Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
17359/17.3T8PRT-A.P1-A.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: COMPETÊNCIA
QUEBRA DO SIGILO BANCÁRIO
Data do Acordão: 09/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO N- ARTº 643 CPC
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / DECISÕES QUE COMPORTAM RECURSO.
Doutrina:
- Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 3.ª edição, p. 829 e 830.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 671.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 12-07-2005, PROCESSO N.º 05B1901, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 17-06-2010, CJSTJ, TOMO II, P. 113;
- DE 05-07-2018, PROCESSO N.º 842/11.1TBVNO-B.E1-A.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I - A circunstância do tribunal competente para decidir sobre a quebra do sigilo ser o tribunal superior àquele onde o incidente é suscitado não transforma tal incidente numa causa autónoma.

II – Deste modo, a admissibilidade do recurso para o Supremo terá que ser equacionada á luz do art. 671.º do CPCivil (recurso de revista), e não à luz do recurso de apelação.

III - A lei assim interpretada não padece de inconstitucionalidade.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), notificada que foi da decisão do relator neste Supremo que julgou improcedente a reclamação que apresentou contra a decisão do relator que, na Relação do Porto, não admitiu o recurso de apelação que ali interpôs, vem requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão.

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Não se mostra oferecida resposta à reclamação, mas o Autor AA veio dizer “que se revê inteiramente nos fundamentos da douta decisão singular, nada mais tendo a acrescentar”.

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A decisão do relator neste Supremo é do seguinte teor:

«Movemo-nos no âmbito do incidente (como tal qualificado inclusivamente pela lei, art. 135.º, n.ºs 2 e 3 do CPPenal) de escusa em decorrência de sigilo profissional.

Este incidente compõe-se de três momentos processuais: o primeiro consiste na invocação da escusa, o segundo na verificação da legitimidade ou ilegitimidade da escusa e o terceiro (concluindo-se pela legitimidade da escusa) na decisão sobre a dispensa do dever de sigilo. A circunstância do tribunal competente para decidir sobre a quebra do sigilo ser o tribunal superior àquele onde o incidente é suscitado não transforma o incidente numa causa autónoma.

Deste modo, não pode ser subscrita a conveniente tentativa da Reclamante em direcionar o recurso que interpôs para uma apelação, de forma a dar respaldo à admissibilidade do recurso.

Não porque, bem entendido, não possa haver recurso de apelação para o Supremo de um acórdão da Relação (diz bem a Reclamante quando diz que o recurso de apelação é independente da natureza hierárquica do tribunal, tendo por objeto as decisões proferidas em primeira instância, e daqui que se a Relação funciona como tribunal de primeira instância, o recurso para o Supremo é, salvo estipulação da lei em sentido diverso, de apelação e não de revista[1]).

Mas sim, porque se está perante um recurso de decisão proferida no âmbito de um incidente da causa. E não perante uma causa autónoma decidida em primeira instância pela Relação. Logo, a admissibilidade do recurso para o Supremo tem que ser equacionada á luz do art. 671.º do CPCivil (recurso de revista), e não à luz do recurso de apelação.

Ora, a decisão recorrida apreciou uma decisão interlocutória que recaiu sobre a relação processual. Como nos diz, crê-se que também com utilidade para o caso, Abílio Neto (Novo Código de Processo Civil Anotado, 3ª ed., pp. 829 e 830) «A locução “decisões interlocutórias” (…) abarca as decisões judiciais que não põem fim ao processo, ou, dito de outro modo mais rigoroso, que, embora apreciando questões autónomas, não extinguem a instância. Não se trata de decisões finais, mas, antes, de decisões intercaladas, que tanto podem decidir questões de forma como questões de índole material. Em suma, abrange qualquer questão de natureza incidental que surja no decorrer do processo.» Julga-se ser o que se passa na hipótese aqui sujeita.

E, sendo assim, como efetivamente é, aplica-se ao caso o n.º 2 do art. 671.º do CPCivil, não havendo que trazer à colação o que quer que seja que tenha a ver com o recurso de apelação.

É certo que a letra dessa norma aponta para a apreciação de uma decisão interlocutória da 1ª instância, decisão esta que no caso inexiste (a decisão da Relação foi proferida ex novo, e não por via de um recurso sobre uma prévia decisão da 1ª instância).

Porém, é preciso ter presente aquilo que se julga ser o definitivo espírito da lei. A lei entende que em matéria de decisões interlocutórias que recaiam sobre a relação processual não se justifica ir para além do tribunal da Relação, de modo que não é admitida a intervenção do grau superior à Relação (o Supremo).

Note-se que, diferentemente do que parece pensar a Reclamante, irreleva em absoluto para o caso que haja ou não dupla conforme. O n.º 2 do art. 671º parece ser bem claro sobre isso. O que é fundamental não é que tenha havido uma apreciação sucessiva da mesma questão, mas sim que a Relação se tenha pronunciado, sendo definitivo esse pronunciamento (salvas as exceções legais previstas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do art. 671.º, mas que aqui não concorrem e que, de resto, nem sequer foram invocadas pela Recorrente).

E isso cumpre-se no caso vertente.

Mas mesmo que assim se não vejam as coisas, sempre se afigura que o n.º 2 do art. 671.º do CPCivil deve ser interpretado extensivamente, de forma a abranger na sua previsão a hipótese aqui em causa.

É que estamos perante uma hipótese de decisão interlocutória sui generis, proferida no contexto de um incidente compósito (no sentido de participarem nele duas instâncias) suscitado para todos os efeitos na 1ª instância, formado pelos supra citados três momentos, e sobre que recaiu o pronunciamento do tribunal de 2º grau (a Relação). Nestas circunstâncias, a lógica aponta para que aquela norma deva ser interpretada no sentido de abarcar os acórdãos da Relação que decidam o que lhes compete decidir no contexto desse incidente compósito.

Neste Supremo Tribunal de Justiça já se decidiu (acórdão de 5 de julho de 2018, processo n.º 842/11.1TBVNO-B.E1-A.S1, relator Abrantes Geraldes, disponível em www.dgsi.pt) de forma a recusar a admissibilidade de recurso para o Supremo do acórdão da Relação que se pronunciou sobre a quebra do sigilo profissional. Aí se mostra escrito, e subscreve-se, que:

“A delimitação do recurso de revista é regulada pelo art. 671º do CPC, norma da qual não deriva a possibilidade de ser impugnada por essa via o acórdão da Relação proferido no âmbito de um qualquer incidente da instância (…).

Não existe motivo algum para excecionar desse regime o incidente de quebra de sigilo, como, aliás, tem sido uniformemente decidido por este mesmo Supremo Tribunal de Justiça, sendo disso exemplos os Acs. de 17-6-10, CJ, t. II, p. 113 e de 12-7-05, 05B1901, www.dgsi.pt. O mesmo se decidiu também, num caso que foi suscitado no âmbito de processo penal, na decisão sumária de 16-10-14, 1233/13, www.dgsi.pt.

Efetivamente a quebra de sigilo requerida no âmbito de qualquer processo é requerida perante a Relação, nos termos do art. 417º, nº 4, do CPC, por via do regime previsto no art. 135º do CPP.

Mas não passa de um incidente inscrito no âmbito da instrução da causa (…).

Contra o decidido, argumentam os reclamantes que a decisão da Relação que foi proferida em torno da quebra do sigilo bancário é uma decisão de 1ª instância, admitindo, por isso, recurso.

Trata-se de um argumento que não encontra cobertura legal, não havendo motivo para amplificar, por essa via, o preceituado no art. 671º do CPC acerca dos acórdãos que admitem ou não admitem recurso.

Por certo que o recurso de revista nestas situações não está totalmente vedado, mas tal depende da integração em alguma das previsões do art. 629º do CPC, sendo que os reclamante não invocaram nenhuma dessas situações.”

Do que fica exposto resulta, pois, que o recurso de apelação que a ora Reclamante interpôs para este Supremo não podia ser admitido. Da mesma forma que resulta que o recurso que seria cabido, o de revista, não é admissível, isto por força do disposto no n.º 2 do art. 671.º do CPCivil.

Diz a Reclamante, todavia, que “o entendimento segundo o qual não deve ser admitido o presente recurso por se considerar que a decisão do Tribunal da Relação do Porto que quebra o segredo profissional invocado nos termos do artigo 135.º do CPP é irrecorrível pode julgar-se inconstitucional por violação do disposto no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 ca CRP” e que “para os devidos efeitos legais, se invoca, expressamente e desde já, a inconstitucionalidade das normas contidas nos n.ºs 3 e 4 do artigo 135.º do Código de Processo Penal na interpretação segundo a qual a decisão do Tribunal da Relação do Porto que quebra o segredo profissional invocado nos termos do artigo 135.º é irrecorrível, por violação do disposto no artigo 20.º, n.ºs 1 e 2 ca CRP”.

A verdade é que, fora do direito penal, não resulta da Constituição da República nenhuma garantia genérica de direito ao recurso das decisões judiciais. Por outro lado, o princípio constitucional do acesso ao direito e à justiça não implica por si só o direito ao recurso, sendo também certo que não existe disposição expressa na Constituição que estabeleça o direito de recurso em processo civil. O legislador apenas não poderá suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer. A Constituição da República pressupõe da lei ordinária o estabelecimento de um sistema de recursos em matéria cível, mas não garante um direito irrestrito ao recurso. E muito menos garante o acesso irrestrito ao Supremo Tribunal de Justiça. E dentro dos poderes de modelação do processo que assistem à lei ordinária, o legislador é livre de definir as circunstâncias em que os recursos são ou não são admissíveis. Tudo isto, como é sabido e consabido e como se demonstra no despacho sob reclamação, tem sido evidenciado em inúmeras decisões do Tribunal Constitucional, sendo por certo ocioso estar aqui com mais delongas sobre o assunto.

Ora, do que estamos a tratar é precisamente da aplicação da lei ordinária, que, na interpretação que se tem por devida, opta por não permitir o recurso de revista nas circunstâncias processuais que estão aqui em causa. Essa opção do legislador é constitucionalmente legítima, e a ela devem obediência os tribunais.

Acresce dizer que a invocação da reserva da intimidade da vida privada de que vem falar a Reclamante - e é verdade que alguns autores têm considerado como incluído no princípio do Estado de direito democrático o direito ao recurso de decisões que afetem direitos, liberdades e garantias constitucionalmente garantidos, mesmo fora do âmbito penal - não poderá fazer a diferença.

É que tal reserva visa proteger a posição jurídica da Ré no processo e não a da Reclamante.

Esta é simplesmente um terceiro que (bem ou mal, não interessa agora para o caso, visto que não se está a conhecer do objeto do recurso) foi dispensada do sigilo a que está adstrita.

Não é a titular do direito a que se refere a reserva, por muito que diga que não lhe convém dar a conhecer no processo os elementos (aliás cuidadosamente circunscritos) definidos no acórdão recorrido. Essa não conveniência poderia dar lugar à legitimação da Reclamante para, como terceiro afetado, impugnar a decisão por suposta ilegalidade, mas não tem a propriedade de tornar admissível um recurso que é à partida inadmissível.

Também neste particular se subscreve o acórdão deste Supremo acima citado, quando refere que “não existe qualquer base constitucional para a exigibilidade de um duplo grau de jurisdição nesta matéria, possibilidade que apenas está prescrita relativamente ao processo penal que nenhuma relação tem com o caso concreto.”

Pelo que fica dito, afigura-se que o Exmo. Relator no tribunal recorrido decidiu de acordo com a lei instituída ao não ter admitido o recurso em causa.»

Na sua reclamação para a presente conferência a Reclamante mantém, nuclearmente, a mesma argumentação que usou na reclamação contra o despacho do Exmo. juiz relator do Tribunal da Relação do Porto.

Afigura-se-nos, porém, que carece de razão.

E a sua falta de razão está devidamente justificada na decisão do relator.

Dado que também nada temos a aditar, excecionar ou retificar ao que consta dessa decisão, limitamo-nos basicamente a reafirmar o seguinte:

Está em causa um incidente de escusa em decorrência de sigilo profissional.

Processualmente estamos perante um incidente suscitado numa causa.

A circunstância do tribunal competente para decidir sobre a quebra do sigilo ser o tribunal superior àquele onde o incidente é suscitado não transforma o incidente numa causa autónoma.

Deste modo, é impróprio falar aqui numa causa autónoma decidida em primeira instância pela Relação.

Logo, a admissibilidade do recurso para o Supremo tem que ser equacionada á luz do art. 671.º do CPCivil (recurso de revista), e não à luz do recurso de apelação.

O que significa que não pode ser subscrito o propósito da Reclamante em direcionar o recurso que interpôs para uma apelação, de forma a dar base à admissibilidade do recurso.

A decisão de que a ora Reclamante pretendeu recorrer incidiu sobre matéria interlocutória atinente à relação processual. Decisões interlocutórias são as decisões judiciais que não põem fim ao processo, ou seja, as que, embora apreciando questões destacáveis, não extinguem a instância. Não se trata de decisões finais, mas, antes, de decisões intercaladas, que tanto podem decidir questões de forma como questões de índole material. Decisão interlocutória é qualquer decisão que incida sobre questão de natureza incidental que surja no decorrer do processo.

E, sendo assim, aplica-se ao caso o n.º 2 do art. 671.º do CPCivil.

O que se passa simplesmente é que a aplicação desta norma resulta de uma adaptação à idiossincrasia do incidente em questão.

Exatamente como se aponta da decisão do relator, estamos perante uma hipótese de decisão interlocutória sui generis, proferida no contexto de um incidente compósito (no sentido de participarem nele duas instâncias) suscitado para todos os efeitos na 1ª instância, e sobre que recaiu o pronunciamento do tribunal de 2º grau (a Relação). Nestas circunstâncias, a lógica do sistema aponta para que aquela norma deva ser interpretada no sentido de abarcar os acórdãos da Relação que decidam o que lhes compete decidir no contexto desse incidente compósito.

Claro que ninguém duvida que a letra da norma aponta para a apreciação de uma decisão interlocutória da 1ª instância. Como ninguém duvida que esta decisão inexiste num caso como o vertente (a decisão da Relação foi proferida ex novo, e não por via de um recurso sobre uma anterior decisão da 1ª instância). Por isso é que se diz que a aplicação da referida norma resulta de uma adaptação à idiossincrasia do incidente em questão.

Ora, como também está expresso na decisão do relator, é preciso ter presente aquilo que se julga ser o definitivo espírito da lei. A lei entende que em matéria de decisões interlocutórias que recaiam sobre a relação processual não se justifica ir para além do tribunal da Relação, de modo que não é admitida a intervenção do grau superior à Relação (o Supremo).

Entretanto, é de esclarecer que irreleva em absoluto para o caso que haja ou não dupla conforme. O que é fundamental, no quadro do n.º 2 do art. 671º, não é que tenha havido uma apreciação sucessiva da mesma questão, mas sim que a Relação se tenha pronunciado, sendo definitivo esse pronunciamento (salvas as exceções legais previstas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do art. 671.º, mas que aqui não concorrem e que, de resto, também não foram convocadas pela Recorrente).

E isso cumpre-se no caso vertente.

Mas mesmo que assim se não vejam as coisas, sempre se afigura que o n.º 2 do art. 671.º do CPCivil deve ser interpretado extensivamente, de forma a abranger na sua previsão a hipótese sui generis aqui em causa.

Como também se expressa na decisão do relator, o que vem de ser dito está em linha com a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça. Assim, no acórdão de 5 de julho de 2018 (processo n.º 842/11.1TBVNO-B.E1-A.S1, relator Abrantes Geraldes, disponível em www.dgsi.pt) recusou-se a admissibilidade de recurso para o Supremo do acórdão da Relação que se pronunciou sobre a quebra do sigilo profissional.

Mostra-se escrito nesse acórdão, e subscreve-se, que:

“A delimitação do recurso de revista é regulada pelo art. 671º do CPC, norma da qual não deriva a possibilidade de ser impugnada por essa via o acórdão da Relação proferido no âmbito de um qualquer incidente da instância (…).

Não existe motivo algum para excecionar desse regime o incidente de quebra de sigilo, como, aliás, tem sido uniformemente decidido por este mesmo Supremo Tribunal de Justiça, sendo disso exemplos os Acs. de 17-6-10, CJ, t. II, p. 113 e de 12-7-05, 05B1901, www.dgsi.pt. O mesmo se decidiu também, num caso que foi suscitado no âmbito de processo penal, na decisão sumária de 16-10-14, 1233/13, www.dgsi.pt.

Efetivamente a quebra de sigilo requerida no âmbito de qualquer processo é requerida perante a Relação, nos termos do art. 417º, nº 4, do CPC, por via do regime previsto no art. 135º do CPP.

Mas não passa de um incidente inscrito no âmbito da instrução da causa (…).

Contra o decidido, argumentam os reclamantes que a decisão da Relação que foi proferida em torno da quebra do sigilo bancário é uma decisão de 1ª instância, admitindo, por isso, recurso.

Trata-se de um argumento que não encontra cobertura legal, não havendo motivo para amplificar, por essa via, o preceituado no art. 671º do CPC acerca dos acórdãos que admitem ou não admitem recurso.

Por certo que o recurso de revista nestas situações não está totalmente vedado, mas tal depende da integração em alguma das previsões do art. 629º do CPC, sendo que os reclamante não invocaram nenhuma dessas situações.”

No mesmo sentido se direcionou, entre outros, o acórdão deste Supremo de 12 de julho de 2005 (processo n.º 05B1901, relator Salvador da Costa, disponível em www.dgsi.pt), de cujo sumário se pode ler que “Não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação que conheceu da dispensa de sigilo bancário no incidente suscitado no tribunal da primeira instância a que se reportam os artigos 519º, nº 4, do Código de Processo Civil e 135º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal”.

Pondera-se nesse acórdão, que “estamos perante um incidente de estrutura especial, que não segue as regras normais de competência jurisdicional, certo que atribui competência para a sua decisão ao tribunal que seria, segundo a regra geral, competente para a apreciação do recurso sobre ela.

Num quadro de conflito de interesses que se suscita em sede de oferecimento e de produção de prova, cuja resolução de modo célere se impõe em termos instrumentais à decisão da causa, a lei, ao estruturar o incidente em análise, pretendeu que da respectiva decisão não houvesse recurso.

Para tanto, em postura de salvaguarda do interesse das partes numa melhor apreciação do objecto do incidente, atribuiu a lei a competência para a respectiva decisão ao tribunal que seria competente para conhecer da matéria em via de recurso se o objecto do incidente tivesse sido decidido na instância em que foi suscitado ou implementado.

Assim, neste peculiar incidente, sob a necessidade da celeridade da decisão e da natureza meramente instrumental dos interesses em conflito, consignou-se pela referida via implícita, a proibição da instância de recurso, contrabalançada pela atribuição da competência decisória ao tribunal hierarquicamente superior àquele onde o incidente foi suscitado.

Assim, resulta da estrutura do incidente em causa que a Relação decide em definitivo o respectivo objecto, ou seja, da decisão por ela proferida não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.”

Do que fica exposto resulta, pois, que o recurso de apelação que a ora Reclamante interpôs para este Supremo não podia ser admitido. Da mesma forma que resulta que o recurso que seria cabido, o de revista, não é admissível, isto por força do disposto no n.º 2 do art. 671.º do CPCivil.

Diz a Reclamante, todavia, que “o entendimento segundo o qual não deve ser admitido o presente recurso por se considerar que a decisão do Tribunal da Relação do Porto que quebra o segredo profissional invocado nos termos do artigo 135.º do CPPP é irrecorrível pode julgar-se inconstitucional por violação do disposto no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 ca CRP” e que “para os devidos efeitos legais, se invoca, expressamente e desde já, a inconstitucionalidade das normas contidas nos n.ºs 3 e 4 do artigo 135.º do Código de Processo Penal na interpretação segundo a qual a decisão do Tribunal da Relação do Porto que quebra o segredo profissional invocado nos termos do artigo 135.º é irrecorrível, por violação do disposto no artigo 20.º, n.ºs 1 e 2 ca CRP”.

Mas a esta matéria responde a decisão sob reclamação de forma a neutralizar cabalmente a sua bondade.

Efetivamente, e como se aponta nessa decisão, fora do direito penal não resulta da Constituição da República nenhuma garantia genérica de direito ao recurso das decisões judiciais. Sem dúvida que a Constituição da República pressupõe da lei ordinária o estabelecimento de um sistema de recursos em matéria cível, mas não garante um direito irrestrito ao recurso. E muito menos garante o acesso irrestrito ao Supremo Tribunal de Justiça.

Por outro lado, o princípio constitucional do acesso ao direito e à justiça não implica por si só o direito ao recurso. O legislador apenas não poderá suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer.

E dentro dos poderes de modelação do processo que assistem à lei ordinária, o legislador é livre de definir as circunstâncias em que os recursos são ou não são admissíveis.

Tudo isto, como é sabido e consabido, tem sido evidenciado em inúmeras decisões do Tribunal Constitucional.

Ora, do que estamos a tratar é precisamente da aplicação da lei ordinária, que, na interpretação que se tem por devida, opta por não permitir o recurso de revista nas circunstâncias processuais que estão aqui em presença. Essa opção do legislador é constitucionalmente legítima, e a ela devem obediência os tribunais.

Com vista a inverter a bondade do que vem de ser dito, argumenta a Reclamante com a temática da reserva da intimidade da vida privada.

Não se duvida que, como defendem alguns autores, se deva ver como incluído no princípio do Estado de direito democrático o direito ao recurso de decisões que afetem direitos, liberdades e garantias constitucionalmente estabelecidas, isto mesmo fora do âmbito penal.

Simplesmente, afigura-se-nos que a argumentação da Reclamante não é válida.

Reafirmando de novo o que consta da decisão do relator, é de dizer que a reserva da intimidade da vida privada que aqui releva é a que visa proteger a posição jurídica da Ré no processo, e não a da Reclamante.

Esta é simplesmente um terceiro que (bem ou mal, não interessa agora para o caso, visto que não se está a conhecer do objeto do recurso) foi dispensada contra a Ré do sigilo a que estava adstrita a favor da Ré.

Não é a titular do direito a que se refere a reserva, por muito que signifique que deve poder não dar a conhecer no processo os elementos (aliás cuidadosamente circunscritos) definidos no acórdão recorrido.

Também neste particular não podemos deixar de subscrever o acórdão deste Supremo de 5 de julho de 2018 acima citado, aí onde refere que “não existe qualquer base constitucional para a exigibilidade de um duplo grau de jurisdição nesta matéria, possibilidade que apenas está prescrita relativamente ao processo penal que nenhuma relação tem com o caso concreto.”

Resta dizer que as considerações da Reclamante em torno da temática da omissão da sua audiência (não podendo assim influenciar, como acha que era seu direito, a decisão que foi tomada, o que, na sua lógica, lhe deveria abrir necessariamente o direito ao recurso), e em torno da consequente inconstitucionalidade das normas legais que cita (n.ºs 3 e 4 do art. 135.º do CPPenal, conjugadas com o disposto nos art.s 644.º e 671.º do CPCivil) não podem colher procedência.

É que do que estamos aqui a tratar é de uma questão prévia, a da admissibilidade do recurso, e não do conhecimento do seu objeto ou mérito. Salvo erro ou omissão, não se pode partir, como faz a Reclamante, da suposta ilegalidade da decisão recorrida para fundar a admissibilidade do recurso contra ela interposto; pelo contrário, seria a admissibilidade do recurso que permitiria escrutinar a legalidade da decisão recorrida.

Donde, repetindo o que acima se disse, tudo se reconduz à aplicação da lei ordinária, que, na interpretação que se tem por devida, opta por não permitir o recurso de revista nas circunstâncias processuais que estão aqui em presença. Essa opção do legislador é constitucionalmente legítima, e a ela devem obediência os tribunais.

Por último: a jurisprudência deste Supremo que a Reclamante referencia não foi chamada a decidir, nem decidiu (e muito menos como ratio decidendi), sobre questão igual à que se está aqui a discutir expressamente. Não vemos que tenha utilidade para o caso.

Improcede pois a reclamação.

Decisão

Pelo exposto julga-se improcedente a reclamação, mantendo-se o despacho de não admissão do recurso.

Regime de custas

A Reclamante é condenada nas custas do presente incidente de reclamação para a conferência.

Taxa de justiça: 3 Uc’s.

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Sumário

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Lisboa, 10 de setembro de 2019

José Rainho (Relator)

Graça Amaral

Henrique Araújo

_________________________
[1] O despacho reclamado entende o contrário, como se pode ver da seguinte passagem: “…porque estamos perante uma decisão do Tribunal da Relação, as normas que regem sobre a recorribilidade da decisão não são os artigos 644.º e 645.º do Código de Processo Civil, relativas ao recurso de apelação, leia-se ao recurso de decisões dos Tribunais de Comarca interpostos para a Relação, mas sim os artigos 671.º a 673.º do mesmo diploma, estes sim concernentes ao recurso de revista que é a forma processual de impugnar perante o Supremo Tribunal de Justiça as decisões dos Tribunais da Relação”.
Trata-se, porém, de entendimento que não se apresenta inteiramente correto. A forma processual de impugnar perante o Supremo as decisões dos tribunais da Relação é normalmente a revista, mas também poderá ser a apelação. Tudo depende. E tanto é assim que, para efeitos de distribuição, existe no Supremo também a espécie de apelação (cfr. art. 215.º do CPCivil).