Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
814/17.2T8MAI-A.P1.S2
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: LIVRANÇA EM BRANCO
PACTO DE PREENCHIMENTO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
INCUMPRIMENTO
TÍTULO DE CRÉDITO
EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA
EXCEÇÃO PERENTÓRIA
FACTO IMPEDITIVO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
QUESTÃO NOVA
EMBARGOS DE EXECUTADO
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
NULIDADE DE ACÓRDÃO
Data do Acordão: 12/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017 - 4ª edição Almedina, p. 299;
- Almeno de Sá, Cláusulas Contratuais Gerais e Diretiva Sobre Cláusulas Abusivas, 3ª Edição, Almedina, p. 212;
- José Gabriel Pinto Coelho (Lições de Direito Comercial, 2º Vol., Fascículo II, p. 40.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 615.º, N.º 1, ALÍNEA B) E 671.º, N.ºS 1 E 3.
LEI UNIFORME SOBRE LETRAS E LIVRANÇAS (LULL): - ARTIGOS 75.º E 76.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 20-10-2015, PROCESSO N.º 60/10.6TBMTS.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 28-04-2016, PROCESSO N.º 1106/12.9YYPRT-B.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 30-11-2017, PROCESSO N.º 1329/14.6T8LSB.L1.S1;
- DE 04-07-2019, PROCESSO N.º 4762/16.5T8CBR-A.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - A livrança em branco, deverá ser entregue pelo subscritor, ao credor, dando-lhe a autorização para a preencher. O preenchimento da livrança incompleta é uma condição imprescindível para que o título possa produzir os efeitos como livrança;

II – O abuso de preenchimento não gera nulidade do título, mas apenas a redução do capital inscrito;

III - A existência de um acordo de preenchimento, e sua inobservância assume a natureza de exceção perentória, uma vez que traduz a alegação de facto impeditivo do direito do credor.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – Relatório


1. AA veio deduzir embargos à execução contra si instaurada por BANCO BB, S.A., pedindo que seja julgada extinta a execução.

Para tanto, alegou, em síntese, que:

A livrança dada à execução, por si avalizada, foi emitida e entregue, sem data, e apenas com as assinaturas dos subscritores e dos avalistas, para garantia de cumprimento de um contrato celebrado entre a sociedade “CC, Lda” e o então denominado “Banco DD, S.A.”.

O título enferma, pois, de nulidade, nos termos do disposto nos arts. 75º, nº6 e 77º, da LULL.

Posteriormente, sem autorização do embargante, o Banco exequente preencheu a livrança, apondo-lhe a data de emissão de 6/1/2017. Tal preenchimento é, contudo, abusivo, por violar o acordo firmado entre a exequente e o embargante.

Por fim, impugnou a liquidação da quantia exequenda inscrita no título.

2. Apresentada contestação, foi realizado o julgamento e proferida sentença que julgou improcedentes os embargos.

3. Inconformado com o assim decidido, o embargante interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que julgou improcedente a apelação.

4. De novo irresignado, veio agora interpor a presente revista, formulando as seguintes conclusões:

I - Vem o presente recurso interposto do Acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto que, nos autos em que se insere, decidiu julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo recorrente.

II – O Douto Acórdão recorrido veio confirmar a decisão proferida na primeira instância, sem voto de vencido, mas com fundamentação essencialmente diferente, razão pela qual inexiste dupla conforme.

III - Por outro lado, está em causa uma questão cuja apreciação pela sua relevância jurídica é claramente necessária para uma melhor apreciação do Direito, alínea a) do nº 1 do artigo 672º do CPC, estão em causa interesses de particular relevância social (al. b) do nº 1 do art.º 672º do CPC.

IV - E o Acórdão está em contradição com outros, já transitados em julgado, proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e questões fundamentais do direito, cumpre o Recorrente o nº 2 da mesma disposição legal.

V - Nomeadamente diverge do entendimento vertido no Acórdão da Supremo Tribunal de Justiça, 2ª secção, de 30-11-2017, proferido no âmbito do processo nº 26399/09.5 T2SNT.L1.SI, in www.dgsi.pt.

VI - do entendimento vertido no deste Supremo Tribunal de 10 de julho de 2008, (processo nº 08B1846, www.dgsi.pt).

VII - bem como do entendimento vertido no Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, de 26-06-2003, processo nº 04A1044, in www.dgsi.

VIII - Em conformidade, deve o presente Recurso de Revista ser admitido, com as legais consequências; e, à cautela, se dúvidas houvessem, deverá sê-lo sempre nos termos gerais, tal como previsto pelo legislador do Processo Civil, cremos, que exatamente para situações deste tipo.

IX - O recorrente discordando da decisão proferida em 1ª instância interpôs recurso para o tribunal da Relação que veio a julgar improcedente a apelação.

X- Na perspectiva do Recorrente, com o devido respeito, andou mal o Tribunal a quo na intelecção do direito aplicável, sancionado a final uma solução injusta que a ordem jurídica não consente.

XI - Por via dos presentes autos, o Exequente deu à execução uma livrança, emitida pelo Banco DD e subscrita por CC, Lda., de cujo teor consta a data de emissão de 06.01.2017, a data de vencimento de 13.01.2017, a menção a "Financiamento Bancário =Sem Despesas=" e o valor de €110.737,06.

XII - Tal livrança foi entregue à exequente em branco para garantia de cumprimento contendo apenas assinaturas do subscritor e dos avalistas, por ocasião da assinatura de um contrato de mútuo, com data de 18.03.2010, em que intervieram, como primeiro outorgante, Banco DD, S.A. , e , como segundo outorgante, CC, Lda., representada pelo sócio gerente  EE, constando do respectivo contrato que o DD concede à mutuaria um empréstimo no montante  de €100.000,00,no prazo e condições ali estabelecidos.

XIII - Por apenso à execução, veio o Executado deduzir embargos de executado, alegando, para além do mais, o preenchimento abusivo da livrança, no que diz respeito à data de emissão e valor,- data impossível - que não deu autorização para preenchimento, nem deu autorização para que a mesma fosse preenchida por valores provenientes de outros contratos de mutuo e /ou obrigações assumidas pela sociedade CC, Lda., para além do referido contrato de mutuo.

XIV - O Douto Acórdão proferido tem que ser fundamentado, permitindo da leitura a apreensão dos motivos que conduziram ao naufrágio da pretensão do recorrente.

XV - Calcorreado o Douto Acórdão, resulta claro que falha de todo em todo o dever de fundamentação.

XVI - O Douto Acórdão não rebate, em momento algum, a argumentação expendida pelo Recorrente, nem tão pouco explicita a razão pela qual aderiu a um ou a outro entendimento.

XVII - O Acórdão do Tribunal da Relação é manifestamente arbitrário, obscuro e ambíguo, não permitindo e muito menos convencendo quem quer que seja da sua bondade.

XVIII - Padece o Douto Acórdão de nulidade por falta de fundamentação.

XIX - Violados, pois, por erro de interpretação e aplicação os artigos 615º, nº 1, b) e c), art.º 666º e 674º, nº 1 al. c) do CPC.

XX - Por outro lado, diz o Acórdão recorrido que o recorrente alegou questões novas (quais fossem, a nulidade do pacto de preenchimento e bem assim do aval por exclusão, tudo se passando como se não existissem cláusulas contratuais gerais do pacto de preenchimento, com base no qual foi preenchida a livrança dada à execução por violação do dever de informação e comunicação), por isso que não podia o tribunal da Relação do Porto delas conhecer.

XXI – Para sermos exatos, a questão da nulidade das cláusulas constantes do pacto de preenchimento fora até suscitada em sede de alegações de julgamento na 1ª instância.

XXII – Contudo, salvo o devido respeito, o Tribunal da Relação do Porto podia e devia conhecer tal matéria, porque estava obrigado a conhecer tal matéria, por força do disposto no artigo 24º do DL nº 446/85, de 25.10, o que aliás se deixou consignado nas conclusões da apelação, preteritamente apresentada pelo Recorrente.

XXIII - Dúvidas, pois, não se suscitam de que a nulidade invocada podia e deveria ter sido objeto de pronúncia pelo tribunal recorrido, nos termos alegados e fundamentados.

XXIV - Padece, pois, o douto de acórdão de nulidade, pois deixou de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, nos termos e para os efeitos no disposto no artigo 615º, nº 1, alínea d) do CPC.

XXV - No que diz respeito à alteração da matéria de facto, o Tribunal a quo entendeu rejeitar o seu conhecimento, com o fundamento de que não estavam verificados os requisitos impostos pelos artigos 639º, nº 1 e artigo 640º do CPC.

XXVI - Para além de que, não está identificado com a reclamada clareza o vício que, no entender o Tribunal a quo, enfermam as conclusões formuladas pelo Recorrente, a verdade é que o recorrente não deixou de estabelecer em termos formais uma diferenciação entre a motivação de recurso e as respectivas conclusões.

XXVII - Contudo, ainda que o Recorrente possa efetivamente ter apresentado conclusões de recurso que não cumprem na íntegra o preceituado no artigo 639º, nº 1 do CPC, a verdade é que não há omissão completa das mesmas no sentido de não terem sido de todo apresentadas.

XXIX - As conclusões, mal formuladas embora, sem observância das imposições legais, existem, delas se podendo retirar quais as pretensões do Recorrente e por isso não podemos reduzir a falha assim cometida condenando a pretensão do recorrente ao indeferimento, sem primeiramente se dar oportunidade ao Recorrente de poder corrigir o vício, cfr neste sentido os Ac STJ de 29 de Abril de 2008 (Relator Garcia Calejo) e de 27 de Maio de 2010 (Relator Bettencourt de Faria), in www.dgsi.pt; Paulo Ramos de Faria, Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas Ao Novo Código Processo Civil, 2014, II Volume, 52.

XXX - Com tal a decisão de rejeição do conhecimento de tal matéria com o fundamento invocado, houve sem dúvida não só errada aplicação da norma e violação da lei de processo.

XXXI - Esta omissão do relator, do «convite» constitui violação processual e nulidade processual nos termos do artigo 195º, nº 1, do CPC, nulidade que se repercute na decisão recorrida.

XXXII - A decisão violou ainda o artigo 209º da Constituição da República Portuguesa que estipula o acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva.

XXXIII - A decisão recorrida viola ainda n.º 4 do art. 20º da CRP , o princípio do processo equitativo e direito ao recurso.

XXXIV - A decisão viola ainda os artigos 6º n.º2 (dever de gestão processual), art 411º principio do inquisitório, artº 547º (adequação formal), art.º 652º n.º 1 alínea a) e art.º 7º todos do CPC.

XXXV - Deverá, pois, a decisão de rejeitar o conhecimento da alteração da matéria de facto, ser revogada e substituída por outra que ordene o convite a que alude o artigo 639º, nº3 do CPC.

XXXVI - A livrança dada à execução foi preenchida (seja de acordo com a fundamentação, seja de acordo com os factos dados como provados na alínea d)), alegadamente em conformidade com a autorização de preenchimento.

XXXVII - Resulta da prova produzida em audiência, nomeadamente, das declarações prestadas pelas testemunhas EE e FF que o Embargante assinou tal documento na sede da empresa, sem a presença de qualquer representante da ora exequente, pelo que, facilmente se concluiu que nunca lhe foram comunicadas ou informadas as condições dos contratos de financiamento e autorização de preenchimento.

XXXVIII - Analisado o pacto de preenchimento titulado pelo documento junto sob o nº 1 com a contestação – alínea d) dos factos dados como provados, verificamos que, pese embora se trate de um contrato singular, o mesmo contém no seu teor um conjunto de cláusulas gerais, padronizadas, não individualizadas, que se destinam à generalidade dos clientes do banco, sendo integradas m todos os contratos da mesma natureza sem qualquer negociação.

XXXIX - O pacto de preenchimento assinado pelas partes, concernente à livrança exequenda, assume, pois, natureza de contrato de adesão, pois contém cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que o executado/embargante, enquanto destinatário, se limitou a subscrever e aceitar, motivo pelo qual está sujeito ao regime do DL 446/85 de 25 de Outubro.

XL - E tais cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitam a subscrevê-las ou aceitá-las, devendo a comunicação ser realizada para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efetivo por quem use de comum diligência, cabendo ao contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais o ónus de prova da comunicação adequada e efetiva. (cf. art. 5.° do Dec. Lei n.446/85).

XLI - Para além do dever de comunicação, o contratante que recorra a cláusulas contratuais gerais deve informar, de acordo com as circunstâncias, a outra parte dos aspetos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique, devendo ainda prestar todos os esclarecimentos razoáveis solicitados. (art. 6.° do Dec. Lei n,0446/85).

XLII - O banco exequente não logrou provar que comunicou ao executado/embargante o conteúdo integral das cláusulas/parágrafos inseridas no pacto de preenchimento da livrança exequenda, e, bem assim, que lhe explicou o respetivo teor, tendo o executado/opoente aceite, integralmente e sem reservas, plasmado em tal pacto.

XLIII - O Embargante não foi informado da real extensão contratual a que se vinculava pela assinatura do aval e pacto de preenchimento, razão porque sempre alegou não ter dado autorização ao seu preenchimento, nos moldes em que o foi.

XLIV - Era sobre o Banco/Exequente que recaia o ónus de provar que os cumpriu e manifestamente não provou.

XLV - Razão pela qual, nos termos do disposto no art.º 8º, al. a) do DL 446/85, de 25/10, as cláusulas constantes do pacto de preenchimento têm-se por excluídas.

XLVI - Estando excluídas essas cláusulas essenciais para o contrato de preenchimento titulado pelo documento identificado em d) dos factos dados como provados, e que esteve na base da livrança no montante em causa, o referido pacto de preenchimento não subsiste, nos termos do art.º 9º, nº 2 do citado DL, e o Embargante, apesar de avalista enquanto subscritor desse pacto pode opor a invalidade do mesmo.

XLVII - Inexistindo qualquer autorização para preenchimento por parte do Embargante, a livrança não pode, quanto a ele, produzir quaisquer efeitos, como decorre do art.º 10º, a contrário da LULL, aplicável ex vi do art.º 77º do mesmo diploma legal.

XLVIII - E, sendo nulo esse pacto de preenchimento, essa nulidade inquina o aval, afetando do mesmo vício.

XLIX- Nulidade, de conhecimento oficioso, que desde já se invoca e se requer que seja declarada com todas s consequências legais.

L - A livrança dada à execução, foi entregue ao Banco Exequente/Oposto apenas e tão só com o campo relativo à assinatura dos subscritores devidamente preenchido (com o carimbo e assinatura) e com o verso contendo as assinaturas e expressões constantes da alínea a) da dos factos dados como provados.

LII - Mais foi dado como assente que na livrança consta a data de emissão de 06.01.2017, a data de vencimento de 13.01.2017.

LIII – O Embargante não deu autorização ao Banco para preencher a data de emissão conforme lhe aprouvesse - o pacto de preenchimento é omisso quanto à data de emissão.

LIV – A sociedade subscritora do mútuo e da livrança foi declarada insolvente em 07 de Abril de 2016, conforme se alcança do documento junto com a petição de embargos sob o nº 3, que não foi objeto de impugnação e que se dá por integralmente reproduzido para os legais e devidos efeitos.

LV - A data de emissão oposta - 06.01.2017- é muito posterior à data de declaração de insolvência da empresa subscritora da livrança.

LVI - Logo, resulta à saciedade que era impossível a sociedade subscritora da livrança e à qual o Embargante deu aval, ter emitido e subscrito a livrança em crise nos presentes autos.

LVII - A exigência da data da emissão de uma livrança destina-se a determinar através do título cambiário, a capacidade do subscritor no momento da emissão.

LVIII - Sendo impossível a data de emissão aposta na livrança, tal facto determina a nulidade dessa menção, tudo se passando como se o título não estivesse preenchido com a data em que foi emitido. – Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, vol. III, letra de Cambio, pág. 113.

LVIX - O que invalida o título cambiário, que não pode produzir efeitos como livrança, nos termos do disposto nos artigos 75º e 76º da LULL.

LX - Em face do exposto, estamos perante uma livrança incompleta, que não produz efeitos como livrança, em virtude da Exequente não estar autorizada a preencher a data de emissão.

LXI - e por outro lado, facilmente se concluiu que a data de emissão aposta na livrança é impossível, o que determina a nulidade dessa menção aposta na livrança.

LXI - Assim, como a data de emissão é um requisito essencial da livrança, a respectiva falta invalida o título cambiário, que não pode produzir efeitos como livrança, nos termos e para os efeitos do disposto nos art.º 75º e 76º da LULL.

LXII - Razão pela qual, sopesada toda esta argumentação, deverão os presentes embargos serem julgados totalmente procedentes, por provados e, em consequência, extinta a execução.

LXIII – Violados, pois, por erro de interpretação e de aplicação, o disposto nos artigos artºs 4º a 9º do DL 446/85, de 25/10, art.ºs 10º, 75º, 76º e 77º da LULL, artigo 286º do Código Civil, art.ºs 6º, nº 2, 7º, 154º, 195º, nº 1, 411º, 547º, 607º, 615º, nº 1, alíneas b) e c), 639º, nº 1, 640º, 652º, nº 1, al. a), 666º, do CPC, art.ºs 20º, nº 4 e 209º da CRP e art. 6º da Diretiva 93/13/CEE.

5. Nas contra-alegações, pugnou-se pela confirmação do acórdão recorrido.


***


6. Como se sabe, o âmbito objetivo do recurso é definido pelas conclusões apresentadas (arts. 608.º, n.º2, 635.º, nº4 e 639º, do CPC), pelo que só abrange as questões aí contidas.

Por sua vez – como vem sendo repetidamente afirmado – os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação do tribunal que proferiu a decisão impugnada, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal a quo.

Sendo assim, as únicas questões de que cumpre conhecer consistem em saber se:

a) O acórdão recorrido enferma de nulidade;

b) No âmbito da impugnação da decisão de facto, o recorrente devia ter sido convidado a corrigir as deficiências das alegações apresentadas no recurso de apelação;

c).Deve considerar-se excluído o clausulado quanto ao preenchimento da livrança, por inobservância e/ou deficiente cumprimento dos deveres de comunicação e de informação;

d) A não ser assim, se se verifica preenchimento abusivo da livrança dada à execução.


***


II – Fundamentação de facto


7. As instâncias deram como provado que:

a) Foi dada à execução uma livrança emitida pelo DD e subscrita por CC, Ld.ª, de cujo teor consta a data de emissão de 06.01.2017, a data de vencimento de 13.01.2017, a menção a “Financiamento Bancário =Sem Despesas=” e o valor de € 110.737,06; do local destinado à assinatura da subscritora consta o carimbo com a identificação do nome da empresa e uma assinatura sobre a menção “O Gerente”; do verso da livrança, sob a expressão “por aval ao subscritor”, consta, para além de outra, a assinatura do embargante, AA (cfr. doc. de fls. 14 dos autos principais, cujo teor se tem por integralmente reproduzido e artigos 4º a 6º do req. inicial).

b) A livrança aludida em a) foi entregue à exequente em branco, contendo apenas as assinaturas do subscritor e dos avalistas, por ocasião da assinatura de um contrato de mútuo, com data de 18.03.2010, em que intervieram, como primeiro outorgante, Banco DD, S.A. e, como segundo outorgante, CC, Ld.ª, representada pelo sócio gerente EE, constando do respectivo contrato que o DD concede à mutuária um empréstimo no montante de € 100.000,00, no prazo e condições ali estabelecidos, prevendo o artigo décimo segundo do referido contrato que os valores que se mostrarem em dívida ao DD ficam caucionados pela livrança em branco, subscrita pela mutuária, e avalizada por EE e AA, destinada a garantir o pagamento de todas as responsabilidades assumidas ou a assumir pela mutuária perante o DD, por crédito concedido ou a conceder e valores descontados e/ou adiantados até ao limite de cento e vinte mil euros, acrescido dos respectivos juros, despesas e encargos, incluindo, por isso, os valores emergentes deste contrato; juntamente com a livrança a mutuária entrega ao DD a correspondente autorização de preenchimento assinada por si e pelos avalistas (cfr. doc. n.º1 junto com o requerimento inicial e constante de fls. 13 a 22 dos presentes autos, cujo teor se tem por integralmente reproduzido; artigos 9º e 10º do requerimento inicial).

c) Por carta datada de 14.04.2016, remetida pela exequente ao embargante, identificando como endereço “Apartado 1…, 4….9 …”, consta como assunto a resolução do contrato de mútuo celebrado em 18.03.2010, no valor de € 100.000,00, referindo o seu teor que o destinatário deve considerar o contrato resolvido à data de 03.12.2015 pelo montante de € 58.176,85, a que acrescem juros moratórios, despesas e encargos até efetivo e integral pagamento (cfr. doc. junto como doc. n.º2 do requerimento inicial, constante de fls. 23, cujo teor se tem por integralmente reproduzido).

d) De documento com data de 18.03.2010, dirigido ao BPN e mencionando como assunto “Garantia de responsabilidades – envio de livrança – autorização de preenchimento”, subscrita pela gerência da sociedade CC e assinada pelos avalistas, entre os quais AA, aqui embargante, consta como teor que, nos termos acordados, enviam uma livrança em branco, subscrita e avalizada pelos abaixo identificados, destinada a garantir o pagamento de todos os valores que por nós se mostrarem em dívida a V. Exª, por crédito concedido e/ou a conceder, e valores descontados e/ou adiantados, até ao limite de Euros 120.000,00, acrescido dos respectivos juros, despesas e encargos, desde já autorizando V. Exª a completá-la com todos os restantes elementos, nomeadamente quanto à data de vencimento, local de pagamento (DD – …) e ao valor a pagar, o qual corresponderá aos valores que por nós forem devidos aquando da sua eventual utilização (cfr- doc. n.º1 junto com a contestação, cuja assinatura não foi impugnada ou questionada pelo embargante, cujo teor se tem por integralmente reproduzido).

e) A livrança aludida em a) foi entregue ao banco exequente em 18.03.2010, na ocasião da assinatura do contrato de mútuo referido em b) (14º do requerimento inicial).

f) O banco exequente preencheu a livrança com data de emissão de 06.01.2017 (15º do requerimento inicial)

g) Tem-se por reproduzido o teor dos contratos designados como CONTRATO DE MÚTUO PROTOCOLO PME INVESTE IV/QREN – DD, com data de … .11.2009 e CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA MOBILIÁRIA, com data de 27.01.2011, celebrados entre a empresa CC, Ld.ª e o DD e juntos como documentos n.º2 e n.º3 da contestação (cfr. doc. de fls. 48 a 59 e 60 a 71 dos presentes autos).

h) Com data de 06.01.2017 foi remetida pela exequente ao executado AA, para a morada sita na Rua …, n.º…, … …, uma carta registada tendo por assunto “Preenchimento de Livrança”, constando do respectivo teor que se encontra em dívida ao Banco BB a quantia de € 110.737,06, sendo € 8.520,63 decorrente da resolução operada em 03.12.2015 do contrato de mútuo protocolo PME Investe IV celebrado com CC em 18.11.2009 no valor de € 50.000,00; € 65.511,70 decorrente da resolução operada em 03.12.2015 do contrato de mútuo celebrado em 18.03.2010 com aquela sociedade no valor de € 100.000,00; € 6.672,50 decorrente da resolução da locação financeira mobiliária e € 30.032,23 relativo ao saldo devedor existente na conta de depósitos à ordem ali identificada, titulada pela sociedade CC; mais se refere que tais valores estão titulados por livrança avalizada pelo destinatário, para garantia do montante referido, cujo pagamento deverá ser efetuado até ao dia 13.01.2017, data do respectivo vencimento; a carta em questão foi devolvida ao remetente em 19.01.2017 (cfr. doc. n.º4 junto com a contestação - fls. 72 a 74 – cujo restante teor se tem por reproduzido).

8. E como não provado que:

1) A livrança aludida em a) consubstancia garantia de cumprimento apenas do contrato de mútuo no valor de € 100.000,00 celebrado em 18.03.2010 (art. 7º/8º do req. inicial)

2) Em momento algum o embargante deu autorização ao banco para preenchimento da data de emissão da livrança (17º do requerimento inicial).

3) Em momento algum o embargante deu autorização ao banco para que preenchesse a livrança por valores provenientes de outros contratos de mútuo ou obrigações contraídas pela sociedade CC, Ld.ª, para além, da obrigação contraída no âmbito do contrato de mútuo referido em b) (art. 24º do requerimento inicial).

4) O título dado à execução está a ser usado pela exequente como garantia para fins não convencionados (art. 28º do requerimento inicial).

5) O embargante subscreveu a livrança para garantir o pagamento do montante concedido à sociedade da qual era sócio no âmbito do contrato de mútuo referido em b), não tendo assumido qualquer outra obrigação de pagamento na qualidade de avalista da sociedade ou autorizado o banco exequente a preencher a livrança para garantir outros créditos concedidos à sociedade (34º do requerimento inicial).

6) O banco preencheu a livrança pela totalidade dos créditos concedidos à sociedade subscritora, sabendo que a tal não estava autorizado pelo embargante (36º do requerimento inicial).


***


III – Fundamentação de direito

9. Questão prévia: da admissibilidade da revista

O acórdão recorrido confirmou a sentença da 1ª instância, o que, em regra, obsta à interposição da revista, por força do disposto no art. 671º, nº1 e 3, do CPC.

Importa, pois, decidir se, não obstante a coincidência decisória das instâncias, é de admitir o interposto recurso de revista.

Para justificar a admissibilidade da revista «normal», o recorrente veio alegar que o tribunal recorrido violou as normas processuais que disciplinam o exercício dos poderes conferidos à Relação, no âmbito da reapreciação da decisão de facto e que este fundamento da revista não concorre para a formação da dupla conforme prevista no n.º 3 do artigo 671.º do CPC, pois tal violação é imputada apenas à Relação, não havendo, nessa parte, coincidência com a decisão da 1.ª instância.

É, assim, efetivamente.

Como, a propósito, refere Abrantes Geraldes[1] "[é] admissível recurso de revista quando sejam suscitadas questões relacionadas com o modo como a Relação aplicou as normas de direito adjetivo conexas com a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, maxime quando seja invocado pelo recorrente o incumprimento dos deveres previstos no artigo 662º".

A revista é, portanto, admissível com este fundamento.


***


Visando afastar a restrição ao terceiro grau de jurisdição prevista no art. 671º, nº3, do CPC, o recorrente veio também alegar que não se verifica dupla conforme, na medida em que a Relação confirmou a sentença da 1ª instância com fundamentação essencialmente diferente.

Vejamos.

A sentença da 1ª instância, depois de analisar os requisitos da livrança e as consequências da sua falta, bem como os pressupostos da exceção de preenchimento abusivo, considerou que o embargante não logrou provar factualidade passível de afetar a validade do título, nem a existência do crédito exequendo.

Concluiu, assim, pela improcedência dos embargos.

Por seu turno, o acórdão recorrido, além de rejeitar o recurso quanto à impugnação da matéria de facto, por alegada inverificação de requisitos formais, afastou também o conhecimento da nulidade do pacto de preenchimento e do aval, por alegada omissão dos deveres de comunicação e informação previstos no regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, por considerar tratar-se de questão «nova», já que apenas fora alegada nas alegações da apelação.

Quanto ao mais, entendeu que a «assunção da obrigação do avalista se afere pela data da sua constituição, não estando condicionada pela insolvabilidade ulterior da avalizada” e, finalmente, que a factualidade provada não permite acolher o entendimento do apelante quanto aos efeitos da citação e da sua repercussão nos juros vencidos antes desta.

Deste modo, julgou improcedente a apelação.

Confrontando, agora, ambas as decisões, afigura-se-nos que o acórdão da Relação apoiou a sua decisão em fundamentação essencialmente diferente que, ao abrigo do disposto no art. 671º, nº3, do CPC, permite afastar a verificação da dupla conforme.

Em face de tudo o exposto, é de concluir pela admissibilidade do recurso de revista «normal».


***


10. Da nulidade do acórdão recorrido

O recorrente veio arguir a nulidade do acórdão recorrido, por falta de fundamentação, por omissão de pronúncia (quanto à questão da violação de deveres de informação e comunicação impostos pelo regime jurídico das cláusulas contratuais gerais) e padecer de obscuridade e ambiguidade.

As causas de nulidade tipificadas nas alíneas b), c) e d), do nº1 do art. 615º, do CPC, normativo aplicável à 2ª instância por força do estatuído no art. 666º, do mesmo Código, ocorrem quando não se especifiquem os fundamentos de facto e de direito em que se funda a decisão (al. b)) ou quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questão de que devia conhecer (al. d)) ou se verifique alguma ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível (al. c)).

Ora bem.

O dever de fundamentar as decisões tem consagração expressa no artigo 154º do CPC e impõe-se por razões de ordem substancial, cumprindo ao juiz demonstrar que da norma geral e abstrata se extraiu a disciplina ajustada ao caso concreto.

Não pode, porém, confundir-se a falta absoluta de fundamentação com a fundamentação insuficiente ou errada, sendo que só aquela constitui a causa de nulidade prevista na al. b) do nº 1, do art. 615º, do CPC.

Note-se que o acerto ou desacerto da respectiva decisão é questão diversa, que não cabe no campo dos vícios geradores de nulidade, mas no domínio do eventual erro de julgamento.

In casu, o acórdão impugnado contém a discriminação dos factos considerados provados e não provados, bem como a correspondente subsunção jurídica.

Não se verifica, pois, a nulidade por falta de fundamentação.


***


Por outro lado, o fundamento invocado pelo recorrente (ausência de pronúncia sobre a violação de deveres previstos na lei das cláusulas contratuais gerais)  não é susceptível de configurar a nulidade prevista na al. d), do nº1, do art.615º, do CPC, pois o Tribunal pronunciou-se expressamente sobre a matéria, ainda que, assumindo tratar-se questão «nova», tenha declinado a possibilidade de apreciar se houve ou não a violação dos deveres em causa.

Também aqui nos situamos no plano de eventual erro de julgamento, mas não da nulidade da decisão.

Improcede, assim, a nulidade em análise.


***


Não se vislumbram, igualmente, nem obscuridade nem ambiguidade, sendo perfeitamente apreensíveis e claros o sentido da fundamentação, bem como do segmento decisório do acórdão recorrido, sendo que os mesmos não se prestam a interpretações dúbias.

Inverificadas estão, por conseguinte, as causas de nulidade que o recorrente pretendia assacar ao acórdão recorrido.


***


11. Da violação de lei adjetiva, em sede de reapreciação da decisão de facto

Admitindo que, em sede de apelação, possa não ter cumprido na íntegra o disposto no art. 640º, do CPC, o recorrente veio, na presente revista, sustentar que devia ter sido convidado a suprir eventuais deficiências, ao abrigo do preceituado no art. 639º, nº3, do mesmo Código, sob pena de esta omissão do relator, configurar a nulidade processual prevista no art. 195º, nº 1, do CPC, bem como violação do 20º, nº4 e 209º, da Constituição da República Portuguesa.

Pretende, assim, que seja revogada a decisão que rejeitou a reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto, sendo substituída por outra que formule o convite a que alude o art. 639º, nº3 do CPC.

Não tem, contudo, razão.

Efetivamente, como observa Abrantes Geraldes[2], “não existe, quanto ao recurso da decisão da matéria de facto, despacho de aperfeiçoamento”, o que se compreende, pois, como salienta o mesmo autor, “pretendendo o recorrente a modificação da decisão de um tribunal de 1ª instância e dirigindo essa pretensão a um Tribunal Superior, é compreensível uma maior exigência no que concerne à impugnação da matéria de facto, impondo, sem possibilidade de paliativos, regras muito precisas.”.

Sendo esta também a orientação que perfilhamos, cabe tão-somente acrescentar que não se vislumbra que tal entendimento possa configurar violação de regras processuais ou de princípios constitucionais, mormente os indicados pelo recorrente.

Improcede, portanto, a alegação do recorrente.


***


12. Exclusão do clausulado quanto ao preenchimento da livrança, por inobservância e/ou deficiente cumprimento dos deveres de comunicação e de informação

Na presente revista, o recorrente alega que o pacto de preenchimento titulado pelo documento junto sob o nº 1 com a contestação (cf. alínea d) dos factos dados como provados) assume a natureza de contrato de adesão, pois contém cláusulas elaboradas sem prévia negociação individual, que o executado/embargante, enquanto destinatário, se limitou a subscrever e aceitar, motivo pelo qual está sujeito ao regime do DL 446/85 de 25 de Outubro.


Mais alega que, no que respeita à autorização de preenchimento da livrança em branco entregue ao Banco, subscrita pela mutuária e avalizada pelo embargante, a recorrida não cumpriu os deveres de comunicação e de informação que sobre si impendiam, pelo que o acordo de preenchimento deve considerar-se excluído, nos termos do art.º 9º, nº 2 do citado DL, não produzindo quaisquer efeitos relativamente ao avalista.


Pois bem.


Como se sabe, os contratos de adesão constituem o campo privilegiado do recurso a proposições contratuais “(…) elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar (…)”, i.e. a cláusulas contratuais gerais. Pré-formulação, generalidade e imodificabilidade aparecem, assim, como as características essenciais do conceito. [3] (cf. n.º 1 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 220/95, de 31 de Janeiro, pelo Decreto-Lei n.º 249/99, de 7 de Julho e pelo Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro  – doravante, apenas LCCG[4]).


No caso sub judice, porém, a factualidade provada não evidencia que a autorização de preenchimento da livrança, com o conteúdo que consta do documento complementar de fls. 47, haja sido integrada no programa negocial, nos termos invocados pelo recorrente.


Note-se, aliás, que tal matéria nem sequer foi alegada pelo recorrente nos articulados da ação, tendo apenas na fase recursória suscitado a questão da exclusão do acordo quanto ao preenchimento da livrança, ao abrigo do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, alegando tratar-se de matéria de conhecimento oficioso - como efetivamente é[5] - para assim lograr a sua apreciação pelo Tribunal Superior.


Seja como for, o certo é que não ficou provado que o acordo de preenchimento da livrança seja igual, na forma e no conteúdo, àquelas que a recorrida insere em todos os contratos de mútuo que celebre, em situações similares, sem ter sido objeto de discussão individualizada entre os contratantes e sem a possibilidade de introduzir alterações.


Ora, recaindo sobre o embargante o ónus de alegar e provar que se está perante um contrato sujeito à disciplina legal das Cláusulas Contratuais Gerais (cf. art. 342º, nº1, do CC), prova que não logrou fazer, a sua alegação não pode deixar de improceder.


Desta forma, mostra-se também prejudicado o conhecimento das questões atinentes à violação dos deveres de informação e comunicação, nos termos previstos na LCCG.



***



13. Da (in)validade da livrança

O recorrente veio alegar que a livrança dada à execução foi entregue ao Banco Exequente apenas com o campo relativo à assinatura dos subscritores devidamente preenchido e com o verso contendo as assinaturas e expressões constantes da alínea a) da dos factos dados como provados e que, não tendo dado autorização ao Banco para lhe apor a data, a falta desse requisito essencial invalida o título cambiário, que não pode produzir efeitos como livrança, nos termos do disposto nos art.º 75º e 76º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (doravante LULL).

Ora bem.

A livrança deve conter, entre outras menções, a indicação da data e do lugar em que foi passada, sob pena de não produzir efeito como livrança, conforme decorre do disposto nos arts. 75º, nº6, e 76º, da LULL.


Não obstante, a lei permite que, em determinadas circunstâncias, a livrança incompleta possa ser posteriormente completada (art. 10º, da LULL, ex vi do art. 77º, da mesma Lei).

Como se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de 20/10/2015 (proc. no 60/10.6TBMTS.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt:

"A livrança em branco, deverá ser entregue pelo subscritor, ao credor, dando-lhe a autorização para a preencher. O preenchimento da livrança incompleta é uma condição imprescindível para que o título possa produzir os efeitos como livrança. Esse preenchimento deverá ser efetuado segundo o acordo ou contrato de preenchimento. Este concretizará os termos em que a obrigação cambiária se deverá constituir (indicação do montante, do tempo de vencimento, do lugar do pagamento, da estipulação de juros etc..

(…)

Do confronto entre os arts. 75º e 76º da L.U. (em que, respectivamente, se estabelecem os elementos que a livrança deve conter e em que se demarcam os requisitos, cuja falta determina a invalidade do título como letra), por um lado, e o art. 10º, por outro, conclui-se que o momento decisivo para se determinar a validade da letra não é o da emissão, mas sim o do vencimento.”[6]

Note-se que o pacto ou contrato de preenchimento não está sujeito a forma especial, podendo ser expresso ou tácito, definindo-se, então, os seus contornos a partir da natureza da relação fundamental e dos usos do comércio.

Como ensinava José Gabriel Pinto Coelho (Lições de Direito Comercial, 2º Vol., Fascículo II, pág. 40), as cláusulas ou termos de preenchimento nem sempre são directamente estabelecidos numa estipulação, muitas vezes resultando implicitamente do próprio contrato que dá origem ao título, isto é, da relação jurídica fundamental - quando se fala de acordo quanto ao preenchimento tanto se consideram os acordos expressos como os tácitos, definindo-se o seu conteúdo pelos próprios termos da relação fundamental subjacente.

Importa também ter presente que o abuso de preenchimento não gera nulidade do título, mas apenas a redução do capital inscrito (cf., neste sentido, o ac. deste STJ de 28/4/2016, proc. 1106/12.9YYPRT-B.P1.S1).

Por sua vez, a existência de um acordo de preenchimento, e sua inobservância assume a natureza de exceção perentória, uma vez que traduz a alegação de facto impeditivo do direito do exequente.

Invocada essa exceção, em processo de embargos, o respectivo ónus da prova impende sobre o embargante.[7]

In casu:

O título executivo dado à execução é uma livrança, de cujo teor consta a data de emissão de 6.1.2017, com vencimento em 13.01.2017, no montante de € 110.737,06, emitida como garantia do pagamento de todas as responsabilidades assumidas ou a assumir pela mutuária perante o Banco, por crédito concedido ou a conceder e valores descontados e/ou adiantados até ao limite de € 120.000,00, respectivos juros, despesas e encargos, no âmbito de contratos celebrado com a exequente (cf. als. a) e b), dos factos provados).

A livrança foi aceite pela mutuária e avalizada pelo ora embargante, sem a aposição do valor facial e data, tendo sido acordado entre as partes que a exequente, em caso de incumprimento, a podia preencher, com os elementos em falta, nomeadamente a data de vencimento e local de pagamento, montante correspondente ao saldo em dívida, juros, despesas e encargos (cf. als. c), d) e f), dos factos provados).

Perante o incumprimento das obrigações assumidas pela mutuária, a exequente enviou ao embargante uma carta comunicando-lhe a resolução dos contratos e a quantia em dívida, bem como que tal valor se encontra titulado pela livrança avalizada pelo embargante, para garantia do montante referido, cujo pagamento deverá ser efetuado até ao dia 13.01.2017, data do respectivo vencimento (cf. als. c) e h), dos factos provados).

Sendo esta a factualidade provada, é de concluir ser totalmente destituída de fundamento a alegação do recorrente de que não foi respeitado o pacto de preenchimento firmado com a exequente.


***

O recorrente veio ainda alegar que “a sociedade subscritora da livrança foi declarada insolvente em 7.4.2016 e que a data de emissão aposta - 06.01.2017- é muito posterior à data de declaração de insolvência da empresa subscritora da livrança” para daí concluir pela nulidade da livrança.

É completamente infundada a sua alegação, desde logo por se basear em pressupostos que não encontram qualquer suporte no elenco factual dado como provado.

Todavia, ainda que assim não fosse, e tal como se considerou no acórdão deste STJ de 4.7.2019, acima referido, tendo a embargada sido autorizada a preencher a data de vencimento das livranças em função do incumprimento das obrigações pela devedora, sem outras condicionantes, não se vislumbra fundamento para considerar que, ao apor na livrança uma data posterior à declaração de insolvência da devedora, o título se encontra ferido de nulidade ou que tenha incorrido em preenchimento abusivo.

Não faz assim qualquer sentido a argumentação do recorrente para se eximir à responsabilidade que assumiu enquanto avalista da quantia garantida pela livrança dada à execução.[8]


IV – Decisão

14. Nestes termos, acorda-se em negar a revista.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 10.12.2019


Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado (Relatora)

Oliveira Abreu

Ilídio Sacarrão Martins

_______

[1] Cf. Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017 - 4ª edição Almedina, página 299.
[2] Ob. citada, pág. 167.
[3] As cláusulas contratuais gerais definem-se como estipulações elaboradas “(…) em vista de uma pluralidade de contratos ou de uma generalidade de pessoas, para serem aceites em bloco, sem negociação individualizada ou possibilidade de alterações singulares (…)” – cf. Almeno de Sá, “Cláusulas Contratuais Gerais e Diretiva Sobre Cláusulas Abusivas”, 3ª Edição, Almedina, pág. 212.
[4] Diploma a que pertencerão os preceitos doravante indicados sem outra menção.
[5] Cf. ac. deste STJ de 30.11.2017, proc. 1329/14.6T8LSB.L1.S1     
[6] Seguindo esta mesma orientação, pode consultar-se o recente acórdão deste STJ proferido em 4.7.2019, proc. nº  4762/16.5T8CBR-A.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt        
[7] É esta, aliás, a doutrina do Assento do STJ de 14/4/96, in BMJ 457,59 que decidiu que, «em processo de embargos de executado, é sobre o embargante, subscritor do cheque exequendo, emitido com data em branco e posteriormente completado pelo tomador a seu mando, que recaía o ónus da prova da existência de acordo de preenchimento e da sua inobservância.»
[8] Rejeitando a desoneração do avalista perante o credor, em caso de declaração de insolvência da subscritora de livrança, pode consultar-se o supra mencionado acórdão do STJ de 28.4.2016, proc. 1106/12.9YYPRT-B.P1.S1, www.dgsi.pt