão condenatório transitado em julgado (ao tempo em que foi prolatada a decisão de revogação da suspensão da execução da pena de prisão o acórdão condenatório já havia transitado em julgado para todos os arguidos deste processo — cf. documento junto aos autos a fls.).

De acordo com o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/95 O disposto nos artigos 103.º, n.º 2, alínea a), e 104.º, n.º 2, do Código de Processo Penal não é aplicável ao recurso interposto em processo à ordem do qual inexistam arguidos presos, ainda que o recorrente esteja preso à ordem de outro processo.

Tem sido, pois, entendimento unânime que os prazos legais para a prática de atos processuais correm em férias sempre que haja arguidos presos e ainda que nem todos os arguidos estejam presos. Todavia, aqueles prazos não correm em férias quanto à prática de atos processuais no âmbito de processos em que nenhum dos arguidos esteja preso.

Mas, além disso, e como decorre do disposto nos arts. 103.º e 104.º, do CPP, haverá outras situações, como por exemplo os atos relativos à concessão de liberdade condicional [cf. art. 103.º, n.º 2, al. e) do CPP] ou “todos os atos indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas” [cf. art. 103.º, n.º 2, al. a), 2.ª parte, do CPP], em que também os prazos correm em férias.

Ou seja, há um interesse de celeridade processual relativamente à prática de todos os atos que de algum modo, quer direta quer indiretamente, possam obstar àquela celeridade e com isso lesar de forma agravada a liberdade daqueles que se encontram presos.  Por isto se entende que atos relativos a arguidos não presos, em processos em que outros co-arguidos estão presos, devem ser entendidos como atos urgentes cujos prazos correm em férias, de modo a não se permitir que incidentes provocados por co-arguidos não presos diminuam a celeridade processual necessária para aqueles que se encontram privados de liberdade. Mas, esta celeridade deixa de ser relevante quando já ocorreu o trânsito em julgado (relativamente a todos os arguidos) da decisão condenatória. Nestes casos, o interesse subjacente à exceção consagrada no art. 104.º, n.º 2, do CPP, deixa de existir. Aquela exigência de celeridade na tomada da decisão de modo a encurtar o mais possível o processo até que se obtenha uma decisão definitiva sobre a necessidade (ou não) de privação de liberdade já não existe; já foi decidido de forma definitiva a privação (ou não) da liberdade relativamente a todos os sujeitos processuais. Pelo que os incidentes processuais que, entretanto, venham a ocorrer relativamente a um arguido já seguirão a regra processual em matéria de contagem de prazos, consagrada no art. 104.º, n.º 1, do CPP — com a exceção de atos relativos à concessão da liberdade condicional, ou indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas [cf. art. 103.º, n.º 2, al.s a) e e), do CPP]. Isto é, o legislador mais uma vez quis assegurar a celeridade na realização de qualquer ato processual que atrase ou alongue demasiado uma decisão sobre a cessação do direito à liberdade, assim determinando uma contagem diferente dos prazos.

Ora, no caso em apreço, o que temos é uma decisão de revogação da suspensão da execução da pena de prisão, em um caso em que o arguido estava em liberdade, pelo que a interposição do recurso e a contagem do prazo para a sua interposição, se não correr em férias judiciais não lesa nem agrava a lesão da liberdade do arguido. Além disto, o arguido não se encontrava preso. E apesar de vários outros co-arguidos estarem presos à ordem deste processo, o certo é que qualquer recurso sobre a decisão de revogação da suspensão de execução da pena de prisão em nada afeta, nem direta nem indiretamente, os outros co-arguidos presos, pelo que não se justifica uma alteração da regra geral em matéria de contagem de prazos.

Assim sendo, e considerando que a decisão de suspensão da execução da pena de prisão é de 13.06.2018, tendo sido notificada por via postal simples a 14.06.2018, e considerando-se o arguido notificado a 25.06.2018 então, quando o peticionante foi preso, em início de agosto, ainda não tinha transitado em julgado a decisão de revogação da suspensão da execução da pena de prisão, pelo que não poderia ter sido o arguido preso, uma vez que o decurso do prazo para a interposição do recurso ainda não tinha expirado.

De tudo o exposto, consideramos que o requerente está preso ilegalmente, fundando-se em facto pelo qual a lei não permite aquela prisão, pelo que está preenchido o fundamento de habeas corpus previsto no art. 222.º, n.º 2, al. b), do CPP.

III Decisão

Termos em que acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em deferir a providência de habeas corpus requerida pelo arguido AA, por se considerar ilegal a prisão, pelo que se ordena, de acordo com o disposto no art. 223.º, n.º 4, al. d), do CPP, a imediata libertação do requerente, a menos que a sua privação da liberdade interesse a outro processo, devendo, se for caso disso, ser realizadas as diligências necessárias pelo Tribunal do respetivo processo e pelo Diretor do Estabelecimento Prisional, conjuntamente.

Comunique-se esta decisão ao processo n.º 1/16.7SFPRT e ao processo n.º 2/18.0SFPRT, e ao Estabelecimento Prisional.

Não são devidas custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 28 de Agosto de 2018

Os Juízes Conselheiros,

Helena Moniz (Relatora)

Nuno Gomes da Silva

Manuel Braz