Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4146/07.6TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: JULGAMENTO
ÓNUS DA PROVA
VENDA A DESCENDENTES
CONSENTIMENTO
ANULAÇÃO DA VENDA
ACÇÃO DE ANULAÇÃO
LEGITIMIDADE
Data do Acordão: 05/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS/ NEGÓCIO JURÍDICO/ PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES/ CONTRATOS - DIREITO DAS SUCESSÕES
DIREITO PROCESSUAL CIVIL/ INSTRUÇÃO DO PROCESSO/ DISCUSSÃO E JULGAMENTO
Doutrina: - Almeida Costa, R.L.J., Ano 135-130 e segs..
- António Pinto Monteiro, C.J., 1994, Tomo IV, pág. 5/15.
- Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, pág. 306;Vol. II, 4ª edição, 1997, pág. 165.
- Inocêncio Galvão Telles, Direito das Sucessões, Noções Fundamentais, 2ª edição, pág. 67.
- José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol 3º, 3ª edição, pág. 271/272.
- Mário de Brito Código Civil Anotado, Vol. I, edição do autor, 1968, pág. 454.
- Pedro Romano Martinez - 'Direito das Obrigações' - Contratos", 2ª edição, pág. 59
- Raúl Ventura, O Contrato de Compra e Venda no Código Civil, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 43, pág. 273/274.
- Vaz Serra, R.L.J., Ano 103.º, pág. 508/509; R.L.J., Ano 111.º, 1978-1979, anotação ao Ac. do S.T.J. de 7-7-1977, pág. 148.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 287.º, N.º1, 289.º, N.º1, 342.º, 364.º, 406.º, N.º2, 875.º, 877.º, 659.º, N.º2, 2025.º, N.º1, 2058.º, N.º1, 2135.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 516.º, 655.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 29-7-1969, IN B.M.J. 189-255;
-DE 14-1-1972, B.M.J. 213-214/219.
Sumário :

I - As regras do ónus da prova (art. 342.º e segs. do CC) não têm a ver com o julgamento de facto pois neste, independentemente da sua natureza constitutiva, impeditiva, modificativa ou extintiva, cumpre ao juiz apreciar e valorar os factos de harmonia com as provas produzidas à luz do princípio da liberdade de julgamento (art. 655.º do CPC); tais regras têm a ver, sim, com questão de direito de saber em que sentido deve o tribunal decidir no caso de não se provarem determinados factos.
II - Quando o art. 516.º do CPC prescreve que “a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita”, a dúvida que aqui se considera não é a dúvida do juiz no julgamento sobre a ocorrência de um facto atenta a prova produzida, pois, em caso de dúvida, impõe-se-lhe decidir no sentido de o facto não se considerar provado. A dúvida aqui equivale ao estado de incerteza sobre a existência do facto que não foi julgado provado a impor a repartição do ónus da prova contra a parte a quem o facto aproveita.
III - O consentimento a que alude o art. 877.º do CC pode ser prestado verbalmente.
IV - A legitimidade conferida aos interessados (art. 287.º, n.º 1, do CC) referidos no art. 877.º do CC tendo em vista a anulação da venda de pais a filhos ou netos implica um direito que não é transmissível por morte do titular nos termos do art. 2025.º, n.º 1, do CC, não apenas por força do aludido comando legal, mas também porque estamos face a um poder potestativo que não se justifica que tenha existência mais longa do que a do titular, considerando que a ação de anulação da venda de pais a filhos ou netos tem natureza estritamente preventiva não implicando que da venda tenha resultado ofensa da legítima, mas também não obstando ao reconhecimento da simulação, se esta tiver ocorrido.
V - O consentimento ou autorização para a prática de um determinado ato que a lei proíbe constitui, em regra, facto extintivo; no entanto, quando tal facto integra o conteúdo da pretensão de anulação tal facto assume natureza constitutiva; em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito (art. 342.º, n.º 3, do CC).


Decisão Texto Integral:

N.º 4146/07.6TVLSB.L1.S1[1]

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA, viúvo, residente na Avenida ..............., ..., ..º esquerdo, em Lisboa, BB, casada, residente na ..............., ..., Bloco ..., ...andar, em Lisboa, CC, divorciada, residente na Pr. ........., .., ... Dto., Caparica, DD, casado, residente na ..............., ..., .... esquerdo, Parede e EE, casado, residente na Avenida ......, ..., ..... esquerdo, em Lisboa, intentaram a presente ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra FF, viúva, residente na Praça ...., ..., ....esquerdo, em Lisboa, HH e seu marido II, ambos residentes na Rua ......, .., ..., Dto., em Lisboa, pedindo a declaração de nulidade do contrato de compra e venda que teve por objeto o imóvel sito na Rua ......, ..., ... Dto., em Lisboa e celebrado entre EE e a Ré HH.

2. Alegaram, em síntese, que EE, sogro do 1.º autor e avô dos restantes, falecido em 23 de junho de 2003, vendeu a fração designada pelas letras “AE” e correspondente ao ......... do prédio sito no n.º ... da Rua ......, em Lisboa, registado sob o n.º 0000, à sua neta HH e respetivo marido, II através de escritura pública, sem o conhecimento e consentimento de II, sua filha, mulher do 1.º Autor e mãe dos restantes Autores.

3. Os réus deduziram contestação: a ré FF contestou por exceção, invocando a preterição do litisconsórcio necessário passivo e a caducidade do direito dos autores (cf. fls. 41 e ss.); os réus HH e marido contestaram por impugnação e exceção, invocando também eles a caducidade do direito dos autores (cf. arts. 53 e ss. dos autos).

4. Os autores requereram a intervenção provocada de JJ e seu marido KK que foi admitida por despacho constante de fls. 126.

5. JJ e seu marido KK declararam que fazer seus os articulados apresentados pelos demais réus e juntaram procuração (cf. fls.140 e ss.).

6. Foi proferida sentença que julgou a presente ação procedente e declarou a anulação do contrato de compra e venda consubstanciado na escritura pública outorgada no dia 5 de julho de 1996 no 1.º Cartório Notarial de Lisboa com a consequente obrigação de restituição, por parte dos réus, HH e II, da fração autónoma designada pelas letras “AE” correspondente ao 0000. do prédio sito no n.º 00 da Rua ......, em Lisboa, registado sob o n.º 0000, à herança aberta por óbito de EE, e da restituição, por parte desta última aos réus HH e II do valor, em euros, correspondente a vinte e três milhões e quinhentos mil escudos, preço pago pelo referido imóvel ( cf. fls. 546 a 554 ).

7. Interposto recurso de apelação pelos réus FF, JJ e KK e pelos réus HH e II, o Tribunal da Relação, concedendo provimento, revogou a sentença e absolveu os réus do pedido formulado pelos autores visto que, face à alteração da matéria de facto, importa concluir que não se encontram preenchidos in casu os elementos constitutivos do direito dos AA. a pedir a anulação da mencionada venda, exigidos pelo art.º 877º, nº 1, do Código Civil, designadamente a prova de que não houve consentimento na venda do aludido imóvel que o avô fez à sua neta e genro.

8. Os AA interpuseram recurso de revista cuja minuta concluíram nos seguintes termos:

A - O recurso de revista é legalmente admissível, porquanto o valor da causa  nos presentes autos ultrapassa o valor da alçada dos Tribunais da Relação.

B - O acórdão recorrido autonomizou três grandes questões sobre as quais fez incidir  a sua apreciação, a saber: sobre quem impendia o ónus da prova da existência ou falta de consentimento  da venda realizada  pelo avô à neta e respetivo marido, exigida pelo artigo 877.º,n.º1 do Código Civil; o sentido da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida e o direito à anulação do contrato de compra e venda realizado em 5 de julho de 1996.

C - As três questões, tal como foram decididas pelo tribunal recorrido, encontram-se contudo estreitamente ligadas, uma vez que a decisão da atribuição do ónus da prova foi decisiva para a alteração do sentido da matéria de facto e a apreciação da verificação conjunta  dos pressupostos do exercício  do direito de anulação constante  do artigo 877.º do Código Civil.

D - Entendeu o Tribunal a quo que incumbia ao ora recorrentes fazer prova  da falta de consentimento  de II à venda  referida nos autos, porquanto a falta de consentimento é um elementos constitutivo do direito de anulação constante do artigo 877.º do C.C.

E - Sucede que, conforme doutamente defendido por Vaz Serra, a base de onde emerge o direito  de anulação é a mera circunstância de se verificar uma venda de pais a filhos ou de avós a netos, e não na falta de consentimento.

F - Isto porque, no seguimento de uma longa tradição jurídica, considera-se que tais vendas são um campo privilegiado de negócios simulados, com o intuito de prejudicar a legítima dos descendentes não contemplados com a venda, razão  pela qual o artigo 877.º do Código Civil considera que as mesmas são, em regra, inválidas.

G - A prestação de consentimento pelos descendentes não contemplados com a venda constitui  uma situação excecional de validação de um negócio que é, em regra, inválido, afigurando-se, assim, como um facto.

H - Assim, exigir a prova da falta de consentimento aos recorrentes, equivale a fazer  impender sobre os mesmos não só o ónus de fazer prova dos factos constitutivos do seu direito de anulação, mas também a contraprova de um facto impeditivo do exercício desse direito, solução que contraria frontalmente o disposto no artigo 342.º, nºs 1 e 2 do Código Civil.

I- Pelo exposto, ao fazer impender sobre os recorrentes o ónus de provar  a falta de consentimento, a decisão recorrida violou a lei substantiva, ao interpretar e aplicar erradamente os preceitos constantes dos artigos 342.,n.º1 e 2 e 877.º, n.º1 ambos do C.C, devendo ser revogada nessa parte e substituída por decisão que considere que o ónus da prova do consentimento impende sobre os réus ora recorridos.

J - O tribunal a quo não logrou ultrapassar a dúvida quanto à verificação  ou não do consentimento de II à venda, tendo diferido na sentença de 1ª instância somente pelo critério de resolução dessa situação de dúvida inultrapassável.

K - Assim, baseando-se no entendimento que fez quanto à atribuição do ónus da prova  da falta de consentimento  aos recorrentes, o tribunal recorrido, aplicando o artigo 516.º do C.P.C., decidiu a dúvida do facto contra aqueles a quem este aproveitava, os recorrentes.

L - Entendeu, assim, dever alterar a decisão da matéria de facto quanto às respostas dadas  aos pontos 1.º e 5.º da base instrutória, considerando o 1.º ponto como não provado e o 5.º como provado.

M - Ao fazê-lo o tribunal recorrido violou o disposto  nos artigos 342.º do Código Civil e 516.º do C.P.C. por fundar a modificação da decisão da matéria de facto numa errada distribuição do ónus da prova do facto relativo à existência ou não do consentimento, devendo, por isso, a decisão  recorrida ser revogada nessa parte e substituída por decisão que mantenha o sentido da decisão da matéria de facto constante da sentença de 1.ªinstância.

N- Por outro lado,  o artigo 875.º do Código Civil exigia que o contrato de compra e venda de uma coisa imóvel revestisse, à data da verificação da mesma, a forma de escritura pública.

O - A exigência de forma legal para determinado contrato abrange todas as cláusulas essenciais do mesmo, entendendo-se por estas as cláusulas das quais depende a perfeição do negócio, ou seja, a sua validade e plena produção de efeitos.

P - Embora, em regra, a compra e venda de imóveis atinja a perfeição com a mera integração das declarações das partes em escritura pública, sempre que se tratem de vendas de pais a filhos ou de avós a netos, a perfeição do negócio só é atingida, nos termos  do artigo 877.º do Código Civil, se houve consentimento dos demais descendentes não contemplados  na venda, sem o qual a venda é anulável.

Q - Assim, constituindo um elemento necessário à perfeição do contrato de compra e venda, o consentimento exigido no artigo 877.º do C.C., constitui uma cláusula essencial do contrato  de compra e venda, encontrando-se, assim, abrangido pelo âmbito da exigência de forma legal, constante do artigo 875.º do Código Civil, irrelevando o silêncio do artigo 877.º quanto à forma do consentimento.

R - Exigindo a lei que o consentimento revista a forma de escritura pública, no caso de compra e venda de coisa imóvel, atento o disposto no artigo 364.º, nº1 do C.C. , a prova  do consentimento só pode ser efetuada por tal documento autêntico.

S - Ora, a decisão recorrida, ao considerar como não provada a falta de consentimento, embora não tenha considerado provado o consentimento, aceitou a plausibilidade e possibilidade do mesmo.

T - Para tal, valorou elementos de prova com os depoimentos testemunhais, os quais nunca podem fazer prova do referido consentimento, atento o disposto no artigo 364.º,nº1 do Código Civil.

U - Com efeito, a exigência legal  de documento autêntico para a prova de certo facto impõe, como reverso lógico, que a contraprova do facto contrário só possa ser efetuada por tal documento, dando-se necessariamente como provado o facto contrário sempre que tal documento não exista.

V - Pelo exposto, a decisão recorrida, ao alterar o sentido da decisão da matéria de facto quanto aos pontos 1.º e 5.º da base instrutória, sem que o consentimento estivesse plasmado  na escritura pública de compra e venda, violou o disposto nos artigos 364.º,nº1 e 875.º do Código Civil, devendo ser revogada nessa parte e substituída por decisão que mantenha o teor da decisão da matéria de facto constante da sentença de 1ª instância.

W - A decisão recorrida considerou que os recorrentes não têm legitimidade substantiva  para exercer o direito de anulação, porquanto não eram sucessores do vendedor do bem imóvel, EE, à data da morte do mesmo.

X - Sucede que os recorrentes não se encontram nestes autos a exercer um direito  de que sejam titulares originários, mas antes um direito que lhes adveio por sucessão, por morte de II, a qual não o pôde exercer em vida por ter sempre desconhecido a realização da venda.

Y - Pelo exposto, a decisão recorrida violou a lei substantiva , designadamente os artigos 2025.º, 2030.º e 2133.,n.º1, alínea a) do Código Civil, devendo, por isso, ser revogada nessa parte e substituída por decisão que considere que os recorrentes, enquanto sucessores da titular originária do direito de anulação, podem exercê-lo.

Z - Tendo necessariamente de se considerar como provada a falta de conhecimento e consentimento de II em relação à venda ( seja pela atuação das regras de distribuição do ónus da prova e da resolução de situações de non liquet, seja por a prova do consentimento só poder ser efetuada por documento autêntico) e tendo os recorrentes legitimidade substantiva para exercerem  esse direito de anulação, encontram-se integralmente preenchidos todos os pressupostos do exercício do direito de anulação, constante do artigo 877.º,n.º1 do CC.

AA - Face a todo o exposto, deve ser julgado procedente o presente recurso de revista, sendo a decisão recorrida revogada e substituída por decisão que considere reunidos os pressupostos do exercício do direito de anulação constante do artigo 877.º, nº1 do C.C. e declare a anulabilidade da venda constante dos autos.

9. Factos provados:

1 – EE e FF foram casados no regime de comunhão geral de bens (A).

2 – EE teve duas filhas, JJ e II, esta última falecida em 9 de agosto de 2005 (A1).

3 – EE, sogro do 1.º Autor e avô dos restantes, falecido em 23 de junho de 2003, vendeu a fração “AE” pertencente ao prédio urbano registado sob o n.º 0000, situado na Rua ......, n.º 00, 00 direito, em Lisboa, mediante escritura pública outorgada no dia 5 de julho de 1996, no 1.º Cartório Notarial de Lisboa (B).

4 – A casa foi adquirida pela sua neta, HH e seu marido II casados ao abrigo do regime supletivo da comunhão de adquiridos (C).

5- A venda foi realizada por escritura pública (D).

6 – Encontra-se registada pela Ap. 0000 a aquisição a favor de II casado em comunhão de adquiridos com HH da fração “AE” do prédio 0000 por compra a EE e mulher, FF (E).

7– A 27 de novembro de 2003 foi entregue a relação de bens da herança de EE às Finanças por força do óbito ocorrido em 23 de junho de 2003, conforme documento de fls. 60 a 72 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (F)

8– O 1.º autor teve conhecimento da venda em 22 de setembro de 2006 e os demais autores tiveram conhecimento da mesma posteriormente àquela data (Q2)

9- A referida II - falecida em 2005 - não exerceu ação judicial tendente ao exercício do direito à anulação da venda (Q5)

10 - Os Autores concordaram com a relação de bens referida em (6), a qual foi entregue pessoalmente ao 1.º Autor, antes do final de 2003 (Q6 e Q7)

11 - Entre todos os membros da família existia uma convivência durante férias de verão e o Natal (Q10).

Apreciando

10. Os factos provados dizem-nos que EE e FF, casados entre si em regime de comunhão geral de bens, venderam fração autónoma por 23 milhões e quinhentos mil escudos no dia 5-7-1996 a GG casado em regime de comunhão de adquiridos com HH que é neta do vendedor EE.

11. EE, que veio a falecer no dia 23-6-2003, era pai de duas filhas, irmãs consanguíneas, JJ, mãe da compradora HH e II, falecida em 9-8-2005.

12. A presente ação foi instaurada no dia 19-9-2007 pelo viúvo e filhos da falecida II e aos autos, como se disse, vieram a ser chamados por intervenção provocada a filha sobreviva, M............,  e respetivo marido.

13. Os autores pretendem que se anule a venda efetuada considerando que houve violação do artigo 877.º do Código Civil.

14. Prescreve este preceito sob a epígrafe "venda de filhos a netos"

1. Os pais e avós não podem vender a filhos ou netos, se os outros filhos ou netos não consentirem na venda; o consentimento dos descendentes, quando não possa ser prestado ou seja recusado, é suscetível de suprimento judicial.

2. A venda feita com quebra do que preceitua o número anterior é anulável; a anulação pode ser pedida pelos filhos ou netos que não deram o seu consentimento, dentro do prazo de um ano a contar do conhecimento da celebração do contrato, ou do termo da incapacidade, se forem incapazes.

3. A proibição não abrange a dação em cumprimento feita pelo ascendente.

15. Os autores alegaram que a venda foi realizada sem o conhecimento e consentimento de II, filha do vendedor e mulher do 1º autor, e também sem conhecimento e consentimento dos AA.

16. No entanto, não se provou que a aludida venda tivesse sido efetuada sem o conhecimento e consentimento da II ( resposta " não provado" ao quesito 1.º), provando-se apenas que " o 1.º autor teve conhecimento da venda em 22 de setembro de 2006 e os demais autores tiveram conhecimento da mesma posteriormente àquela data" (ver 8 supra da matéria de facto).

A regra do ónus da prova e o julgamento da matéria de facto

17. A regra do ónus da prova constante do artigo 342.º do Código Civil - e também a que promana de outros preceitos, como é evidente - tem muito interesse do ponto de vista da parte que cumpre alegar os factos essenciais à sua pretensão. Sabendo-se que "àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constantes do direito alegado" (artigo 342.º/1 do Código Civil) e que "a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita" (artigo 342.º/2 do Código Civil) já se vê que se a parte não alegar os factos constitutivos do seu direito verá necessariamente a sua pretensão soçobrar.

18. Do ponto de vista do julgador a questão atinente ao ónus da prova situa-se essencialmente num momento ulterior, ou seja, quando da prolação da sentença, momento em que lhe cumpre " interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final" (artigo 659.º/2 do Código Civil); ou seja, o Tribunal, ponderada a matéria de facto, irá considerar num primeiro momento, que é o do julgamento de facto, se estão provados os factos alegados entre os quais se contam os factos constitutivos do direito invocado. E só num segundo momento - o da prolação da sentença - é que, para o Tribunal, se vai pôr a questão de saber se um determinado facto é constitutivo ou, pelo contrário, impeditivo, modificativo ou extintivo do invocado direito.

19. Quando a lei no artigo 516.º do C.P.C. prescreve que " a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita" o comando legal dá-     -nos uma regra de julgamento e não uma regra de apreciação da prova. O juiz, à luz dos meios de prova que foram submetidos à sua apreciação - prova testemunhal, pericial, depoimento de parte, etc. - decidirá se estão ou não provados os factos quesitados ou controvertidos. Se o juiz, quando aprecia a prova, ficar na dúvida sobre se um facto se verificou ou não se verificou, se não formar a sua convicção no sentido de que ocorreu determinada situação, não pode dar o facto como provado, seja esse facto constitutivo, modificativo, impeditivo ou extintivo do direito invocado. A regra atinente ao julgamento da matéria de facto não é a do artigo 516.º do C.P.C. mas a do artigo 655.º/1 do C.P.C. que, sob a epígrafe "liberdade de julgamento", prescreve que " o tribunal coletivo aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto".

20. Parece resultar das alegações dos recorrentes a ideia de que, face ao aludido preceito, o Tribunal, posto a apreciar a questão de facto de saber se houve ou não houve consentimento na venda, iria decidir, estando em dúvida sobre se o aludido facto é ou não um facto constitutivo, questão esta estritamente de direito, no sentido de não dar o facto como provado ainda que a sua convicção fosse a contrária. Um tal entendimento não é aceitável e até parece carecer de lógica: pois se o Tribunal está na dúvida sobre a natureza constitutiva do facto, como é que o Tribunal iria formar a sua convicção contra quem o facto aproveita?

21. Recorde-se o que, a este propósito, nos ensinou José Alberto dos Reis:

"É incerto o estado de facto? O processo não fornece ao tribunal provas suficientes para formar juízo seguro sobre os factos relevantes da causa?

Intervém então uma regra de julgamento (regola di giudizio, como dizem os italianos) a qual dita ao magistrado o conteúdo da decisão a proferir. A regra pode enunciar-se assim: na falta ou insuficiência de prova, o julgador rejeita a pretensão deduzida pela parte à qual incumbia fazer a prova ou sobre a qual deva entender-se que recaía, no caso concreto, o onus probandi.

O problema do ónus da prova traduz-se, pois, nesta averiguação: como se reparte, entre os litigantes, o encargo de fornecer a prova? E ainda: qual das partes há de suportar as consequências da falta ou insuficiência de provas?

A primeira pergunta exprime o primeiro momento do problema; a segunda corresponde ao segundo momento. Por outras palavras: o interesse da questão de saber sobre qual das partes pesa o ónus da prova está exatamente na consequência que daí deriva para o sentido da decisão a proferir, para o conteúdo positivo da regra de julgamento. Apurado que o ónus da prova incumbia ao autor, o juiz, no caso de falta ou insuficiência de provas, terá de desatender a pretensão do autor; apurado que o ónus da prova incumbia ao réu, o juiz, perante a incerteza dos factos, terá de rejeitar a pretensão do réu […]. Mas não basta que o facto seja afirmado para que o juiz haja de assentar sobre ele a sua decisão; é indispensável que se ache provado no processo, que esteja demonstrada a sua existência. Por isso, ao ónus da afirmação acresce o ónus da prova. Se o facto se prova, se o juiz chega a convencer-se da existência dele, tal circunstância aproveitará à parte que o pôs como base da sua pretensão (ação ou exceção);  se não se prova, o evento aproveitará à parte contrária. Há, pois, um risco inerente à falta ou insuficiência de prova: o risco de a parte ver desatendido o seu pedido (Código de Processo Civil Anotado, Vol 3º, 3ª edição, pág. 271/272).

22. Antunes Varela refere, em síntese, o seguinte: " o significado essencial do ónus da prova não está tanto em saber a quem incumbe fazer a prova do facto como em determinar o sentido em que deve o tribunal decidir no caso de não se fazer essa prova" (Código Civil Anotado, Vol I, 4ª edição, pág. 306).

23. No caso em apreço, o Tribunal da Relação agiu em conformidade com as aludidas regras e com a metodologia que elas impõem tratando separadamente a questão de facto da questão de direito: considerou - questão de direito - que o ónus da prova do não consentimento na venda cabe ao autor, decidindo tratar-    -se de um facto constitutivo; analisou a prova produzida e, com base nos depoimentos prestados em audiência conjugados com os demais elementos adquiridos nos autos, alterou a matéria de facto. Ali questão de direito, aqui questão de facto.

O consentimento a que alude o artigo 877.º do Código Civil pode ser prestado verbalmente

24. O contrato de compra e venda ao tempo apenas podia ser celebrado por escritura pública (artigo 875.º do Código Civil), não implicando a ausência de consentimento a nulidade do contrato, mas tão somente a sua anulabilidade;  por isso, o contrato de compra e venda de imóvel a filhos ou netos não deixa de produzir efeitos que apenas serão atingidos retroativamente nos termos do artigo 289.º/1 do Código Civil se o negócio for anulado; e "se o direito à anulação não for exercido no prazo legal pelas pessoas a isso legitimadas, o contrato é havido como se o não atingisse uma anulabilidade, sendo, portanto, tratado como válido, isto é, como se não fosse afetado pelo vício que o tornava anulável: dá-se, então, uma sanação ou convalidação do contrato" (Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 111.º, 1978-1979, anotação de Vaz Serra  ao Ac. do S.T.J. de 7-7-1977 (Rodrigues Bastos), pág. 148).

25. Não exigindo a lei nenhuma forma especial para a prestação do consentimento (artigo 364.º/1 do Código Civil) nem sequer exigindo a lei que o contrato de compra e venda a filhos e netos, sob pena de nulidade, careça do consentimento das pessoas para tanto legitimadas, não se vê que seja sustentável a argumentação dos recorrentes no sentido de que o consentimento constitui cláusula essencial do negócio de compra e venda.

26. No seu entender, a ausência dessa cláusula da escritura de compra e venda implicaria a prova, logicamente necessária, " do reverso dessa realidade", ou seja, a prova de que não houve consentimento. No entanto, não se nos afigura que assim se deva entender, pois, ainda que a lei fulminasse com  nulidade o contrato de compra e venda a filho ou neto sem consentimento, impor-se-ia apenas declarar tal nulidade desde que a lei exigisse a redução a escrito dessa manifestação de vontade independentemente de ela constituir ou não cláusula essencial do contrato.

27. Com efeito, se a lei exigisse forma escrita para o consentimento, da ausência de documento não se retiraria que não houve consentimento verbal, retirar-se-ia apenas que não houve consentimento escrito. Daí adviriam as pertinentes consequências legais.

28. Seja como for, e como já salientou este Tribunal " o consentimento da ora autora para a venda em causa pode ser provado por qualquer meio de prova admitido em direito. Não é exigida forma especial para o consentimento, mesmo estando em causa a alienação de parte de um prédio urbano, como é o caso. - Raul Ventura - "O Contrato de Compra e Venda", pág. 273; Pedro Romano Martinez - 'Direito das Obrigações' - Contratos", 2ª edição, pág. 59": ver Ac. do S.T.J. de 12-3-2002 (Pinto Monteiro) (P. 02A2997 in www.dgsi.pt).

Sobre a determinação daqueles que, por lei, têm legitimidade para propor ação de anulação a que se refere o artigo 877.º do Código Civil

29. Verifica-se da matéria de facto que II, mulher e mãe dos AA, faleceu no dia 9-8-2005, decorridos pouco mais de dois anos desde a morte do pai e mais de 9 anos desde a data da venda do imóvel a sua sobrinha.

30. Assistia-lhe legitimidade, face ao disposto no n.º2 do artigo 877.º do Código Civil, para propor ação de anulação dentro do prazo de um ano a contar do conhecimento da celebração do contrato.

31. Não exerceu II ação judicial tendente ao exercício do direito à anulação da venda (ver 9 supra da matéria de facto).

32. A razão de ser deste preceito " tal como é comummente sublinhado pela doutrina e jurisprudência é a de a lei pretender evitar vendas simuladas em prejuízo das legítimas dos filhos ( ou netos) nos casos em que se entende que a simulação seria mais difícil de provar, isto é, nas vendas de pais a filhos ( ou de avós a netos) ("Venda de Padrasto a Enteado", parecer de António Pinto Monteiro, C.J., 1994, Tomo IV, pág. 5/15).

33. O direito à anulação de contrato é um direito potestativo que, no caso, a lei conferia à falecida II por ser a cabeça de estirpe e, por conseguinte, pessoa imediatamente interessada em evitar diminuições simuladas da legítima. Com efeito, " só têm legitimidade para arguir a anulabilidade  as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece" (artigo 287.º/1 do Código Civil) e, por isso, tal legitimidade era conferida à mencionada II, face ao comando do artigo 877.º/2 do Código Civil.

34. Como refere Antunes Varela " estão previstas no n.º1 duas hipóteses: a de os pais venderem aos filhos e a de os avós venderem aos netos. Se venderem aos filhos, é necessário o consentimento dos outros filhos, mas não, em princípio, o consentimento dos netos. Os pais são os cabeças de estirpe e a pessoas imediatamente interessadas em evitar diminuições simuladas das legítimas. Somente se algum filho tiver falecido, é que passa tal filho, para este efeito, a ser representado pelos seus descendentes.

Pela mesma razão, se é feita a venda a um neto, e existem filhos que representem outras estirpes, são os cabeças dessas estirpes e, portanto, os filhos que devem dar o seu consentimento, e não os netos, filhos desses filhos" (Código Civil Anotado, Vol II, 4ª edição, 1997, pág. 165).

35. O consentimento teria, portanto, de ser dado  pela falecida II, cabeça da estirpe e não pelos seus filhos e marido, o que só sucederia se o óbito daquela tivesse sido anterior ao do seu progenitor, caso em que aqueles, para esse efeito, tomariam a posição dela, representando-a.

36. O seu direito caducava no prazo de um ano a contar do conhecimento da celebração do contrato. Não se provou tal facto extintivo cuja prova competia aos réus (artigo 342.º/2 do Código Civil).

Sobre a intransmissibilidade do direito de anulação a que se refere o artigo 877.º do Código Civil

37. O Tribunal da Relação considerou, no que respeita ao direito à anulação do contrato de compra e venda realizado no dia 5 de julho de 1996, que " aquando do falecimento do vendedor EE, os AA., filhos de II, não eram seus sucessores, uma vez que foram preteridos em função da regra da preferência de grau dentro da mesma classe de sucessíveis ( art.º 2135º, do Cod. Civil ).

Logo, a ratio legis subjacente ao art.º 877º, nº 1, do Código Civil  não os contempla, uma vez que não foram sequer chamados à sucessão hereditária de EE, aberta aquando do seu óbito em 23 de junho de 2003.

O A. AA não era sequer sucessível de EE atenta a relação de mera afinidade que mantinham.

Logo, é irrelevante o seu desconhecimento ou não consentimento relativamente à venda em causa".

38. Respondem a esta argumentação os recorrentes referindo que " se encontram nos presentes autos a exercer um direito que lhes adveio por sucessão, em resultado da morte da sua titular originária, II". Tal direito a pedir a anulação iniciar-se-ia logo que ela tomasse conhecimento da venda e tendo ela falecido sem " que tivesse tomado conhecimento da venda" esse direito de anulação integrou-se na herança do qual os ora recorrentes são sucessores, nos termos conjugados do disposto nos artigos 2025.º, 2030.º e 2133.º, n.º1, alínea c) do Código Civil".

39. Prescreve o artigo 2025.º/1 do Código Civil que " não constituem objeto de sucessão as relações jurídicas que devam extinguir-se por morte do respetivo titular, em razão da sua natureza ou por força da lei".

40. Estão em causa três fontes de intransmissibilidade : a natureza do direito, a lei e a convenção.

41. O referido artigo 877.º do Código Civil, disposição particular do direito português com origem nas Ordenações Filipinas e que acolhe uma solução considerada " embaraçante" e " injustificada" - veja-se o mencionado estudo de Pinto Monteiro - não assenta na presunção de que tais vendas seriam simuladas e, portanto, anuláveis, pois, como salienta Antunes Varela, " a lei não presume que todas as vendas de pais a filhos ou de avós a netos, sem consentimento dos demais, sejam simuladas. A sua ratio não é de raiz concreto-individual, nem estritamente repressiva, alicerçada na convicção sistemática, generalizada, de que em todos esses casos pai e filho (arvorados em vendedor e comprador) se conluiaram no intuito de iludir as legítimas dos outros filhos.

A intenção da lei consiste em evitar  - é coisa diferente - as vendas simuladas entre pais e filhos, com o fim altamente reprovável de lesar as expectativas sucessórias dos outros filhos, assentes na própria lei ( e não na vontade dos pais). A sua finalidade , ao instituir o mecanismo do assentimento prévio dos outros filhos, é de caráter essencialmente  preventivo […]. Não é assim por crer que todas as vendas de pai a filho ( ou sequer a maior parte delas), sem o consentimento dos outros filhos, sejam realmente simuladas , que a lei as estigmatiza com o ferrete da invalidade".

42. Pode sustentar-se que a lei, prescrevendo a anulabilidade e limitando a invocação da invalidade aos interessados que integrem as categorias acima referidas, prescreve um regime de intransmissibilidade, devendo, assim, por força da lei, haver-se por extinto o direito de pedir a anulação por morte do respetivo titular. Solução que se compreende  precisamente porque um dos fundamentos de intransmissibilidade é, nas palavras de Inocêncio Galvão Telles, " tratar-se de direito que não se quer tenha existência mais longa que a do titular" (Direito das Sucessões, Noções Fundamentais, 2ª edição, pág. 67).

43. Vaz Serra, depois de afirmar, que " o Código Civil de 1867 (artigo 1565.º) não fixava prazo para uma ação de anulação das vendas feitas por pais ou avós a filhos ou netos sem consentimento dos outros filhos ou netos, declarando, pelo contrário, que tais contratos de compra e venda 'serão de nenhum efeito'", admitia que " a lei pode ter o propósito de não deixar subsistir por longo tempo incerteza acerca da validade do contrato" (R.L.J., loc. cit., 111.º Ano, pág. 148).

44. Admitida a transmissibilidade do direito de anulação no caso de o filho não ter prestado consentimento e de não se provar que estivesse precludido o direito de anulação por ter tido conhecimento da venda sem propor ação de anulação no prazo legal, então, transmitido o direito para os herdeiros (artigo 2058.º/1 do Código Civil), impor-se-ia, quanto a estes, considerar o momento do seu conhecimento da venda e, se assim não tivesse sucedido, igualmente os seus sucessores podiam invocar a anulabilidade, o que poderia levar, com efeito, a uma indesejável incerteza ao longo dos tempos sobre a validade do contrato.

45. Ora precisamente porque estamos face a um direito potestativo, de natureza preventiva - que não afasta a possibilidade de se intentar ação de simulação se efetivamente houve a intenção de prejudicar os herdeiros, aspeto este que está fora de questão no caso em apreço, pois não se pôs em causa nos autos que a venda não fosse efetuada pelo preço constante da escritura - direito esse que o interessado em vida pode entender não querer exercer por sentir que não houve prejuízo, não nos parece que não seja aceitável a ideia da intransmissibilidade desse direito.

46. Contra isto dir-se-á que se pode dar o caso, neste processo não demonstrado, de  não ter chegado ao  filho a quem a lei confere o direito de anulação o conhecimento da realização do contrato. Provando-se que não houve conhecimento do contrato, está logicamente provada a ausência do consentimento. Nâo se provando todavia se houve ou não houve conhecimento do contrato e sendo esse conhecimento condição de preclusão do direito à anulação, o ónus da prova cabe àquele contra quem é invocada a anulabilidade, ou seja, aos réus interessados em que a anulabilidade do contrato não seja declarada. É este último o caso dos autos.

47. A montante, porém, situa-se a questão da intransmissibilidade do direito à anulação por se dever considerar extinto por morte do respetivo titular (artigo 2025.ª/1 do Código Civil). Aceite a natureza preventiva deste artigo 877.º do Código Civil e a possibilidade de os herdeiros intentarem ação de simulação, parece que, ficando assim salvaguardado o risco derivado de atos praticados que lhes sejam prejudiciais, as vantagens da intransmissibilidade superaram as de uma ação de anulação.

48. Note-se que esta ação de anulação nos termos do artigo 877.º do Código Civil não deixa de proceder uma vez provada a venda sem consentimento ainda que nenhum prejuízo afinal tenha efetivamente ocorrido com a transação; assim, a não haver intransmissibilidade, a procedência da ação pode verificar-se, como se disse, muitos anos volvidos, considerada a venda impugnada, não se justificando efetivamente um estado de incerteza causado por uma transação que não violou nenhuma regra que pudesse justificar a procedência de uma ação de simulação. E se a lei lei limitou aos interessados mencionados no artigo 877.º do Código Civil a legitimidade substantiva para proporem a ação de anulação do artigo 877.º/2 do Código Civil o campo previsional deste preceito exclui a transmissibilidade do direito à anulação nos casos em que o decesso do titular desse direito foi posterior à venda, valendo apenas a assinalada representação para os casos em que o decesso se verificou em momento anterior à transação visto que então, para esse efeito, se impõe a chamada dos filhos que representam o progenitor falecido.

O ónus da prova da falta de consentimento a que se refere o artigo 877.º do Código Civil

49. Do entendimento exposto poderia resultar ter-se por prejudicada a questão do ónus da prova. No entanto, porque foi este um ponto essencial do acórdão recorrido e que os recorrentes suscitaram nas conclusões e ainda porque importa ao caso concreto saber se, a não valerem as razões expostas no que toca à intransmissibilidade do direito de anulação, a ação devia ou não proceder, não deixaremos de o tratar.

50. O Supremo Tribunal no Ac. de 29-7-1969 (Santos Carvalho Júnior) in B.M.J. 189-255, por maioria de 4 juízes e com o voto de vencido de Eduardo Correia Guedes, pronunciou-se no sentido de que " na ação em que se peça a anulação dessa venda [a venda contemplada no artigo 877.º do Código Civil], com base no preceituado no artigo 1565.º do Código Civil de 1867, não é ao autor que incumbe provar que não deu  o consentimento, mas sim aos réus que compete fazer a prova de que o consentimento foi dado".

51. Em anotação concordante Vaz Serra refere que " na hipótese do acórdão, o autor, pedindo a anulação do contrato de compra e venda com o fundamento de não ter prestado o seu consentimento, pode parecer que invoca  um direito que tem por base o facto da falta do seu consentimento para a venda, pelo que teria de provar esse facto - tal como, se, por ex., pedisse a declaração de nulidade de um contrato por simulação, teria de provar esta, ou, se pedisse a anulação de um contrato por erro, dolo ou coação, lhe caberia provar esses factos.

Não se nos afigura, porém, que a referida doutrina seja aplicável a tal hipótese, pois, nesta, a falta de consentimento do outro filho do vendedor não é base da pretensão deste: a base, o facto constitutivo do direito à anulação, não é a falta do consentimento do outro filho ( o autor), mas o tratar-se de uma venda feita pelo pai a um filho e haver outro ou outros filhos" (R.L.J., Ano 103.º, pág. 508/509).

52. No entanto, a este entendimento contrapôs Antunes Varela que " tratando-se de uma ação de anulação, é evidente que cabe aos autores o ónus da alegação e prova dos factos constitutivos do seu direito de anulação" (Código Civil, Vol I, 4ª edição, pág. 166).

53. De igual modo, Raul Ventura considerou que "a ação é de anulação da venda com fundamento num vício desta, a falta de consentimento; cabe aos autores o ónus da prova dos factos constitutivos do seu direito de anular a venda; o artigo 343.º não se aplica porque a ação não é de simples apreciação negativa" (" O Contrato de Compra e Venda no Código Civil", Revista da Ordem dos Advogados, Ano 43, pág. 273/274).

54. Mário de Brito também salientou que " um facto normalmente impeditivo ou extintivo pode valer como constitutivo, por ser a base da pretensão que o autor deduz em juízo. A sua prova caberá , então, não ao réu, mas ao autor. Assim, se a ação se destinar à anulação de determinado contrato por falta de consentimento ( cf. artigo 877.º) tem o autor de provar a falta de consentimento, que normalmente é um facto impeditivo; se ação se destinar à declaração judicial de que uma dívida foi paga, tem o autor de provar o pagamento, que ordinariamente é um facto extintivo" (Código Civil Anotado, Vol I, edição do autor, 1968, pág. 454).

55. Este Supremo Tribunal, no Ac. de 14-1-   -1972 (Oliveira Carvalho),B.M.J. 213-214/219 sustentava que " nos termos do n.º1 do artigo 342.º do Código Civil cabe àquele que invoca um direito fazer a prova dos respetivos factos constitutivos, sendo, porém, de notar que os factos normalmente impeditivos à eficácia do direito, como a simulação e os vícios de vontade, valem como constitutivos se forem a base do próprio direito a efetivar".

56. Este será, parece-nos, um caso em que se justifica aplicar o disposto no artigo 342.º/3 do Código Civil quando prescreve que " em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito" pois da leitura que exclui o consentimento da base da pretensão de anulação sempre resultaria, a montante, a necessidade da prova da falta de consentimento dos filhos ou netos enquanto pressuposto de legitimidade destes para intentarem a ação de anulação da compra e venda.

57. Esta perspetiva todavia continua a não afastar o ónus de alegação e prova da falta de consentimento dos interessados tendo em vista a anulação da compra e venda, razão por que, admitindo uma leitura do preceito nos termos indicados por Vaz Serra, certo é que a anulação não pode ser decretada apenas com a mera alegação da venda de pais a filhos e, por isso, afigura-se-nos justificado, no caso vertente, o recurso ao disposto no artigo 342.º/3 do Código Civil, considerando-se, portanto, que o consentimento é exigido não apenas como pressuposto da legitimidade substantiva, mas também como facto constitutivo do direito à anulação da compra e venda.

Concluindo:

I- As regras do ónus da prova (artigo 342.º e seguintes do Código Civil) não têm a ver com o julgamento de facto pois neste, independentemente da sua natureza constitutiva, impeditiva, modificativa ou extintiva, cumpre ao juiz apreciar e valorar os factos de harmonia com as provas produzidas à luz do princípio da liberdade de julgamento (artigo 655.º do Código de Processo Civil; tais regras têm a ver, sim, com questão de direito de saber em que sentido deve o tribunal decidir no caso de não se provarem determinados factos.

II- Quando o artigo 516.º do C.P.C. prescreve que " a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita", a dúvida que aqui se considera não é a dúvida do juiz no julgamento sobre a ocorrência de um facto atenta a prova produzida, pois, em caso de dúvida, impõe-se-lhe decidir no sentido de o facto não se considerar provado. A dúvida aqui equivale ao estado de incerteza sobre a existência do facto que não foi julgado provado a impor a repartição do ónus da prova contra a parte a quem o facto aproveita.

III- O consentimento a que alude o artigo 877.º do Código Civil pode ser prestado verbalmente.

IV- A legitimidade conferida aos interessados (artigo 287.º/1 do Código Civil) referidos no artigo 877.º do Código Civil tendo em vista a anulação da venda de pais a filhos ou netos implica um direito que não é transmissível por morte do titular nos termos do artigo 2025.º/1 do Código Civil não apenas por força do aludido comando legal, mas também porque estamos face a um poder potestativo que não se justifica que tenha existência mais longa do que a do titular, considerando que a ação de anulação da venda de pais a filhos ou netos tem natureza estritamente preventiva não implicando que da venda tenha resultado ofensa da legítima, mas também não obstando ao reconhecimento da simulação, se esta tiver ocorrido.

V- O consentimento ou autorização para a prática de um determinado ato que a lei proíbe constitui, em regra, facto extintivo; no entanto, quando tal facto integra o conteúdo da pretensão de anulação tal facto assume natureza constitutiva; em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito (artigo 342.º/3 do Código Civil).

Decisão: nega-se a revista.

Custas pelos recorrentes

Lisboa, 29 de Maio de 2012
Salazar Casanova (Relator) *
Fernandes do Vale
Marques Pereira
(Acórdão e sumário redigidos ao abrigo do novo Acordo Ortográfico)

___________________

[1] Processo distribuído no Supremo Tribunal no dia 13-3-2012 [P. 2012/313 4146/07]