Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2798/22.6T8GMR-F.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: INSOLVÊNCIA
NULIDADE DO CONTRATO
CANCELAMENTO
REGISTO
SIMULAÇÃO
CADUCIDADE
PRESCRIÇÃO
RESOLUÇÃO
LEI ESPECIAL
GARANTIA PATRIMONIAL
MASSA INSOLVENTE
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO
Data do Acordão: 09/23/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE
Sumário :
I. O regime especial/específico de conservação da garantia patrimonial da massa insolvente consagrado na lei insolvencial, concretizado pelo instituto de resolução em benefício da massa insolvente, previsto no art. 120º e ss. do CIRE, não afasta o regime geral dos mecanismos comuns de tutela da garantia patrimonial dos credores consagrados na lei geral, nomeadamente, a declaração de nulidade do ato praticado pelo devedor (art. 605º do CC), com fundamento em qualquer vício que a determine, inclusive a simulação absoluta (art. 240º do CC).

II. O regime específico consagrado no CIRE não afasta a possibilidade do AI, em representação da massa insolvente, e no interesse de todos os credores, pedir a declaração de nulidade de um ato praticado pelo devedor que se mostre inquinado, ab initio, de vício determinante daquela nulidade.

III. Em fase insolvencial, o AI não está limitado ao exercício da resolução do negócio em benefício da massa, para salvaguarda da garantia patrimonial da massa insolvente, podendo lançar mão dos meios comuns de tutela da garantia patrimonial dos credores consagrados na lei geral, especialmente quando o ato praticado pelo devedor o foi em período temporal que não se mostra abrangido na previsão da lei insolvencial, ou seja, fora do “período suspeito”.


IV. É ao A. que incumbe, no âmbito do princípio do dispositivo (art. 3º, nº 1, do CPC), escolher o tipo de ação que pretende intentar e o direito que pretende exercer, podendo um mesmo pedido ter por fundamento várias causas de pedir, não estando, é certo, o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito alegadas pelas partes (art. 5º, nº 3, do CPC).


V. Tendo o AI intentado uma ação declarativa de nulidade dos atos a que se reporta, com base em simulação absoluta, não são aplicáveis as normas especiais do CIRE, nomeadamente, a que prevê prazos de caducidade da ação (art. 123º do CIRE), mas as normas gerais, concretamente o art. 286º do CC (por força do disposto no art. 240º, nº 2, do CC).


VI. No art. 120º do CIRE não se estabelece qualquer prazo prescricional do direito a pedir a resolução do negócio em benefício da massa, mas prevê-se um período específico para a verificação da resolução, o denominado “período suspeito”.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

RELATÓRIO

Por apenso aos autos de insolvência de AA, declarada por sentença de 27.5.2022, veio a massa insolvente, em 23.05.2023, intentar contra Yardflowers, Lda., ação declarativa de condenação “Nulidade de Negócios Jurídicos”, pedindo que: - Se declare nulo e de nenhum efeito o contrato celebrado em 7 de Dezembro de 2016, formalizado por documento particular autenticado por BB, advogada, portadora da CP ...2P, com domicílio profissional no Largo 1, Lousada, mediante o qual a insolvente, declarada como tal em 27 de Maio de 2022, declarou vender à ré Yardflowers, Lda., que, por sua vez, declarou comprar àquela, pelo montante de €85.000,00, o prédio identificado no artigo 16º da petição inicial sob o n.º 1; - Se declare nulo e de nenhum efeito, o contrato celebrado em 1 de Abril de 2016, formalizado por documento particular autenticado por BB, advogada, portadora da CP...2P, com domicílio profissional em Largo 1, Lousada, mediante o qual a insolvente declarou vender a CC, que, por sua vez, declarou comprar àquela, pelo montante de €181.000,00, o prédio identificado no artigo 16º da petição inicial sob o n.º 2, comprador esse que, posteriormente, em 11 de Setembro de 2020, por contrato formalizado por documento particular autenticado por DD, advogado, portador da CP ....4P, com domicílio profissional em Largo 1, Lousada, declarou vendê-lo à ré Yardflowers, Lda., pelo montante de €185.000,00; - Se ordene o cancelamento dos registos efetuados com base nos aludidos atos e a apreensão dos prédios em causa para a massa insolvente de AA.

Fundamentou a sua pretensão na seguinte factualidade, em síntese:

A razão da insolvência da AA está no facto de a insolvente ter sido fiadora e avalista da empresa C..., Lda., declarada insolvente em 31.3.2016, e da qual era sócio o ex-cônjuge da insolvente, vindo a ser demandada em 3 ações executivas que os credores daquela empresa, Caixa Leasing e Factoring - Instituição Financeira de Crédito, S.A., Caixa Geral de Depósitos, S.A., e Novo Banco S.A., intentaram em 23.01.2016, 15.01.2017, e 27.02.2017, respetivamente, pelos valores de €317.039,09, €100.092,89, e €25.686,03, respetivamente.

Em 7.12.2016, a insolvente vendeu à R. a fração autónoma ... do prédio urbano denominado Edifício ..., sito na Rua 2, da união de freguesias de A-Ver-O-Mar, pelo preço de €86.300,00, tendo em 1.4.2016 vendido ao seu filho CC o prédio sito em Rua 3, Mesão Frio, 4810-229 Guimarães, pelo preço de €181.000,00, o qual, por seu turno, o veio a vender à R., em 11.9.2020, pelo preço de €185.000,00.

O valor das vendas ultrapassa em pouco os respetivos valores patrimoniais.

A insolvente foi sócia e gerente da R., tendo deixado de ser gerente em 31.7.2013, e em 29.5.2020 vendeu a sua quota à atual gerente da R., que é sua filha, vivendo ambas na mesma morada, no prédio vendido em 1.4.2016.

Por seu turno, em 29.5.2020, também o outro sócio-gerente da R. vendeu a sua quota ao filho da insolvente CC e renunciou à gerência.

A insolvente não recebeu da R. nem do CC qualquer quantia por conta das citadas vendas, nem a R. pagou o que quer que fosse ao CC como contrapartida da compra.

Nem a insolvente teve intenção de vender, nem a R. e o CC a intenção de adquirir, conluiados entre si, tiveram como única intenção e propósito impedir eventuais credores de obter a cobrança de seus créditos sobre a insolvente.

A R. contestou, pugnando pela improcedência da ação.

Na sequência de convite do tribunal, a A. deduziu incidente de intervenção principal de CC, como associado da R., o qual foi admitido.

Citado, o interveniente contestou, invocando, para além do mais, as exceções de ilegitimidade da autora, e de caducidade do direito à resolução dos negócios.

Foi proferido despacho saneador, no qual se julgaram improcedentes as invocadas exceções de ilegitimidade e caducidade.

Não se conformando com o teor da decisão, apelou o interveniente principal, tendo sido proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em 24.4.2024, que, por maioria, julgou a apelação improcedente e confirmou o despacho recorrido.

Inconformado, o interveniente principal interpôs recurso de revista, formulando, a final, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

1. O recorrido Acórdão é nulo por omissão de pronúncia.

2. Nas suas alegações de recurso, o Recorrente alegou a prescrição do direito de resolução dos atos em causa nos autos, a favor da massa insolvente.

3. Isto por que os atos em causa foram praticados fora do período temporal de dois anos anteriores à data do início da insolvência.

4. A nulidade por omissão de pronúncia está conexionada com os deveres de cognição do Tribunal, previstos no artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, no qual se estabelece que o juiz tem o dever de conhecer de todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação.

5. O tribunal deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e analisar todos os pedidos/pretensões pelas mesmas formulados.

6. Nessas pretensões inclui-se tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das exceções e da causa de pedir e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem.

7. o Recorrente incluiu no objeto do seu recurso de Apelação a questão da prescrição do direito de resolução e esta questão, por dizer respeito à concludência ou inconcludência de exceções, faz parte do elenco de pretensões processuais que exigem uma decisão do julgador.

8. Não tendo conhecido desta questão, o Acórdão de que se recorre é nulo, nos termos do disposto no artigo 615º nº 1 alínea d) do C. P. Civil, aplicável aos Acórdãos por remissão do artigo 666º nº 1 do mesmo diploma legal.

9. Da leitura da petição inicial resulta que apenas formalmente se apela à simulação, já que resulta claro, da matéria de facto alegada e dos pedidos formulados, que a A. pugna pela resolução em benefício da massa insolvente dos contratos de compra e venda descritos nos autos.

10. O nosso legislador - artigos 120° a 126° do CIRE- optou claramente por consagrar um regime específico de conservação da garantia patrimonial da massa insolvente: o instituto da resolução de negócios em benefício da massa insolvente.

11. A resolução em causa, como dispõe o artº 123, nº 1 do CIRE pode ser efetuada pelo administrador da insolvência por carta registada com aviso de receção (admitindo-se que o pedido de resolução possa ser concretizado por meios judiciais) nos seis meses seguintes ao conhecimento do ato, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência.

12. A Srª. Administradora da Insolvência, no seu relatório elaborado nos termos do artº 155º do CIRE, a 19 de julho de 2022 já mencionava os negócios aqui em causa.

13. Nesse relatório juntou certidões prediais datadas de 06/07/2022.

14. Tendo a presente ação dado entrada em juízo a 23 de maio de 2023, é manifesto ter caducado o direito a resolver estes negócios.

15. A caducidade é uma exceção perentória, que implica a absolvição do pedido (artigo 576º nº 3 do C. P. Civil.)

16. O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

17. A factualidade alegada na petição inicial e os pedidos nela formulados não podem dissociar-se do regime específico consagrado na lei para a conservação da garantia patrimonial da massa insolvente, ou seja, o instituto da resolução de negócios em benefício da massa insolvente.

18. A pretensão da autora está, in casu, necessariamente sujeita àquele enquadramento legal e ao seu regime específico. Ex adverso, estaria descoberto o procedimento adequado nomeadamente para obstaculizar os efeitos do decurso do prazo de caducidade.

19. Não faria sentido estabelecer-se um prazo de caducidade tão limitado no artigo 125º, do CIRE, se o administrador tivesse a via alternativa de reação através de ação de simulação.

20. A Senhora Administradora não resolveu os negócios por negligência ou porque se conformou com o facto de não haver autorização da assembleia de credores, tendo deixado decorrer o prazo de caducidade e agora pretende contornar as consequências, apelando a um mecanismo que pode ser invocado a todo o tempo.

21. O legislador quis restringir os meios de que a Massa pudesse lançar mão com a contrapartida de lhe dar um instrumento fortíssimo para acautelar os credores no âmbito do que houvesse para acautelar: a resolução em benefício da Massa.

22. Esta resolução goza ainda por cima de várias presunções legais previstas no CIRE.

23. A urgência na resolução das questões insolvenciais consagrada no artº 9º do CIRE é pedra angular de toda a política legislativa insolvencial e não é compaginável com o regime da nulidade, invocável a todo o tempo.

24. Esgotado o prazo de caducidade previsto no CIRE para a utilização de medidas conservatórias de património, não era possível à A. lançar mão dos presentes autos.

25. A caducidade é uma forma de extinção de direitos e implica absolvição da instância nas ações judiciais.

26. Nos termos do artigo 120º do CIRE, só são impugnáveis os negócios praticados dentro de dois anos anteriores à data do início da insolvência.

27. Os negócios que por esta via se tentam impugnar foram praticados em 7 de dezembro de 2016 e 1 de abril de 2016, respetivamente, ou seja, fora do período temporal de dois anos anteriores à data do início da insolvência, que ocorreu a 27/05/2022.

28. Este prazo de dois anos é um prazo prescricional, tal como definido no artigo 298º do C. Civil.

29. A prescrição é uma exceção perentória cuja verificação determina a absolvição do pedido nas ações judiciais.

30. Ao não tomar conhecimento da alegação de prescrição do direito, o Tribunal de que se recorre violou os seus deveres de cognição, previstos no artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

31. - Ao decidir que não caducou o direito de resolução a favor da massa insolvente, porque a ação foi intentada ao abrigo das normas gerais do Código Civil, quanto à simulação, o Acórdão recorrido violou o princípio jurídico que dispõe que a lei especial revoga a lei geral.

32. Violou ainda essa mesma lei especial, o CIRE, que no seu artigo 123º estabelece um prazo de caducidade de seis meses para a instauração da ação, contado a partir do conhecimento do ato impugnável.

33. - Ao não decretar a prescrição do direito, desconsiderou o douto Acórdão recorrido o disposto no artigo 120º do CIRE.

Termina pedindo que se decrete a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia, se decrete a procedência da invocada exceção de prescrição, com a sua consequente absolvição do pedido, ou, caso assim não se entenda, se decrete a procedência da invocada exceção de caducidade, com a sua consequente absolvição da instância.

A A. contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões:

A. O recurso apresentado pelo recorrente tem por objeto i) a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia; ii) a caducidade do direito de resolução em benefício da massa insolvente, porquanto foi intentada pela administradora de insolvência a ação nos presentes autos, volvidos mais de seis meses sobre a data em que a administradora de insolvência teve conhecimento dos negócios impugnados; e iii) a prescrição do direito de resolução, nos termos do artigo 120º do CIRE, porquanto os negócios que por via da ação se tentam impugnar, foram praticados fora do período temporal de dois anos anteriores à data do início da insolvência, o que aliás a autora sabe e reconhece (artigo 19 da p. i.);

B. Entende o recorrente que houve omissão de pronúncia por parte da Relação quanto à questão da prescrição do direito de resolução e que por essa razão o acórdão recorrido é nulo;

C. E quanto à segunda e terceira questão, o recorrente limitou-se a reproduzir ipsis verbis as alegações que havia anteriormente apresentado em sede de recurso do despacho saneador proferido pelo tribunal de 1ª instância;

D. Não trazendo nada de novo a este digníssimo tribunal;

E. Pretendendo unicamente uma nova apreciação por esse digníssimo Supremo Tribunal de Justiça, isto porque, verificou-se a existência de voto vencido no acórdão recorrido;

F. Não tem, no entanto, o recorrente qualquer razão para apresentar tal recurso;

G. Desde logo, não existiu qualquer omissão de pronúncia relativamente à questão da prescrição do direito de resolução;

H. Basta para isso atentar no acórdão recorrido a partir do 3º parágrafo da página 7 que, sem margem para dúvidas, a Relação pronunciou-se sobre aquela questão;

I. Concretamente, de que tal prescrição não se verifica, porquanto, reproduzindo, a presente ação, tal como foi configurada na petição inicial, não visa a resolução em benefício da massa insolvente, mas antes a declaração de nulidade dos atos a que se reporta com base em simulação absoluta;

J. Acrescentando ainda que, de acordo com a posição que saiu vencedora, nada impede que, apesar do disposto no artigo 120º e seguintes do CIRE, onde se prevê um regime simplificado e expedito de recuperação das atribuições patrimoniais correspondentes a atos praticados pelo devedor no período suspeito anterior à declaração de insolvência, o administrador da insolvência intente uma ação de declaração de nulidade de negócios celebrados pelo insolvente;

K. O recurso interposto pelo recorrente, é, salvo o devido respeito, manifestamente, insubsistente e inconsistente;

L. Com efeito, as alegações do recurso oferecidas pelo recorrente em nada perturbam a bondade e o mérito do acórdão recorrido;

M. Sobre o mesmo recaiu a justa e adequada aplicação do direito.

N. A sua fundamentação é, a este respeito, modelar;

O. Posto isto, a recorrida subscreve integralmente a posição vertida pelo tribunal a quo quanto à questão i) da caducidade do direito de resolução em benefício da massa insolvente, e, ii) a prescrição do direito de resolução.

O tribunal recorrido proferiu acórdão em conferência, pronunciando-se pela improcedência da nulidade invocada.

QUESTÕES A DECIDIR

Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões do recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões que se colocam são:

a) a nulidade do acórdão recorrido;

b) a caducidade do direito de resolução em benefício da massa insolvente, porquanto a ação foi intentada pela AI volvidos mais de seis meses sobre a data em que esta teve conhecimento dos negócios impugnados;

c) a prescrição do direito de resolução, nos termos do artigo 120º do CIRE, porquanto os negócios que por via da ação se tentam impugnar, foram praticados fora do período temporal de dois anos anteriores à data do início da insolvência.

Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O tribunal recorrido teve como factos relevantes o constante do relatório do respetivo acórdão, e, ainda, que:

- Por mail de 19 de julho de 2022, a Senhora Administradora da Insolvência solicitou aos credores, assim como à devedora, que se pronunciassem sobre a eventual resolução dos negócios impugnados em benefício da massa insolvente.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

O processo em que foi proferida a decisão recorrida foi processado por apenso ao processo de insolvência de AA.

Ao presente recurso de revista não é aplicável o art. 14º do CIRE, por não se integrar na sua previsão legal, sendo-lhe aplicáveis as normas do CPC sobre recursos (art. 17º do CIRE).

O acórdão recorrido, confirmou a sentença recorrida, mas foi tirado por maioria com vencimento do relator.

Assim sendo, não se verifica uma situação de dupla conforme (art. 671º, nº 3, do CPC).

Por outro lado, o acórdão do Tribunal da Relação conheceu do mérito da causa, ao conhecer da exceção perentória de caducidade (neste sentido, cfr. Abrantes Geraldes, em Recursos em Processo Civil, 7ª ed. atualizada, 2022, págs. 403/404).

O recurso de revista é, assim, admissível.

*

1. A Recorrente invoca a nulidade do acórdão recorrido, nos termos do disposto no art. 615º, nº 1, al. d), do CPC, por ter omitido pronúncia sobre a exceção perentória de prescrição do direito da A. que invocou na apelação, tendo em conta que, atento o disposto no art. 120º do CIRE, os negócios que por via da ação se tentam impugnar, foram praticados fora do período temporal de dois anos anteriores à data do início da insolvência.

Dispõe o art. 615º, nº 1, al. d), do CPC que a sentença (acórdão) é nula quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar.

A nulidade referida está em correspondência direta com a primeira parte do nº 2 do art. 608º do CPC, onde se impõe ao juiz o dever de resolver todas as questões que as partes tiverem submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, resultando a nulidade em causa da infração do referido dever.

É certo que, ao fixar o objeto do recurso, o Tribunal da Relação de Guimarães enunciou, apenas, como questões a apreciar as exceções de ilegitimidade da autora e de caducidade do direito de ação.

Não menos certo é, porém, que, ao entender que “a presente ação, tal como foi configurada na petição inicial, não visa a resolução em benefício da massa insolvente (4), mas antes a declaração de nulidade dos atos a que se reporta com base em simulação absoluta”, a tal não obstando o disposto no art. 120º e ss. do CIRE, deixava de estar em causa apreciar a invocada exceção de prescrição com base no regime daquele art. 120º do CIRE.

Ou seja, a apreciação de tal questão ficou prejudicada a partir do momento em que o tribunal recorrido seguiu enquadramento jurídico distinto do sustentado pela apelante, e no âmbito do qual tal questão não se colocava.

O acórdão recorrido não padece, pois, da invocada nulidade.

2. Apreciando a exceção de caducidade invocada, o tribunal de 1ª instância decidiu que a mesma não se verificava, porquanto entendeu que a ação não tinha sido intentada ao abrigo das normas do CIRE, nomeadamente do art. 120º ou 121º, pelo que os prazos ali previstos para a resolução do negócio não tinham aplicação, antes estando em causa a aplicação dos arts. 240º e 286º do CC.

Entendimento que foi sufragado pelo Tribunal da Relação de Guimarães (por maioria), com a seguinte fundamentação: “Sustenta ainda o recorrente que o direito de resolução em benefício da massa insolvente caducou, porquanto a presente ação foi intentada volvidos mais de seis meses sobre a data em que a Senhora Administradora da Insolvência teve conhecimento dos negócios impugnados. E, efetivamente, sob a epígrafe “Forma de resolução e prescrição do direito” (3), estabelece o artigo 123º do CIRE, no seu n.º 1, que “A resolução pode ser efetuada pelo administrador da insolvência por carta registada com aviso de receção nos seis meses seguintes ao conhecimento do ato, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência”. Sucede, porém, que a presente ação, tal como foi configurada na petição inicial, não visa a resolução em benefício da massa insolvente (4), mas antes a declaração de nulidade dos atos a que se reporta com base em simulação absoluta. Ora, de acordo com a posição que saiu vencedora, nada impede que, apesar do disposto no artigo 120º e seguintes do CIRE, onde se prevê um regime simplificado e expedito de recuperação das atribuições patrimoniais correspondentes a atos praticados pelo devedor no período suspeito anterior à declaração de insolvência, o administrador da insolvência intente uma ação de declaração de nulidade de negócios celebrados pelo insolvente. Pressupondo, tal como a impugnação pauliana, a validade do negócio impugnado (5), a resolução em benefício da massa insolvente, mesmo nos casos de resolução incondicional contemplados no artigo 121º do CIRE, é, evidentemente, menos vantajosa do que uma ação em que se peça a declaração de nulidade desse negócio por simulação absoluta. Com efeito, esta, a proceder, implica a restituição do bem transmitido sem qualquer contrapartida a cargo da massa insolvente, enquanto que os efeitos daquela são muito mais limitados, implicando a restituição do objeto prestado pelo terceiro, se puder ser identificado e separado dos que pertencem à parte restante da massa, ou a obrigação de restituir o valor correspondente, nos termos previstos nos números 4 e 5 do artigo 126º do CIRE. Acresce que, não sendo proibida pelo CIRE, a ação concretamente intentada pela Senhora Administradora da Insolvência, definida pelo pedido e pela causa de pedir, é a adequada a fazer reconhecer em juízo o direito à declaração de nulidade dos negócios celebrados pela insolvente, pelo que é de admitir ao abrigo do artigo 2º, n.º 2 do Código de Processo Civil, segundo o qual “A todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo (…)”. Importa ainda de salientar que o administrador da insolvência é interessado para efeitos do artigo 286º do Código Civil, pelo que tem legitimidade para invocar a nulidade e pode fazê-lo a todo o tempo, sem sujeição aos prazos apertados previstos no artigo 123º do CIRE. É esse o entendimento maioritário da jurisprudência, sufragado, entre outros, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/11/2023 (proc. n.º 174/20.0T8STS-F.P1.S1), relatado por António Barateiro Martins, e no acórdão desta Relação de 17/10/2019 (proc. n.º 2124/17.6T8VCT.G1), relatado por Ana Cristina Duarte, ambos disponíveis em www.dgsi.pt. …”.

Discorda o Recorrente do decidido, invocando que da leitura da PI resulta que apenas formalmente se apela à simulação, já que resulta claro, da matéria de facto alegada e dos pedidos formulados, que a A. pugna pela resolução em benefício da massa insolvente dos contratos de compra e venda descritos nos autos.

Na verdade, a A. invoca a existência de simulação, para sustentar a prejudicialidade dos atos em relação à massa e formula a pretensão de obter a reintegração no património da insolvente dos bens que responderiam pelas dívidas desta e assim, acautelar os interesses da generalidade dos credores.

A causa de pedir nos presentes autos é a matéria caracterizadora duma resolução em benefício da massa insolvente e, assim sendo, a pretensão da A. está sujeita ao enquadramento legal específico do instituto da resolução de negócios jurídicos em benefício da massa insolvente.

O nosso legislador, no Capítulo V do Título IV do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) - artigos 120° a 126° - optou claramente por consagrar um regime específico de conservação da garantia patrimonial da massa insolvente: o instituto da resolução de negócios em benefício da massa insolvente.

Salvo o devido respeito por opinião contrária, não sufragamos tal entendimento.

Desde logo, porque o regime especial/específico de conservação da garantia patrimonial da massa insolvente consagrado na lei insolvencial, concretizado pelo instituto de resolução em benefício da massa insolvente, previsto no art. 120º e ss. do CIRE, não afasta o regime geral dos mecanismos comuns de tutela da garantia patrimonial dos credores consagrados na lei geral (neste sentido, se pronunciam Carvalho Fernandes e João Labareda, em CIRE Anotado, 3ª ed., 2015, pág. 500), nomeadamente, a declaração de nulidade do ato praticado pelo devedor (art. 605º do CC), com fundamento em qualquer vício que a determine, inclusive a simulação absoluta (art. 240º do CC).

Isso mesmo foi afirmado no Ac. do STJ de 2.11.2023, P. n.º 174/20.0T8STS-F.P1.S1 (António Barateiro Martins), em www.dgsi.pt, referido no acórdão recorrido, “… não resulta de quaisquer disposições introduzidas pelo CIRE que o AI não possa invocar e pedir que negócios nulos praticados pelo devedor/insolvente sejam assim declarados com todas as consequências legais. O CIRE dá, muito claramente, prevalência à resolução declarada pelo AI, mas tal não significa, pese embora tal prevalência, que um negócio do insolvente infetado com vícios geradores de nulidade não possa ser atacado pelo AI. Um negócio nulo – nulidade que, todos o sabemos, é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e que pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal (cfr. 286.º do C. Civil) – não deixa de o ser por um dos contraentes ter sido declarado insolvente.” 1.

O regime específico consagrado no CIRE não afasta a possibilidade do AI, em representação da massa insolvente, e no interesse de todos os credores, pedir a declaração de nulidade de um ato praticado pelo devedor que se mostre inquinado, ab initio, de vício determinante daquela nulidade, especialmente se o AI não puder lançar mão do referido meio insolvencial especial, por não ter o ato sido praticado no limite temporal aí consagrado.

Em termos que sufragamos, Marisa Vaz Cunha, em Garantia Patrimonial e Prejudicialidade, Um Estudo sobre a Resolução em Benefício da Massa, 2017, págs. 121/122, escreve que “… a resolução em benefício da massa é um mecanismo especial de proteção da garantia patrimonial, inserido no Direito Insolvencial, um Direito especial face ao Direito Civil, e por conseguinte, com uma finalidade orientada de acordo com os princípios que lhe estão subjacentes: a satisfação do interesse dos credores e a par conditio creditorum. Destina-se a tutelar os direitos dos credores, restabelecendo a igualdade quebrada com a prática de atos prejudiciais. Identifica-se aqui uma dupla finalidade: reconstruir o património do devedor e restabelecer a igualdade entre os credores. … No entanto, o facto de constituir um mecanismo especial não significa que afaste os restantes. Parece-nos que a resolução em benefício da massa, por ter pressupostos específicos e absorvendo, como veremos, os meios de conservação patrimonial, constitui um mecanismo de exercício exclusivo no prazo previsto na lei. Ainda assim, pensamos que não afasta os restantes meios de conservação de garantia patrimonial, que, na insolvência, se assemelharão à função de resolução em benefício da massa. Com efeito, os meios de proteção de garantia patrimonial convivem entre si, operando os meios de conservação quando a resolução não for já possível. Como veremos, seria injusto retirar aos credores direitos resultantes da responsabilidade patrimonial do devedor, numa fase em princípio final da satisfação dos respetivos créditos. Por isso, deverá admitir-se o exercício dos meios de conservação da garantia patrimonial quando a resolução em benefício da massa não for já possível.”. E na pág. 318, densifica este entendimento, escrevendo “Poderemos concluir que um dos pressupostos basilares da insolvência é que, face ao contexto de impossibilidade de cumprimento, os direitos dos credores não sejam coartados nem restringidos, apesar das novas circunstâncias do devedor. Aliás, podendo esta ser a última fase de garantia dos créditos, é de imperiosa justiça garantir que todos os direitos que os credores podiam exercer quando o devedor ainda se encontrava solvente possam ser exercidos na insolvência, independentemente do procedimento e da legitimidade. Por conseguinte, este instituto não poderá substituir-se aos restantes meios de salvaguarda da garantia patrimonial, implicando a preclusão do seu exercício. Pelo contrário, a resolução assume a função específica dos restantes meios de salvaguarda na insolvência, durante determinado período e de acordo com os seus pressupostos, permitindo, no entanto, que aqueles sejam acionados mesmo quando já não é possível exercer o direito previsto nos artigos 120º e seguintes. Fora dos casos abrangidos nestes artigos, os direitos dos credores poderão ser exercidos nos termos gerais de Direito, mesmo no contexto da insolvência. A diferença substancial é que passou de um exercício individual para um exercício coletivo, o que implicará um diferente entendimento no que respeita à legitimidade.”.

Ao contrário do que sustenta o Recorrente, em fase insolvencial, o AI não está limitado ao exercício da resolução do negócio em benefício da massa, para salvaguarda da garantia patrimonial da massa insolvente, podendo lançar mão dos meios comuns de tutela da garantia patrimonial dos credores consagrados na lei geral, especialmente quando o ato praticado pelo devedor o foi em período temporal que não se mostra abrangido na previsão da lei insolvencial, ou seja, fora do “período suspeito”.

Não está em causa qualquer negligência do AI por não ter, tempestivamente, lançado mão daquele mecanismo específico previsto no CIRE e que, por via desta ação, pretenda “tornear”, mas a impossibilidade de lançar mão do referido mecanismo por não estarem preenchidos os respetivos pressupostos, nomeadamente, o temporal 2.

E, nessas circunstâncias, o AI pode lançar mão dos meios comuns de garantia patrimonial, alegando a respetiva factualidade integradora, e pedindo a nulidade do ato.

E foi isso que a A. fez, como concluíram as instâncias.

A presente ação tem de ser analisada e apreciada tal como foi configurada na PI – nesta são invocados vícios geradores de nulidade (simulação), e, a final, pede-se que seja declarada a nulidade dos negócios jurídicos em causa.

Nela não se invocou nem pediu a resolução em benefício da Massa Insolvente, ainda que os factos alegados o possam, também, ser no âmbito de uma ação de resolução em benefício da massa insolvente, e sem prejuízo do fim pretendido ser, igualmente, a reintegração do imóvel na massa insolvente.

É ao A. que incumbe, no âmbito do princípio do dispositivo (art. 3º, nº 1, do CPC), escolher o tipo de ação que pretende intentar e o direito que pretende exercer 3, podendo um mesmo pedido ter por fundamento várias causas de pedir, sendo certo que o tribunal não está sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito alegadas pelas partes (art. 5º, nº 3, do CPC).

Como se escreveu no suprarreferido Ac. do STJ de 2.11.2023, “A liberdade de apreciação da matéria de direito por parte do juiz –pese embora o modo amplo como, no art. 5.º/3 do CPC, se diz que “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” – tem limites, como sejam os que decorrem do princípio do dispositivo (art. 3.º/1 do CPC), do princípio do contraditório (art 3.º do CPC), do princípio da estabilidade da instância (arts. 264.º e 265.º do CPC), das regras da preclusão (art. 573.º do CPC) ou do princípio do pedido (art. 609.º do CPC), limites que são ultrapassados quando, pela referida requalificação oficiosa, se opera uma verdadeira transmutação processual.”.

No caso sub judice, a A. alegou factualidade integradora de simulação dos negócios praticados pela insolvente, e pediu, a final, a declaração de nulidade dos mesmos, estando em causa uma ação declarativa de nulidade dos atos a que se reporta, com base em simulação absoluta, e não uma ação de resolução em benefício da massa insolvente.

Nesta conformidade, não lhe são aplicáveis as normas especiais do CIRE, nomeadamente, a que prevê prazos de caducidade da ação (art. 123º do CIRE), mas as normas gerais, concretamente o art. 286º do CC (por força do disposto no art. 240º, nº 2, do CC), que estipula que a nulidade é invocável a todo o tempo e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal, o que afasta a invocada exceção de caducidade da ação.

Por outro lado, também não ocorre qualquer prazo de prescrição do direito, ao abrigo do disposto no art. 120º do CIRE, quer porque tal normativo legal não é aplicável à presente ação, como já sobejamente explicado, quer porque no mesmo não se estabelece qualquer prazo prescricional do direito, mas prevê-se um período específico para a verificação da resolução, o denominado “período suspeito” – “o momento da prática dos atos constitui um indício forte da existência de um prejuízo para os credores e, portanto, para a sua qualificação como ato prejudicial.” (Marisa Vaz Cunha, ob. cit., págs. 125/126).

Em conclusão, nenhuma censura merece a decisão recorrida, que se mantém, negando-se provimento ao recurso de revista.

As custas, na modalidade de custas de parte, são a cargo do Recorrente, por ter ficado vencido – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes da 6ª secção do Supremo Tribunal de Justiça em negar revista, mantendo a decisão recorrida.

Custas nos termos referidos.

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Lisboa, 2025.09.23

Cristina Coelho (Relatora)

Ricardo Costa

Rosário Gonçalves


SUMÁRIO (da responsabilidade da relatora):

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1. Perfilha-se tal entendimento no voto de vencido (“Não está em causa a bondade do argumentado sobre a legitimidade do administrador de insolvência (AI) para, em representação da massa insolvente, arguir a ineficácia de negócios jurídicos (nulidade, anulação, ineficácia relativa) do insolvente (1), nem a autonomia nesta ação do respetivo pedido e sua causa de pedir.”), subscrito pelo, ora, 1º adjunto.↩︎

2. Sendo, pois, irrelevante, que a AI tenha equacionado a propositura da ação de resolução em benefício da massa, como o demonstra a factualidade dada como provada referente ao mail de 19 de julho de 2022, no qual solicitou aos credores, assim como à devedora, que se pronunciassem sobre a eventual resolução dos negócios impugnados em benefício da massa insolvente.↩︎

3. Cfr. Abrantes Geraldes, em Temas da Reforma do Processo Civil, I Vol., 2ª ed. revista e ampliada, pág. 190.↩︎