Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1045/20.0T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DOCUMENTO PARTICULAR
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
FORÇA PROBATÓRIA
RESPONSABILIDADE MÉDICA
PROVA TABELADA
DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL
PROVA TESTEMUNHAL
LEGES ARTIS
Data do Acordão: 04/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. O registo clínico elaborado e subscrito pela médica dentista constitui um documento particular, do qual consta informação sobre as observações clínicas relevantes do paciente, evolução do seu estado de saúde e procedimentos médicos adoptados.

II. Nenhuma das normas legais relativas ao registo clínico determina que este constitui documento com força probatória plena quanto à observância ou inobservância das leges artis por parte do médico, conducente à impossibilidade de recorrer a outros meios de prova para apurar tal factualidade, de acordo com o previsto nos arts. 364.º, n.º 1 e 393.º, n.º 1, do CC.

III. O valor probatório do registo clínico é aquele que resulta das normas legais aplicáveis aos documentos particulares, i.e., a força probatória atribuída pelo art. 376.º, n.º 1 do CC reporta-se à materialidade das declarações documentadas, mas não à sua veracidade ou exactidão; saber se o que está documentado ocorreu, de facto, é matéria que não se encontra abrangida pela força probatória do documento em causa, que, nessa parte, pode ser livremente apreciado pelo juiz (art. 396.º do CC).

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra A..., Unipessoal, Lda. e BB, médica-dentista, pedindo, com fundamento em responsabilidade civil por acto médico, a condenação das RR. a indemnizar solidariamente o A. na quantia de € 9.050,00, a título de danos patrimoniais e de € 21.000,00, a título de danos não patrimoniais, quantias a que acrescem de juros de mora legais, a contar da citação.

As RR. contestaram e requereram a Intervenção Principal provocada da Seguradora Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A., a qual foi admitida, tendo a interveniente apresentado contestação.

Em 12 de Maio de 2021 foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo as RR. do pedido.

Inconformado, o A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação ..., pedindo a modificação da decisão de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de 21 de Outubro de 2021, o recurso foi julgado improcedente, confirmando-se, por unanimidade, a decisão recorrida.


2. Veio o A. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, por via normal e, subsidiariamente, por via excepcional.

Relativamente à admissibilidade da revista por via normal, invoca o Recorrente a existência de fundamentação essencialmente diferente, na medida em que, alega, «a 1ª instância julga com base na culpa do A., aqui recorrente. A 2ª instância julga por ausência de culpa quer do A., quer das RR., ora recorridas».

Pugna a Interveniente Ageas, S.A. pela inadmissibilidade do recurso, não se pronunciando a R. Recorrida sobre tal questão.

Vejamos.

A sentença fundamentou a decisão de improcedência nos seguintes termos:

«Cumpre nos presentes autos apurar da existência de uma obrigação de indemnização pelas Rés, em virtude de colocação deficiente de prótese dentária.

O Autor dirigiu-se ao estabelecimento da 1.ª Ré para realização deste tratamento, tendo celebrado com esta um contrato de prestação de serviço médico, que se enquadra na noção geral do contrato de prestação de serviço, previsto no artigo 1154.º do Código Civil.

No contrato de prestação de serviço médico existe como obrigação contratual principal a obrigação de tratamento, de prestação de cuidados de saúde, que se desdobra em diversas prestações e outros deveres laterais, como deveres de cuidado e proteção do doente.

A proteção dos ‘danos concomitantes’ é incorporada no vínculo contratual, existindo, ao lado da obrigação principal, uma obrigação de não causar danos noutros bens pessoais ou patrimoniais do doente, diferentes daquele que constitui o objeto do negócio jurídico (Rute Teixeira Pedro, A responsabilidade civil do médico – Reflexões sobre a noção da perda de chance e a tutela do doente lesado, 2008, pág. 80).

O não cumprimento destes pode ser causa de responsabilidade contratual, na medida em que viola deveres laterais a que contratualmente está obrigado, mas também de responsabilidade extracontratual, desde que violado o direito à integridade física, direito absoluto tutelado pelo princípio geral de responsabilidade civil nos termos do artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil (Ac. STJ de 19-06-2001 - Revista n.º 1008/01, disponível em www.stj.pt).

O Autor queixa-se de quebra da prótese na colocação, mas também omissão de tratamento que implicaria a ofensa na saúde dentária, com repercussões na sua saúde geral. Verificar-se-ia, assim, uma situação de concurso de responsabilidade civil contratual e extracontratual, como ocorre frequentemente nas hipóteses de responsabilidade civil por atos médicos. A orientação da jurisprudência é no sentido da opção pelo regime da responsabilidade contratual por ser mais favorável ao lesado, havendo ainda prevalência da tese segundo a qual, assistindo ao lesado uma dupla tutela (tutela contratual e tutela delitual), ele pode optar por uma ou por outra (cf. Ac. STJ citado de 19/06/2001).

Desde logo, a responsabilidade da 1.ª Ré pela conduta dos auxiliares (médicos, enfermeiros, e outros) regula-se pelo regime do artigo 800.º, n.º 1, do Código Civil, que dispõe que “O devedor é responsável perante o credor pelos atos (…) das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais atos fossem praticados pelo próprio devedor” (Ac. STJ de 28/01/2016, p. 136/12.5TVLSB, www.dgsi.pt).

Na área do exercício da medicina, exige-se ao médico que atue com aquele grau de cuidado e competência que é razoável esperar de um profissional da mesma especialidade, agindo em circunstâncias semelhantes. Desta forma e no âmbito da responsabilidade profissional, o critério do bom pai de família é substituído pelo critério do bom profissional da categoria e especialidade do devedor à data da prática do facto (Luís Filipe Pires de Sousa, O ónus de prova na responsabilidade civil médica, DataVenia, Ano 6, N.º 08, junho 2018, disponível em www.datavenia.pt).

Assim, cabia à Ré demonstrar os procedimentos que empregou e a sua adequação, bem como a atuação que levou a cabo para evitar estas ocorrências (artigos 344.º, n.º 1 e 799.º, n.º 2 do Código Civil).

Dos factos provados resultou que a 2.ª Ré efetuou os estudos e trâmites adequados, tendo colocado a prótese definitiva sem qualquer ocorrência. Resultou que foram respeitados os procedimentos médicos e técnicos exigíveis, e que não foi a sua falta de zelo e cuidado que provocou as lesões.

Cerca de dois anos depois, os exames clínicos evidenciaram uma fratura por palato no dente 1.2, com cárie e focos infeciosos associados aos dentes 1.3 e 1.5, dentes pilares da prótese fixa, que não foram desvitalizados neste procedimento.

Da prova produzida resultou que tal não se deveu a culpa das Rés, mas sim do próprio Autor, que exigiu a quebra da prótese e não tratou de proceder à higiene dentária aconselhada, nem aos tratamentos sugeridos.

Não se divisa, por conseguinte, qualquer ato voluntário e culposo da 2.ª Ré, pelo que fica afastada a obrigação de indemnização, bem como da seguradora interveniente, para quem fora transferida, por força do contrato de seguro, a responsabilidade civil pelo exercício da atividade médica.

Nestes termos, terá a ação de improceder.» [negritos nossos]


O acórdão da Relação, depois de proceder a extenso enquadramento teórico da responsabilidade médica, fundamentou a decisão da seguinte forma:

«Ora, reportando à matéria apurada no caso, não resulta da mesma qualquer ligação entre as consequências que o recorrente “sofreu” e a atuação/intervenção da 2ª R. ao fazer a colocação da prótese definitiva ao mesmo (muito embora, e já adiantamos que aqui discordamos da afirmação feita na sentença, também não se apurou que decorreu da deficiente higiene dentária do recorrente, ou sequer da quebra da prótese que este pretendeu que a 2ª R. realizasse). O ponto 43 dos factos não permite essa conclusão. Igualmente não se apurou que a 2ª R. deixasse de prestar qualquer cuidado devido ao recorrente (e designadamente não se provou a alegada desvalorização das suas queixas). Muito concretamente não há ligação causal entre o descrito nos pontos 32, 33, 34 e 37 e a atuação da 2ª R..

Os factos descritos nos pontos 3, 5, 6, 7, 9, 11, 12, 13, permitem antes dizer que a 2ª R. realizou os estudos e efetuou a preparação do ato sem que dali decorra qualquer erro, e o mesmo se diga da realização final do trabalho, dando também as orientações e o plano que o recorrente devia seguir posteriormente à colocação da prótese.

Sucede que o recorrente só volta a comparecer na 1ª R. muito depois (em outubro de 2018), sem se saber se entretanto cumpriu o estabelecido. Na verdade, só voltou a comparecer em consulta em agosto de 2018, noutra clínica.

E na fase seguinte, resulta dos pontos 16 a 24 e 27 a 31 que o recorrente não deixou de ter a assistência ou orientação prestadas pela 2ª R..

Significa isto que não se apurou um comportamento ilícito, e ainda que a ilicitude se presumisse (o que não defendemos) ela mostra-se afastada no caso concreto, conforme resulta do apuramento dos factos que consta dos autos no que respeita à atuação da 2ª R.. Igualmente se mostraria afastada qualquer presunção de culpa que se lhe pudesse assacar (se tivesse chegado a operar, o que não sucede já que está afastado “ab initio” o cumprimento defeituoso). Não se vislumbra que tenha sido realizado um ato deficiente ou defeituoso a que corresponderia o ato ilícito, antes pelo contrário, mostra-se descrito um procedimento que se afigura correto, conforme as “leis da arte”.

O “cumprimento é defeituoso sempre que haja desconformidade entre as prestações devidas e aquelas que foram efectivamente realizadas pelo prestador de serviços médicos” - Carlos Ferreira de Almeida, obra citada, pags. 116/117.

Para além da jurisprudência que já foi sendo mencionada, acrescentamos a abordagem feita nos Acs. da Rel. de Lisboa de 26/3/2015, de 29/6/2017, e da Rel. do Porto de 17/6/2014 (www.dgsi.pt).

Em suma, para além de não se ter provado um qualquer dano direta e causalmente (ou até reflexamente) decorrente da intervenção da R. (que da sua atuação tenha decorrido uma violação da integridade física do recorrente da qual resultem danos pessoais e patrimoniais), esta intervenção foi realizada com cumprimento das “leges artis”, falecendo a ilicitude, e estando também afastada a culpa presumida que sobre a 2ª. R. recairia.

Portanto, por um lado o recorrente não fez prova do que lhe competia, e por outro lado, aos R.R. fizeram prova do cumprimento cabal da sua obrigação no caso concreto: colocação da prótese definitiva atuando dentro dos parâmetros da diligência exigível.

Nada mais se nos afigura acrescentar, concluindo-se pela improcedência do recurso e manutenção do sentido da decisão proferida.». [negritos nossos]


Temos, pois, que a 1.ª instância absolveu as RR. por entender não ter sido feita prova de actuação ilícita e culposa das RR. e por considerar que os danos são imputáveis à conduta culposa do lesado. Enquanto o Tribunal da Relação entendeu não existir culpa do lesado, mantendo a decisão de absolvição (apenas) por considerar que a intervenção médico-dentária, tendo respeitado as legis artis, não foi ilícita nem culposa. Uma e outra decisão ajuizaram assim de forma diferente a questão da existência de culpa do lesado e inerentes consequências.

Podendo suscitar-se dúvidas se esta diferença terá, sempre e em todos os casos submetidos a julgamento, carácter essencial, para efeitos de descaracterizar a dupla conforme enquanto obstáculo à admissibilidade da revista por via normal (cfr. art. 671.º, n.º 3, do CPC), afigura-se que a apreciação da questão não pode ser feita em abstracto, mas antes, atendendo a que, no domínio da responsabilidade médica em que nos encontramos, a prova ou não de culpa do lesado se pode repercutir de forma decisiva na decisão final. Assim sendo, entende-se que o diferente juízo formulado, a esse respeito, pela 1.ª instância e pela Relação, configura fundamentação essencialmente diferente.

Conclui-se, assim, pela admissibilidade do presente recurso.

Cumpre apreciar e decidir.


3. Formulou o Recorrente as seguintes conclusões recursórias:

[excluem-se as conclusões relativas à admissibilidade do recurso]

«13. Visa o presente recurso de revista pôr em crise os fundamentos de facto e de direito do douto acórdão proferido que confirmou, com fundamentação essencialmente diferente, a sentença de 1ª instância que declarou que “…julgando a ação improcedente por não provada, em consequência, absolvo as Rés do pedido efectuado pelo Autor AA.”

14. Em censura da sentença recorrida, buscou a apelação interposta fundamento na violação da Lei por erro na determinação da norma aplicada e erro de julgamento, por errónea qualificação e subsunção dos factos ao direito! Do mesmo vício padece o acórdão em revista!

15. Invoca, ainda, o recorrente fundamento para a presente revista, o erro na apreciação da matéria de facto e, por isso o erro de julgamento, no acórdão sub judicie quando não altera a resposta dada pela 1ª instância aos pontos 3,5, 6 ,7,9, 12, 13,17 e 43, dos factos provados, por violação das regras de direito probatório material, designadamente quanto ao valor probatório do registo clínico, e, bem assim, das regras legais que regulam a prova testemunhal, como meio de prova, tudo nos termos do artº 672º, nº 2, al. a), do CPC e dos artºs 341º, 344.º, 362º, 363.º, 364.º nº 1, 366.º, 376.º, 392.º e 393º, do Código Civil e artigo 30.º nº 5 do código deontológico dos médicos dentistas aprovado pelo regulamento nº 515/2019 de 18.06.

I - do artigo 674.º, nº 3 e 682.º, nº 2, ambos do C.P.Civil - Erro na apreciação das provas e fixação dos factos materiais da causa, por ofensa de uma disposição expressa de lei que fixe a força de determinado meio de prova

16. Quando está em causa a decisão da matéria de facto, o recurso de revista está reservado unicamente para os casos em que a Relação não tenha cumprido os deveres processuais que sobre a mesma impendem quando é suscitada a modificação da decisão da matéria de facto (violação ou errada aplicação da lei de processo, nos termos do art. 674º, nº 1, al. b), do CPC) ou quando se demonstre a existência de violação de direito probatório material (arts. 674º, nº 3 e 682º, nº 2, do CPC), que tanto pode consistir na violação de norma expressa que exija certa espécie de prova para a existência de determinado facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

17. Ora, não se pede a este Supremo Tribunal a apreciação da prova testemunhal produzida, mas que aprecie o erro de direito cometido pelo Venerando Tribunal da Relação, quando, na adesão à tese das recorridas, não procedeu à alteração da matéria de facto – pontos 3, 5, 6, 7, 9, 12, 13, 17 e 43, dos factos provados em 1ª instância, considerando a prova testemunhal e por declarações de parte, como meio de prova, negando para tal da exigência de documento escrito que, in casu, a lei impõe e exige – registo clínico!

18. in casu é a violação da norma que fixa a força a determinado meio de prova – registo clínico - por parte do Venerando Tribunal da Relação, mormente, a violação do disposto no artigo 376.º, nº 1, do Código Civil, conjugado com o disposto no artigo 30º, nº 5 do Código Deontológico dos Médicos Dentistas aprovado pelo Regulamento nº 515/2019 de 18.06, ao considerar e admitir a prova testemunhal como meio para determinação da matéria de facto.

19. Passando à análise da matéria de facto em questão dir-se-á que tal consubstancia matéria que se impunha constar do registo clínico, para ser capaz de fazer prova da atuação segundo a “leges artis”.

20. De facto,

“I. Os registos clínicos, de acordo com as “leges artis”, devem ser precisos, completos, detalhados, específicos, congruentes, descrevendo fiel, detalhada e especificamente tudo quanto de relevante foi comunicado, observado ou realizado, permitindo vislumbrar os fundamentos e objectivos das decisões médicas que foram sendo tomadas.

II – A generalização de uma má prática não transmuta essa má prática numa boa prática, ou, sequer, numa prática aceitável.

III - Enquanto respeitarem aquelas características os registos clínicos gozam de uma especial força probatória” (Ac. TRL de 28.04-2020 in www.dgsi.pt)

21. Ora, não cumprindo, o registo clínico tais requisitos, não pode de outra forma ou meio de prova apurar-se do cumprimento da leges artis por parte das recorridas.

22. Quanto à matéria de facto aqui sindicada a prova testemunhal utilizada não tem a virtualidade de suportar a demonstração de tais factos, antes se exige prova documental – registo clínico.

23. Nos termos do disposto no art. 364º, nº 1 do C.Civil “ Quando a lei exigir, como forma de declaração negocial, documento (…) particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior.”

24. Posto isto, da conjugação dos preceitos legais invocados supra, resulta ser o registo clínico exigência legal necessária e adequada à prova dos factos respondidos positivamente em 3, 5, 6, 7, 9., 12, 13, 17 e 43 dos Factos Provados na sentença de 1ª instância e inalterados no acórdão sob recurso!

25. Impõe-se, concluir que a prova testemunhal e por declarações de parte, quanto a tais factos não serve à prova dos mesmos, nem sustenta o princípio da livre apreciação da prova, pois que este, nos termos do art. 607º, nº 5 do CPC “… não abrange os factos (…) que só possam ser provados por documentos….”

26. O registo clínico constitui um documento particular, nos termos e para os fins do artigo 374.º do Código Civil, com força probatória plena, nos termos do artigo 376.º, nº 1 do mesmo diploma legal, o que o Tribunal a quo, mal, não considerou e, assim, errou na apreciação da matéria de facto, incorrendo em erro de julgamento!

27. Mal andou o acórdão sub judicie ao admitir a prova testemunhal e ao negar a alteração da matéria de facto, bem como, ao negar a exigência de documento escrito, como único meio de prova à sustentação da matéria a que respeitam os pontos 3, 5, 6, 7, 9., 12, 13, 17 e 43 dos Factos em 1ª instância.

28. “O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa só pode ser objecto de recurso de revista, quando o tribunal recorrido tenha dado como provado um facto sem que se tenha produzido a prova que, de acordo com a lei, seja indispensável para a demonstração da sua existência; ou quando tenha desrespeitado normas reguladoras da força probatória dos diversos meios de prova admitidos no nosso sistema jurídico.”

29. Andou mal o Tribunal a quo na resposta dada à matéria de fato aqui sindicada, incorrendo em erro de julgamento e má aplicação da Lei e do direito.

30. No que concerne ao ónus da prova, dispõe o artigo 342.º, nº 3 do C Civil: “Em caso de dúvida, os fatos devem ser considerados como constitutivos do direito”. Assim, e na dúvida, impunha-se que tal matéria fosse decidida como constitutiva do direito invocado pelo recorrente e, em conformidade, ser alterada a resposta dada à matéria constante dos pontos 3, 5, 6, 7, 9., 12, 13, 17 e 43 dos factos provados na sentença da 1ª instância.

31. Ora, a violação das regras da prova é questão de direito que cabe nos poderes de sindicância do Digníssimo Supremo Tribunal de Justiça, e sobre a qual é, ora, chamado a exercer pronúncia, no sentido plasmado no anterior parágrafo.

32. Entende o recorrente que a matéria factual – pontos 3, 5, 6, 7, 9., 12, 13, 17 e 43 dos factos Provados - fixada pela 1ª instância e confirmada pela Relação foi apurada com violação dos aludidos preceitos legais!

33. Reclama-se assim, que o Supremo Tribunal de Justiça faça uso dos seus poderes censórios relativamente ao julgamento da matéria de facto efetuado pela 2ª instância, invocando-se, para tanto, erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais da causa, por violação das regras de direito probatório material, designadamente quanto ao valor probatório pleno dos documentos particulares não impugnados, e, bem assim, das regras legais que regulam a prova testemunhal, como meio de prova, tudo nos temos do artº 722º, nº 2, 2ª parte, do CPC e dos artºs 341º, nº 1 e 3, 342.º, nº 1 e 3, 349º, 351.º, 352º, 355º, 362º, 376.º e 392.º do Código Civil.

34. Pugna-se pela alteração da matéria de facto – pontos 3, 5, 6, 7, 9, 12, 13, 17 e 43 dos Factos Provados na sentença de 1ª instância, porquanto, os mesmos não constando do registo clínico junto aos autos, não poderiam ser considerados como provados por outro qualquer meio de prova, só assim, se operando a necessária justiça!

II – da violação da lei substantiva, por erro na sua interpretação e aplicação nos termos do nº 1, alínea a), do artigo 674º, do C.P. Civil

35. O inconformismo dos recorrentes mantém-se, ora, redobradamente!

36. “A violação da lei substantiva reconduz-se sempre a um erro: um erro de interpretação ou de determinação da norma aplicável ou de aplicação do direito.” (Ac. STJ de 02.07.2015 in www.dgsi.pt). Verificada a ofensa/violação de uma disposição expressa de lei,” tem-se por verificado o fundamento de violação ou errada aplicação da lei processual.”

37. “O erro de julgamento tanto pode começar na interpretação e subsunção dos factos e do direito, como estender-se à sua própria qualificação, o que, em qualquer das circunstâncias, afecta e vicia a decisão proferida pelas consequências que acarreta, em resultado de um desacerto, de um equívoco ou de uma inexacta qualificação jurídica ou, como enuncia a lei, de um erro.” (Ac. STJ de 02.07.2015 in www.dgsi.pt)

38. O que nos demais itens supra vem de alegar, constitui factos e fundamentos que o Recorrente entende capazes à sustentação da verificação dos vícios de violação de Lei e erro de julgamento na sentença sub judicie, pois que, há manifesta divergência entre os factos provados e os que se impõem sejam dados por provados e a solução jurídica, dada pelo Tribunal a quo, pois que a matéria se bem julgada impunha decisão consentânea com a tese do recorrente.

39. Divergência que consubstancia erro de julgamento (error in judicando), que importa a revogação do acórdão sub judicie, e a sua substituição por outro que, declare procedente o pedido deduzido pelo recorrente, condenando as RR., ora recorridas, no pagamento da quantia peticionada.

40. O que se requer!

41. Os fundamentos enunciados supra sustentam o inconformismo do recorrente mostra-se capazes a abalar o acórdão sub judicie, negando-lhe razão e sustentabilidade, sendo que, a solução justa e adequada não pode ser outra que a sua revogação!

42. Viola o acórdão sub recurso o disposto nos artigos 341º, 344.º, 362º, 364º, nº 1, 376.º, 392º e 393º, do Código Civil e artigo 30º, nº 5 do Código Deontológico dos Médicos Dentistas aprovado pelo Regulamento nº 515/2019 de 18.06.

43. Viola o acórdão em recurso, além do mais, o disposto no artigo 799º do C.Civil!»

Termina pedindo que concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, seja alterada a resposta dada pela 1.ª instância à matéria dos pontos 3, 5, 6, 7, 9, 12, 13, 17 e 43 dos factos provados, concluindo-se pela violação da leges artis das recorridas, e assim, se revogue o acórdão recorrido em conformidade com as conclusões supra expostas.


As RR. contra-alegaram, concluindo nos termos seguintes:

«1. O Recorrente interposto o presente recurso de revista por entender haver errónea apreciação da matéria de facto, com consequente erro de julgamento, por violação das regras de direito probatório material, designadamente quanto ao valor probatório do registo clínico, bem como das regras legais que regulam a prova testemunhal, pugnando, consequentemente, pela revogação das decisões até aqui proferidas, quer em 1ª Instância, quer em 2ª Instância.

2. Peticiona a alteração da resposta dada em 1ª Instância aos pontos 3, 5, 6, 7, 9, 12, 13, 17 e 43 dos factos provados, porquanto tais factos foram dados como provados tendo por base a prova testemunhal e declarações de parte produzidas em sede de audiência de discussão e julgamento, o que seria inadmissível, no entender do Recorrente, por haver prova documental com valor probatório superior, a qual levaria à prolação de decisão no sentido da condenação das Rés ao invés a sua absolvição, já duplamente confirmada.

3. O Recorrente assenta o seu recurso essencialmente na força probatória atribuída ao registo clínico, sendo essa, alias, a alegada questão controversa que pretende ver clarificada por este douto tribunal.

4. Entendem as Recorridas que não existe qualquer errónea apreciação da matéria de facto, nem erro de julgamento, nem violação das regras de direito probatório material.

5. Certo é, porém, que o douto acórdão recorrido já se pronunciou clara e amplamente sobre tal documento e sobre a força probatória que lhe assiste, designadamente quando refere que “de resto, não se nos afigura que o registo esteja elaborado de fora deficiente para o caso concreto e exigências do mesmo. De facto, consta no geral o ato ou tratamento que é realizado, não constando o pormenor do respetivo procedimento, o qual segue um determinado protocolo, cumprido assim as exigências legais que resultam das disposições “supra” citadas; coisa diferente seria se o procedimento tivesse tido qualquer intercorrência em que já se justificaria a menção.”

6. Como tal, admitindo ou não a especial força probatória do registo clínico, tal em nada altera as decisões proferidas nos presentes autos, nem tão-pouco tem a virtualidade de alterar a resposta dada aos factos pretendidos pelo Recorrente, pois resulta claro e é entendido por ambas as instâncias que o registo clínico junto aos autos está conforme, cumpre os requisitos exigíveis e demonstra de forma cabal o cumprimento dos procedimentos médicos corretos, conformes às legis artis.

7. Ainda que tivesse existido “ofensa de uma disposição expressa de lei que fixe a força de determinado meio de prova”, (ficha clínica), e mesmo que a decisão proferida em 1ª Instância tivesse atendido apenas a este documento, a decisão final proferida teria sido a mesma, uma vez que dele decorre o cumprimento da leges artis.

8. Mas se a ficha clínica não cumprir os requisitos perde a sua especial força probatória, sendo, portanto, um documento probatório a considerar devidamente concatenado com a demais prova produzida em sede de audiência e discussão e julgamento, designadamente prova testemunhal, depoimento de parte, prova pericial, demais prova documental…

9. E ainda que, como pretende o Recorrente, o registo clínico, por não cumprir os requisitos, só pudesse ser afastado por prova ou documento de força probatória superior, bem andou o tribunal de 1ª Instância ao decidir como decidiu, pois não existiu qualquer violação das regras do direito probatório, porquanto a base primacial da decisão que veio a ser proferida foi o relatório pericial junto aos autos e respetivos esclarecimentos prestados quer por escrito, quer oralmente em sede de audiência de discussão e julgamento pela Sra. Perita.

10. O mesmo é dizer que tenha a ficha clínica a força probatória que tiver, dos autos resulta claro e inequívoco que outra decisão não podia ser tomada, inexistindo motivo para alterar a resposta dada aos pontos 3, 5, 6, 7, 9, 12, 13, 17 e 43 dos factos provados.

11. Como tal, bem andaram a 1ª e 2ª Instância ao decidir como doutamente decidiram, absolvendo totalmente as Rés, inexistindo qualquer errónea apreciação da matéria de facto, com consequente erro de julgamento, por violação das regras de direito probatório material.

12. Acresce que nenhuma razão assiste ao Recorrente, pois a motivação de facto que conduziu à decisão que foi proferida em 1ª Instância assentou na prova pericial, pois, como se diz na douta sentença, “uma vez que se tratou de procedimento médico, com intervenções exames e tratamentos posteriores, foi essencial a apreciação por perito médico imparcial que elaborou relatório, esclarecimentos escritos e em sede de audiência e que se nos afigurou sustentado no conhecimento técnico e assertivo quando concluiu que não existe evidências que o tratamento tenha sido mal-executado.”

13. Além disso, “(…) uma vez que não esteve lá aquando da colocação do implante, nem visualizou o trabalho depois de feito (aquando da realização do exame, já tinha o Autor efetuado outro tratamento, retirando todos os dentes), não pode a Exma. Perita responder concretamente a todas as questões, pelo que temos de nos socorrer dos restantes elementos constantes dos autos, especialmente os mais objetivos, existentes nos ficheiros médicos e exames, uma vez que as versões apresentadas pelas partes, nalguns pontos, são totalmente contraditórias.”

14. Como tal a Mma. Juiz a quo baseou-se no relatório pericial, respetivos esclarecimentos escritos e esclarecimentos orais prestados pela Sra. Perita em sede de audiência de discussão e julgamento, concatenando-os com os demais “…elementos constantes dos autos… mais objetivos, existentes nos ficheiros médicos e exames” (negrito nosso).

15. De facto, a prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, já que dependem de regras de experiência e de conhecimentos técnico-científicos que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se ser aquele possuidor.

16. A prova pericial é livremente apreciada pelo Juiz e tem de ser valorada de forma diferenciada e com maior relevo face às demais provas produzidas em sede de audiência de discussão e julgamento, nomeadamente prova testemunhal ou documental.

17. Acresce que o douto acórdão recorrido confirmou que a ficha clínica demonstra o cabal cumprimento da leges artis, mesmo não lhe concedendo a força probatória pretendida pelo Recorrente.

18. Pelo que, uma vez mais, a consideração ou não da prova testemunhal e do depoimento de parte em nada alteraria a decisão proferida, porquanto pouca ou nenhuma influência teve na decisão final.

19. Como tal, não se verifica qualquer errónea apreciação da matéria de facto, com consequente erro de julgamento, por violação das regras de direito probatório material, pelo que deve o douto acórdão recorrido manter-se inalterado e, consequentemente, mantendo-se a total absolvição das Rés.

20. De tudo quanto se vem de expor, salvo melhor opinião, resulta à saciedade que inexiste fundamento para a presente Revista, porquanto não se verificou qualquer violação da lei substantiva por erro na sua interpretação e aplicação, inexistindo fundamento para apreciação por este douto tribunal da alegada questão cuja apreciação pela sua relevância jurídica seria necessária para uma melhor aplicação do direito.

21. A questão que o Recorrente pretende ver analisada por este douto tribunal encontram-se amplamente concretizada e de forma pacífica na nossa doutrina e jurisprudência, inexistindo controvérsia sobre a força probatória do registo clínico para prova do cumprimento da legis artis, nomeadamente no que respeita aos seus requisitos formais e materiais.

22. Pelo que não só andou bem o douto tribunal a quo ao negar provimento ao recurso interposto pelo Recorrente, como não se verifica qualquer fundamento, de facto ou de direito, para alterar a resposta dada aos pontos 3, 5, 7, 9, 12, 13, 17 e 43 dos factos provados da sentença da 1ª Instância.

23. O disposto no art. 342º nº 3 do Código Civil não se aplica ao caso sub judice, pois não existe qualquer dúvida: o relatório pericial foi claro ao concluir pelo cumprimento dos procedimentos médicos expectáveis, pela inexistência de responsabilidade das Rés e, em suma, pelo cumprimento da leges artis.

24. O Recorrente persiste ainda no erro ao insistir na alegada “manifesta divergência entre os factos provados e os que se impõem sejam dados por provados e a solução jurídica…”, justificando tal pretensão nada mais do que na sua discordância com a solução apresentada pelo tribunal a quo, o que não é fundamentação quanto baste para sustentar qualquer recurso, menos ainda aquele que é interposto perante este douto tribunal.

25. Assim, inexistindo qualquer violação seja das regras do Código Civil, seja do Código de Processo Civil, seja mesmo do Código Deontológico dos Médicos Dentistas, inexiste, reitera-se, fundamento para o Recurso de Revista interposto pelo Recorrente, o qual deverá improceder totalmente, mantendo-se a decisão tomada em 1ª Instância e confirmada em 2ª Instância.»


Por sua vez, também a Interveniente contra-alegou, concluindo da seguinte forma:

[excluem-se as conclusões relativas à admissibilidade do recurso]

«4. A norma do artigo 30º, nº 5 do Código Deontológico da Ordem dos Médicos Dentistas não se destina a estabelecer um meio legalmente imposto e exclusivo para a prova do cumprimento da legis artis (como alega o recorrente), mas antes e apenas a assegurar que os dentistas adoptem um método uniforme e coerente em relação aos registos dos seus procedimentos clínicos.

5. A referida norma é de carácter deontológico e não é apta a integrar os conceitos de “disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto” ou “disposição expressa da lei que fixe a força de determinado meio de prova” a que se refere o artigo 674º nº 3 do C.P.C.

[...]

7. Não se verifica nem é demonstrado qualquer erro na apreciação das provas nem, por consequência, qualquer violação da lei substantiva por erro na sua interpretação e aplicação.».


4. Vem provado o seguinte (mantêm-se a numeração e a redacção das instâncias):

1. A 1.ª Ré é uma sociedade unipessoal que desenvolve a atividade de medicina dentária, sendo a 2.ª Ré a única sócia, desempenhando a atividade de médica dentista, na clínica “...”.

2. O Autor, a 24 de novembro de 2015, dirigiu-se à referida clínica com vista à prestação de serviços de cuidados de saúde médico-dentários, manifestando a intenção de realizar uma reabilitação oral na arcada superior.

3. A 2.ª Ré diligenciou no sentido de conhecer a estória de vida e clínica do Autor, por forma a apurar se tal reabilitação era viável e qual a melhor forma de a fazer, apurando que o Autor era ex-toxicodependente, que se encontrava a tomar metadona e medicação para a ansiedade e depressão e que não tinha alergias.

4. O Autor já tinha os dentes desvitalizados e tinha colocadas coroas metalocerâmias nos dentes incisivos (1.1, 1.2 e 2.2), mas com o decorrer dos anos, as mesmas haviam sofrido um afastamento generalizado.

5. A 2.ª Ré realizou um estudo fotográfico aos dentes do Autor e realizou radiografias peri- apicais, por forma a avaliar a anatomia dos dentes e a poder avaliar de forma detalhada o estado das coroas, da raiz e do osso alveolar.

6. Efetuado o modelo de estudo, de modo a que o Autor não voltasse a sofrer do afastamento evidenciado e que pudesse preservar os dentes naturais, a 2.ª Ré sugeriu ao Autor a colocação de uma prótese fixa ferulizada, em zircónio/cerâmica sobre 8 dentes, com pilares nos dentes 1.5, 1.3, 1.2, 1.1, 2.1, 2.2 e 2.3 e com um pôntico na zona do 1.4, com vários conectores entre os dentes dos pilares, por ser o material mais biocompatível com o organismo.

7. Informou logo o Autor que tinha que se comprometer em efetuar uma boa higienização oral, bem como visitas regulares ao seu dentista, mais premente ainda devido à toma de metadona.

8. O Autor, foi juntando as suas poupanças e procedeu ao pagamento do preço acordado a prestações, num total de € 2.800, 00 (dois mil e oitocentos euros).

9. A 30/09/2016, a 2.ª Ré efetuou os moldes para a colocação das oito coroas e a 20 de outubro de 2016 procedeu à colocação de 08 coroas provisórias, anestesiando os locais, colocado isolamento e efetuado a prova de passividade, bem como efetuado um molde de ambas arcadas.

10. Entretanto, o Autor desloca-se à clínica de medicina dentária CC, onde, a 02 de janeiro de 2017 efetuou uma exodontia do dente 3.6 e endodontia do dente 2.6, bem como uma destartarização bimaxilar, a 18/02/2017.

11. No dia 17/03/2017, o Autor deslocou-se às instalações da 1ª Ré para efetuar o registo da oclusão e prova de passividade.

12. A 16 de maio de 2017, a 2.ª Ré procedeu à colocação das coroas definitivas, tendo, para o

 efeito, anestesiado os locais onde iam ser colocadas as coroas, removeu as coroas provisórias, efetuou um polimento dentário, secou todas as estruturas dos dentes, procedeu à limpeza da estrutura dentária e usou cimento autoadesivo, e papel articular para as prematuridades.

13. Atendendo à condição de saúde do Autor, foi aconselhado a efetuar trimestralmente uma limpeza dentária, além da manutenção diária, uma vez que a higienização insuficiente podia levar à retenção de restos alimentares e bactérias na zona do pôntico, comprometendo a estrutura que suportava a prótese fixa.

14. A 21 de julho de 2017 e 17 de fevereiro de 2018 o Autor faltou a duas consultas agendadas na clínica de medicina dentária CC para restauração do dente 2.6.

15. A 1 de agosto de 2018 realizou destartarização bimaxilar nesta clínica, tendo faltado à consulta agendada para 19 de setembro.

16. No dia 22 de outubro de 2018 recorreu aos serviços das Rés, queixando-se que tinha a gengiva inflamada entre os dentes da ponte no 1.º quadrante, o que, depois de efetuado raio X,

se veio a verificar, na zona do pôntico entre o pilar 1.3 e o pilar 1.5.

17. A Ré informou que a inflamação advinha do facto da higienização oral não ser boa e que tinha origem no coto de um dente desvitalizado, e informou-o que deveria fazer um retratamento endodôntico não cirúrgico aos dentes 1.3 e 1.5 e uma apicectomia.

18. O Autor, alegando que que não se sentia bem com o implante, queixando-se do mau cheiro, solicitou que a 2.ª Ré cortasse a estrutura que suportava as coroas.

19. A 2.ª Ré, contra a sua vontade, mas receosa do comportamento do Autor, acabou por o cortar, na zona do conector, entre o dente 1.3 e o dente 1.2, alertando-o que, sem as coroas, os cotos podiam fraturar e que cortando a estrutura, a mesma nunca mais poderia ser recolocada com a harmonia inicial e que a recolocação tinha que ser rápida.

20. A 2.ª Ré prescreveu antibiótico por forma a debelar tal inflamação/infeção e retirou a estrutura das coroas correspondente aos dentes 1.3, 1.4 e 1.5.

21. Após um telefonema efetuado pela 2ª Ré, para recolocar a ponte, o Autor compareceu nas instalações da 1ª Ré, e, ao mesmo tempo que injuriava e ameaçava a 2.ª Ré, informou-a que não queria recolocar a ponte, porque não queria uma estrutura partida e que não queria ser tratado pela 2.ª Ré, exigindo que lhe fosse devolvida a quantia que havia sido paga, no montante de € 2.800.00.

22. A 2.ª Ré, com o intuito de resolver as coisas e acalmar o Autor, convenceu-o a cimentar a ponte com cimento autoadesivo e de polimerização dual, com o objetivo deste não fraturar os cotos, ao que o Autor acedeu.

23. No dia 13/11/2018, o Autor deslocou-se às instalações da 1.ª Ré, queixando-se que a estrutura colocada estava a abanar, o que não se verificou, tendo o Autor colocado em causa o seu trabalho e dirigindo-se à 2.ª Ré e assistente, em tom ameaçador.

24. No dia 12/02/2019, o Autor deslocou-se às instalações da 1ª Ré e informou a 2.ª Ré que não se sentia bem, tendo esta aconselhado uma limpeza dentária, o que este aceitou, uma vez que apresentava mau hálito e muita placa bacteriana, cobrando-lhe, por esse serviço a quantia de € 35,00.

25. Entre os meses de novembro de 2018 e fevereiro de 2019 o Autor descolocou-se à clínica de medicina dentária CC, onde efetuou 4 restaurações dos dentes 2.7, 3.7, 1.7 e 4.4.

26. A 18 de fevereiro de 2019, o Autor voltou a aparecer nas instalações da 1ª Ré, de forma muito exaltada, a reclamar do facto de lhe ter sido cobrada a referida quantia e referindo que não se sentia bem na zona da ponte (dentes 1.5, 1.4 e 1.3), exigindo o novamente a devolução do valor pago.

27. O Autor foi alertado que deveria realizar o tratamento do dente 1.3 e que deveria ter um especial cuidado na limpeza da zona da ponte e que devia efetuar uma limpeza dentária de 3 em 3 meses, este, referiu que ia partir as coroas e dirigiu-se à 2ª Ré e a sua funcionária, que solicitaram a presença da GNR, apresentando queixas por injúrias e ameaças.

28. No dia 20/02/2019, o Autor voltou a comparecer nas instalações da 1ª Ré, alegando que não se sentia bem com a ponte, tendo a Ré oferecido para fazer uma nova ponte prótese fixa, sem qualquer custo, tendo o Autor concordado em fazer uma prótese fixa com os dentes 1.5, 1.4 e 1.3.

29. Para o efeito, a 2.ª Ré efetuou um novo molde e aconselhou o Autor a consultar outro médico dentista para elaborar um parecer sobre o trabalho por si realizado.

30. E, uma vez que não confiava no seu trabalho, para ir a outro colega, especialista naquela área, tratar a infeção que apresentava, designadamente para tratar o dente 1.3 que lhe estava a causar o mau estar.

31. No dia 12 de março, após telefonema da 2.ª Ré, foi à clínica mas recusou ser tratado e colocar novas coroas, uma vez que apenas queria a restituição do dinheiro pago, tendo sido chamada mais uma vez a GNR ao local e apresentadas novas queixas pela 2.ª Ré e assistente por injúrias e ameaças.

32. O Autor recorreu aos serviços de outra médica dentista, a qual relatou «25.03.2019 - “Paciente quis opinião de trabalho do 1º Q 15-12. Coroa 1.2 fraturou um pouco por P e infiltrou cárie. Raiz do dente 1.5 com infeção – dor no fundo do vestíbulo e ligeiro edema. Aconselhei a agendar com colega (de outra clínica) que fez o trabalho para avaliar”».

33. No dia 26.03.2019, foi à referida clínica, com queixas de dor forte associadas ao 1.º quadrante, agravadas aquando da mastigação, tendo sido efetuado tratamento: “Fístula em V da zona 15 e a drenar pus pelo sulco da coroa 13 e em D do 15. R\amox. 1g+ brufen 400mg + paracetamol 1g. Aconselhei consulta com médica responsável pelo trabalho para avaliação.”.

34. No dia 2 de abril o Autor faltou à consulta agendada na clínica CC, e no dia 3 de abril de 2019 vai à consulta, com o abcesso a diminuir mas continua a drenar pus pelo sulco do 1.3.

35. O A. apresentava um diagnóstico de presença de uma tumefação no fundo do vestíbulo com drenagem de pus pelo sulco gengival do 1.3 e de uma fistula na gengiva adjacente ao dente 1.5; presença de focos infeciosos associados aos dentes 1.3 e 1.5 do referido quadrante, designadamente canino superior direito e segundo pré-molar superior direito, dentes pilares de uma prótese fixa.

36. Na clínica CC o Autor solicitou uma previsão de despesas para o tratamento, tendo sido apresentado plano, no montante de 2.014 €, com retratamento endodôntico do dente 1.3, exodontia do dente 1.5, nova prótese em resina acrílica com 3 dentes (1.4, 1.5 e 1.6) e nova coroa cerâmica do dente 1.3.

37. As dores sentidas pelo Autor são consequência da tumefação no fundo do vestíbulo com drenagem de pus pelo sulco gengival do 13 e de uma fistula na gengiva adjacente ao dente 15 (…) presença de focos infeciosos associados aos dentes 1.3 e 1.5, dentes pilares de uma prótese fixa.”

38. Ainda na clínica CC o Autor realizou, a 31 de maio de 2019, restauração de duas faces do dente 4.5, destartarização a 24 de setembro e a 15 de outubro compareceu sem dores nem edema na zona do dente 1.5, não tendo sido feita extração do dente para não ficar edêntulo na área.

39. Em fevereiro de 2020, o Autor efetuou TAC ao maxilar superior evidenciando:

40. O Autor deslocou-se à Clínica ... para realizar tratamento de reabilitação oral, seguindo o seguinte plano: reabilitação oral total da arcada superior, com colocação de quatro implantes, base para uma prótese fixa superior de 12 dentes e uma prótese parcial removível inferior para estabilização da oclusão.

41. O Autor iniciou os tratamentos a 17 de junho de 2020, tendo sido realizada exodontia dos dentes 1.1, 1.2, 1.3, 1.5, 1.7, 2.1, 2.2, 2.3, 2.6, 2.7 e colocação de quatro implantes em 1.6, 1.2, 2.2 e 2.6.

42. A irmã do Autor ajudou-o a suportar os custos deste tratamento e que ascenderão a 7.900,00 (sete mil e novecentos euros).

43. O Autor realizou exame pericial a 7 de agosto de 2020, apresentando a seguinte conclusão: “Apesar de terem ocorrido complicações, não existe qualquer evidência que o tratamento tenha sido mal executado”. As complicações decorrentes da fratura na coroa do 1.2 têm como causas possíveis a falta de adesão às medidas terapêuticas instituídas e/ou secção da ponte, sendo improvável a ligação à colocação do implante pelas Rés; as do dente 1.5 decorrem de infeção do pilar, por eventuais defeitos da endodontia previamente realizada.

44. A Ordem dos Médico Dentistas celebrou com a Seguradora Interveniente um contrato de seguro de responsabilidade civil exploração e profissional titulado pela apólice......39, beneficiando a 2.ª Ré na sua qualidade de médica dentista, nos termos das condições particulares e especiais juntas, com cobertura de € 20.000, por sinistro.


Factos dados como não provados:

- que a provisória tinha dois blocos de quatro coroas, cada;

- que a ponte definitiva colocada era demasiado extensa e inadequada à cavidade bucal do A., e a 2.ª Ré exerceu pressão exagerada no “encaixe” da ponte definitiva na cavidade bucal, vindo a fraturar a ponte entre o dente 1.3 e 1.2; depois tenha efetuado restauro da fratura da coroa, sem a retirar da cavidade bucal do Autor, usando para tal uma massa;

- decorridos cerca de 02 meses sobre a colocação das coroas definitivas, o Autor começou a sentir fortes dores associadas ao primeiro quadrante (lado superior direito da cavidade oral), sempre que mastigava e até quando falava tinha a sensação de que as coroas abanavam e estavam prestes a cair, causando-lhe dor, desconforto e inibia-o de comer alimentos sólidos;

- além da perda de massa, no local restaurado, a coroa fraturada, correspondente ao dente 1.2, começou a apresentar uma cor escura e o A. a sentir, também aí, dor e sensibilidade dentária;

- logo o Autor procurou ajuda junto das RR, tendo a 2.ª Ré desvalorizado as queixas que o A. apresentava, afirmando estar tudo bem e que ele A. não era mais que um bebé chorão;

- que se repetiram nos meses seguintes episódios de dor intensa, as coroas abanavam e a sensação ao mastigar os alimentos era de que as mesmas caíam, o que inibia o Autor de comer e mesmo de falar, nem tocar na boca e cara, pelo que iniciou um período de isolamento, ficando em casa, enfiando-se na cama, completamente só, sem vontade de conviver com amigos e familiares;

- que a coroa abanava e por isso a Ré retirou em outubro de 2018;

- Os episódios constantes de dor intensa e as coroas a abanar mantiveram-se entre o mês de novembro de 2018 a março de 2019;

- O Autor fez a higiene oral conforme as indicações da 2ª Ré;

- A terapêutica medicamentosa instituída pela 2.ª Ré não melhorou o estado de saúde do Autor, que apresentava dor constante e, sempre que o A. mastigava os alimentos, por mais moles que fossem, a massa caía, sendo constante a sensação das coroas a abanar e a roçarem as gengivas; tornou impossível a mastigação dos alimentos pela dor e desconforto que tal lhe trazia, sendo que, não raras vezes, acordava durante a noite com a boca completamente ensanguentada;

- que apresentava gengivas inflamadas e sangramento e permanente mau gosto na boca, devido ao tratamento das Rés;

- que a fratura que a ponte apresentava e apresenta em 1.2 reveste a natureza de uma fratura severa, o que impunha a remoção da ponte e confeção de nova prótese;

- que, no que concerne ao dente 1.5, a 2.ª R. substituiu o coto existente por um artificial, desde então, é constante a infeção que não se consegue debelar e está a abanar;

- a 2.ª Ré, na colocação da ponte fixa, errou no molde retirado;

- que a 2.ª Ré não cuidou de avaliar o estado gengival previamente à colocação da ponte fixa;

- desde julho de 2017, esta situação perturbou a sua atividade profissional, tendo mesmo entrado em situação de incapacidade total para o trabalho;

- que desde a data da colocação das coroas definitivas a 16.05.2017, até hoje, e em virtude destas, o Autor viu-se obrigado a tomar antibióticos e analgésicos diariamente;

- que, em virtude deste tratamento das Rés, perdeu 9 Kg, estando visivelmente afetado fisicamente, sentindo-se como sendo apenas pele e osso; sofre de ansiedade, temor e receio pelas sequelas a que a sujeição ao tratamento determinam;

- que o implante e os tratamentos tenham provocado incapacidade para o trabalho e a não renovação do seu contrato em 06/05/2020;

- que o Autor sempre foi pessoa com brio pela sua saúde e aparência oral.


4. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Assim, o presente recurso tem como objecto as seguintes questões:

- Se, ao dar como provados os factos indicados nos pontos 3., 5., 6., 7., 9., 12., 13., 17. e 43., o tribunal recorrido violou regras legais de direito probatório;

- Subsidiariamente, responsabilidade das RR. por violação das legis artis.


5. O Recorrente assenta o seu recurso na força probatória atribuída ao registo clínico, sendo essa a questão controversa essencial que pretende ver clarificada por este Tribunal.

Entende o Recorrente que a matéria factual (pontos 3., 5., 6., 7., 9., 12., 13., 17. e 43. dos factos provados), fixada pela 1.ª instância e confirmada pela Relação, foi apurada em violação das normas de direito probatório, em especial, das normas dos arts. 364.º e 376.º, n.º 1 do Código Civil, bem como do artigo 30.º, n.º 5 do Código Deontológico da Ordem dos Médicos Dentistas, aprovado pelo Regulamento n.º 515/2019, de 18 de Junho.

Invoca, para tanto, erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais da causa por violação de regras de direito probatório material, designadamente quanto ao valor probatório pleno do registo clínico, assim como por violação das regras legais que regulam a prova testemunhal como meio de prova.

Entende o Recorrente que «o registo clínico constitui um documento particular, nos termos e para os fins do artigo 374.º do Código Civil, com força probatória plena, nos termos do artigo 376.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, o que o Tribunal a quo, mal, não considerou e, assim, errou na apreciação da matéria de facto, incorrendo em erro de julgamento.».

Consequentemente, pugna o Recorrente pela alteração dos referidos pontos da decisão de facto, entendendo que tais factos, uma vez que não constam do registo clínico junto aos autos, não poderiam, de acordo com o disposto nos arts. 364.º, n.º 1, e 393.º, n.º 1, do Código Civil, ser considerados como provados por outro qualquer meio de prova, designadamente por prova testemunhal e por declarações de parte.

Em sede de contra-alegações, pugnam as Recorridas pela improcedência do recurso, alegando que não existe qualquer errónea apreciação da matéria de facto, nem erro de julgamento, nem violação de regras de direito probatório.

Vejamos.


5.1. Estão em causa os seguintes pontos da matéria de facto dada como provada:

3. A 2.ª Ré diligenciou no sentido de conhecer a estória de vida e clínica do Autor, por forma a apurar se tal reabilitação era viável e qual a melhor forma de a fazer, apurando que o Autor era ex-toxicodependente, que se encontrava a tomar metadona e medicação para a ansiedade e depressão e que não tinha alergias.

5.  A 2.ª Ré realizou um estudo fotográfico aos dentes do Autor e realizou radiografias peri-apicais, por forma a avaliar a anatomia dos dentes e a poder avaliar de forma detalhada o estado das coroas, da raiz e do osso alveolar.

6.  Efetuado o modelo de estudo, de modo a que o Autor não voltasse a sofrer do afastamento evidenciado e que pudesse preservar os dentes naturais, a 2.ª Ré sugeriu ao Autor a colocação de uma prótese fixa ferulizada, em zircónio/cerâmica sobre 8 dentes, com pilares nos dentes 1.5, 1.3, 1.2, 1.1, 2.1, 2.2 e 2.3 e com um pôntico na zona do 1.4, com vários conectores entre os dentes dos pilares, por ser o material mais biocompatível com o organismo.

7.   Informou logo o Autor que tinha que se comprometer em efetuar uma boa higienização oral, bem como visitas regulares ao seu dentista, mais premente ainda devido à toma de metadona.

9.  A 30/09/2016, a 2.ª Ré efetuou os moldes para a colocação das oito coroas e a 20 de outubro de 2016 procedeu à colocação de 08 coroas provisórias, anestesiando os locais, colocado isolamento e efetuado a prova de passividade, bem como efetuado um molde de ambas arcadas.

12. A 16 de maio de 2017, a 2.ª Ré procedeu à colocação das coroas definitivas, tendo, para o efeito, anestesiado os locais onde iam ser colocadas as coroas, removeu as coroas provisórias, efetuou um polimento dentário, secou todas as estruturas dos dentes, procedeu à limpeza da estrutura dentária e usou cimento autoadesivo, e papel articular para as prematuridades.

13. Atendendo à condição de saúde do Autor, foi aconselhado a efetuar trimestralmente uma limpeza dentária, além da manutenção diária, uma vez que a higienização insuficiente podia levar à retenção de restos alimentares e bactérias na zona do pôntico, comprometendo a estrutura que suportava a prótese fixa.

17. A Ré informou que a inflamação advinha do facto da higienização oral não ser boa e que tinha origem no coto de um dente desvitalizado, e informou-o que deveria fazer um retratamento endodôntico não cirúrgico aos dentes 1.3 e 1.5 e uma apicectomia.

43. O Autor realizou exame pericial a 7 de agosto de 2020, apresentando a seguinte conclusão: “Apesar de terem ocorrido complicações, não existe qualquer evidência que o tratamento tenha sido mal executado”. As complicações decorrentes da fratura na coroa do 1.2 têm como causas possíveis a falta de adesão às medidas terapêuticas instituídas e/ou secção da ponte, sendo improvável a ligação à colocação do implante pelas Rés; as do dente 1.5 decorrem de infeção do pilar, por eventuais defeitos da endodontia previamente realizada.

Consideremos, então, o problema de saber se, para a prova destes factos, se encontrava o tribunal a quo impedido de valorar outros elementos de prova que não o registo clínico, por ser este, na perspectiva do Recorrente, um documento com força probatória plena e o único meio de prova admissível à sustentação daquela factualidade.


5.2. No nosso sistema jurídico, o princípio da livre apreciação da prova cede perante as situações em que se exista prova legal - a confissão (art. 358.º, 1 do CC), a prova por documentos autênticos ou autenticados (arts. 371.º e 377.º do CC), a prova, em certas condições, por documentos particulares (art. 376.º, n.ºs 1 e 2 do CC) e o funcionamento de presunções legais.

Nos casos em que a lei associa a determinado documento uma determinada força probatória, deve o julgador respeitar essa força. A valoração do meio de prova é, em tais casos, fixada pela própria lei, devendo ser rigorosamente aplicada pelo julgador. A apreciação da questão da alegada violação do valor probatório de um documento constitui matéria de direito sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça nos termos da parte final do art. 674., n.º 3, do Código de Processo Civil.

No caso concreto, não subsistem dúvidas de que o “registo clínico” do paciente (correspondente ao doc. 1 junto com a contestação), elaborado e subscrito pela médica, a aqui 2.ª R. – e uma vez que não foi posta em causa a autoria do documento – constitui um documento particular cuja falsidade não foi invocada.

Confirmada a natureza do referido documento, há, pois, que determinar qual o valor das declarações aí inseridas e atribuídas à respectiva autora (valor probatório material), para efeitos de concluir pelo alcance do respectivo valor probatório final.

Dispõe o art. 376.º do Código Civil:

«1. O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.

2. Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão.

(...)».

Temos, pois, que, de acordo com a regra do n.º 1 do art. 376.º do CC, o documento particular prova plenamente que a pessoa a quem é atribuído fez as declarações dele constantes, isto é, prova a materialidade da declaração (cfr. artigo 376.º, n.º 1 do CC). Porém, tal força probatória plena não significa que os factos documentados sejam tidos como verdadeiros. Como afirma Luís Filipe Pires de Sousa (Direito Probatório Material, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, págs. 171-172):

«Provada a materialidade das declarações, há que aquilatar em que medida é que as declarações vinculam o seu autor. Ou seja, há que distinguir entre as regras que regem a eficácia da prova documental e as regras que dispõem sobre a eficácia da prova documental ‘em razão da declaração documentada’. Conforme refere Vaz Serra [Provas (Direito Probatório Material), 1962, p. 425], «A eficácia probatória diz respeito somente à materialidade das declarações neles feitas ou dos factos neles referidos, não aos efeitos jurídicos que essas declarações ou factos possam produzir. (...)».

E, mais à frente, afirma o mesmo autor (cit., pág.172):

«Em suma, a força probatória atribuída pelo artigo 376.º, n.º 1, reporta-se à materialidade das declarações documentadas e não à sua exatidão.

Saber se as declarações documentadas vinculam o seu autor é questão que não respeita à força probatória do documento mas sim à eficácia da declaração. As declarações só vinculam o seu autor se forem verdadeiras». [negrito nosso]

No mesmo sentido, ver, por exemplo, o acórdão deste Supremo Tribunal de 22.03.2018 (proc. n.º 120112/15.9YIPRT.P1.S1)[1], consultável em www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler, no que ora importa, o seguinte:

«III - Da demonstração da autoria de um documento particular não resulta necessariamente que os factos compreendidos nas declarações dele constantes se hajam de considerar provadas, posto que a força ou eficácia probatória plena atribuída às declarações documentadas se limita à sua existência, não abrangendo a sua exatidão (art. 376.º, n.º 1, do CC).».

Isto significa que, no que respeita à realidade dos factos afirmados, ou, para utilizar as palavras da lei, dos «factos compreendidos na declaração», vale a regra do n.º 2 do referido art. 376.º do CC, considerando-se tais factos provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante.

Restringindo, por sua vez, a admissibilidade da prova testemunhal, dispõe o art. 393.º, n.º 2 do CC:

«não é admitida prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena.».

O que se encontra em consonância com o regime do art. 364.º, n.º 1, do CC:

«Quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior.».

Tendo presente este enquadramento de ordem geral, passemos a apreciar o caso concreto.


5.3. O registo clínico (cfr. doc. 1 junto com a contestação) elaborado e subscrito pela médica dentista, ora Recorrida, constitui, como se afirmou supra, um documento particular, do qual consta informação sobre as observações clínicas relevantes do paciente, ora Recorrente, evolução do seu estado de saúde e procedimentos médicos adoptados.

É certo que se trata de um documento sujeito a regras próprias e cuja exigência se encontra prevista:

- Quer no Regulamento de Deontologia Médica, publicado em anexo ao Regulamento n.º 707/2016, de 21 de Julho, que estabelece, no seu art. 40.º, n.º 1, a obrigação de o médico proceder ao registo detalhado e claro das observações clínicas relevantes dos doentes a seu cargo:

«O médico, seja qual for o enquadramento da sua ação profissional, deve registar, de forma clara e detalhada, os resultados que considere relevantes das observações clínicas dos doentes a seu cargo, conservando-os ao abrigo de qualquer indiscrição, de acordo com as normas do segredo médico.».

- Quer no Código Deontológico da Ordem dos Médicos Dentistas, aprovado pelo Regulamento n.º 515/2019 de 18 de Junho, cujo artigo 30.º, n.º 5 estabelece o seguinte:

«O médico dentista deve criar e manter atualizada uma ficha clínica individual do doente, da qual conste, de forma detalhada, para além da identificação do médico dentista que realizou o tratamento, os dados pessoais, o histórico de saúde, as observações clínicas, o diagnóstico, o plano de tratamento e os tratamentos realizados, expressos sempre que possível tendo como referência a Tabela de Nomenclatura da OMD.».

Sucede, porém, que nenhuma das referidas normas determina que a ficha clínica ou o registo clínico do paciente constitui documento com força probatória plena quanto à observância ou inobservância das leges artis por parte do médico, conducente à impossibilidade de recorrer a outros meios de prova para apurar tal factualidade (cfr. arts. 364.º, n.º 1 e 393.º, n.º 1, do CC). Na verdade, aquelas normas deontológicas destinam-se, antes de mais, a assegurar que os médicos adoptem um método uniforme no que respeita ao registo dos seus procedimentos clínicos.

Assim, o respectivo valor probatório será apenas aquele que resulta das normas legais indicadas no ponto anterior do presente acórdão, aplicáveis aos documentos particulares, i.e., a força probatória atribuída a tal documento pelo art. 376.º, n.º 1 do CC reporta-se à materialidade das declarações documentadas, mas não à sua veracidade ou exactidão. Saber se o que está documentado ocorreu, de facto, é matéria que não se encontra abrangida pela força probatória do documento em causa, que, nessa parte, pode ser livremente apreciado pelo juiz.

Tanto quanto foi possível apurar, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça ainda não se pronunciou sobre a questão em causa. Em sede de alegações recursórias, invoca o Recorrente, a favor da sua posição, o acórdão da Relação de Lisboa de 28.04.2020 (proferido no processo n.º 1765/12.2TVLSB.L1-1, consultável em www.dgsi.pt). Compulsada, porém, a fundamentação deste acórdão, verifica-se que aí não se afirma que o registo clínico goza de força probatória plena quanto à observância das leges artis nos procedimentos descritos e adoptados pelo médico, mas tão somente que aquela documentação constitui um elemento de “prova essencial”, no sentido de ser muito relevante para a demonstração do ocorrido em determinada ocorrência hospitalar. E bem se compreende que assim seja, dado que, no contexto de acções de responsabilidade civil por alegada má prática médica, é sobretudo a partir do processo clínico do paciente que o tribunal poderá compreender os actos executados pelo médico, de modo a averiguar da existência, ou não, de conduta negligente.

No plano doutrinal, são escassas as referências concretas e expressas acerca do valor probatório a atribuir a esta específica documentação. A título exemplificativo, refira-se o trabalho de Bruna Maia Prinzo (A Prova da Responsabilidade Médica,[2] 2017, págs. 81-86), no qual, quanto ao valor probatório da ficha clínica em processo civil, se defende a aplicação das regras gerais relativas à valoração de documentos particulares simples, previstas no art. 376.º do CC, concluindo-se que:

« À ficha clínica assinada pelo médico e à qual o médico reconheça a sua autoria, nos termos do artigo 374.º, n.º 1 do C.C., é atribuída a força probatória plena relativamente às declarações emitidas por este, conforme disposto no n.º 1 do artigo 376.º, do C.C.; sendo que nos restantes casos, ou seja, declarações não assinadas, que não sejam do seu autor, o médico, ou que este não reconheça a autoria, são livremente apreciadas pelo juiz.». (cit., pág. 86)

Do que fica exposto, pode concluir-se que as normas invocadas pelo Recorrente, designadamente as normas constantes do Código Deontológico da Ordem dos Médicos Dentistas, não permitem excluir do regime de prova livre a valoração dos registos clínicos, apesar de o julgador dever atribuir a tal elemento documental um valor reforçado, na medida em que, necessariamente, constitui o ponto de partida da prova do facto, mas sem que, por isso, lhe seja vedado conjugar esses elementos com outros meios de prova, na medida em que aquelas normas legais nada determinam que permita concluir pela exclusão da atendibilidade de outros elementos de prova.

Entendemos, assim, que o tribunal recorrido não se encontrava impedido de recorrer a outros elementos de prova como forma de apurar a veracidade das declarações inseridas nos registos clínicos juntos aos autos, sendo certo que, no caso, não se aplica o comando estatuído no n.º 2 do artigo 376.º do CC, uma vez que o declarado em tal documento (cfr. doc. 1 junto com a contestação) não contém qualquer confissão escrita de factos desfavoráveis.

Conclui-se, assim, não se verificar a invocada violação de regras de direito probatório na fixação da factualidade dada como provada.

6. Consequentemente, inscrevendo-se a actividade de valoração dos depoimentos das testemunhas e dos documentos particulares, desprovidos de força probatória plena, no âmbito da livre apreciação da prova pelo tribunal a quo, tal como resulta do disposto no art. 396.º do Código Civil, e do art. 607.º, n.º 5, do Código de Processo, fica afastada a possibilidade de sindicância, por este Supremo Tribunal, de quaisquer juízos de valor acerca da livre convicção formada pelo Tribunal da Relação. Cfr., neste sentido, e a título exemplificativo, o acórdão do STJ de 23.04.2020 (proc. n.º 6640/12.8TBMAI.P2.S1)[3], disponível em www.dgsi.pt.

Encontrando-se a questão da (re)apreciação da decisão de direito dependente da pretendida alteração da decisão de facto, fica aquela questão prejudicada pela improcedência desta última pretensão.


7. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.

Custas no recurso pelo Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.


Lisboa, 21 de Abril de 2022


Maria da Graça Trigo (relatora)

Maria Rosa Tching

Catarina Serra

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[1] Relatado pela 1.ª Adjunta do presente colectivo.
[2] Disponível em http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/32548/1/ulfd134460_tese.pdf
[3] Relatado pela Cons. Rosa Tching, 1.ª Adjunta no presente acórdão.