Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
413/12.5TBBBR.C1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
HIPOTECA
CANCELAMENTO DE INSCRIÇÃO
NULIDADE
TERCEIRO
Data do Acordão: 12/15/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - A hipoteca e o direito de propriedade sobre o mesmo imóvel, sucessivamente constituídos a favor de diferentes sujeitos, são incompatíveis entre si (embora não de forma total ou absoluta), não obstando a sua diferente natureza à aplicação do regime previsto no art. 17.º, n.º 2, do CRegP.
II - Esta norma pressupõe, no entanto, uma desconformidade criada pelo próprio registo, não concedendo tutela aos terceiros perante a inexistência ou a invalidade do facto jurídico inscrito, que é causa da invalidade registal.
III - Derivando a nulidade do registo de cancelamento da hipoteca da inexistência do facto jurídico que o legitimaria, deve ser reconhecido à credora o direito de reinscrever a hipoteca indevidamente cancelada, produzindo a mesma os seus efeitos, relativamente às rés adquirentes, a partir da data da nova inscrição (art. 732.º do CC).
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

I.

CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A. intentou acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra as rés ALPIVILAS – INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA e ASSOCIAÇÃO THE HAVEN PORTUGAL.

Pediu a condenação das rés a reconhecerem que:
a) O registo do cancelamento das hipotecas averbado mediante as apresentações nº …. e ……, de ...2011
b)
c) 2011, respeitantes ao prédio descrito na CRP do…………… sob a ficha genérica nº ……, ………, e as apresentações nº …. e …. ambas de …2011, respeitantes ao prédio descrito na mesma CRP, sob a ficha genérica nº …., é nulo, declarando consequentemente o tribunal a respectiva nulidade destes registos de cancelamento; e que

b) Em consequência desta declaração, se mantém em pleno vigor, relativamente aos prédios descritos sob as fichas genéricas nº …. e …. da CRP do ………….. o registo das hipotecas a favor dela A., efectuado mediante a apresentação nº .. de ... 2005 e a apresentação nº .. de …2005, de que é titular a ora A. nos precisos termos em que o mesmo se encontrava antes de serem averbados os cancelamentos aludidos em a), decretando o tribunal a reposição do registo das hipotecas em favor da A. nesses precisos termos em que se encontravam antes do seu ilegal cancelamento.

Como fundamento, alegou ser credora hipotecária da 1.ª R., a qual vendeu à 2.ª R., livre de ónus e encargos, os prédios hipotecados, tendo sido cancelada no registo predial a inscrição hipotecária com base em títulos falsos.

Citadas, a 1ª R não contestou.

A 2.ª R. contestou, impugnando o valor da causa, e invocando em seu favor a verificação dos requisitos da aquisição tabular previstos no artigo 17º/2 do Código do Registo Predial, atenta a sua qualidade de terceiro de boa-fé e a sua aquisição do bem a título oneroso.

A A. respondeu, nada tendo a opor à alteração do valor da causa conforme sugerido pela 2.ª R. na contestação, mas negando os factos invocados por esta para demonstração da sua qualidade de terceiro de boa-fé.

Entretanto, foi ordenada a apensação a estes autos do processo com o n.º 434/12.., acção declarativa com processo ordinário que a A. intentara (também) contra a ALPIVILAS – INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA e contra C.M.M. MAIA UNIPESSOAL, LDA, pedindo a condenação das mesmas a reconhecerem que:

a) O registo do cancelamento das hipotecas averbado mediante as apresentações nº …. e …, de…../11/2011, respeitantes ao prédio descrito na CRP do ………. sob a ficha genérica nº ………, é nulo, declarando consequentemente o tribunal a respectiva nulidade destes registos de cancelamento; e que

b) Em consequência desta declaração, se mantém em pleno vigor, relativamente ao prédio urbano descrito sob a ficha genérica nº …… da CRP do .......... o registo das duas hipotecas voluntárias em favor dela A., efectuado mediante a apresentação nº .. de …2005 e a apresentação nº .. de ….2005, de que é titular a ora A. nos precisos termos em que o mesmo se encontrava antes de serem averbados os cancelamentos aludidos em a), decretando o tribunal a reposição do registo das hipotecas em favor da A. nesses precisos termos em que se encontravam antes do seu ilegal cancelamento.

Alegou, semelhantemente ao que fez na acção 413/2012, ser credora hipotecária da 1.ª R., a qual vendeu à 2.ª, livre de ónus e encargos, os prédios hipotecados, tendo sido cancelada no registo predial a inscrição hipotecária com base em títulos falsos.

Também nessa acção a 1ª R. não contestou, apesar de regularmente citada.

A R. “C.M.M. Maia Unipessoal, Lda.” (que se passará a designar por 3.ª R.) contestou, impugnando o valor da causa e invocando igualmente que é terceiro de boa-fé, alheia aos factos referidos pela A., que desconhece.

Também aqui a A. replicou, desta feita opondo-se à alteração do valor da acção e negando os factos invocados pela 3.ª R. para demonstração da sua qualidade de terceiro de boa-fé.

Foi proferido despacho saneador, no qual se fixou o valor das acções, se identificou o objecto do litígio e se enunciaram os temas da prova, tendo-se realizado audiência prévia, a pedido da A.

Realizado julgamento, veio a ser proferida sentença que julgou as acções improcedentes, e, em consequência, absolveu a R. “Alpivilas – Investimentos Imobiliários, Lda.”, a R. “Associação The Haven Portugal” e a R. “C.M.M. Maia Unipessoal, Lda.” dos pedidos formulados.

Discordando desta decisão, a autora interpôs recurso de apelação, que a Relação julgou parcialmente procedente, declarando-se a nulidade dos registos de cancelamento das inscrições hipotecárias em causa nos autos, mantendo-se, no demais, o decidido na 1ª instância

Ainda inconformada, a autora veio pedir revista, admitida como revista excepcional, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. (…)

2. A CGD defende nesta ação que os registos de aquisição da propriedade pelas aqui recorridas The Haven e CMM MAIA Lda. respeitantes aos prédios que adquiriram são válidos, apenas pretendendo que lhe seja reconhecido o direito de ver as suas hipotecas repostas no registo predial tal como se encontravam antes do ilegal cancelamento das mesmas, como efeito útil e normal da decisão agora tomada pelo Tribunal da Relação;

3. Nem por um lado a CGD pretende pôr em causa a validade substancial dos negócios jurídicos realizados entre a Alpivilas e as outras duas RR. nem, todavia, por outro lado, as RR. adquirentes dos prédios podem ser consideradas como “terceiros” para efeitos de aplicação do regime jurídico previsto nesta norma; isto é, as sobreditas RR. não adquiriram da R. Alpivilas nenhum direito incompatível com o direito da CGD, não se aplicando in casu o regime do art. 17º do CRP;

4. No entendimento do douto aresto ora impugnado, se esses dois direitos (hipoteca e propriedade) vierem a ser sucessivamente constituídos a favor de diferentes sujeitos pelo mesmo autor, proprietário inicial do imóvel, verifica-se a aquisição pelos mesmos de direitos incompatíveis de autor comum, correspondendo a medida dessa incompatibilidade à da restrição que a hipoteca implica no direito de propriedade, constituindo-se assim os titulares desses direitos como terceiros em relação a este, considerando assim que tal viola o preceituado no art. 17º nº 2 do CRP;

5. Todavia, na perspetiva aqui defendida pela CGD “restrição ao direito” e incompatibilidade entre direitos” são conceitos juridicamente distintos e que não podem nem devem ser confundidos um com o outro;

6. Desde logo nem sequer se aceita que a hipoteca corresponda a uma “restrição” do direito de propriedade plena; com efeito, a hipoteca não passa de uma mera garantia de pagamento de uma dívida e em caso algum restringe o direito de propriedade que o proprietário tem sobre o imóvel onerado, podendo este à mesma livremente vendê-lo, usá-lo, arrendá-lo, constituir sobre o mesmo outros ónus, etc.;

7. Mas, ainda que se entendesse que a hipoteca, enquanto direito real de garantia, restringe o direito de propriedade, mesmo assim essa restrição de um direito não se pode confundir com o conceito jurídico da incompatibilidade de direitos provenientes de um autor comum, previsto no art. 5º nº 4 do CRP;

8. Efetivamente, o conceito jurídico de incompatibilidade exige que os direitos se excluam entre si: Ou bem que existe um ou bem que existe o outro, não podendo ambos coexisitir; não podem, p. ex., existir dois proprietários plenos do mesmo prédio por ambos adquirido à mesma pessoa; mas esse mesmo primitivo proprietário pode, sem problema, onerar um prédio em favor de uma entidade e aliená-lo seguidamente a uma outra entidade; aliás nada existe de ilegal nisso, bastando recordar o regime jurídico previsto nos artigos 818.º e 610.º do CC, e 54º do CPC, normas estas que preveem que o direito de execução pode incidir sobre bens de terceiro, quando estejam vinculados à garantia do crédito;

9. A respeito do que deve ser entendido por “direitos incompatíveis entre si” milita o douto Acórdão do STJ de 16-10-2008, processo nº 07B4396, douto aresto este que decidiu em tese contrária àquela que o presente Acórdão decidiu, ou seja não admitindo que relativamente a direitos reais de garantia possa valer se possa estender o conceito jurídico de incompatibilidade de direitos;

10. Do cotejo das normas constantes dos art. 5º nº 4 e art. 17º nº 2 do CRP, bem como da doutrina do AUJ n.º 3/99 (embora este AUJ se pronuncie sobre caso diverso) conclui-se que o direito real de garantia (hipoteca voluntária) de que é titular a CGD sobre os prédios não é incompatível com o direito de propriedade sobre os mesmos prédios, ambos os direitos tendo como origem a Alpivilas, sendo este pressuposto (incompatibilidade) o pressuposto da definição do conceito de “terceiros” para efeitos da aplicação do regime jurídico do art. 17º nº 2 do CRP;

11. Acresce ainda que sempre o douto aresto recorrido deveria ser revogado porquanto ao contrário do que decidiu o regime jurídico previsto no artigo 17º, n.º 2 do CRP não protege terceiros perante a inexistência ou invalidade substantiva, situação esta que é a destes autos; com efeito, o vício subjacente à nulidade do cancelamento dos registos hipotecários é de natureza substantiva na justa medida em que o cancelamento das hipotecas é um negócio jurídico de natureza substantiva, verificando-se quando o titular da hipoteca recebe o devido pagamento das quantias devidas/garantidas, pagamento este que in casu não existiu;

12. Subsidiariamente, para o caso de não ser entendido o que supra se defende, então deverá o Tribunal ponderar a aplicação in casu do regime jurídico previsto na norma do art. 732º do C.C. ou seja retomando as hipotecas ilicitamente canceladas os seus efeitos nos termos aí previstos, ou seja produzindo as mesmas os seus efeitos relativamente às RR. adquirentes apenas a partir da data das novas inscrições;

13. Não vislumbra a CGD razões para que o douto Acórdão recorrido privilegie a boa fé das adquirentes em prejuízo e detrimento da boa fé da aqui impugnante, sendo que também a CGD acreditou piamente na “veracidade” do registo das suas hipotecas e na publicidade que do mesmo resultava para todos, sendo que as mesmas foram inscritas no registo predial muito antes do registo de aquisição das RR., não lhe sendo previsível ou exigível supor ou prever que as mesmas viessem a ser canceladas da forma ilícita como o foram, facto este que só descobriu quando os prédios já haviam sido objeto de alienação;

14. Pelo que também a boa fé da CGD merece reconhecimento e carece de tutela judicial, porquanto também ela se fiou na publicidade que para todos derivava do registo das suas hipotecas e na segurança jurídica que tal inscrição registal lhe fornecia face a terceiros, inexistindo razões para que a mesma seja desconsiderada – como foi pelo douto Acórdão recorrido -;

15. Mesmo que venha a ser entendido e decidido que o presente recurso improcede, sempre se afigura que a decisão tomada a respeito das custas pelo Tribunal a quo não é consentânea nem com a lei nem com a justiça do caso concreto;

16. Efetivamente, a CGD viu-se desprovida da sua garantia assente em hipotecas legalmente constituídas e registadas, que foram ilicitamente canceladas, sendo que uma das RR. neste processo (a Alpivilas) – nada mais nada menos que a principal beneficiada pelo sucedido - nem se deu ao trabalho de contestar nenhuma das ações saindo totalmente “ilesa” desta ação, até quanto a custas;

17. Entende a impugnante que a procedência do seu pedido principal – a declaração de nulidade dos cancelamentos – não deveria merecer por parte do Tribunal recorrido a decisão que tomou, continuando a responsabilizá-la pelo pagamento de todas as custas devidas a juízo, com a simples justificação de que este pedido é pressuposto da aplicação do nº 2 do art. 17º do CRP porquanto independentemente de ser ou não ser o pressuposto da procedência do segundo dos pedidos o certo é que o pedido principal foi declarado procedente, daí devendo resultar decisão consentânea quanto à responsabilidade pelas custas;

18. Todavia, ainda, que nenhuma destas considerações sobre custas acima mencionadas merecesse a chancela do Tribunal mesmo assim sempre deverá dispensar-se o pagamento do remanescente da taxa de justiça, ao abrigo do preceituado no nº 7 do art. 6º do RCP, atendendo a que quer a especificidade da situação – que resulta dos autos e que teve origem num facto ilícito (cancelamento de hipotecas registadas) do qual a CGD não é responsável – bem como a conduta processual das partes (pelo menos das que intervieram nas ações) justificam plenamente a dispensa do pagamento desse remanescente, o que se requer.

Termos em que deverá ser revogado o douto Acórdão recorrido, com as legais consequências.

As recorridas contra-alegara, concluindo pela improcedência do recurso.

Cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

- Se a declaração de nulidade do cancelamento dos registos de hipoteca impõe a reposição do registo das inscrições hipotecárias sobre os imóveis em causa nos autos, sendo estas hipotecas oponíveis aos adquirentes desses imóveis.

- Responsabilidade pelas custas; dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente.

III.

Estão provados os seguintes factos:

1.º No dia …… de 2006, a autora outorgou com a 1.ª ré um contrato de “abertura de crédito com hipoteca, fiança e mandato”, no montante de 1.840.000,00€ - cfr. escritura e documento complementar de fls. 8-verso a 18, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

2.º Para garantia do pagamento do capital, juros e despesas associadas a esse empréstimo, foi constituída hipoteca voluntária a favor da autora, entre outros prédios, sobre:

a) o prédio urbano composto de lote de terreno para construção urbana, designado por lote 8, sito no lugar e freguesia de .............., concelho do .........., descrito na Conservatória do Registo Predial do .......... sob o n.º …..........;

b) o prédio urbano composto de lote de terreno para construção urbana, designado por lote 9, sito no lugar e freguesia de .............., concelho do .........., descrito na Conservatória do Registo Predial do .......... sob o n.º .............;

c) o prédio urbano composto de lote de terreno para construção urbana, designado por lote 12, sito no lugar e freguesia de .............., concelho do .........., descrito na Conservatória do Registo Predial do .......... sob o n.º …............. – cfr. mesmo documento.

3.º A hipoteca foi registada sobre cada um dos referidos prédios, pela apresentação 2, de 2005……– cfr. certidões de registo predial de fls. 515 a 545, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

4.º Em ….. de 2006, a autora celebrou com a 1.ª ré um “contrato de abertura de crédito à construção” – cfr. documento de fls. 24 a 29, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

5.º Para garantia das obrigações pecuniárias, assumidas ou a assumir, pela 1.ª ré perante a autora, decorrentes de quaisquer operações bancárias, a 1.ª ré constituiu hipoteca a favor da autora sobre o prédio rústico denominado “..............”, sito na freguesia de .............., concelho do .........., descrito na Conservatória do Registo Predial do .......... sob o n.º .…… – cfr. escritura de fls. 32 a 34-verso, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

6.º Este prédio constitui o prédio mãe do qual foram desanexados os prédios descritos nas alíneas a) a c) do ponto 2.º - cfr. certidões de registo predial de fls. 515 a 545, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

7.º Esta hipoteca foi registada sobre cada um desses prédios, pela apresentação 7, de 2005/02/16 – cfr. mesmo documento.

8.º Sob as apresentações nº …. e …, de 2011...., procedeu-se ao cancelamento do registo das hipotecas incidentes sobre o prédio descrito sob o n.º............ - cfr. mesmo documento.

9.º Sob as apresentações nº …. e …, de 2011…..., procedeu-se ao cancelamento do registo das hipotecas incidentes sobre o prédio descrito sob o n.º ........... - cfr. mesmo documento.

10.º Sob as apresentações nº …. e …, de 2011…...., procedeu-se ao cancelamento do registo das hipotecas incidentes sobre o prédio descrito sob o n.º ............. - cfr. mesmo documento.

11.º Os cancelamentos do registo das hipotecas foram feitos com base em termos de cancelamento com reconhecimento presencial de assinaturas de AA e de BB, na qualidade de administradores da autora, reconhecimento esse alegadamente efectuado pelo Dr. CC, advogado.

12.º A autora não emitiu os termos de cancelamento do registo das hipotecas quanto aos prédios em causa, não provindo as assinaturas apostas naquele documento do punho dos seus alegados subscritores, que, à data, nem sequer faziam parte do Conselho de Administração da autora.

13.º O Dr. CC não emitiu as declarações de reconhecimento das assinaturas de AA e de BB.

14.º A autora não recebeu os pagamentos devidos pelo cancelamento das hipotecas incidentes sobre os prédios descritos em 2.º.

15.º A presente acção foi registada sobre os prédios descritos em 2.º pela Ap. 511, de 2012….. - cfr. certidões de registo predial de fls. 515 a 545, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

- O tribunal da 1ª instância julgou ainda provados relativamente à R. “Associação The Haven Portugal” (2.ª R.), os seguintes factos:

16.º Por “contrato-promessa de compra e venda” celebrado em ….. de 2009, a 1.ª ré prometeu vender à 2.ª ré, que por sua vez prometeu comprar, livre de ónus, encargos e hipotecas: a) o prédio urbano de habitação, composto de casa de rés-do-chão, primeiro andar e garagem, designado por lote 8, descrito no registo sob o n.º 1482; b) o prédio urbano de habitação, composto de casa de rés-do-chão, primeiro andar e garagem, designado por lote 9, descrito no registo sob o n.º …. – cfr. “contratos-promessa de compra e venda” de fls. 260 a 275, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

17.º A título de sinal e princípio de pagamento, a 2.ª ré entregou à 1.ª ré o montante de 25.000,00€ por cada um dos lotes objecto dos ditos contratos-promessa.

18.º Por escritura de compra e venda outorgada em ……. de 2011, a 1.ª ré declarou vender à 2.ª ré, que declarou comprar, pelo preço global de 277.000,00€, livre de ónus ou encargos, os prédios descritos em 16.º - cfr. escritura de compra e venda de fls. 45 a 47- verso, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

19.º Neste negócio, interveio a mediadora imobiliária “….. – Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda.”, titular da licença n.º ……- AMI – cfr. mesmo documento.

20.º Na data da celebração do contrato de compra e venda, a 2.ª ré entregou à 1.ª ré a quantia de 206.488,25€, para pagamento do remanescente do preço acordado para aquisição dos imóveis em causa, tendo para o efeito emitido os seguintes cheques: a) cheque n.º ………71, no montante de 58.401,44€; b) cheque n.º ………53, no montante de 14.391,00€; c) cheque n.º ..……..14, no montante de 134.195,81€.

21.º A aquisição referida em 18.º veio a ser registada a favor da 2.ª ré pela apresentação 1827, de 2011….. - cfr. certidões de registo predial de fls. 515 a 545, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

22.º A 2.ª ré adquiriu os imóveis, confiando que sobre os mesmos não incidia outro registo que não a propriedade a favor da 1.ª ré.

23.º A 2.ª ré não tinha conhecimento dos termos de cancelamento das hipotecas que incidiam sobre os imóveis descritos em 16.º.

- O tribunal da 1ª instância julgou ainda provados relativamente à R . “C.M.M. Maia Unipessoal, Lda.” (3.ª ré), os seguintes factos:

24.º A 3.ª ré é uma sociedade que, entre outras actividades, se dedica ao investimento imobiliário, exercendo a actividade de compra e venda de imóveis e sua revenda.

25.º Por “contrato-promessa de compra e venda” celebrado em 17 de Novembro de 2011, a 1.ª ré prometeu vender à 3.ª ré, que por sua vez prometeu comprar, livre de ónus, encargos ou responsabilidades, o prédio urbano de habitação, situado em .............., lugar de ............, lote .., descrito na Conservatória do Registo Predial do .......... sob o n.º ….. – cfr. “contrato-promessa de compra e venda” de fls. 410 a 411-verso, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

26.º Na data da celebração do referido contrato-promessa, a 3.ª ré entregou à 1.ª ré o montante de 35.000,00€, a título de sinal, através do cheque n.º ……..56.

27.º Por escritura de compra e venda outorgada em 21 de Novembro de 2011, a 1.ª ré declarou vender à 3.ª ré, que declarou comprar, pelo preço de 130.000,00€, livre de ónus ou encargos, o prédio urbano composto de casa de rés-do-chão e garagem, designado por lote 12, sito no lugar e freguesia de .............., concelho do .........., descrito na Conservatória do Registo Predial do .......... sob o n.º ….. - cfr. escritura de compra e venda de fls. 417 a 419-verso, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

28.º Neste negócio, interveio a mediadora imobiliária “…… – Sociedade Mediação Imobiliária, Lda.”, titular da licença n.º …… - AMI – cfr. mesmo documento.

29.º Para pagamento do remanescente do preço acordado para aquisição do imóvel em causa, a 3.ª ré entregou à 1.ª ré e à “Caixa Económica Montepio Geral” a quantia de 206.488,25€, tendo para o efeito emitido os seguintes cheques: a) cheque n.º ………….58, no montante de 44.600,00€; b) cheque n.º …………..57, no montante de 15.000,00€; c) cheque n.º ……………92, no montante de 21.400,00€; d) cheque n.º …………….91, no montante de 14.000,00€.

30.º A aquisição referida em 27.º veio a ser registada a favor da 3.ª ré pela apresentação 3131, de 2011/11/21 – cfr. certidões do registo predial de fls. 515 a 545, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

31.º A 3.ª ré adquiriu o imóvel, confiando que sobre o mesmo não incidiam outros registos que não a propriedade a favor da 1.ª ré e duas penhoras a favor da “Caixa Económica Montepio Geral”, que se obrigou a requerer o cancelamento do registo das mesmas junto da Conservatória.

32.º A 3.ª ré não tinha conhecimento do termo de cancelamento das hipotecas que incidiam sobre o imóvel descrito em 27.º.

Relativamente aos factos não provados, referiu a 1ª instância que «não ficou por provar nenhum facto com relevância para a decisão da causa».

IV.

Decorre da factualidade provada que, para garantia do pagamento de dois empréstimos contraídos pela 1ª ré junto da CGD, aquela constituiu a favor desta hipotecas voluntárias sobre os prédios acima identificados, que foram devidamente registadas (em 2005).

Posteriormente, em Novembro de 2011, procedeu-se ao cancelamento do registo dessas hipotecas. Estes cancelamentos foram feitos, porém, com base em títulos falsos: os termos de cancelamento não foram emitidos pela autora (sendo falsas as assinaturas dos subscritores, assim como o reconhecimento das mesmas), não tendo esta recebido os pagamentos que seriam devidos.

A 1ª ré procedeu depois à venda dos referidos prédios, "livres de ónus ou encargos", às 2ª e 3ª rés, que procederam ao registo das aquisições em 19.12.2011 e 21.11.2011, respectivamente.

Estas rés confiaram que, sobre os prédios, não incidiam outros registos que não o de propriedade da 1ª ré.

A presente acção foi registada em 04.10.2012.

Perante este circunstancialismo, afirmou-se no acórdão recorrido, em síntese, que:

Tendo o cancelamento das hipotecas sido efectuado com base num título falso, deve ser declarada a nulidade do registo desses cancelamentos (al a) do art 16º CRP), como foi pedido.

 Essa declaração de nulidade não tem, no entanto, como efeito a reposição do registo dessas inscrições nos termos em que se achavam inscritas antes dos referidos cancelamentos, como pretende a recorrente, nem conduz à aplicação do disposto no art 732º CC, norma que tem apenas em vista casos de vício ou ineficácia do acto registado e não situações de vício de registo.

Se uma hipoteca e o direito de propriedade plena sobre um mesmo imóvel forem sucessivamente constituídos a favor de diferentes sujeitos pelo mesmo sujeito, proprietário inicial desse imóvel, verifica-se a aquisição pelos mesmos de direitos incompatíveis de autor comum, constituindo-se tais sujeitos como terceiros em relação a este

 Ora, nos casos em que o terceiro adquirente a título oneroso e de boa fé age com base no registo, deverá aplicar-se o regime estabelecido no art 17º/2 do Código do Registo Predial, garantindo-se que esses terceiros não serão afectados pela declaração de nulidade do registo anterior (do cancelamento das inscrições hipotecárias) que suportou a feitura do seu, de modo a não resultar prejudicado o direito de propriedade que adquiriram de forma onerosa e de boa fé.

A recorrente discorda, sustentando que a sua pretensão deverá proceder com base nestas razões:

- O direito real de garantia – hipoteca voluntária – de que é titular a CGD não é incompatível com o direito de propriedade;

- Não tendo as rés adquirido da ré Alpivilas nenhum direito incompatível com o direito da CGD, não é aplicável ao caso dos autos o disposto no art. 17º, nº 2, do CRegP;

- Por outro lado, essa norma não protege terceiros perante a inexistência ou invalidade substantiva;

- Deve, pois, ser aplicado ao caso o regime geral respeitante à nulidade dos negócios jurídicos, do que resulta a reposição da situação registal anterior ao ilícito cancelamento:

- Caso assim se não entenda, deverá então ser aplicado o regime previsto no art. 732º do CC, retomando as hipotecas ilicitamente canceladas os seus efeitos nos termos aí previstos.

Crê-se que tem, em parte, razão.

A primeira questão colocada no recurso tem a ver com a aplicação ao caso dos autos do regime previsto no art. 17º, nº 2, do CRegP.

Entende a recorrente que não uma vez que o direito que as rés adquiriram – de propriedade – não é incompatível com o direito de garantia – hipoteca – da autora.

Neste ponto e considerando o referido efeito, visado pela recorrente, afigura-se-nos que esta não tem razão.

Com efeito, conquanto não se trate de questão pacífica, parece poder afirmar-se que não existe um conceito unitário de terceiro que sirva para todas as situações de protecção registal[2], distinguindo-se, desde logo, um conceito restrito de terceiro, consagrado no art. 5º, nº 4, do CRegP, do conceito amplo adoptado nos arts. 17º, nº 2, e 122º do mesmo diploma e, bem assim, no art. 291º do CC.

Na verdade, diferentemente daquele, em que terceiros são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis, nestes será também de exigir a incompatibilidade, mas esta surge entre sujeitos que não adquiriram de um autor comum.

No caso, está em causa a aplicação do regime previsto no citado art. 17º, nº 2, que pressupõe, portanto, a incompatibilidade dos direitos de que a autora (hipoteca) e as 2ªs rés (propriedade) são titulares.

Ora, para este efeito e com a ressalva do que adiante será dito, entende-se – conforme, aliás, posição que se crê predominante – que esses direitos devem considerar-se incompatíveis entre si, apesar de não se tratar de uma incompatibilidade total ou absoluta.

Assim se decidiu no Acórdão do STJ de 30.06.2011[3]: "estes dois direitos em confronto, ainda que não sendo da mesma natureza, enquanto um é um direito real de propriedade, o outro é um direito real mas só de garantia, são incompatíveis entre si, já que, conferindo a hipoteca ao seu beneficiário o direito de se fazer pagar pelo valor do respectivo bem, isso vai conflituar com o conteúdo pleno do direito de propriedade radicado noutra pessoa".

Com efeito, estando em causa um direito real de garantia, apenas será de exigir que o credor hipotecário seja admitido a fazer valer a hipoteca sem que o adquirente do direito de propriedade depois inscrito lhe possa opor este direito.

Como afirma Mónica Jardim, "o direito cujo facto aquisitivo não é registado atempadamente não fica necessariamente prejudicado in toto, mas na medida em que é incompatível com o direito anteriormente publicitado através de um assento registal definitivo. Por outra via, o direito só fica prejudicado in toto quando é menos amplo do que o primeiramente publicitado e não pode, por isso, ficar por ele onerado; ou quando em causa estão direitos com o mesmo conteúdo (salvo quando o respectivo exercício não produz qualquer interferência no outro direito). Ao invés, sempre que o direito não publicitado ou sucessivamente publicitado tem um conteúdo mais amplo do que aquele que primeiro acedeu ao registo, a consequência é a de ficar aquele onerado com este"[4].

Tratando-se, pois, apesar de apenas nessa medida, de direitos incompatíveis, a diferente natureza desses direitos em confronto não constituiria obstáculo à aplicação do art. 17º, nº 2, do CRegP.

Porém, a outra razão invocada pela recorrente para a não aplicação dessa disposição legal deve, parece-nos, ter sorte diferente, por se entender que essa norma não tutela os terceiros por vícios substantivos que afectem o facto registado.

Esta questão é controvertida[5], maxime quanto ao âmbito de aplicação do art. 17º, nº 2, no confronto com a aplicação do regime previsto no art. 291º do CC, embora seja francamente predominante, na doutrina, o entendimento que distingue a aplicação desses preceitos consoante a natureza dos vícios a que cada um se dirige: o preceito da lei civil, aos vícios substantivos, e o da lei registal aos vícios do registo.

Assim, para alguns Autores, desde que exista registo anterior inválido a favor do transmitente, será aplicável o art. 17º, nº 2, do CRegP, tanto aos casos de nulidade substantiva, como aos casos de nulidade registal[6].

Para outros, porém, o art. 17º nº 2 pressupõe uma desconformidade que foi criada pelo próprio registo. Não abrange desconformidades substantivas, pois estas só se podem sanar nos termos do art. 291º[7].

Na jurisprudência, designadamente do Supremo, predomina também o entendimento de que o art. 291º do CC e o art. 17º do CRegP se conciliam, deixando para o primeiro a invalidade substantiva e para o último a nulidade registal[8].

O regime do art. 291º regula os efeitos da invalidade dos negócios jurídicos; estabelece um desvio à regra do art. 289º, visando a protecção de terceiros de boa fé – terceiro adquirente ou subadquirente que, no momento da aquisição, desconheciam, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável.

Todavia, se esse registo da aquisição for posterior ao registo da acção ou se esta acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio inválido, esta invalidade é oponível ao adquirente, já não sendo reconhecidos os direitos deste terceiro.

O regime do art. 17º, nº 2, tem na base uma nulidade do registo; a declaração desta nulidade não prejudica os terceiros que adquiriram direitos com base nesse registo, desde que o titular do direito real não tenha registado previamente a acção.

Tem estes pressupostos:

- pré-existência de um registo nulo (art. 16º);

- o titular inscrito dispõe do seu "direito" a favor de terceiro com base no registo nulo;

- boa fé do terceiro;

- carácter oneroso do acto de aquisição pelo terceiro;

- o registo da aquisição do terceiro precede o registo da acção de nulidade.

Se, no art. 291º, os vícios do negócio anterior não afectam os direitos adquiridos por terceiro (decorrido o prazo de 3 anos sobre aquele negócio sem ter sido registada a acção de nulidade), aqui "não há qualquer negócio viciado cuja invalidade venha a ser exposta. O que há é um registo nulo. A declaração de nulidade de um registo não prejudica então os terceiros que adquiriram direitos sobre o bem cujo registo era nulo"[9].

Protege-se, assim, o "terceiro que adquiriu o seu pseudo direito com base num registo prévio nulo, que patenteia uma situação registal desconforme com a realidade substantiva, contanto que o titular do direito real não haja registado previamente a acção"[10].

Esclarece Mónica Jardim que "O art. 16º do Cód. Reg. Predial não abrange verdadeiras nulidades substantivas (…). A invalidade registal extrínseca (quando o registo é lavrado com base num título nulo ou que venha a ser anulado) não é a «invalidade» que afecta o facto jurídico inscrito, é, isso sim, uma consequência desta".

Ora, "estando em causa uma invalidade registal extrínseca, como a mesma é mera consequência do vício substantivo, é o regime deste que, afinal, assume relevância sempre que um terceiro necessite de tutela".

Acrescenta a mesma Autora:

 "Sempre que um facto jurídico aceda ao registo e padeça de inexistência, seja nulo ou venha a ser anulado, em causa estão dois actos viciados: o facto jurídico inscrito e o assento registal. Acresce que cada um desses factos está inquinado por vícios diversos. Efectivamente o facto jurídico inscrito padece do vício substantivo; o registo, por seu turno, é extrinsecamente nulo porque lavrado com base num título falso ou com base num título insuficiente para a prova legal do facto registado (…) e, portanto, padece de uma nulidade consequencial decorrente de um vício substantivo.

Acresce que cada um desses vícios tem o seu respectivo regime.

Porque assim é não temos dúvidas de que o preceito legal que tutela os terceiros perante o vício registal extrínseco não concede (não pode conceder) qualquer protecção aos terceiros perante a inexistência ou a invalidade do facto jurídico inscrito que é a causa da invalidade registal.

Por outra via, sendo o vício registal mera consequência do vício substantivo, na nossa perspectiva, um terceiro não pode beneficiar da tutela concedida pelo n.º 2 do art. 17º do Cód. Reg. Pred. perante a inexistência ou a invalidade substantiva, uma vez que não há-de ser o regime que tutela os terceiros perante um consequência da inexistência ou da invalidade substancial – o mesmo é dizer, em face da nulidade registal – a determinar o regime que tutela os terceiros perante a própria inexistência ou a invalidade substancial – ou seja, em face da causa da nulidade registal. Ou, de forma sincopada, não pode ser o regime da consequência a determinar o regime da causa[11].

Como sublinha Oliveira Ascensão, "O art. 17º, nº 2, pressupõe uma desconformidade que foi criada pelo próprio registo. Não abrange desconformidades do título substantivo, pois estas só se podem sanar nos termos do art. 291º". Mesmo que haja concorrência de invalidades, "a superação da invalidade substantiva só se produzirá nos termos do art. 291º, na parte em que subsistir".

Acrescenta que "o sistema português é marcado por uma prevalência forte da titularidade substantiva sobre os interesses do tráfego. Nem sequer se admite o princípio posse vale título em matéria de aquisição de móveis, ao arrepio do que se passa na generalidade dos países. Nenhum motivo há para que a mera inscrição no registo, que pode ser fruto do acaso, produza por si a aquisição do direito; antes prevalece a titularidade substantiva"[12],[13].

No caso, o cancelamento do registo das hipotecas é extrinsecamente nulo, uma vez que foi lavrado com base num facto jurídico inexistente. Trata-se da designada inexistência ôntica[14]: aquele facto que serviu de fundamento ao cancelamento não aconteceu pura e simplesmente; a declaração que consta dos termos de cancelamento é falsa, tendo sido fabricada pela 1ª ré. Não pode, como tal, produzir efeitos jurídicos.

Assim, não podem as rés adquirentes beneficiar de tutela do art. 17º, nº 2, do CRegP por se tratar de um vício extrinsecamente nulo; ou, noutra visão, por se dever considerar o efeito consolidativo do registo das hipotecas. Nem podem beneficiar da protecção do art. 291º do CC por aí não se proteger o terceiro perante a inexistência (não se tendo operado a aquisição derivada restitutiva da propriedade plena a favor da 1ª ré)[15].

Refere-se no acórdão recorrido que, quer o registo em causa se apresente como intrinsecamente ou extrinsecamente nulo, o certo é que não deixou de implicar a confiança do terceiro no conteúdo do mesmo e de o fazer actuar com base nessa confiança, acreditando, sem culpa, na fidelidade do registo à realidade substantiva.

Porém, certo é também, como se afirma no recurso, que a autora tinha razões para acreditar "piamente" na "veracidade" do registo das hipotecas e na publicidade que do mesmo resultava para todos, não sendo previsível ou exigível supor ou prever que as mesmas viessem a ser canceladas da forma ilícita como o foram. "Também ela se fiou na publicidade que para todos derivava do registo das hipotecas e na segurança jurídica que tal inscrição registal lhe fornecia".

Afastada a aplicação ao caso do regime previsto no art. 17º, nº 2, do CRegP, acolhendo-se, neste ponto, a tese da recorrente, nem assim pode proceder a pretensão desta de, em consequência da nulidade do registo dos cancelamentos das hipotecas, ser reposta a situação registal anterior a esse ilícito cancelamento.

Com efeito, dispõe o art. 732º do CC:

Se a causa extintiva da obrigação ou a renúncia do credor à garantia for declarada nula ou anulada, ou ficar por outro motivo sem efeito, a hipoteca, se a inscrição tiver sido cancelada, renasce apenas desde a data da nova inscrição.

Em anotação a esta norma esclarecem Pires de Lima e Antunes Varela:

Afastou-se a lei, quanto aos casos previstos em primeiro lugar, da regra geral sobre a nulidade ou anulabilidade prescrita no n.º 1 do artigo 289º; uma e outra têm efeitos retroactivos e, portanto, em princípio, tudo se devia passar como se o negócio extintivo não tivesse tido lugar.

São as necessidades do registo (protecção de terceiros) que inspiram a doutrina do artigo 732º. Entre o cancelamento do primeiro registo e a feitura do segundo podem ter sido constituídos novos direitos reais, quer sejam de gozo, quer de garantia, sobre a coisa, e importa proteger os respectivos titulares, se eles, entretanto, obtiveram o registo desses direitos. E igual protecção merecem os próprios direitos registados já na altura do cancelamento, embora posteriormente à hipoteca, cujos titulares passaram a contar com a extinção da garantia cancelada[16].

No mesmo sentido se pronuncia Rui Pinto Duarte:

"Partindo da premissa de que os efeitos da hipoteca dependem de registo, o art. 732º responde à questão de saber quais as consequências de uma inscrição hipotecária ter sido cancelada com base numa causa extintiva inválida ou ineficaz, permitindo implicitamente a reinscrição, mas estabelecendo que ela apenas produz efeitos para futuro. O mesmo é dizer que os actos de alienação ou oneração da coisa hipotecada que tiveram lugar durante o tempo em que a hipoteca não tenha figurado no registo são oponíveis ao titular da hipoteca cuja inscrição tenha sido cancelada com base numa causa extintiva (no sentido do art. 730º) inválida ou ineficaz. Assim, a norma em causa constituiu desvio relativamente ao regime que resulta do art. 291º".

Acrescenta o mesmo Autor que "o art. 732º tem em vista casos em que o cancelamento da hipoteca foi regularmente feito, ou seja, em que não há vício de registo, mas sim vício ou ineficácia do acto registado. Os casos de vício do registo estão regulados nos arts 16º, 16ºA e 17º CRPredial"[17].

Pronunciando-se também sobre os efeitos do regime da referida norma relativamente a terceiros adquirentes, afirmam Mónica Jardim, Margarida Costa Andrade e Afonso Patrão:

“Portanto, não só são protegidos os terceiros, adquirentes na vigência do cancelamento, como os terceiros que hajam adquirido após o registo da hipoteca e antes do seu cancelamento.

Desta forma, afastou-se a lei portuguesa da regra geral, segundo a qual a nulidade e a anulabilidade produzem efeitos retroactivos, bem como da excepção introduzida a esta regra, em benefício de terceiros adquirentes de boa fé a título oneroso, consagrada no art. 291º.

Mais, apesar da letra da lei, o terceiro não é apenas protegido se a causa extintiva da obrigação ou a renúncia do credor à garantia for declarada nula ou anulada ou ficar por outro motivo sem efeito, mas sim sempre que o registo da hipoteca seja cancelado e depois se reconheça ao credor o direito a obter a reinscrição da hipoteca. Assim, por exemplo, quando o registo de uma hipoteca seja cancelado com base numa falsa declaração do consentimento do credor”[18].

No caso, não está apenas em causa, parece-nos, um vício do registo, como se considerou no acórdão recorrido: a nulidade do registo de cancelamento das hipotecas advém da inexistência do facto jurídico que legitimaria esse cancelamento.

Por outro lado, apesar de na norma do art. 732º se prever apenas casos de invalidade da causa extintiva da obrigação ou da renúncia do credor, parece-nos caber também na previsão da norma, por maioria de razão, a hipótese de inexistência.

Afigura-se-nos, por isso, que se verificam os requisitos de aplicação do referido regime, devendo reconhecer-se à autora o direito de reinscrever as hipotecas indevidamente canceladas, nos termos aí previstos, ou seja, produzindo as mesmas os seus efeitos, relativamente às rés adquirentes, a partir da data das novas inscrições.

A tal não obsta o facto de a autora não ter formulado expressamente esse pedido na acção: a questão não é nova, tendo sido tratada no acórdão recorrido, e, por outro lado, a decisão nos termos indicados, em vez da pretendida reposição integral dos registos no estado anterior (ex tunc), representa uma redução qualitativa da pretensão formulada, sendo, pois, permitida a correspondente convolação[19].

2. Resta tomar posição sobre a questão suscitada no recurso relativamente à taxa de justiça e custas.

 No que respeita à responsabilidade pelas custas, a questão colocada – de a recorrente não dever ser responsabilizada pela totalidade das custas por ter obtido ganho de causa quanto ao pedido de declaração de nulidade dos registos de cancelamento – fica prejudicada, por nela se repercutir a decisão que irá ser aqui proferida, de não confirmação da decisão do acórdão recorrido quanto ao outro pedido formulado pela autora.

No que concerne à questão da taxa de justiça remanescente:

Decorre claramente das alegações de recurso que esta questão assenta na consideração de que o valor da causa – no caso, de cada uma das acções –, como ali se refere, "é reflexo dos montantes mutuados à Alpivilas" (€ 1.840.000,00).

Verifica-se, porém, que o valor atribuído pela autora a cada uma das acções foi alterado na 1ª instância, tendo sido fixado à acção principal, o valor de € 277.000,00 (despacho de 02.04.2013) e à acção apensada o valor de € 131.500,00 (despacho de 12.12.2016).

Assim, só uma das acções ultrapassa o valor de € 275.000,00, referido no art. 6º, nº 7, do RCJ e, mesmo neste caso, em muito pequena medida, correspondendo, segundo a Tabela I-B, anexa ao Regulamento, a uma taxa de 1,5 UC, que não justifica dispensa ou redução.

Em conclusão:

1. A hipoteca e o direito de propriedade sobre o mesmo imóvel, sucessivamente constituídos a favor de diferentes sujeitos, são incompatíveis entre si (embora não de forma total ou absoluta), não obstando a sua diferente natureza à aplicação do regime previsto no art. 17º, nº 2, do CRegP.

2. Esta norma pressupõe, no entanto, uma desconformidade criada pelo próprio registo, não concedendo tutela aos terceiros perante a inexistência ou a invalidade do facto jurídico inscrito, que é causa da invalidade registal.

3. Derivando a nulidade do registo de cancelamento da hipoteca da inexistência do facto jurídico que o legitimaria, deve ser reconhecido à credora o direito de reinscrever a hipoteca indevidamente cancelada, produzindo a mesma os seus efeitos, relativamente às rés adquirentes, a partir da data da nova inscrição (art. 732º do CC).

V.

Em face do exposto, concede-se em parte a revista, revogando-se também em parte o acórdão recorrido e a sentença que o mesmo confirmou e, em consequência, mantendo-se a declaração de nulidade dos registos de cancelamento das inscrições hipotecárias em causa nos autos, reconhece-se o direito da autora de reinscrever as hipotecas, indevidamente canceladas, sobre os prédios identificados nos autos, produzindo as mesmas os seus efeitos relativamente às rés adquirentes a partir da data das novas inscrições.

Custas de cada uma das acções e dos recursos a cargo da autora e das rés, na proporção de 1/3 e 2/3, respectivamente.

Lisboa, 15 de Dezembro de 2020

F. Pinto de Almeida

José Rainho

Graça Amaral

Tem voto de conformidade dos Exmos Adjuntos (art. 15ºA aditado ao DL 10-A/2020, de 13/3, pelo DL 20/2020, de 1/5).

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

_______________________________________________________


[1] Proc. nº 413/12.%TBBBR.C1.S1
F. Pinto de Almeida (R. 350)
Cons. José Rainho; Cons.ª Graça Amaral
[2] Cfr. José Alberto Vieira, Direitos Reais, 291; Mónica Jardim, Dupla venda na acção executiva, CDP 48-48 e, mais recentemente, Henrique Sousa Antunes, Direitos Reais, 90.
[3] Acessível em www.dgsi.pt.
[4] Efeitos Substantivos do Registo Predial, 500.
[5] Cfr., neste ponto, o Acórdão do STJ de 03.05.2016 (P. 1171/10) com os mesmos relator e 1º Adjunto deste.
[6] Neste sentido, Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 277 e 278; Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 6ª ed., 151 e 152; Isabel Pereira Mendes, CRP Anotado, 17ª ed., 225 e segs.
Deve referir-se aqui a posição de Henrique Sousa Antunes (Ob. Cit., 116 e segs): o regime do art. 17º, nº 2, deve ser estendido aos casos de vícios substantivos; porém, "verificado o efeito consolidativo do registo, carece de legitimidade a aquisição por terceiro se o registo foi obtido com títulos falsos". A aplicação do art. 17º, nº 2 será, assim, "residual": "só a falta de registo do interessado o expõe à aquisição do direito por um subadquirente que se aproveita de um registo nulo anterior, por falsidade do título ou do próprio registo".
[7] Neste sentido, Oliveira Ascensão, Direito Civil Reais, 5ª ed., 369 e segs; também A desconformidade do registo predial com a realidade e o efeito atributivo, CDP 31-3 e segs; Santos Justo, Direitos Reais, 76 e segs; Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 2ª ed., 151 e 152; José Alberto Vieira, Direitos Reais, 304 e segs; Órfão Gonçalves, Aquisição Tabular, 2ª ed., 24 e segs; Clara Sottomayor, Invalidade e Registo, 705 e segs; José Alberto Gonzalez, Direitos Reais e Direito Registal Imobiliário, 418 e segs. e Mónica Jardim, Ob. Cit., 749 e segs.
[8] Ac. do STJ de 21.04.2009. Cfr. também os Acórdãos de 27.04.2005, de 26.10.2010, de 16.11.2010, de 19.04.2016 e de 27.11.2018; em sentido contrário, o Acórdão de 14.06.2005. Estes acórdãos estão acessíveis em www.dgsi.pt..
[9] Órfão Gonçalves, Ob. Cit., 29.
[10] José Alberto Vieira, Ob. Cit. 303.
[11] Ob. Cit., 757 e 760.
[12] A desconformidade … cit., 14 e 15.

[13] Como afirma Clara Sottomayor, "Os direitos a registar constituem-se fora do registo e este limita-se a dar-lhes publicidade. É por isso que o Código do Registo Predial apenas tem regras para a invalidade dos actos do registo, não podendo conter regras relativas à invalidade material do facto sujeito a registo, nem regras que provoquem a extinção do direito do verdadeiro proprietário" – Ob. Cit., 720.

Já Antunes Varela entendia também que "a inscrição do acto no registo não defende o adquirente, ao invés do que sucede no direito alemão, contra os efeitos da destruição provocada pela nulidade ou anulação do contrato, nem sequer contra os efeitos da destruição em cascata desencadeada pela nulidade ou anulação de quaisquer contrato de alienação ou oneração anterior" – RLJ 118-310.
[14] Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 9ª ed., 728.
[15] Cfr. Mónica Jardim, Ob. Cit., 769; Clara Sottomayor, Ob. Cit., 717 e 718; H. Sousa Antunes, Ob. Cit., 121.
[16] Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., 753.
[17] Código Civil Anotado (coord. de Ana Prata), Vol. I, 911.
[18] 85 Perguntas sobre a Hipoteca Imobiliária, 46 (com sublinhado acrescentado).
[19] Cfr. Lopes do Rego, O princípio do dispositivo e os poderes de convolação do juiz no momento da sentença, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I, 800.