Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3220/07.3TBGDM-A.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÂO
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: MUTUO BANCARIO
BOA FÉ
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/26/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO BANCÁRIO - ACTOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL -
CRÉDITO BANCÁRIO / MÚTUO.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURICAS / FACTOS JURÍDICOS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / FIANÇA / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES.
Doutrina:
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6.ª edição, 777, nota de pé de página.
- António Azevedo Ferreira, A Relação Negocial Bancária, 323.
- Frederico Faro, Fiança Omnibus no Âmbito Bancário: Validade e Exercício da Garantia à Luz do Princípio da Boa Fé, pp. 407, 411.
- Januário Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida, 116.
- Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 5.ª ed., 200, 346, 785.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º, 627.º, N.º2, 640.º, AL. A), 762.º, N.º2.
REGIME GERAL DAS INSTITUIÇÕES DE CRÉDITO (DECRETO LEI N.º 298/92, DE 31.12, COM SUCESSIVAS ALTERAÇÕES): - ARTIGO 74.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 4.2.2008, COM TEXTO DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Sumário : Age em abuso do direito, por violação manifestamente excessiva do princípio da boa fé, o banco que, num mútuo para habitação, garantido com seguro de vida do mutuário a seu favor, hipoteca, fiança com a cláusula de “principais pagadores” e seguro do imóvel, sendo informado da morte do devedor, move execução ao mesmo mutuário – com habilitação posterior dos herdeiros – e aos fiadores, invocando falta de pagamento das prestações, sem se dirigir primeiro àquela seguradora.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1 . AA e BB, enquanto fiadores, deduziram oposição à execução que contra eles e CC, moveu o Banco DD Imobiliário, SA.  

Alegaram, em síntese, que:

Em Dezembro de 2000 faleceu o executado/devedor principal (CC);

Por isso, deve a execução ficar suspensa até se apurar se a herança tem, ou não, bens que respondam pela dívida;

Tendo sido celebrado um contrato de seguro de vida como condição do empréstimo concedido, competia à exequente, e só a ela, cobrar o seu crédito da respectiva seguradora, nada mais havendo a pagar por parte dos herdeiros ou fiadores;

Eles, opoentes, são, por isso, parte ilegítima;

Em qualquer caso, a quantia exequenda inclui valores de juros já pagos em 2008.

Pediram, em conformidade:

Que sejam considerados parte ilegítima;

Não o sendo, que se suspenda a execução;

Em qualquer caso, que seja reduzida a quantia exequenda.

Contestou o exequente.

Impugnou a factualidade alegada, salvo o pagamento de valores a título de juros e o óbito do executado;

Sustentou ainda que os oponentes, no contrato, renunciaram ao benefício da excussão prévia, constituíram-se fiadores principais pagadores, e, assim, são responsáveis solidários pela dívida;

Não tem qualquer “registo” do alegado contrato de seguro, pois embora a exigência da sua celebração conste nas “condições gerais” integrantes da escritura, nunca ele lhe foi apresentado.

2 . Entretanto, por sentença de 02-12-2009, EE, FF e GG foram considerados habilitados como herdeiros do falecido CC.

E no apenso, “HH” foi, por sentença de 12-03-2012, julgada habilitada como cessionária da primitiva exequente.

3 . A oposição prosseguiu e, na altura oportuna, com fundamento em abuso do direito, foi julgada procedente, declarando-se extinta a execução.

4 . Apelou a exequente, com êxito, porquanto o Tribunal da Relação do Porto decidiu revogar a decisão recorrida, julgando improcedente a oposição e determinando que a execução prosseguisse os seus termos.

Tendo elaborado o seguinte sumário:

“Por o Banco exequente, com fundamento num contrato de mútuo hipotecário a que estava associado, em seu benefício, um seguro de vida do mutuário entretanto falecido, executar os seus herdeiros e os fiadores, não age em abuso de direito (artº 334º, do C. Civil).”

5 . Pedem revista os opoentes.

Concluem as alegações do seguinte modo:

 

1- O Banco tem realmente na mão um título executivo quanto ao saldo da conta devedora do CC. Porém,

2 - A execução do título existente ofende os princípios da boa fé e do bom costume, previsto no artigo 334.° do Código Civil. É que,

3 - O Banco tinha e tem um seguro de vida feito em seu exclusivo favor, para com o mesmo satisfazer o seu crédito no caso de morte do segurado. Porém,

4 - O Banco, único que pode accionar o seguro, porque feito em seu favor, não actuou contra a seguradora. Ora,

5 - Se não actuou contra a seguradora, não pode sem pelo menos tentar cobrar da seguradora exigir o pagamento dos herdeiros do finado devedor.

6 - Mas uma vez feito o seguro a favor do Banco, só ele pode pedir o respectivo pagamento. E,

7 - Se não o fez, deixa a porta aberta, sem qualquer explicação da razão porquê. Assim,

8 - É manifesto que estamos perante um caso gritante da aplicação do artigo 334.° do Código Civil.

 9 - Em manifesta má-fé, o Banco afirmou no processo, que desconheceu a morte do mutuário CC. Mas,

10 - Tal posição foi considerada errada, o que desde logo e também, faz pecar sobre o Banco uma má fé evidente, e que só funciona contra os devedores neste caso contra os fiadores.

Termos em que, e ao abrigo do disposto no artigo 334.° do Código Civil, e porque entendemos que o Banco ao exigir dos devedores - fiadores o seu crédito, age com malícia, má fé refinada, pelo que nada mais lhe resta do que accionar, se o entender, a respectiva seguradora, mantendo-se a decisão da primeira instância.

Contra-alegou o exequente, pugnando pela manutenção do decidido.

6 . Ante as conclusões das alegações, importa saber se o exequente viola o princípio da boa fé contratual ou dos bons costumes agindo em abuso do direito.

7 . Vem provada a seguinte matéria de facto:

1. Por escritura pública outorgada em 18 de Agosto de 1997, no Sexto Cartório Notarial do Porto, o Banco Exequente celebrou com CC, um contrato designado de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança mediante o qual lhe emprestou a quantia de € 88.990,03, quantia da qual o mesmo se confessou devedor, nos termos e condições que constam a fls. 13 a 24 dos autos de execução.

2. AA e BB declararam nessa escritura que solidariamente afiançam todas as obrigações que o mutuário assuma, a título do presente empréstimo e na qualidade de fiadores e principais pagadores.

3. Para garantia do pagamento do capital de € 88.990,03, dos juros e demais despesas, o executado constituiu uma hipoteca sobre a fracção autónoma designada pelas letras "AA", correspondente a uma habitação no segundo andar, direito, do prédio sito na Rua dos …, …/…, freguesia de …, Concelho de Gondomar, descrito na Conservatória de Registo Predial de Gondomar sob o nº ….

4. Tal hipoteca encontra-se registada a favor do Banco Exequente, mediante a Ap. nº …/…, convertida em definitivo pela ap. …/….

5. Na cláusula 4ª das condições gerais constantes do documento complementar da escritura, junto a fls. 18 e ss, as partes estipularam que “o mutuário obriga-se a contratar um seguro de vida cujas condições, constantes da respectiva apólice, serão as indicadas pelo Banco, bem como se obrigam a manter seguro o imóvel hipotecado contra os riscos e pelo valor que o Banco indique. As apólices adicionais dos seguros ficarão em poder do Banco mutuante como interessado nos mesmos, na qualidade de credor hipotecário (…)”.

6. O empréstimo concedido pelo Banco exequente tem como sua condição a efetivação de um contrato de seguro de vida a favor do Banco mutuante, contrato feito em 18/08/1997 do crédito à habitação que tem o n.º … e tomado pelo grupo Banco II Seguros Vida.

7. Por sentença proferida nos autos principais em 2 de Dezembro de 2009, EE, por si e na qualidade de representante legal de FF e GG, foram julgados habilitados, como únicos e universais herdeiros de CC para prosseguir os termos da execução.

8. Por sentença proferida no apenso C em 12/03/2012, HH. foi julgada habilitada, como cessionária do crédito exequendo para prosseguir os termos da execução.

9. A título de restituição da quantia referida na al. A) dos factos assentes, CC entregou ao Banco Exequente € 14.325,80.

10. O devedor principal faleceu em 24/12/2000, o que foi comunicado ao Banco exequente.                                         

11. EE intentou contra o primitivo Banco exequente e Grupo Banco II Seguros de vida uma acção declarativa de condenação na forma ordinária que correu termos pelo 1º Juízo Cível deste Tribunal sob o nº 1163/04.1TBGDM, com os fundamentos constantes da petição inicial junta aos autos e que aqui se dá por reproduzida, tendo as RR nesses autos sido citadas, no dia 26/04/2004 – cfr. certidão ora junta a fls. do apenso A.”

Tendo, ainda a propósito da matéria de facto, a Relação consignado que:

“Tal certidão – acrescenta-se – consta de fls. 138 a 150, dela se vendo que a aí autora EE, viúva do executado CC interpôs a acção declarativa (de cujo processo ela foi extraída) em 15-04-2004, na qualidade de cabeça de casal e administradora da respectiva herança, nela invocou, como causa de pedir o contrato de seguro outorgado pelo defunto marido com a segunda ré seguradora em cumprimento de cláusula integrante do “contrato de compra e venda com mútuo hipoteca e fiança” celebrado com o primeiro réu Banco, alegou que “instou várias vezes os réus para procederem ao pagamento da indemnização a que tinha direito, ao que estes respondiam que não podiam proceder ao seu rateio por falta de prémio de seguro por parte da autora” mas que, segundo o contrato, caso tal pagamento estivesse em falta, “que em todo o caso se duvida”, o Banco podia pagá-lo, sendo, pois, ela e os filhos, beneficiários, e pediu que, na procedência da acção, os réus fossem condenados a pagar-lhe, a ela autora, o capital e juros referidos.”     

8 . Entre o Banco DD Imobiliário, SA e CC foi efetuado um contrato de mútuo.

Neste contrato intervieram os agora opoentes, declarando que, relativamente às obrigações que o mutuário assumia, se constituíam fiadores, principais pagadores.

A qualidade de principais pagadores não se identifica com a de condevedor solidário – assim, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6.ª edição, 777, nota de pé de página e Acórdão deste Tribunal de 4.2.2008, com texto disponível em www.dgsi.pt.

Temos, então, um devedor e dois fiadores.

9 . Não obstante não perderem a sua qualidade, os fiadores, ao se assumirem como principais pagadores, não podem invocar o benefício de excussão – artigo 640.º, alínea a) do Código Civil.

Daqui emergindo que o banco credor – agora a entidade que lhe sucedeu – pode, à partida, exigir de quem sucedeu no débito ao mutuário e dos fiadores o pagamento do montante em dívida; quanto a estes sem demonstrar a excussão.

10 . Para além da fiança, as obrigações decorrentes do mútuo para o mutuário e fiadores ficaram garantidas por hipoteca e seguro do imóvel.

11. Ainda para além disso, o banco exigiu que fosse efetivado, a favor dele, um contrato de seguro de vida do mutuário.

Não estamos perante um seguro de crédito, porque neste o segurador se obriga a indemnizar o credor no caso de virem a ter lugar riscos relativos ao pagamento (principalmente se tiver lugar mora ou incumprimento definitivo). Não se trata aqui de indemnização.

Mas, não se tratando dum seguro de crédito, os seus efeitos práticos confundem-se: No caso de falecimento do mutuário, o banco recebe o montante do seguro e assim obtém o correspondente à satisfação do seu crédito.

12 . Como é claro, à partida, face aos termos contratuais, a existência deste seguro em nada afeta as obrigações, quer do mutuário, quer dos fiadores. No caso de morte daquele, fica ao dispor do banco o montante objeto do seguro e continua ao seu dispor o acionamento dos que sucederam ao mutuário no crédito e dos fiadores (ainda que, como é evidente, não em regime de acumulação de pagamento).

13 . Contudo, cremos que uma análise mais profunda das relações entre todos conduz a solução diferenciada no sentido do apontar da exigência por parte do credor.

14 . A atividade bancária constitui um capítulo fundamental na atividade económica. Vilipendiada por uns, bem aceite por outros, não deixa de encerrar um ramo do direito em grande evolução.

Apresentando áreas diferenciadas, não pode ignorar-se que algumas delas “têm regras especiais de interpretação ou, pelo menos, suscitam no seu âmbito, uma discussão específica sobre o tema, discussão essa que, depois, poderá ter efeitos interpretativos.” Cabe, então, “ao intérprete-aplicador posicionar, dentro do sistema jurídico-bancário, o problema que tenha em mãos…” Em “áreas como as da contratação, está em causa – ou poderá estar – a tutela do consumidor de produtos financeiros” (Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 5.ª ed., 200).  

Não surpreende, pois, que o artigo 74.º do Regime Geral das Instituições de Crédito (Decreto Lei n.º 298/92, de 31.12, com sucessivas alterações) disponha que:

“Os administradores e os empregados das instituições de crédito devem proceder, tanto nas relações com os clientes como nas relações com outras instituições, com diligência, neutralidade, lealdade, discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhes estão confiados.”

Sendo certo que “o critério de diligência, aparentemente orientado para os administradores e para o pessoal dirigente mas, no fundo, destinado ao próprio banqueiro, enquanto instituição, aponta para a bitola do banqueiro criterioso e ordenado. Trata-se da recuperação, com fins bancários, da figura do bonus pater familias, prudente, ordenado e dedicado” (ob. acabada de citar, 346).

Afirmando António Azevedo Ferreira, A Relação Negocial Bancária, 323, que “do relacionamento entre bancos e clientes resulta necessariamente um quadro de cooperação e confiança mútuas muito mais rigoroso e exigente do que nos relacionamentos estabelecidos com empresas de outra natureza…”

Na verdade, onde impera o dinheiro cede, com frequência, a ética. Cedência que é agudizada pela concorrência entre as próprias empresas de crédito e a inerente imposição de resultados.

Além disso, o dinheiro hierarquiza as pessoas. Quem o tem fica, por regra, colocado numa posição de superioridade relativamente a quem dele carece.

E é com todo este quadro de envolvência que as partes chegam aos contratos.

15 . Um dos capítulos de extrema relevância na atividade bancária diz respeito aos contratos de mútuo, em especial visando a aquisição de habitação.

A não posição igualitária entre as partes é aqui acentuada. Dum lado está uma instituição bem informada, vocacionada e dimensionada para a efetivação deste tipo de contratos e do outro um particular dependente economicamente do ato bancário, sobre o qual, por regra, pouco sabe.

Neste quadro, o banco dita as regras, surgindo um contrato eivado de domínio bancário com manifestação particular quanto a garantias (referindo Menezes Cordeiro, a páginas 785 da obra citada, que “o zelo dos funcionários bancários leva, por vezes, a um garantismo demencial…” “no limite o Direito intervém”…nestes casos “pode - se “ex bona fide” ir mais longe, mercê do desequilíbrio da situação”).

Merece, pois, pleno acolhimento e atenção o que refere Frederico Faro (Fiança Omnibus no Âmbito Bancário: Validade e Exercício da Garantia à Luz do Princípio da Boa Fé, 407):

“Como se sabe, no campo do Direito Bancário, desde há muito, já se vem reconhecendo a força da interação dogmática existente entre a efetivação das garantias fixadas em favor dos bancos e o princípio da boa fé.”  

 

16 . Uma das garantias a que geralmente os bancos lançam mão é a fiança. Com muita frequência acompanhada da dispensa do benefício de excussão prévia.

Fica, assim, o fiador em posição ideal, sob o ponto de vista do credor, para assegurar o pagamento.

Já vimos, contudo, em 8, que, apesar disso, não perde a sua qualidade, mantendo-se a sua obrigação como acessória por força do artigo 627.º, n.º 2 do Código Civil.

A acessoriedade, nestes casos, não lhe permite beneficiar da necessidade de excussão dos bens do devedor principal, mas mantém-se, determinando, quanto aos limites do exercício da garantia pelo beneficiário, também o recurso ao princípio da boa fé (cfr-se Januário Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida, 116).   

17. A boa fé, assim como os institutos que com ela caminham interligados, da tutela da confiança e do abuso do direito envolvem necessariamente um esforço jurisprudencial intenso e profundamente ponderado.

Temos os artigos 762.º, n.º2 e 334.º do Código Civil, mas, com eles ou outros que porventura pudessem interessar, a lei não “cai” sobre os factos diretamente com uma das suas interpretações. Há-de o julgador decidir onde está a tolerância assente num clima de liberdade contratual, de aceitação razoável das forças do mercado e dos riscos a estas inerentes e onde se ultrapassou a razoabilidade, demandando a intervenção limitadora do órgão soberano.

18 . No caso presente, o banco ficou garantido com hipoteca, com fiadores (na qualidade de principais pagadores), com seguro de vida e com seguro do imóvel.

O seguro de vida foi condição por ele imposta, tendo-o a si mesmo como beneficiário e com direito a indicação das respectivas “condições constantes da respectiva apólice.”

Os contratos de mútuo para compra de habitação vivem muito dos proventos que vão sendo sucessivamente auferidos pelo mutuário que, assim, vai pagando as prestações. Se este falece na pendência da relação contratual, cessa a entrada daqueles, pondo em causa severamente o cumprimento contratual. Daí que seja frequente o seguro de vida, com a inerente ideia para todos os intervenientes contratuais de que, em caso de morte, tudo fica solucionado com o recurso à  realidade securitária. Legitimamente, os fiadores pensarão que, em tal caso, nada serão chamados a pagar.

Por isso, a normalidade comportamental (a que fundadamente recorre Frederico Faro, no mencionado Estudo, página 411, ainda que para delimitação do campo de incidência da fiança omnibus) apontava, claramente, para que, em caso de falecimento do mutuário, “funcionasse”, em primeira linha, o seguro de vida. No normal das expectativas, o seguro seria sempre acionado e cobriria o que era devido, ficando os demais obrigados libertos.

Tratou-se, na verdade, dum seguro com fins específicos que só se compreende, numa perspectiva razoável, como preclusor da efetivação do crédito relativamente aos herdeiros do falecido ou aos garantes.

E tanto assim é que o banco exigiu mesmo que ficasse como beneficiário em caso de morte. Não havia caminho indireto de ressarcimento, nem riscos daí derivados.

Nem o banco poderá argumentar, a nosso ver validamente, com falta de pagamento dos prémios do seguro.

Não só não se provou que essa falta tenha efetivamente ocorrido, como contratualmente ficou estipulado que poderia efetuar o pagamento de eventuais prémios em falta, no seguimento da faculdade que lhe conferiu a cláusula 4.ª do Contrato de Mútuo, ainda que, depois, pudesse haver do responsável o ressarcimento.

19 . Visando o recebimento do dinheiro emergente do seguro, a viúva intentou uma ação declarativa que naufragou.

Não se apurou exatamente porquê, nem tal apuro se mostra importante para a nossa decisão. Fica sempre de pé que ela não recebeu tal dinheiro.

A construção que vimos fazendo cederia, quanto a ela, se o tivesse recebido. Não o tendo recebido, nada afeta tal construção; até a reforçando no sentido da imposição ao banco em ser ele a procurar recebê-lo.

20 . Dispondo este do benefício constante do contrato de seguro menos ainda se justifica – sempre atento o princípio da boa fé consignado no artigo 762.º, n.º2 do Código Civil – que venha junto dos fiadores para obter a satisfação do seu crédito.

Já referimos serem eles principais pagadores, mas a manutenção da acessoriedade releva no domínio da figura da boa fé.

Com a satisfação do crédito mesmo “à mão” o banco vai particularmente longe, invadindo os direitos de quem, apesar de se ter vinculado, não beneficiou do mútuo, nem se constituiu devedor.

21 . Primeiramente tinha, portanto, que ir junto da seguradora procurar obter aquilo a que tinha direito.

Só malograda esta intenção, poderia legitimamente executar os herdeiros do mutuário e os fiadores.

Em lugar disso, tendo-lhe sido comunicado o falecimento (ponto 10.º do factos provados) veio afirmar no requerimento executivo que “O Executado não efectuou o pagamento de algumas prestações”, ignorando a morte.

Não se sabe se a esquecera mesmo. Tinha-lhe sido comunicada e a boa fé que vimos referindo, prevista no mencionado artigo 762.º, n.º2 do Código Civil, é a objetiva.

22 . Do exposto resulta ainda que a violação é manifestamente excessiva, preenchendo o exigido pelo artigo 334.º do Código Civil.

23 . Face ao exposto, em concessão da revista, revoga-se a decisão recorrida, repondo-se a de 1.ª instância.

Custas aqui e nas instâncias pelo opoído.

Lisboa, 26 de Junho de 2014

João Bernardo

Oliveira Vasconcelos

Serra Baptista