Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
141/15.0T8PST.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: CHEQUES
ASSINATURA
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
OFENSA DO CASO JULGADO
MEIOS DE PROVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CASO JULGADO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ERRO DE JULGAMENTO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 12/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I. Não sendo apreciada, na oposição à execução, a questão da existência ou inexistência da obrigação da ré de pagamento à autora da quantia inscrita em certos cheques, mas apenas a falta de um dos requisitos de que depende a exequibilidade dos cheques enquanto título executivo, a decisão aí proferida não forma caso julgado para efeitos de posterior acção declarativa visando a condenação da ré naquela obrigação.

II. O Supremo Tribunal de Justiça não tem o poder de sindicar a convicção atingida pelo Tribunal da Relação através de meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador, mas apenas o poder de avaliar se, na reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, este Tribunal incorreu em violação de alguma norma de Direito probatório material aplicável [cfr. artigos 674.º, n.º 1, al. b), e n.º 3, e 682.º, n.º 3, do CPC].

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO


1. AA, maior, casada, NIF …, com domicílio no Sítio …, instaurou a presente acção declarativa de condenação contra BB, NIF …, com domicílio em …. na qualidade de única sucessora de CC, NIF …, com último domicílio no Sítio do … .

Pediu que a ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 30.000,00, inscrita em dois cheques da falecida CC, emitidos em seu favor, acrescida de juros de mora, à taxa legal em vigor, desde a data de emissão dos cheques até pagamento, liquidados até à propositura da acção no montante de € 6.345,21.

Para tanto alegou, conforme síntese feita na sentença e reproduzida, depois, no Acórdão recorrido:

Foi empregada doméstica da Sra. CC, a qual faleceu no dia … .09.2010.

A Sra. CC era uma pessoa doente, com limitações físicas, temperamento muito difícil e com alterações bruscas de comportamento e humor, vivendo sozinha na sua residência.

Na ausência de qualquer familiar no …., a Sra. CC contratou a Autora, em 2005, para lhe prestar todas as lides domésticas diárias, cuidados de saúde, higiene e conforto.

Os referidos serviços eram remunerados e prestados pela Autora na residência da Sra. CC, mais conhecida como residência "….".

A Autora e a Sra. CC tornaram-se amigas, confidentes e próximas, tendo a última informado que iria beneficiar a Autora por tudo o que aquela havia feito por si, nos últimos anos da sua vida.

Nos últimos dias de vida, a Sra. CC solicitou à Autora que requeresse os serviços de um Notário para fazer o seu testamento e que chamasse uma Agência Funerária para preparar o seu funeral.

No dia … .09.2010, a Sra. CC outorgou testamento, em que constituiu como única herdeira e legatária a Ré, tendo ainda dado instruções sobre o seu funeral a um funcionário da Agência Funerária.

Findo o testamento, a Sra. CC solicitou que fossem preenchidos três cheques: um para pagamento das despesas incorridas com o testamento e destinado à Notária; outro destinado à Agência Funerária, no montante de € 1.721,50; e outro, no valor de € 20.000,00, destinado à Autora como gratificação por todos os serviços prestados.

O primeiro cheque foi preenchido pela funcionária que acompanhava a Notária e os outros dois cheques foram preenchidos pela Autora, tendo a Sra. CC verificado o seu conteúdo e procedido à assinatura dos mesmos.

Após o recebimento do cheque, a Autora dirigiu-se ao Banco …. e procedeu ao seu depósito, tendo regressado para junto da Sra. CC que lhe disse pretender assinar outro cheque, solicitando à Autora que preenchesse um novo cheque de € 10.000,00, tendo a Autora procedido em conformidade.

A Sra. CC assinou o referido cheque, assim como, preencheu o nome do beneficiário dirigido à Autora, com a justificação que o montante de € 20.000,00 que lhe havia dado era pouco e que a Autora merecia mais.

No dia … .09.2010, a Autora foi contactada pelo Banco …. que lhe informou que não poderiam proceder ao pagamento do cheque depositado no montante de € 20.000,00, sem o reconhecimento presencial da assinatura da Sra. CC, pois a assinatura não coincidia com a que constava da base de dados.

Devido ao estado de saúde da Sra. CC, o funcionário do Banco dirigiu-se à residência da mesma, tendo aquela confirmado que o cheque fora assinado por si, embora não tendo conseguido fazer uma assinatura igual à que constava da base de dados do Banco, recusando-se a assinar quaisquer documentos.

No dia … .09.2010, a Sra. CC faleceu e com a morte desta a Autora reclamou o pagamento dos dois cheques à Ré, que sempre recusou o seu pagamento.


2. Citada, a ré contestou, tendo oposto, em síntese:

Antes da instauração da presente acção, a Autora propôs contra a Ré, uma acção executiva que correu termos na Secção Única do Tribunal Judicial de … sob o n.° 181/10.5…. e Apenso A, na qual a Autora apresentou como títulos executivos, os mesmos cheques cujo pagamento requer na presente acção declarativa.

A ora Ré deduziu oposição a essa execução e a ora Autora contestou essa oposição.

Por sentença proferida nesses autos a … .07.2013, que foi confirmada por acórdão do TR…, transitado em julgado a … .03.2015, a oposição à execução foi julgada totalmente procedente, por verificação do fundamento previsto na alínea a) do art. 814° do Cód. de Processo Civil e, em consequência, foi determinada a extinção da execução.

Essa decisão assentou na falta de prova da veracidade das assinaturas apostas nos dois cheques dados à execução.

E o assim decidido faz caso julgado em relação ao objeto da presente acção, verificando-se a identidade de sujeitos de pedido e de causa de pedir.

Nos termos do n.º 1 do artigo 2187.º do Código Civil: "Na interpretação das disposições testamentárias, observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento".

Nos termos do testamento outorgado pela falecida Sra. CC, esta dispôs a favor, apenas, da ora Autora, nomeadamente, do saldo das suas contas bancárias, no Banco …, agência de … .

Caso a mesma tivesse a intenção de beneficiar a Autora, tê-lo-ia feito através do testamento.

A ré impugnou ainda, por os desconhecer, grande parte dos factos alegados na petição inicial.

Impugnou também os documentos juntos, em especial os cheques em que a acção se funda, por desconhecer se as assinaturas e os respetivos preenchimentos são verdadeiros.

3. Em resposta, a autora defendeu a improcedência das excepções.

4. Em … .01.2019, foi proferido despacho saneador, onde foi julgada improcedente a excepção de caso julgado, foi identificado o objeto do litígio e foram enunciados os temas da prova.

5. Prosseguindo os autos para julgamento, foi proferida sentença, em … .05.2019, julgando a acção improcedente e absolvendo a ré do pedido, com o dispositivo seguinte:

Em face do exposto e de acordo com os fundamentos legais invocados:

I. Julgo improcedente, por não provada, a excepção peremptória alegada pela Ré;

II. Julgo a presente acção proposta por AA totalmente improcedente por não provada, e consequentemente, absolvo a Ré BB do pedido contra si formulado”.

6. Inconformada com esta sentença, a autora AA apelou.

7. Em … .01.2020, o Tribunal da Relação… proferiu um Acórdão, com o dispositivo seguinte:

Termos em que acordam em julgar quase inteiramente procedente o presente recurso, alterando-se a decisão recorrida no sentido de julgar a ação quase inteiramente procedente, condenando-se a Ré a pagar à Autora a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros), referente aos dois cheques emitidos em seu favor, acrescida de juros de mora, contados à taxa legal para obrigações civis, sobre o montante de € 20.000,00 desde … -… -2010, e sobre a quantia de € 10.000,00 desde a data em que a aqui Ré foi citada para os termos da execução, que foi instaurada com base nos mesmos dois cheques”.

8. Inconformada com este Acórdão, vem agora a ré BB interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, “nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 629.º, n.º 1, 671, n.º 3 a contrario, 675.º e 676.º todos do Código de Processo Civil”.

A terminar as suas alegações, formula as seguintes conclusões:

1. O presente recurso vem interposto do Acórdão da Relação … proferido em ….01.2020, nos termos do qual se decidiu da seguinte forma:

“Termos em que acordam em julgar quase inteiramente procedente o recurso, alterando-se a decisão recorrida no sentido de julgar a acção quase inteiramente procedente, condenando-se a Ré a pagar à Autora a quantia de € 30.000,00 referente aos dois cheques emitidos a seu favor, acrescida de juros de mora, contados à taxa legal para obrigações civis, sobre um montante de €20.000,00 (vinte mil euros) desde … .09.2010, e sobre a quantia de €10.000,00 desde a data em que a aqui Ré foi citada para os termos da execução, que foi instaurada com base nos mesmos dois cheques.”

2. Ora salvo o devido respeito, andou mal o Tribunal da Relação de … ao decidir pela procedência do Recurso de Apelação e, consequentemente, alterando a Sentença proferida pelo Tribunal da Primeira Instância.

3. O acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de …. é susceptível de recurso de revista, nos termos dos artigos 629.º, n.º 1 e 671.º, n.º 3 a contrario, ambos do CPC

4. O presente recurso de revista funda-se, na violação de lei substantiva consubstanciada no erro, de interpretação e de aplicação, assim como no erro de determinação da norma aplicável, nos termos do disposto nos artigos 674.º, n.º 1 alíneas a) e b) e no n.º 2, 674.º, n.º 3 por ofensa do disposto nos artigos 374.º, 389.º do Código Civil, 444.º e 445.º do CPC, 629.º, n.º 2, alínea a), 577.º, alínea i), 580.º, n.º 2 e 644.º, n.º 1, alínea b) todos do CPC;

5. Foi a aqui Autora notificada do despacho prévio datado de … 11.2019 ao acórdão, proferido pelo Tribunal da Segunda Instância, nos termos do qual entendeu ser de reapreciar oficiosamente e julgar procedente a excepção do caso julgado invocada em sede de contestação, alterando a decisão da Primeira Instância, absolvendo a Ré;

6. Não obstante, veio mesmo douto Tribunal da Relação …, em sede de acórdão contradizer o que havia proferido no despacho prévio, entendendo que transitou em julgado a decisão que julgou improcedente a excepção do caso julgado;

7. Perante esta contradição manifesta do despacho prévio do acórdão proferidos pelo Tribunal da Relação … sobre a mesma matéria, entendemos que, face à excepção de caso julgado, invocada em sede de contestação, nada obsta que, o Tribunal ad quem aprecie a questão, por se tratar de matéria de conhecimento oficioso, tal como decidiu o acórdão pelo Supremo Tribunal de Justiça em 17.11.2016, nos termos do processo 861/13.3TTVi~IS. C1.S2, disponível em www.dgsi.pt onde se pode ler, “Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais através dos quais se visa reapreciar e modificar decisões já proferidas que incidam sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, e não criá-las sobre matéria nova, não podendo confrontar-se o Tribunal ad quem com questões novas, salvo aquelas que são de conhecimento oficioso;

8. Termos em que deve a excepção do caso julgado ser julgada totalmente procedente, o que obsta à reapreciação do que foi decidido anteriormente em sede de ação executiva, e, consequentemente serem revogadas as decisões proferidas;

9. Sem prescindir do supra exposto e por mera cautela de patrocínio, entendemos que andou mal o Tribunal da Segunda Instância ao decidir que: “a falecida CC apôs a sua assinatura no cheque de 20.000,00€ e colocou o mesmo à ordem da Autora”. E que também “apôs a sua assinatura no cheque de 10.000,00 e emitiu também em favor da Autora”;

10. Foi entendimento do douto Tribunal da Relação … que “a entrega gratuita de um cheque a outra pessoa feita com espírito de liberalidade, para que esta levante da sua conta o dinheiro correspondente, se caracteriza como contrato de doação, o qual se encontra regulado no artigo 940.º e seguintes do Código Civil”.

11. Nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 947.º do Código Civil é requisito legal essencial para que ocorra doação, quando se trata de coisas móveis, como é o caso dos cheques, a tradição da coisa doada,

12. Em nosso entender, esta decisão viola o disposto nos artigos 947.º, n.º 2, 408.º e 954.º, alínea b) todos do Código Civil;

13. Nenhuma testemunha inquiridas presenciou, nem o preenchimento dos cheques reclamados pela Autora, nem que os mesmos fossem dirigidos à Autora e, muito menos, os valores neles inscritos;

14. Ao contrário dos cheques destinados à funerária para pagamento das despesas de funeral e do cheque destinado ao pagamento das despesas do testamento emitido a favor da Sra. Notária, os quais foram assinados e preenchidos perante vários presentes, conforme resultou da prova testemunhal ouvida no Tribunal da Primeira Instância.

15. Com efeito, o Tribunal da Primeira Instância decidiu: “Porém, nem tão pouco se provou que CC entregou os referidos cheques à Autora, isto é, não é possível concluir se operou a “tradição”, no sentido estabelecido no artigo 947.º, n.º 2 do C. Civil”. A tradição, um dos efeitos essenciais da doação – artigo 954.º, al. b) do Código Civil – tem de se evidenciar num acto de entrega ou transferência do bem móvel doado, pois a a doação é um contrato de eficácia real (quod efectum), no sentido de que a transferência da propriedade ou da titularidade do direito se verifica em consequência do próprio contrato – cfr. art. 408.º do Código Civil – e dele nasce, consequentemente, para o doador, a obrigação de entregar a coisa doada – conforme enfatizam Pires de Lima e Antunes Varela, loc. cit., pág. 257. E essa entrega efectivamente não se provou. Destarte, não tendo sido acompanhada de “tradição”, a alegada doação apenas poderia ser feito por simples escrito – n.º 2 do artigo 947.º do Código Civil, exigência de que igualmente não há notícia nos autos;

16. Aliás da prova produzida, não resultou provada a veracidade das assinaturas apostas nos cheques, sendo à Autora que impendia o ónus de provar tal facto nos ternos do n.º 2 do artigo 342.º, do C. Civil;

17. O Tribunal da Primeira Instância deu como assente a factualidade constante em 12) e 13), “foi esclarecido pelas testemunhas DD e EE, no que concerne aos procedimentos bancários de verificação de assinaturas quando se encontram perante depósitos de cheques ao balcão, como sucedeu no caso dos autos, em relação ao cheque no valor de €20.000,00 apresentado pela Autora de fls. 18 v, que foi recusado por irregularidade da assinatura da titular da conta (CC). (…) Foi, ainda, aferido por ambas as testemunhas diferenças notórias da assinatura constante da ficha de abertura de conta bancária de fls 23 e as assinaturas apostas nos cheques em apreço nos presentes autos de fls. 18 verso e fls. 20 verso, tendo a testemunha EE explicado que, na maioria dos casos, as fichas encontram-se desactualizadas, razão pela qual têm de fazer uma nova ficha de recolha de assinaturas, como sucedeu no caso em apreço, quando se deslocou à residência de CC para esse efeito.“Decorre de depoimento prestado pela testemunha EE, que relatou ao Tribunal, ter-se deslocado à residência de CC, com o intuito de confirmar a assinatura aposta no cheque de €20.000,00, o qual havia sido recusado para pagamento pelo Banco …., não tendo encontrado CC em condições de saúde favoráveis, a qual nem sequer falava ou respondia à testemunha, em nítida contradição com a versão dos factos, nesta parte apresentada pela Autora”.

18. A decisão de que se recorre violou o disposto no artigo 2187.º, n.º 1 do Código Civil. Porquanto, dispõe o mencionado artigo que “na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parece mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento”.

19. Conforme resulta do testamento outorgado pela falecida CC constante dos autos, a sua última vontade foi instituir a ora Recorrente como única herdeira e legatária de todos os seus, o imóvel onde residia e os saldos das suas contas bancárias no banco …, agência de … e ainda das suas joias;

20. O testamento foi outorgado em … .09.2010, perante a sra. Notária Dra. FF, a qual em depoimento prestado em audiência final disse que “CC, na data em que outorgou o testamento, não pretendia deixar quaisquer bens à Autora, nem tão pouco instituí-la herdeira”.

21. Isto significa que, não era intuito da falecida deixar à Autora quaisquer bens no testamento outorgado em … .09.2020 e os cheques no valor de €20.000,00 e de €10.000,00 apresentados nos autos têm a mesma data, ou seja, … .09.2010, o Tribunal da Segunda Instância violou o disposto no artigo 2187.º , n.º 1 do Código Civil, uma vez que caso a falecida pretendesse “beneficiar” a Autora tê-lo-ia feito no testamento, o que não aconteceu;

22. Face ao exposto deve ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal da Segunda Instância, por violação das normas previstas nos artigos nos artigos 947.º, n.º 2, 408.º e 954.º, alínea b) 2187.º, n.º 1 todos do Código Civil, confirmando-se a decisão do Tribunal da Primeira Instância;

23. Entendeu o Tribunal da Segunda Instância alterar a matéria de facto, dando como provados factos alegados pela Autora em 1), 2), 4), 5), 7) e 8), em completa contradição com os depoimentos prestados em audiência final;

24. Conforme resulta da motivação da matéria dada como não provada na douta sentença: “A factualidade dada como não assente nos pontos 1), 2) e 3) apenas resultou das declarações de parte da Autora, não tendo as mesmas sido comprovadas por qualquer outro meio de prova testemunhal ou documental, sendo certo que nenhuma testemunha pôde aferir do relacionamento mantido entre CC e a Autora, para além da relação profissional existente, assim como, das promessas de beneficiação por parte da falecida em relação ao imóvel e de incluir a Autora no testamento, o que acaba por ser infirmado pelo teor do mesmo (fls. 15 e 16), assim como pelo depoimento da testemunha FF, esclarecendo este Tribunal que CC, na data em que outorgou o testamento, não pretendia deixar quaisquer bens à Autora, nem tão pouco instituí-la como herdeira;

25. O testamento outorgado pela Notária, Dra. FF, nos termos e para os efeitos conjugados do artigo 369.º e 371.º, faz prova plena dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora;

26. Por testamento outorgado pela falecida (fls. 15 e 16), a ora Recorrente, foi instituída única herdeira e legatária do imóvel e dos saldos das contas bancárias no Banco …, Agência do …;

27. Na verdade, a Autora apresentou o cheque no valor de €20.000,00 a pagamento no Banco … após ter tomado conhecimento que não constava do testamento outorgado por CC;

28. Cumpre ainda referir que, o funcionário do Banco onde foi apresentado o cheque cujo pagamento foi recusado, dirigiu-se a casa da falecida para recolher assinatura desta e referiu que achou que a Sra. CC nem sequer se apercebeu da sua presença;

29. A Ré impugnou em sede de contestação, a letra e a assinatura dos cheques e o relatório pericial feito às assinaturas;

30. O relatório pericial refere que “(…)o presente exame apresenta consideráveis dificuldades, pelo facto de se dispor, unicamente, de quatro assinaturas genuínas de comparação, sendo que todas se encontram reproduzidas em fotocópia” e, ainda que: “a escrita das assinaturas contestadas de CC aposta nos documentos identificados como C1 e C2, pode (1) ter sido produzida pelo seu punho;

31. Na tabela apresentada, a classificação “pode ter sido” encontra-se a meio da classificação, o que demonstra a baixa probabilidade e diminuto grau de certeza oferecido pelo exame pericial, efectuado às assinaturas constantes dos cheques em apreço constante de fls. 236/243;

32. Das testemunhas inquiridas, nenhuma mencionou sequer ter visto a falecida Sra. CC a assinar os alegados cheques que a Autora apresentou nos autos, ou sequer que os mesmos lhe tenham sido entregues;

33. Decidiu, o Tribunal da Relação de Guimarães que:

“O meio idóneo para verificar a autenticidade de uma assinatura é o exame pericial; essa autenticidade pode, porém, ser judicialmente estabelecida, independentemente da perícia, no caso de o escrito ou a assinatura terem sido feitos na presença de pessoas que, interrogadas, afirmem peremptória – e convincentemente – terem visto assinar o documento à pessoa a quem a assinatura é imputada (acórdão proferido no processo 6166/15.8T8GMR-A.G1 em 25.10.2018, disponível em www.dgsi.pt )

34. Para os efeitos do disposto do artigo 374.º, n.º 2 do Código Civil, a prova de que a assinatura aposta nos cheques incumbia à Autora a respectiva prova, o que em nossa opinião, não logrou provar, nem na presente ação declarativa, nem aquando da apresentação dos cheques como suposto título executivo;

35. Nos termos do disposto no artigo 389.º do Código Civil, “a força probatória das respostas dos peritos é livremente apreciada pelo tribunal”.

36. Não obstante, os peritos terem sido ouvidos, o Tribunal da Primeira Instância concluiu na sentença pela baixa probabilidade e diminuto grau de segurança oferecido pelo exame pericial efectuado às assinaturas constantes dos cheques em apreço;

37. Ao contrário do Tribunal da Segunda Instância que com base no mesmo relatório pericial refere, em síntese, não havendo indícios de falsificação grosseira, é mais certo que as assinaturas em causa sejam verdadeiras do que falsificadas….

38. Face ao exposto, entendemos deve ser dada como não provada a factualidade constante em 4), 5), 7) e 8), nos termos e pelos fundamentos constante da douta sentença:“No que concerne à factualidade dada como não provada em 4), 5), 7) e 8), a mesma resultou unicamente das declarações de parte da Autora, as quais não foram afirmadas por quaisquer elementos probatórios, nomeadamente pelas testemunhas GG, HH e FF, que não conseguiram esclarecer, em momento algum nos seus depoimentos, que no dia …/09/2010, CC, além dos cheques de fls. 17 e 30, terá também assinado o cheque de €20.000,00, dirigido à Autora. E o mesmo se dirá acerca do cheque de 10.000,00€, cujos circunstancialismos que o rodeiam foram apenas relatados a este Tribunal, pela Autora, o qual apesar de coerente em termos temporais e espaciais, não foram minimamente credenciado por outro meio de prova, que demonstrasse a veracidade das suas declarações, as quais revelam uma força probatória de tal forma débil que não pode ser tida em conta. O que leva este Tribunal a concluir como não assente esta parte da matéria factual, considerando ainda a baixa probabilidade e diminuto grau de segurança oferecido pelo exame pericial efectuado às assinaturas constantes dos cheques em apreço (fls. 236/243), o qual não encontra nenhum outro elemento probatório, já que nenhuma das testemunhas presenciou o que é relatado exclusivamente pela Autora, sempre a ponderar cum grano salis, face à natureza de parte da depoente e interesse económico na causa, não podendo este Tribunal valorar tudo quanto a parte declare, a qual tinha sempre de ser apreciada em conjugação com os restantes meios de prova tidos como naturais( previsivelmente existentes) e idóneos (suficientes) para a demonstrar, não sendo assim possível formar um juízo de certeza sobre a autenticidade das assinaturas como sendo de CC constantes dos cheques no valor de €10.000,00 e de €20.000,00;

39. Em conclusão, a prova sujeita a livre apreciação do julgador não pode significar uma apreciação arbitrária e ilógica da prova produzida e, sem o mínimo de correspondência com o que foi relatado pelas testemunhas, a baixa probabilidade e diminuto grau de certeza do relatório pericial que foi confirmado pelos peritos ouvidos no Tribunal da Primeira Instância”.

9. Não foram produzidas contra-alegações.

10. Em … .07.2020, o Exmo. Desembargador do Tribunal da Relação de … proferiu um despacho onde admitiu o recurso de revista.


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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são duas, quais sejam:

1.ª) saber se o Tribunal recorrido ofendeu o caso julgado; e

2.ª) se, na reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal recorrido ofendeu alguma norma de Direito probatório material.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Na sequência da alteração da decisão sobre a matéria de facto operada pelo Tribunal a quo, são os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1) Entre o início do ano de 2005 até ...../09./2010, a Autora foi empregada doméstica de CC, natural da …, de nacionalidade …, que residia na habitação com a denominação "…", sito no …, com o valor patrimonial de €107.382,95, determinado no ano de 2014.

2) A Autora prestou serviços domésticos e cuidados de saúde, higiene e alimentação a CC, que se encontrava reformada, no imóvel e residência da mesma, melhor descrito em 1).

3) A Autora era remunerada pelos seus serviços e tinha as chaves da casa de CC.

4) CC vivia sozinha, não tinha familiares a residirem na …, era uma pessoa doente, dependente de terceiros, com artroses nas mãos e pés, chagas nas pernas e com grandes dificuldades de locomoção que a limitavam na realização de lides domésticas, preparação de refeições e cuidados pessoais de higiene, saúde, vestuário e conforto.

5) Tinha um temperamento difícil, com alterações de comportamento e humor.

5-a) [1] A Autora e CC tornaram-se amigas.

5-b) [2] CC transmitiu, por mais de uma vez, a sua intenção de recompensar a Autora pelos cuidados que ela lhe prestou.

6) Em data não concretamente apurada, mas seguramente cerca de duas a três semanas antes do seu falecimento (…/09./2010), CC solicitou à Autora que requeresse os serviços de um Notário para fazer o seu testamento e de uma Agência Funerária para preparar o seu funeral, tendo a Autora procedido em conformidade.

7) No dia …/09/2010, através de testamento outorgado perante a Notária Dra. FF, CC instituiu a Ré como única legatária do imóvel denominado "….", sito no …, do saldo das contas bancárias no Banco … (agência do ….) e de todas as suas jóias.

8) Nesse mesmo dia, CC emitiu dois cheques do Banco …, da conta bancária n.° …, datados de …/09/2010: o cheque n.º …, no valor de €2.500,00 para pagamento das despesas inerentes à outorga do testamento e o cheque n.º …, no valor de €1.721,50 a favor da Agência Funerária …, para pagamento das despesas funerárias.

9) O primeiro cheque foi preenchido pela Dra. FF (Notária) e o segundo cheque foi preenchido pela Autora, tendo CC verificado o conteúdo de ambos os cheques e procedido à sua assinatura.

9-a) [3] No mesmo dia …/09/2010, CC apôs a sua assinatura no cheque n.º …, do Banco …, datado de …/09/2010, da conta bancária n.° …, no valor de €20.000,00, e colocou o mesmo à ordem da Autora, como agradecimento e gratificação por todos os serviços prestados durante os últimos cinco anos.

E também apôs a sua assinatura no cheque n.º …., do Banco …, conta bancária n.º …, datado de …/09/2010, no valor de €10.000,00, também emitido em favor da Autora.

10) No momento da assinatura dos cheques e do testamento, CC encontrava-se sentada, com a ajuda de almofadas, na cama do seu quarto.

11) No referido dia, a Autora deslocou-se ao Banco ….. e procedeu ao depósito do cheque n.° …….., datado de …/09/2010, da conta bancária n.° …., titulada por CC, no montante de €20.000,00.

12) O Banco …, sucursal …, recusou pagar o mencionado cheque depositado pela Autora, alegando que a assinatura aposta por CC no mesmo teria de ser reconhecida presencialmente, por não coincidir com a assinatura que constava da base de dados.

13) Após o facto referido em 12), EE, funcionário do Banco …, deslocou-se à residência de CC a fim de verificar a sua assinatura.

14) No dia …/09/2010, CC faleceu no Hospital do …, com 73 anos de idade.

15) Do exame pericial de escrita realizado aos dois cheques do Banco ….., datados de …/09/2010, um no valor de €20.000,00 (cheque n.° ….) e outro no valor de €10.000,00 (cheque n.° …), resulta a conclusão que: "(…) a escrita das assinaturas contestadas de CC aposta nos documentos identificados como C1 e C2, pode ter sido produzida pelo seu punho.".

16) Do referido exame pericial consta que foram apresentados como genuínos para comparação: "G1 Fotocópia do Passaporte de CC, com o n." …., com data de emissão de …/08/2005, no qual consta a escrita de uma assinatura de CC, igualmente reproduzida em fotocópia. G2 — Fotocópia de um cheque do …, Banco  …., com o n." …., datado de …/09/2010, no valor de 1.721,50€. Nele consta a escrita de uma assinatura de CC, aposta no local destinado às assinaturas, igualmente reproduzido em fotocópia. G3 — Fotocópia de um testamento datado de …./…./2010, em que é testadora CC, no qual consta a escrita de uma assinatura de CC, igualmente reproduzida em fotocópia. G4 — Fotocópia de uma carta dirigida ao Consulado …….., ………, datada de …../……/2002, na qual consta a escrita de uma assinatura de CC, igualmente reproduzida em fotocópia".

17) Resulta ainda daquele exame pericial no campo 4 (análise dos resultados): "(...) Num exame de escrita, um dos requisitos fundamentais é que o perito possa dispor de elementos genuínos de comparação em quantidade e em qualidade suficientes a poder revelar-se a sua variação natural e, consequentemente, definir os hábitos gráficos do autor dessa mesma escrita. Neste sentido, apresente exame apresenta consideráveis dificuldades, pelo fado de se dispor, unicamente, de quatro assinaturas genuínas de comparação, sendo que todas reproduzidas em fotocópia.

18) Do mesmo exame pericial, após a conclusão supramencionada em 15) consta a seguinte nota: "O exame pode ser aprofundado dispondo de mais elementos genuínos de comparação de CC, apostos em documentos originais".


E são seguintes os factos considerados não provados no Acórdão recorrido:

1) CC prometeu doar à Autora o imóvel identificado em 1) dos factos assentes.

2) Nos últimos meses de vida de CC, era a Autora que preenchia os cheques a seu pedido e sempre que havia algum pagamento a fazer.

3) CC pediu à Autora que tirasse a carta de condução de veículos ligeiros e adquirisse uma viatura automóvel, com o cheque de €10.000,00.

4) No dia …/09/2010, CC dispunha de depósitos bancários no Banco …. superiores a €110.000,00.

5) No decorrer da factualidade dada como provada em 13), CC referiu perante o funcionário do Banco … (sucursal do …), EE, que devido ao seu estado de saúde, não conseguia fazer uma assinatura igual à que constava da base He dados do Banco,

6) No âmbito da factualidade supra descrita em 11), CC recusou-se a assinar quaisquer documentos, tendo confirmado perante o funcionário do Banco … (EE) que o cheque de €20.000,00 fora assinado por si e que os restantes cheques que assinou tinham de ser pagos pelo Banco.

7) CC dirigiu várias cartas à Ré, nas quais descrevia o seu dia-a-dia e dava conhecimento das conversas mantidas com a Autora e dos seus comportamentos, a qual pretendia ser incluída no testamento.


O DIREITO

A 1.ª questão de que cumpre conhecer prende-se com a alegada ofensa de caso julgado (cfr. conclusões 4 e s.).

Segundo a recorrente, a sentença proferida na acção executiva que correu termos no Juízo de Competência Genérica de … sob o processo n.º 181/10.5…. e apenso A (oposição à execução), transitada em julgado, impediria o Tribunal recorrido de decidir como decidiu.

Compulsada a certidão junta aos autos (fls. 147 verso / 193), verifica-se que, no referido processo, a autora e aqui recorrida instaurou contra a ré e aqui recorrente uma acção executiva para pagamento de quantia certa no valor de € 30.000,00, sendo apresentados como títulos executivos os dois cheques em apreço na presente acção, alegando que, antes de falecer, a Sra. CC emitira os referidos cheques em seu nome, como reconhecimento e para pagamento dos seus serviços domésticos e cuidados de saúde, nunca tendo conseguido sacar os mencionados cheques junto da sucursal do Banco …, por a assinatura da falecida ter de ser reconhecida presencialmente. A ré deduziu oposição à execução, alegando desconhecer os motivos que a Sra. CC tinha para passar os referidos cheques a favor da autora, desconhecendo se as assinaturas daqueles cheques eram ou não verdadeiras.

Foi proferida sentença naqueles autos, a qual concluiu pela inexistência ou inexequibilidade dos títulos executivos, por a autora ali exequente e aqui recorrida não ter conseguido demonstrar a veracidade das assinaturas apostas nos mencionados cheques, encontrando-se os mesmos privados da respectiva exequibilidade. A autora recorreu e o Tribunal da Relação … confirmou a sentença, por a autora não ter título executivo exequível para o prosseguimento da execução.

Aprecie-se.

Como ensina Manuel de Andrade, o caso julgado (fórmula abreviada de “caso que foi julgado”) encontra a sua razão de ser na necessidade de salvaguarda do prestígio dos tribunais e da certeza e da segurança jurídicas[4].

Na expressão “caso julgado” cabem, em rigor, a excepção de caso julgado e a autoridade de caso julgado, muitas vezes designadas, respectivamente, como a “vertente negativa” e a “vertente positiva” do caso julgado[5].

A excepção de caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer uma decisão anterior. Nesta vertente, o caso julgado compreende limites (subjectivos e objectivos): pressupondo o caso julgado uma repetição de causas, a repetição pressupõe, por sua vez, identidade dos sujeitos, identidade do pedido e identidade da causa de pedir (cfr. artigo 581.º do CPC).

Ora, pese embora poder entender-se que são as mesmas as partes naquele processo e nos presentes autos, já existem sérias reservas quanto a haver identidade do pedido e da causa de pedir. Se não veja-se.

No processo executivo, a autora tinha como fim único a obtenção do pagamento de certa quantia. Diversamente, nos presentes autos, não obstante reconhecer-se que, na prática, este será o seu fim último, o que a autora rigorosamente peticiona é que o tribunal declare que a ré tem o dever de lhe pagar determinada quantia. Não é visado, assim, rigorosamente, o mesmo efeito jurídico. Por isso é que, como bem se assinala no despacho saneador proferido em … .01.2019, “a Autora vem carrear diversos fundamentos de facto que não foram produzidos ou sequer alegados no processo anterior, nomeadamente, todos os circunstancialismos que antecederam e sucederam à data que se encontra aposta nos referidos cheques bancários”. Quer dizer: tão-pouco é exactamente a mesma a causa de pedir (a pretensão deduzida nas duas acções não procede do mesmo facto jurídico).

Mas, para além da excepção de caso julgado, há que considerar aquela “vertente positiva” do caso julgado – a autoridade de caso julgado –, que tem o efeito positivo de impor a decisão. Diversamente da excepção de caso julgado, a autoridade de caso julgado pode funcionar independentemente da verificação daquela tríplice identidade. No entanto, não pode impedir que se volte a discutir e dirimir aquilo que ela mesma não definiu (cfr. artigos 91.º e 581.º do CPC).

Ora, é visível que a decisão proferida não aprecia nem decide a questão da existência ou inexistência da obrigação da ré no pagamento à autora da quantia inscrita nos cheques, mas apenas a falta de um dos requisitos de que depende a exequibilidade dos cheques enquanto título executivo e, consequentemente, a impossibilidade de prosseguimento da execução.

De tudo isto resulta, em suma, que a decisão proferida naquele processo não forma caso julgado com efeito nos presentes autos, não estando, pois, o Tribunal impedido de apreciar o mérito da causa (não há excepção de caso julgado) nem tão-pouco obrigado a decidir em sentido determinado (não há autoridade de caso julgado).

Improcedem, assim, as alegações contidas, essencialmente, nas conclusões 4 a 8 da revista, designadamente, a alegada ofensa do disposto 629.º, n.º 2, al. a), 577.º, al. i), 580.º, n.º 2, e 644.º, n.º 1, al. b), do CPC.

A 2.ª questão que é suscitada neste recurso respeita à reapreciação da decisão sobre a matéria de facto (cfr. conclusões 9 e s.).

Nesta segunda parte da revista, a recorrente questiona, fundamentalmente, o acerto da decisão recorrida de alteração da factualidade provada, por aditamento dos pontos 1, 2, 4, 5, 7 e 8 do elenco dos factos não provados[6].

Esclareça-se, antes de mais, que este Supremo Tribunal de Justiça não tem o poder de sindicar a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto com vista a apurar se ocorreu erro de julgamento, mas sim, tão-só, o poder de avaliar se o Tribunal da Relação, no desempenho daquela sua função, desrespeitou alguma norma de Direito probatório aplicável [cfr. artigos 674.º, n.º 1, al. b), e n.º 3, e 682.º, n.º 3, do CPC]. A haver tal desrespeito, trata-se de “verdadeiros erros de direito que, nesta perspetiva, se integram também na esfera de competências do Supremo[7].

Lendo atentamente o Acórdão recorrido, logo se percebe que a decisão de modificação da matéria de facto se alicerçou na prova pericial e na prova testemunhal. Ora, no que toca seja à prova pericial seja à prova testemunhal, a respectiva valoração está sujeita à livre apreciação do julgador, como resulta, respectivamente, dos artigos 389.º e 396.º do CC.

Segundo o princípio da livre apreciação das provas, “o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas. O que decide é a verdade material e não a verdade formal[8].

Ora, a convicção atingida através destes meios de prova pelo Tribunal não é, justificadamente, objecto de sindicância por este Supremo Tribunal, a não ser quando ocorra a violação de normas legais no que a estas provas respeita, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, do CPC e, em particular no caso de recurso de revista, do artigo 674.º, n.º 3, do CPC.

O único meio de prova referido pela recorrente com força probatória plena é no testamento outorgado por CC, sustentando a recorrente que, se a falecida tivesse a intenção de “beneficiar” a autora, tê-lo-ia feito no testamento (cfr. conclusão 21).

Este meio não prova, porém, aquilo que a recorrente pretende. De facto, nada impede que uma pessoa, em simultâneo com a outorga de um testamento, doe bens do seu património a pessoas não incluídas naquele testamento, sendo possível que a razão de ser de tais doações resida até no facto de o donatário não ser incluído entre os beneficiários das disposições testamentárias – que elas funcionem, por assim dizer, como uma via alternativa para agraciar o sujeito que foi excluído.

Não existiu, em suma, ofensa de disposição expressa da lei que exigisse certa espécie de prova para a existência dos factos provados e impugnados nem ofensa de disposição expressa da lei que fixasse a força de determinado meio de prova. Nessa medida, este Supremo Tribunal fica impedido de sindicar a alteração da decisão sobre a matéria de facto.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pela recorrente.

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Catarina Serra (Relatora)

Bernardo Domingos

Rijo Ferreira

Nos termos do artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1.05, declaro que o presente Acórdão tem o voto de conformidade dos restantes Exmos. Senhores Juízes Conselheiros que compõem este Colectivo.

______________

[1] Facto aditado pelo Tribunal a quo e correspondente ao anterior ponto 1 dos factos não provados.
[2] Facto aditado pelo Tribunal a quo e correspondente ao anterior ponto 2 dos factos não provados.
[3] Facto aditado pelo Tribunal a quo e correspondente aos anteriores pontos 4, 5, 7 e 8 dos factos não provados.
[4] Cfr. Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1979, pp. 306-307.
[5] Além de ser utilizada na doutrina, a distinção é habitual na jurisprudência. Cfr., por todos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.03.2017, Proc. 1375/06.3TBSTR.E1.S1, e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 22.06.2017, Proc. 2226/14.0TBSTB.E1.S1.
[6] Está em causa, sobretudo, o acolhimento dos factos não provados 4, 5, 7 e 8 no facto ora considerado provado 9-a), onde se diz: No mesmo dia …/09/2010, CC apôs a sua assinatura no cheque n.º …, do Banco …., datado de …/09/2010, da conta bancária n.° …, no valor de €20.000,00, e colocou o mesmo à ordem da Autora, como agradecimento e gratificação por todos os serviços prestados durante os últimos cinco anos. E também apôs a sua assinatura no cheque n.º …, do Banco …, conta bancária n.º …, datado de …/09./2010, no valor de €10.000,00, também emitido em favor da Autora.
[7] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, cit., pp. 406-412 (esp. p. 406, sublinhado do autor) e pp. 431-432.
[8] Cfr. Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1979, p. 384 (sublinhados nossos).