Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5293/15.6T8VNG.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO
ALTERAÇÃO DOS FACTOS
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 04/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO SE TOMA CONHECIMENTO DO OBJECTO DO RECURSO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / DECISÕES QUE COMPORTAM REVISTA.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018, 5.ª edição, p. 364-365.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 671.º, N.º 3.
Sumário :

I. Para efeitos de aferição da conformidade ou da desconformidade decisória, não pode ser atribuído significado a alterações meramente secundárias ou marginais, sem reflexo na decisão final, sob pena de, no caso contrário, o disposto no artigo 671.º, n.º 3, do CPC ficar destituído da sua função substancial (que é a de efectuar a selecção dos casos em que é justificado o acesso ao terceiro grau de jurisdição).

II. Prendendo-se a única questão procedente no Acórdão recorrido com a alteração de um ponto da matéria de facto e tendo este sido absolutamente irrelevante para as decisões das duas instâncias (não tendo qualquer delas alicerçado ou apoiado nele, nem expressa nem implicitamente, a respectiva fundamentação e sendo a mesma a fundamentação jurídica das duas decisões), configura-se o bloqueio recursório conhecido como “dupla conforme”.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Recorrente: AA

Recorrido: BB, Lda. e CC, Lda.


AA intentou a presente acção declarativa com processo ordinário contra BB, Lda., e CC, Lda., pedindo que seja declarada a nulidade do negócio celebrado entre as rés, em 26 de Setembro de 2014, com todas as consequências legais; caso assim não se entenda, seja declarada a ineficácia do negócio em relação à Sociedade BB, Lda.; caso assim não se entenda, seja declarada a nulidade do negócio celebrado entre as rés por contrário aos fins sociais; e, caso assim não se entenda, seja declarada a ineficácia do negócio em relação ao crédito do Autor AA por efeito de impugnação pauliana.

Realizou-se a audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador com identificação do objecto do litígio e, bem assim, dos temas da prova.

Teve lugar a audiência de julgamento com observância da formalidades legais e, em 22.01.2018, foi proferida decisão que julgou a acção totalmente improcedente por não provada, absolvendo as rés dos pedidos de condenação contra elas formulados.

Não se conformando com o assim decidido pelo Tribunal de 1.ª instância veio o autor interpor recurso de apelação, pugnando pela alteração da matéria de facto e pela revogação da sentença do Tribunal de 1.ª instância.

No Acórdão de 10.09.2018, o Tribunal da Relação do Porto julgou a apelação interposta parcialmente procedente por provada e, consequentemente, confirmou a decisão recorrida.

Inconformado com este aresto, vem agora o autor interpor o presente recurso de revista, pretendendo a sua revogação e a substituição por outro que julgue a acção procedente e, em consequência, declare a nulidade do contrato outorgado pelas rés / ora recorridas.

São as seguintes as conclusões das alegações formuladas pelo autor / ora recorrente no recurso de revista:
1. Foi a Recorrente notificada do douto acórdão proferido nos termos do qual foi julgado "(...) a apelação interposta parcialmente procedente por provada e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida (...)".
2. Sucede que, não pode o Recorrente conformar-se com tal entendimento, porquanto, incorreu o Tribunal a quo em erro na interpretação dos normativos constantes dos artigos 240.° e 610.° do CC e 6.°, n.° 3, 251.° do CSC.
Isto posto,
3. O acórdão proferido julgou parcialmente procedente a apelação apresentada pelo Recorrente, pelo que, não se verifica a dupla conforme que impediria o recurso para a Instância Superior.
4. Motivo pelo qual o presente recurso de revista é tempestivo e legalmente admissível, nos termos do disposto no artigo 671.°, n.° 3 do CPC
5. O Tribunal a quo a determinou a procedência de uma das questões suscitadas pelo Recorrente no que respeita à alteração da matéria de facto considerada provada, contudo, entendeu o Tribunal a quo que a aplicação dos normativos aos factos efetuada pelo Tribunal de primeira instância não merecia qualquer reparo.
6. Ora, não pode o Recorrente conformar-se com tal entendimento.
7. Entendeu o Tribunal a quo que o negócio celebrado entre as Recorridas não era simulado na medida em que "(...) para que assim fosse era necessário que tivesse resultado provado que o negócio havia sido gratuito e não teve outra intenção que não fosse afastar o autor dos destinos do negócio desenvolvido pela primeira (...) (...)".
8. Ora, salvo o devido respeito, entende o Recorrente que tais factos resultaram integralmente provados, mormente, através da confissão do legal representante das Recorridas.
9. Assim, ficou demonstrado tanto a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração como ainda o intuito de enganar terceiros.
10. Estando por isso preenchidos os pressupostos do artigo 240.°, n.° 1 do Código Civil
11. Pois que, declarante e declaratário, com o único intuito de afastar o aqui Recorrente, pretendem fazer crer, através da outorga daquele documento, que uma terceira entidade adquire um negócio em alegada dificuldade financeira, que sendo "calamitoso" gerido por este gerente na égide da Recorrida BB, se torna lucrativo e bem sucedido na mão deste mesmo gerente sob a égide da Recorrida CC.
12. 0 negócio celebrado correspondeu apenas e só à vontade daquele interveniente e não das sociedades por si representadas.
13. A decisão proferida não poderá ter assim acolhimento, quer por inexistência de fundamento factual, quer por inexistência de fundamento legal.
14. Na verdade, a nossa jurisprudência é pacífica ao afirmar que "{...) para que se possa faiar de negócio simulado, impõe-se a verificação simultânea de três requisitos: a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, o acordo simulatório (pactum simulationis) e o intuito de enganar terceiros (...)". [In Acórdão do Supremo Tribunal de justiça de 14-02-2008, disponível em www.dgsi.pt).
15. Não existiu a intenção de realizar qualquer negócio, mas antes de afastar os sócios, enganando-os, sendo este propósito claramente prejudicial para estes últimos, contrariamente ao declarado pelo Tribunal a quo.
16. Ademais, "O negócio simulado (simulação absoluta) é nulo, operando a declaração de nulidade eficácia retroactiva (eficácia "ex-tunc"). Tal vício acarreta, por seu turno, a nulidade dos negócios jurídicos celebrados a jusante e relativos aos mesmos bens (...)" [in Acórdão do Supremo Tribunal de justiça de 03-03-2005, disponível em www.dgsi.pt).
17. Nos termos do disposto no artigo 240.°, n.° 2 do Código Civil "(...) o negócio simulado é nulo (...)".
18. Estando nós perante um negócio simulado, como este, só podemos concluir pela sua nulidade que urge ser declarada, devendo os efeitos de tal declaração retroagir a data anterior à celebração, o que expressamente se requer seja reconhecido e declarado por este Venerando Tribunal.
Ainda,
19. Alegou o Recorrente que o negócio celebrado pelas Recorridas estava ferido de nulidade por se tratar de ato contrário aos fins sociais.
20. Reconheceu o Tribunal a quo que "(...) não oferece dúvida de que os atos gratuitos estão em regra - porque não necessários nem convenientes à prossecução do fim social, sendo mesmo contrários a este fim - fora da capacidade societária, enfermando, nessa medida, de vicio de nulidade, por afrontarem norma cogente (...)".
21. Contudo, conclui que "(...) não obstante a referida ré tenha, efetivamente, fica despojada do único estabelecimento comercial, o certo é que ficou também desonerada de pagamento de um passivo elevadíssimo (...)"
22. Não se alcança com que fundamento - e motivação - declara o Tribunal a quo que a Requerida ficou desonerada do seu passivo, na medida em que, foi amplamente -documentalmente - provado o contrário.
23. Pois que, de facto, por um lado não ocorreu a assunção do passivo relacionado com o negócio ..., conforme amplamente demonstrado supra e, por outro lado, resultou evidente - provado e demonstrado - "(...) que o desenvolvimento da atividade da 1.° ré pressupõe a exploração de um estabelecimento que permita a exploração de restauração (...)".
24. Desta forma, urge trazer à colação o disposto no artigo 6.°, n.° 1 do Código das Sociedades Comerciais que prevê que "(...) a capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim (...)",
25. Sendo que, a nossa jurisprudência esclarece que "(..,) a capacidade de direito (ou capacidade de gozo) das sociedades comerciais, entendida esta como a medida da extensão da sua suscetibilidade de serem sujeitos de relações jurídicas, colhe a sua regulamentação legal no art. 6. °, n. ° 1, do CSC, do qual se extrai que "a capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessárias ou convenientes à prossecução do seu fim", fim esse que, nas sociedades com aquela indicada natureza, se pauta pela obtenção de lucros a distribuir pelos respectivos sócios ou accionistas (arts. 980.° do CCe2.°, 21.°, n.° 1, ai. a), 22.°, 31.°, 33.°, 176°, n.° 1, ai. b), 217.°e 294.°, entre outros, do CSC) (...)". {in Acórdão do Supremo Tribunal de justiça de 27-01-2010, disponível em www.dgsi.pt),
26. Pelo que, conclui-se que a sociedade comercial pode praticar todos os actos e assumir todas as obrigações que visem a obtenção de lucro, ou seja, a prossecução do escopo lucrativo.
27. Ou seja, todas as restantes liberalidades são consideradas, por lei, contrárias ao fim da sociedade e por isso nulas.
28. Até porque, no que às pessoas colectivas diz respeito, importa atender ao princípio c/o especialidade do fim, o que significa que a capacidade das pessoas colectivas não é plena, como sucede com as pessoas singulares, e surge sempre delimitada pelos seus próprios fins.
29. In casu, do negócio celebrado entre as Recorridas não resultou qualquer obtenção de lucro (nem mediato nem imediato), proveito ou benefício para a Recorrida BB, muito pelo contrário, tal negócio fez com que a Recorrida BB ficasse totalmente impossibilitada de prosseguir qualquer actividade comerciai, o que culminará com a sua declaração de insolvência (atento o montante do seu passivo).
30. Ora, atenta a violação dos fins sociais, só pode o negócio realizado ser considerado violador de tais interesses e como tal, nos termos do artigo 6.° n.° 3 do CSC, nulo, retroagindo a situação patrimonial da sociedade ao momento ex ante do negócio celebrado.
31. Por último, veio o Recorrente requerer seja declarado o negócio ineficaz em relação a este, por efeito de impugnação pauliana, cujos requisitos estão integralmente verificados.
32. O Recorrente é credor da Recorrida BB de um montante superior a €150.000,00.
33. Tais créditos estão a ser reclamados no âmbito de ações judiciais pendentes, o que é expressamente reconhecido pelo Tribunal a quo nos pontos 23 e 24 dos factos provados.
34. Não obstante se tratarem de créditos litigiosos a legitimidade do Recorrente não é afastada.
35. Na verdade, o negócio celebrado impede objectivamente a Recorrida BB de satisfazer os seus créditos, sendo igualmente certo que, o negócio celebrado é posterior à constituição do crédito do Recorrente.
36. Por fim, ainda que se tenha o negócio como oneroso, o que não se admite conforme já amplamente alegado, é manifesto que atuam as partes com a "consciência do prejuízo que o ato causa" ao Recorrente, o que, para efeitos do artigo 612° do Código Civil, constitui má-fé.
37. Desta forma, e nos termos das disposições conjugadas dos artigos 610.°, 611.°, 612.° e 616.° do Código Civil estão preenchidos os requisitos legais para que seja declarada a impugnação pauliana do negócio celebrado em relação ao credor, pelo que deve o mesmo ser considerado ineficaz no que ao crédito do Recorrente diz respeito.
38. Por todo o supra exposto, ao decidir em sentido contrário, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 240.° e 610.° do CC e 6.°, n.° 3, 251.° do CSC.

A ré / recorrida CC apresentou as suas contra-alegações, pugnando, essencialmente, pela inadmissibilidade da revista.

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir, in casu, é a de saber se, em face da procedência de uma das questões suscitadas pelo recorrente no que respeita à alteração da matéria de facto considerada provada, deveria ter sido diversa a decisão do Tribunal a quo.

                                                           *

II. APRECIAÇÃO DO RECURSO

A questão prévia da admissibilidade do recurso

Como acontece sempre, antes de se conhecer do objecto do recurso, deve o Relator apreciar a sua admissibilidade.

Ambas as partes suscitaram (e trataram) a questão da admissibilidade do recurso: a recorrente para alegar que o recurso era admissível e a recorrida para negar que o fosse. Não é por acaso.

Alega o recorrente que o Tribunal da Relação julgou parcialmente procedente a apelação, pelo que não se verifica o bloqueio recursivo conhecido como “dupla conforme”. Mas, com o devido respeito, não lhe assiste razão.

Apesar de a acção ter sido julgada parcialmente procedente, o Tribunal a quo confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância.

Foi a seguinte a decisão do Tribunal a quo: “[p]elos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta parcialmente procedente por provada e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida”.

A verdade é que a única razão que justificou a acção ter sido considerada parcialmente procedente reside no facto de ter sido alterado (rectius: completado) um – um único – dos pontos da factualidade provada, tendo o Tribunal concluído, para usar os seus próprios termos, “não existindo, portanto, fundamento para que este tribunal altere a decisão da matéria factual dada como assente pelo tribunal recorrido excepto no que concerne ao ponto 21. da fundamentação factual”.

Quer dizer: do total de 115 conclusões formuladas pela recorrente na apelação só uma procedeu, sendo, em conformidade alterado o ponto 21. dos factos provados, que passou a ter a seguinte redacção: “As contas apuradas entre Janeiro e Agosto de 2014 do referido estabelecimento demonstram que a 1.ª ré apresentou um acréscimo de facturação na ordem dos € 560.000,00 face ao ano anterior, tendo, no entanto, resultados líquidos negativos, mas será possível obter um … positivo”.

Mas, mais do que o número de conclusões procedentes, o que interessa – o que interessa realmente – é a sua natureza bem como o seu contributo para a criação da convicção do julgador, ou seja, in casu, a susceptibilidade de a questão procedente funcionar como elemento determinante ou fundamento da decisão.

Como é compreensível, não é – não pode ser – atribuído significado, para efeitos de aferição da conformidade ou da desconformidade decisória, a alterações meramente secundárias ou marginais, sem reflexo na decisão final, sob pena de, no caso contrário, o disposto no artigo 671.º, n.º 3, do CPC ficar destituído da sua função substancial (que é a de efectuar a selecção dos casos em que é justificado o acesso ao terceiro grau de jurisdição).

 Ora, aquilo que pode verificar-se, no caso em apreço, é, primeiro, e como se disse, a questão procedente se prende com a mera alteração de um único ponto da matéria de facto, e, segundo, é que o facto em causa foi absolutamente irrelevante para as decisões das duas instâncias, não tendo nenhuma delas alicerçado ou apoiado nele, nem expressa nem implicitamente, a respectiva fundamentação e sendo a mesma a fundamentação jurídica das duas decisões.

Diz, a propósito, Abrantes Geraldes, que “[a] expressão 'fundamentação essencialmente diferente' pode porventura, confrontar-nos com o relevo a atribuir a uma eventual modificação da decisão da matéria de facto empreendida pela Relação, ao abrigo do art. 662.º. Todavia, tal evento não apresenta verdadeira autonomia. Uma modificação da matéria de facto provada ou não provada apenas será relevante para aquele efeito na medida em que também implique uma modificação essencial da motivação jurídica, sendo, portanto, esta que servirá de elemento aferidor da diversidade ou da conformidade das decisões centrada na respetiva motivação[1].

Apesar da alteração daquele ponto da matéria de facto, não é possível, assim, dizer-se que o Acórdão da Relação do Porto não confirmou a decisão da 1.ª instância, como pretende a recorrida, ou que o fez usando fundamentação essencialmente diferente.

Configura-se, em síntese, o bloqueio recursório do artigo 671.º, n.º 3, do CPC, tornando-se, consequentemente, inadmissível o recurso de revista.


*

III. DECISÃO

Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.

                                                           *

Custas pelo recorrente.

                                                           *

             LISBOA, 2 de Abril de 2019

                                                            

Catarina Serra (Relatora)

Raimundo Queirós

Ricardo Costa

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[1] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), pp. 364-365 (sublinhados do autor).