Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
80/11.3TBMAC-C.E1.S1
Nº Convencional: 2 ª SECÇÃO
Relator: TAVARES DE PAIVA
Descritores: INSOLVÊNCIA
PESSOA SINGULAR
APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL
PENHORA
MASSA INSOLVENTE
PENSÃO DE REFORMA
Data do Acordão: 10/18/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO FALIMENTAR - INSOLVÊNCIA
Doutrina: - Menezes Leitão in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Almedina, Ano 2009, 5ª ed., pág. 242.
Legislação Nacional: CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 46.º, N.º2, 239.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 722.º, N.º3.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 59.º, N.º1, AL. A).
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 30/6/2011, ACESSÍVEL IN WWW.DGSI.PT .
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:
-DE 20.06.2012, ACESSÍVEL IN WWW.DGS.PT .
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
-DE 16/11/2010, PROCESSO N.º 1030/10.TJLSB-C.L1-7, WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - O art. 239.º, n.º 3, al. b), i), do CIRE deve ser interpretado no sentido de que a exclusão aí prevista tem como limite mínimo o que seja razoavelmente digno do devedor e do seu agregado familiar e como limite máximo o valor equivalente ao triplo do salário mínimo nacional (valor máximo este que só pode ser excedido em casos excepcionais devidamente fundamentados).

II - A parte penhorável de um vencimento, ou seja, 1/3 é susceptível de integrar a massa insolvente.

III - O consentimento do devedor só se pode verificar, segundo o n.º 2 do art. 46.º do CIRE, relativamente a bens absolutamente impenhoráveis , o que não se verifica quando se apreende para a massa 1/3 da pensão de aposentação que o insolvente aufere.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo  Tribunal  de Justiça

No processo de insolvência em que foi declarado Insolvente AA, foi proferido despacho deferindo o pedido de exoneração do passivo restante do Insolvente  e fixando , nos termos do parágrafo i)  da alínea b) do nº3 do art. 239 do CIRE , o salário mínimo nacional, como montante para o sustento do insolvente.

         Foi ainda determinado a apreensão de 1/3 do vencimento da pensão de aposentação do insolvente para integrar a massa insolvente até ao encerramento do processo.

Não se conformando com tal despacho o Insolvente interpôs recurso para o Tribunal da ôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora, que pelo  Acórdão inserido a fls. 127 a 139, julgou improcedente o recurso  e confirmou a decisão da 1ª instância.

Novamente inconformado e  ao abrigo do art. 14º do CIRE o Insolvente interpôs recurso para este  Supremo Tribunal, alegando para o efeito que o Acórdão recorrido  se encontra em oposição com outros proferidos nomeadamente pelo Tribunal da Relação de Coimbra, bem como pelo Tribunal da Relação de Lisboa e Porto.

O recorrente, entretanto, fez juntar ao processo certidões de Acórdãos proferidos pelas Relações de Lisboa e Porto, respectivamente juntos a fls. 175ª 186 e 189 a 193.

O recorrente adianta as seguintes conclusões de recurso:

a) o Acórdão recorrido, no que respeita à primeira questão.(qual o montante que deve ser fixado para sustento do insolvente?) está em oposição com o Acórdão proferido pelo Tribunal da   Relação de  Lisboa em 18.01.2011 com o nº 1220/10.5YLSB- A.1.1-7 in site www.dgsi.pt;

b) No Acórdão fundamento referido apesar de não ter sido possível determinar o montante efectivamente despendido pela requerente em alimentação, vestuário, higiene pessoal, gás, água electricidade e transportes, o que é um facto é que as citadas despesas foram levadas em conta na decisão proferida, por respeitarem à satisfação das necessidades básicas;

c) Para o efeito o citado Acórdão teve-se em linha de conta o preço praticado no mercado, quanto a esses bens de consumo, (apesar de não ter sido possível determinar o montante das despesas ) o que conduziu a que o recurso interposto fosse declarado procedente fixando-se no aludido Acórdão o valor de 1.150 € como sustento condigno do insolvente, em vez dos  950,00 € que o Tribunal da 1ª instância tinha atribuído;

d) No Acórdão ora em recurso as despesas de alimentação, vestuário, higiene pessoal, gás, água, electricidade e transportes invocadas pelo Recorrente pura e simplesmente não foram lidas em consideração na decisão proferida com  bas no fundamento que o recorrente não as provou.

e) O  Acórdão ora em recurso está em manifesta oposição com o Acórdão fundamento referido, porque a douta decisão ora em recurso, mesmo a considerar-se que não tinha sido possível determinar o montante efectivamente despendido pelo requerente nas despesas que invocou , se tivesse socorrido do preço praticado no mercado quanto  esses bens de consumo, uma vez que respeitam a necessidade básicas, certamente que chegaria à conclusão que um salário mínimo é manifestamente  insuficiente para o sustento do devedor no caso concreto e concluiria certamente tal como ocorreu no Acórdão fundamento por um aumento de tal valor.

f) Esse Venerando Tribunal terá assim que proferir nova decisão levando em consideração na mesma tais despesas ( consideradas da forma já alegada) de modo a que de acordo com o prudente arbítrio de V. Exas e face às circunstâncias do caso concreto mesmo a considerar-se que o valor de 2 salários mínimos é exagerado, se encontre um valor equilibrado tomando com base e referência à denominada cláusula razoável e do proibição do excesso;

g) O acórdão recorrido no que respeita à segunda questão ( a Srª Juíza “ a quo” podia determinar a apreensão de 1/3 da pensão da aposentação do insolvente para a massa insolvente até ao termo do processo?) está em manifesta oposição com o acórdão proferido  pelo Tribunal da Relação de Lisboa , em 16/11/2010 com o nº 1030/10.0TJLSB-C1.1.7, bem como os Acórdãos da Relação do Porto de 23/03/2009 e 26/03/2009 e 25/01/2011 in www.dgsi.pt

h) Nos acórdãos referidos na alínea anterior defende-se que a criação da figura da exoneração do passivo restante pressupõe que a apreensão do rendimento disponível do devedor insolvente só possa ser efectuada no âmbito das condições previstas em tal instituto , nomeadamente  com o consentimento e por iniciativa do devedor o que não se verificou nos presentes autos;

i) E ainda que no processo de insolvência não podem ser apreendidos a favor da massa insolvente os rendimentos auferidos pelo insolvente no exercício da sua actividade laboral e após a declaração de insolvência, designadamente os salários, as prestações periódicas a título de aposentação ou de regalias , ou a pensão de natureza semelhante;

j) O Acórdão fundamento supra referido com o nº 1030/10.0TJLSB-CL1.7 de 16/11/2010, determinou o levantamento da apreensão de 1/3 da pensão de reforma do insolvente com base nos fundamentos alegados nas alíneas anteriores , o que está em manifesta oposição com o Acórdão recorrido.

K) Deverá ser proferida nova decisão por esse Venerando tribunal que determine, nos presentes autos , o levantamento da apreensão de 1/3 da pensão de reforma do insolvente.

l) O acórdão recorrido violou o disposto no art. 84 nº1 do CIRE e interpretou erradamente o disposto no art. 46 do CIRE, interpretação essa que viola os princípios constitucionais da defesa da dignidade humana  e do direito ao recebimento da retribuição pelo trabalho desenvolvido, consagrados nos artigos 1º, 58º, 59º nº1 alínea a) e 2 alínea a) da CRP e art. 70º do c. Civil.

m) Mostra-se ainda violado o preceituado no nº3 da alínea i) do art. 239º do CIRE.

n) A douta decisão do Tribunal da  Relação de Évora  deve ser substituída por outra que determine a fixação do rendimento disponível para o insolvente em valor superior  a 1 salário mínimo nacional, valor este obtido por referência ao caso concreto tomando em consideração as despesas alegadas pelo recorrente e tendo como base e referência os preços de mercado relativamente a tais bens de consumo e a denominada cláusula do razoável e do princípio da proibição do excesso , bem como o levantamento da apreensão de 1/3 da pensão d e reforma do insolvente.   

Apreciando:

São duas as questões a decidir: uma saber se o valor fixado pelas instâncias reúne os requisitos previstos na alínea b) do art. 239 do CIRE e outra a saber se a apreensão dos bens decretada podia incluir o 1/3 da pensão de aposentação do Insolvente.

 No que concerne à primeira das questões elencadas, que se prende com o conceito de “sustento minimamente digno”, estatui o art. 239 nº1 do CIRE que “não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido despacho inicial na assembleia de apresentação de relatório, ou nos 10 dias subsequentes.”

O nº 2 estatui que o despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a fiduciário escolhido pelo tribunal.

 E o nº3 dispõe  integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor com exclusão:

a)Dos créditos a que se refere o artigo 115º cedidos a terceiros, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;

b) Do que seja razoavelmente necessário para:

 i) O sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;

ii) o exercício pelo devedor da sua actividade profissional;

iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou momento posterior a requerimento do devedor.

  O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar,  conforme decorre inequivocamente  do citado preceito, não deve exceder salvo decisão fundamentada do juiz , três  vezes o salário mínimo nacional.

Este entendimento  no sentido de considerar como limite máximo o valor equivalente ao triplo do  salário mínimo nacional ( que só poderá ser excedido em casos excepcionais, tem-se revelado pacífico na jurisprudência ( cfr. entre outros  Ac. Rel Coimbra de 20.06.2012  acessível in www.dgs.pt e outros que aí são citados).

  No citado aresto se concluiu sobre a questão ora em apreço, conclusão que  também acolhemos  nomeadamente quando interpreta   o art. 239 nº3 al. b) , i) do CIRE  no sentido de que a exclusão aí prevista tem como limite mínimo o que seja razoavelmente necessário para garantir  e salvaguardar o sustento minimamente digno do devedor  e seu agregado familiar e como limite máximo o valor equivalente ao triplo do  salário mínimo nacional( valor máximo este que só pode ser excedido em casos excepcionais, devidamente fundamentados).

 Postas estas considerações importa agora confrontá-las nomeadamente  com a situação fáctica  trazida ao processo .

  E neste domínio importa registar, como bem nota o Acórdão recorrido, não obstante a alegação do insolvente de uma despesa global mensal da ordem dos €896,52, sendo €400 em alimentação, €125 em lavandaria e €100 em vestuário e artigos de higiene e limpeza, o certo é que tais verbas  não se mostram   provadas, tendo  antes sido consideradas exageradas, tanto mais que o insolvente segundo o provado vive sozinho.

E não tendo a Relação consideradas provadas tais despesas, não podem as mesmas serem consideradas conforme o recorrente as alegou e, isto, porque estamos no domínio da prova dos factos, matéria que, como é sabido, é da competência das instâncias, não cabendo a este Supremo Tribunal, como tribunal de revista, interferir na matéria de facto que vem fixada  das instâncias,  a não ser que se verifique ofensa a uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova ( cfr. art. 722 nº 3 do CPC) o que, no caso em apreço, não se verifica.

   Ainda a respeito do conceito do rendimento disponível, como bem nota Menezes Leitão in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Almedina, Ano 2009, 5ª ed. Pag. 242 citado no aludido  Acórdão a previsão da cessão do rendimento disponível constitui um ónus imposto ao devedor, como contrapartida do facto de ser exonerado do passivo que possuía, havendo no entanto que respeitar o princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito , afirmado no art. 1º da Const. Da Rep. Portuguesa e aludido também no art. 59º nº 1 al. a) da  CRP, salvaguardando aos devedores o mínimo julgado indispensável a uma existência condigna.

 E ainda nesse domínio o Acórdão concluiu “ a exoneração do passivo restante corresponde à concessão de benefício aos insolventes, pessoas singulares, traduzido num perdão de dívidas, exonerando-os dos seus débitos com a consequente perda para os credores, dos seus correspectivos créditos, pelo que se deverá considerar que o sacrifício financeiro dos credores legitima proporcional sacrifício do insolvente, tendo como limite a respectiva vivência minimamente condigna”.

 Será com base nestes pressupostos  confrontados com a realidade fáctica trazida ao processo, que  necessariamente se encontrará o sustento minimamente digno  do devedor/insolvente  e  respectivo agregado familiar.

 Ora, face à factualidade que vem provada das instâncias e o conceito que acima se descreveu a respeito do sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, que no caso dos autos, sublinhe-se vive sozinho consideramos adequado ao caso dos autos, a exclusão ao rendimento disponível para o sustento digno ao insolvente  a quantia correspondente a um salário mínimo nacional,  conforme se decidiu no Acórdão recorrido.

 Quanto á segunda das questões enunciadas, importa desde já salientar que o recorrente  relativamente  esta questão não fez juntar qualquer Acórdão em oposição com o Acórdão recorrido, embora tenha referenciado o Acórdão da Relação de Lisboa de 16/11/2010 Proc 1030/10 .TJLSB-C.L1-7,  ao qual , no entanto, tivemos acesso via www.dgsi.pt., acórdão este que tem um voto de vencido  no sentido de que “a massa insolvente abrange , além do mais, os bens e direitos que o devedor adquire na pendência do processo e que não estejam isentos de penhora , pelo que sendo impenhoráveis dois terços dos vencimentos ou salários auferidos pelo executado , ou das prestações periódicas pagas a título de aposentação , nos termos do disposto no art. 824 nº1 als. a) e b) do CPC, nada impede em princípio, que se proceda à penhora, e, assim , à apreensão para a massa insolvente, do terço restante” .  

 Vejamos, então:

 Sobre esta problemática também já se pronunciou este Supremo no Acórdão  de 30/6/11 acessível in www.dgsi.pt  Relator Cons. Bettencourt de Faria, no qual se concluiu também que para efeitos do art. 46 nº 2 do CIRE / a respeito do conceito de massa insolvente), um terço do vencimento não é bem relativamente impenhorável.

Na verdade estatui o nº2 do citado normativo que “ os bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta”.

  Significa, como se diz no Acórdão, que os bens penhoráveis integram a massa insolvente.

 E sendo assim, temos de concluir como aquele Acórdão deste Supremo, ou seja, a parte penhorável de um vencimento ou seja 1/3 é susceptivel de integrar a massa insolvente.

 Por último e a respeito do consentimento do devedor, importa salientar que essa situação só se pode verificar, segundo o nº2 do art. 46 do CIRE,  relativamente a bens absolutamente impenhoráveis, o que não é o caso, quando se apreende para a massa 1/ 3 da pensão de aposentação que o insolvente aufere.

Em conclusão:

1-O art. 239 nº3 al. b) i) do CIRE deve ser interpretado no sentido de que a exclusão aí prevista tem como limite mínimo o que seja razoavelmente digno do devedor e do seu agregado familiar e como limite máximo o valor equivalente ao triplo do salário mínimo nacional ( valor máximo este que só pode ser excedido em casos excepcionais devidamente fundamentados).

2-A parte penhorável de um vencimento, ou seja, 1/3 é susceptível de integrar a massa insolvente.

3-O consentimento do devedor só se pode verificar, segundo o nº2 do art. 46 do CIRE, relativamente a bens absolutamente penhoráveis, o que não se verifica quando se apreende para a massa 1/3 da pensão de aposentação que o insolvente aufere.  

Improcedem, assim, todas as conclusões da recorrente

III- Decisão:  

 Nestes termos e considerando o exposto acordam os Juízes deste Supremo Tribunal, em negar a revista, confirmando o Acórdão recorrido.

 Custas pelo recorrente.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 18 de Outubro de 2012

Tavares de Paiva (Relator)

Abrantes Geraldes

Bettencourt de Faria