Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
10157/16.3T8LRS.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO MORTE
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
CULPA DO LESADO
NEXO DE CAUSALIDADE
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME PARCIAL
SEGMENTO DECISÓRIO
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
QUESTÃO NOVA
Data do Acordão: 05/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Havendo diversos segmentos decisórios (uns favoráveis, outros não), distintos e autónomos, o conceito de dupla conforme terá de se aferir, separadamente, relativamente a cada um deles.

II. Assim, só não há dupla conforme (havendo revista normal nessa parte) no segmento em que a Relação não confirme a decisão da 1ª inst. (ou confirme mas com fundamentação essencialmente diferente), ou no segmento em que o adjunto votou vencido.

III. O critério a aplicar na apreciação da culpa do lesado aludida no artº 570º do Cód. Civil é o do bom pai de família - o tipo de homem-médio ou normal que as leis têm em vista ao fixarem os direitos e deveres das pessoas em sociedade.

IV. Para se aplicar o regime ínsito naquele artº 570º CC é necessário que a actuação do lesado seja subjectivamente censurável em termos de culpa, não bastando, assim, a mera causalidade da sua conduta em relação aos danos.

V. Não obstante a idêntica dignidade de toda e qualquer vida humana, uma vida não tem apenas um valor de natureza, mas sobretudo um valor social. Pelo que as circunstâncias pessoais de cada vítima não são (nem podem ser) irrelevantes para a atribuição da compensação pelo dano da morte (da lesão do direito à vida – sendo que tal indemnização ou compensação deverá constituir um lenitivo para os danos suportados, não devendo, portanto, ser miserabilista), sob pena de, em nome de um conceptualismo extremo, se olvidarem as realidades da vida e a ordem natural das coisas.

VI. O recurso à equidade aludido no nº 3 do artº 496º CC não contende com a necessidade de atender às exigências do princípio da igualdade, a exigir a busca de uma uniformização de critérios, sem descurar a especificidade das circunstâncias do caso concreto a apreciar.

VII. Tendo o falecido em acidente de viação 45 anos de idade e um bom relacionamento com o seu único filho, o autor, e ficando este, com a perda do pai, a padecer de muita tristeza, angústia e amargura, entende-se adequado fixar a indemnização pelo dano morte em € 80.000,00 (oitenta mil euros).

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível.



O Autor AA demandou os Réus:

o ASF- Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundo de Pensões — Fundo de Garantia Automóvel e

o BB.

Pede  a condenação solidária de ambos no pagamento de € 148.930,00, acrescido dos juros vencidos, desde a citação, até integral pagamento e no ressarcimento.

Alega, em síntese, que seu pai foi vítima mortal num acidente de viação, quando seguia no veículo automóvel, propriedade do 2° réu, BB, sendo que acidente ocorreu por culpa exclusiva do 2º Réu.

Os valores peticionados (que decorrem do aludido acidente) correspondem a: €80.000, 00 pela perda do direito à vida de seu pai (dano morte); €25.000,00 pelo sofrimento de seu pai antes de falecer; € 40.000,00 por danos não patrimoniais sofridos pelo Autor e; €3.930,00 de despesas que suportou com o vestuário, flores e deslocações ao tribunal.

A Segurança Social, I.P., interveniente no processo, deduziu pedido de reembolso das despesas por si suportadas relativas ao funeral (€ 1.257,66) e às pensões de sobrevivência pagas ao autor, durante o período de Setembro de 2015 a Agosto de 2018, no valor de € 14.996,19, num total de € 16.253,85.

Os Réus apresentaram contestação.

- O Fundo de Garantia Automóvel, impugnou, in totum, o alegado pelo autor concluindo pela absolvição do pedido. E no que concerne ao pedido de reembolso efectuado pela Segurança Social, excepcionou a sua ilegitimidade quanto ao pedido de reembolso do valor das retribuições pagas ao autor, a título de prestações por morte, ex vi art. 51 DL 291/2007, de 21/8, defendendo que o direito de regresso (pagamentos efectuados/lesado) é exercido tão só contra o responsável civil do acidente, no mais impugnou o alegado, concluindo pela absolvição do pedido.

A Segurança Social, pugnou pela improcedência da excepção arguida.

- O 2° réu BB, impugnando parcialmente o alegado pelo autor quanto à dinâmica do acidente, concluiu pela absolvição do pedido.

Foi dispensada a audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade arguida pelo Fundo de Garantia Automóvel.

Após julgamento foi sentenciada a causa nos seguintes termos:

“Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente e, em consequência,

1. Condeno o réu BB a pagar ao autor, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 80.000,00 — dano de morte € 55.000,00 e danos morais (sofridos pelo Autor) € 25.000,00 — acrescida dos juros de mora, à taxa legal (civil), desde a citação até efectivo e integral pagamento.

2. Condeno o réu BB a pagar ao Instituto de Segurança Social a quantia de € 1.257,66, a título de despesas de funeral e € 14.996,19, a título de pensões de sobrevivência, ambas acrescidas de juros de mora à taxa legal (civil), desde a citação até integral pagamento.

3. Condeno o réu “ASF Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundo de Pensões - Fundo de Garantia Automóvel” a satisfazer as indemnizações, despesas, pensões e juros discriminados em 1 e 2.

4. Absolvo os réus do demais peticionado pelo Autor.”


Inconformados, interpuseram recurso de apelação o Autor e réu FGA, em cujas conclusões rematam:

§ O Autor, para além de sustentar a alteração da decisão da matéria de facto nos termos que ali verte, pede se mantenham os valores indemnizatorios que havia peticionado na petição inicial, e bem assim sejam também condenados solidariamente os recorridos no pagamento dos danos futuros/lucros cessantes peticionados pelo recorrente a calcular em execução de sentença.

§ O Réu Fundo de Garantia Automóvel sustenta que a condenação dos Réus deve ser solidária, mas entende que lhe não assiste a obrigação de pagar as quantias peticionadas pelo ISS.


Contra-alegou o Réu BB.


O Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão, decidiu:

o Rejeitar o recurso da impugnação da matéria de facto, por incmprimento pelo recorrente dos ónus ínsitos noartº 640º do CPC;

o Sentenciar a causa nos seguintes termos:

“… acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente e, consequentemente, revogando-se os segmentos da decisão no que concerne ao valor de indemnização respeitante ao dano de morte, que se fixa em € 80.000,00, e ao que condenou de per si cada um dos réus, determina-se a condenação solidária dos réus (BB e Fundo de Garantia Automóvel) no pagamento ao autor, a título de danos não patrimoniais a quantia de € 105.000,00, confirmando-se, no mais, a sentença”.


De novo inconformado, vem o réu Fundo de Garantia Automóvel apresentar recurso de revista, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:

A) O douto Acórdão recorrido, veio aumentar o dano morte fixado pela 1ª instância em € 55.000,00 para € 80.000,00.

B) Embora se aceite que o entendimento, de não aplicação dos valores fixados pela Portaria 377/2008 de 26 de maio, por estabelecerem valores mínimos de proposta razoável, o que é certo é que cada vez mais se verifica uma grande aproximação de valores face à jurisprudência superior mais recente.

C)        Estamos em crer que a situação mais harmoniosa e justa à situação em preço deverá passar por valor não superior a € 55.000,00 ao invés dos € 80.000,00 fixados pelo Douto Tribunal “a quo”.

D) Salientando-se, ainda, que tal valor ainda deveria ter sido sancionado por se entender que a vítima terá contribuído para os seus danos, a aceitar transportar-se num veículo, bem sabendo que o Réu BB não possuía habilitação legal para conduzir.

E) Conforme dispõe o artigo 570º do C.C., o pedido indemnizatório pode ser reduzido ou até mesmo excluído, na medida em que este possa ter contribuído para o resultado ou agravamento dos seus próprios danos.

F) A douta sentença recorrida ao fixar o montante indemnizatório em termos de dano morte violou, assim, o disposto nos art.ºs 494º, 496º, 562º e 570º todos do Código Civil.

G) Por outro lado, o douto Acórdão recorrido também condena o FGA a satisfazer a indemnização devida ao Instituto de Segurança Social, I.P.;

H) Quando, na verdade, por forma do disposto nos números 3 e 4 do art.º 51º do DL 291/2207 de 21.08, deveria ter condenado apenas o Réu BB.

I)         A douta Sentença violou, assim o disposto nos art.ºs 51º n.ºs 3 e 4 e 62º n.º 1, ambos do DL 291/2007 de 21 de Agosto.

Termos em que,

Revogando-se o Douto Acórdão recorrido, se fará, como sempre,

JUSTIÇA


Colhidos os vistos cumpre apreciar e decidir.


*


É a seguinte a matéria de facto assente nas instâncias:

1 - No dia 1 de Agosto de 2015, por volta das 7 horas e 11 minuta, ocorreu um acidente de viação na Estrada Nacional n° ..., ao Km           junto à localidade de ....

2 - O referido acidente foi causado pelo despiste, e consequente capotamento, por cerca de 100 metros, do veículo da marca ..., Modelo …, com a matrícula …-…-CP, propriedade do réu BB e por este conduzido.

3 - A Estrada Nacional n° ..., ao Km …, é plana e tem uma recta com mais de 300 metros de extensão, depois de descrever uma curva à esquerda, face ao sentido de marcha em que seguia o veículo automóvel com a matrícula ...-...-CP (... - ...), com duas hemi-faixas de rodagem, uma para cada lado do trânsito.

4 - Encontrava-se, à data do acidente, bem asfaltada, com o piso limpo, seco e em bom estado de conservação.

5 - À data do sinistro o mencionado veículo automóvel não tinha seguro válido.

6 - À data do acidente o réu BB não possuía habilitação legal para conduzir.

7 - Em resultado deste acidente resultaram dois feridos com gravidade: um passageiro, CC, que seguia ao lado do condutor do veículo, e o condutor do veículo, ora réu BB.

8 - Em resultado deste acidente resultou ainda um morto, DD, que seguia no banco traseiro do veículo com a matrícula ...-...-CP e que, por força do despiste e consequente capotamento, foi "cuspido" do interior do referido veículo pelo para-brisa dianteiro, tendo falecido de imediato, na berma da estrada onde o seu corpo embateu.

9 - O falecido DD tinha uma taxa de álcool no sangue de 2,10 g/l.

10 - Após o acidente descrito supra, o réu BB abandonou o local através dos campos de milho.

11 - Tendo comparecido mais tarde no posto da GNR, acompanhado pelo tio, de onde depois seguiu de ambulância para o Hospital de ....

12 - Em consequência do acidente supra descrito, o veículo automóvel com a matrícula ...-...-CP ficou totalmente danificado.

13 - À data da morte, o falecido DD tinha 45 anos.

14 - O falecido DD era pai do ora autor.

15 - O autor tinha com o falecido DD um bom relacionamento familiar.

16 - O autor sofreu e sofre de muita tristeza, angústia e amargura, com a morte do pai, e com as circunstâncias da mesma.

17 - Em consequência do falecimento de DD, o ISS/CNP pagou as despesas de funeral do falecido DD a EE, no montante de € 1.257,66 e...

18 - Pagou ao autor pensões de sobrevivência, no período de tempo de Setembro de 2015 a Agosto de 2018, no montante global de € 14.996,19.


*


Todos os restantes factos descritos nos articulados, bem como os aventados na instrução da causa, distintos dos considerados provados – discriminados entre os “factos provados” ou considerados na “motivação” (aqui quanto aos instrumentais) –, resultaram não provados.

Resultaram, assim, não provados os factos que seguem:

a) O falecido DD seguia no lugar do pendura (art. 13)

b) O réu BB, à data dos factos, efectuava uma condução perigosa, desatenta, com falta de perícia e em excesso de velocidade (art. 17 p. i.);

c) O autor recebia, à data do acidente, pensão de alimentos do falecido DD, bem como tudo o que se tornava necessário à frequência da escola, convívio com os amigos despesas escolares e extra-curriculares, deslocações e actividades lúdicas, médicas e medicamentosas, e que vivia exclusivamente da pensão de alimentos e das dádivas do pai (art. 19 p. i.);

d) O autor, em consequência do acidente dos autos, tenha tido gastos com roupa para o funeral, que não tinha, com compra de flores, e tenha tido de efectuar várias deslocações de … à ... e a ... e vice-versa e também vários telefonemas, e que com tais despesas tenha gasto o total de € 1.330,00 (art. 33 p. i.);

e) O autor tenha suportado as despesas com o funeral do falecido DD, no montante de € 2.600,00 (art. 34 p. i.);

f) O falecido DD tenha sofrido dores fortíssimas, angústia e aflição nos últimos momentos da sua vida (art. 36 p.i.)

g) O falecido DD, à data dos factos, exercia em exclusivo a profissão de electricista para a empresa "Metro de ..." e, como contrapartida do seu trabalho, auferia o salário mensal de cerca de € 2.000,00 (dois mil euros) (arts. 44 e 45 p.i.)

h) O falecido DD tinha conhecimento de que o condutor do veículo, réu BB, não estava habilitado para conduzir veículos automóveis e, ainda assim, assumiu o risco de seguir como ocupante do veículo (art. 8 do réu Fundo de Garantia Automóvel);

i) O falecido DD estava numa festa popular com o ora réu e o Senhor CC; que quando saiu da festa para seguir o seu destino no veículo automóvel de sua propriedade, não o encontrou estacionado no local em que pensava tê-lo antes deixado; que pediu auxílio ao ora réu, dizendo-lhe que lhe tinham roubado o carro; que em resposta ao pedido de auxílio daquele, o réu e o Senhor CC, juntamente com o Senhor DD, procuraram o carro deste último nas imediações da festa; que não o encontraram; que o devido ao estado de embriaguez em que o Senhor DD se encontrava pensaram que este estaria a fazer confusão e que teria deixado o carro estacionado em casa; que colocada esta hipótese, o Senhor DD, pese embora soubesse que o réu não estava habilitado a conduzir, pediu-lhe que o levasse no seu (do réu) carro a casa e que o réu acedeu a fazê-lo (arts. 13 a 20 da contestação do réu BB);

j) Que, instados pelo réu a colocarem os cintos de segurança, o Senhor CC acedeu, colocando-o; porém, o Senhor DD negou-se a colocar o cinto de segurança (art. 22 da contestação do réu BB);

k) Que quando iam na Estrada Nacional …, o ora réu sentiu uma dor por debaixo da axila esquerda e, inexplicavelmente, perdeu os sentidos, tendo acordado com os gritos do Senhor CC e o barulho dos sucessivos embates, quando o automóvel já estava capotado; que quando o automóvel parou o Senhor CC saiu pelos seus próprios meios, que o réu se apercebeu que o Senhor DD já não se encontrava dentro da viatura, e ele, ora réu, foi o último a sair do interior do carro; que quando saiu, o réu apercebeu-se que o corpo do Senhor DD estava prostrado no chão, já "arroxeado", tendo verificado que estava morto; que o Senhor CC (que o réu verificou estar gravemente ferido) começou a correr em direção ao campo a gritar que se parasse morria (arts. 23 a 26 da contestação do réu BB);

1) Que o réu BB foi no encalço do Senhor CC, na tentativa de o deter para ser socorrido, o que não conseguiu; que o estado do ora réu, também ferido e com as forças debilitadas, não lhe permitiram correr o suficiente para alcançar o Senhor CC (arts. 28 a 30 da contestação do réu BB) e

m) Que pela distância em que o ora réu se encontrava, e porque se encontrava vestido de escuro, os bombeiros que socorreram CC não o viram, e ele ficou sozinho, no meio do campo, sem forma de comunicar (pois no acidente perdeu o seu telemóvel) e também a necessitar de socorro; que foi então que decidiu continuar a caminhar até ao ..., onde pediu a uns amigos para telefonar ao seu tio, a quem pediu ajuda (arts. 32 a 34 da contestação do réu BB).

Conhecendo.

1. QUESTÃO PRÉVIA.

Porque se nos afigurou a possibilidade de não conhecer do objecto do recurso (por eventual existência de dupla conforme, ut artº 671º, nº 3 CPC) no que tange ao segmento decisório na parte em que se confirma o decidido na 1ª instância relativamente à condenação do Réu/ Recorrente FGA a pagar ao Interveniente Instituto da Segurança Social, IP (ISS) os montantes indemnizatórios por este reclamados nos autos, determinou-se fosse comprido o disposto no nº1 do artº 655º, ex vi  do artº 679º, ambos do CPC.

Este interveniente ISS veio pronunciou-se, dizendo que “de facto, o objeto do recurso quanto ao ISS,IP/CNP não deverá ser conhecido, tendo em conta o previsto o n.º 3 do art.º 671º do Código de Processo Civil”.

Vejamos.

Entende-se que, no que tange ao segmento decisório aludido no ponto 3., na parte em que (por referência ao ponto 2.) se condena o Réu “ASF Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundo de Pensões - Fundo de Garantia Automóvel”a satisfazer as indemnizações, despesas, pensões e juros discriminados em … 2” – isto é, “a pagar ao Instituto de Segurança Social a quantia de € 1.257,66, a título de despesas de funeral e € 14.996,19, a título de pensões de sobrevivência, ambas acrescidas de juros de mora à taxa legal (civil), desde a citação até integral pagamento.”, há dupla conforme, obstacularizadora do conhecimento do recurso, nesse segmento (ut artº 671º, nº3 CPC).

Com efeito, entendemos que havendo diversos segmentos decisórios (uns favoráveis, outros não)[1], distintos e autónomos (as partes podem restringir o recurso a cada um deles), o conceito de dupla conforme terá de se aferir, separadamente, relativamente a cada um deles.

Assim, só não há dupla conforme (havendo revista normal nessa parte) no segmento em que a Relação não confirme a decisão da 1ª inst. (ou confirme mas com fundamentação essencialmente diferente), ou no segmento em que o adjunto votou vencido.

Com efeito, se é certo que, v.g., se num pedido indemnizatório por responsabilidade extracontratual, alguém vem (como ocorre nos presentes autos com o Autor AA) formular um pedido indemnizatório global, mas consubstanciado em pretensões fatiadas (danos patrimoniais e danos não patrimoniais), não é sobre cada uma dessas parcelas que o juízo de conformidade deverá ser feito, mas sim sobre a pretensão global da parte (donde, então, não poder dizer-se que há dupla conforme quanto aos danos morais caso as instâncias fixem o mesmo valor e desconformidade quanto às perdas materiais, que foram avaliadas diferentemente[2]), já assim não deve ser entendido quando se trata de pedidos autónomos e cindíveis (mesmo que apenas principal e acessório – como ocorre, v.g., quanto a pedido de capital e juros). Se as instâncias convergiram quanto a um destes pedidos (autónomos e cindíveis), mas divergiram quanto a outro, há dupla conforme quanto ao pedido em que ocorreu a convergência mas já não quanto ao pedido em que tal convergência não ocorreu (só quanto a este se pode dizer que não há conformidade na decisão, inviabilizadora da dupla conformee, como tal, só há revista quanto a este último)[3].

Vejamos os pedidos e respectivas pronúncias das instâncias.

Como dito, em causas está o pedido deduzido pelo Instituto de Segurança Social de condenação do Fundo de Garantia Automóvel no pagamento das quantias por aquele reclamadas (despesas de funeral, prestações de sobrevivência).

Ora, quer a 1ª Instância, quer a Relação (esta, no segmento decisório em que prescreve “confirmando-se, no mais, a sentença”), condenaram o Recorrente FGA a pagar ao Interveniente ISS o montante indemnizatório por este reclamado nos autos (e, obviamente, a título solidário, pois outro entendimento se não pode extrair das duas decisões, em conformidade com o que se extraio dos normativos legais por ambas citados).

O que se poderia questionar era, tão somente, se – apesar da inexistência de voto de vencido – em ambas as instâncias a conformidade das decisões (neste segmento decisório) teve lugar sem fundamentação essencialmente diferente, como exige o arº 671º, nº 3, do CPC.

Parece evidente que a resposta não poderá deixar de ser positiva. Bastando para tal atentar que:

ü A primeira instância sustenta a sua decisão “no artigo 70.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro e artigos 1.º e 4.º do Dec. Lei n.º 59/89, de 22 de Fevereiro e - não havendo seguro válido e eficaz – por força dos artigos 47.º e ss. do Dec. Lei n.º 291/07 de 21 de Agosto – e DL 322/90, 18.10”;

ü A Relação, por sua vez (nesse mesmo segmento decisório, relativamente ao qual disseconfirmando-se, no mais, a sentença), assenta a sua decisão: “nas alíneas a) e b) do art. 21/2 DL 522/85 de 31/12” (obrigações do FGA); no “artº 49º do DL 291/2007” (que veio substituir a expressão constante daquela alínea a)); no DL 322/90 (pensão de sobrevivência …); e Dec. Lei n.º 59/89 (onde se prescreve que cabe à Segurança Social assegurar, provisoriamente, a protecção do beneficiário, cabendo-lhe exigir o valor dos subsídios ou pensões pagos – sendo que, atendendo ao diploma aludido supra atinente ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, o Fundo de Garantia Automóvel intervém como substituto da seguradora responsável, sendo, assim, responsável solidário no pagamento dos valores despendidos pela Segurança Social).

Como tal, parece apodítico que a fundamentação jurídica carreada por ambas as instâncias, para sustentar a condenação do Recorrente FGA no pagamento das aludidas prestações à Interveniente Segurança Social, não é – de todoessencialmente diferente, antes o é, não apenas essencialmente a mesma, como se nos afigura, até, que é mesmo…a mesma!

O que aqui releva é, portanto, a fundamentação de direito porque dela pode o Supremo conhecer, nos termos dos artigos 674.º, nºs 1 e 2, e 682.º, n.º 1. E a fundamentação essencialmente diferente da vertida na decisão da 1.ª instância é a que tem consequências necessárias nos efeitos qualitativos ou quantitativos da parte dispositiva.

Ora, como vimos, a fundamentação jurídica plasmada nas instâncias de modo algum teve consequências tais que se possa dizer que influenciaram a parte dispositiva, no segmento ora em análise (que é, como dito, um segmento de todo distinto e autónomo do(s) demais, a permitir, apenas sobre si, aferir da verificação ou não da dupla conforme).

Assim, e mesmo que se seguisse nesta temática o critério da mera coincidência formal[4], bem pode dizer-se que, mesmo assim, in casu, a conformidade decisória, no segmento sob apreciação, equivale à confirmação “integral e irrestrita” da decisão da 1ª instância pela Relação. E, como visto, sem fundamentação essencialmente diferente.


A dupla conforme tem a natureza jurídica de pressuposto processual negativo do recurso de revista, pois tem um “efeito inibitório quanto a recorribilidade”[5].

Como tal, verificados os elementos que compõem a previsão de dupla conforme, o recurso de revista não pode ser admitido, sendo indeferido pelo juiz a quo (ut artigo 641.º, n.º 2, al. a), in fine, a título de disposição geral) ou pelo relator (cf. artigo 652.º, n.º 1, al. h), ex vi artigo 679.º).


Termos em que se rejeita a revista quanto a este segmento da decisão.


***


CONHECENDO DO MÉRITO DA REVISTA

Considerando que o “thema decidendum” – o objecto do recurso – é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o disposto nos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), as questões a decidir são:

1. Não aplicação do disposto no art.º 570º do C.C., ao total indemnizatório.

2. Quantificação do valor atribuído ao dano morte;

Apreciando.


DA NÃO APLICAÇÃO DO ESTATUÍDO NO ARTº 570º DO CÓDIGO CIVIL

Alega o Recorrente que, estando provado que a “vítima tinha 45 anos à data do acidente e seguia no banco traseiro do veículo conduzido pelo Réu BB, sem que o mesmo Réu tivesse habilitação legal para conduzir, “facilmente se conclui, até pelo senso comum que a vítima tinha conhecimento de que o Réu BB não tinha habilitação legal para conduzir veículos automóveis e ainda assim aceitou fazer-se transportar na viatura”. Daí concluir o Recorrente que o Tribunal “a quo”, “poderia e deveria ter lançado mão do disposto no art.º 570º do C.C. e aplicado uma redução significativa ao total indemnizatório”.

Adiantando solução, parece-nos claro que não assiste razão ao recorrente.

§ Desde logo, porque, tratando-se de questão nova, não é neste recurso que pode ser suscitada, pois é sabido que o tribunal de recurso não pode conhecer de questões não invocadas nem decididas no tribunal recorrido. E basta atentar nas decisões das instâncias (e nas alegações da apelação do ora recorrente) para concluir que em parte alguma tal questão foi suscitada (e apreciada).

Com efeito, recursos são meios que visam modificar as decisões recorridas, ou seja, para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, que não apreciar/criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, não podendo, portanto, neles ser versadas questões que não hajam sido suscitadas perante o tribunal recorrido, com ressalva das questões de conhecimento oficioso[6]e ainda não decididas com trânsito em julgado [7] - questões estas que tanto podem referir-se à relação adjectivo-processual (v.g., a quase totalidade das excepções dilatórias, ut artº 578º), como à relação substantivo-material controvertida (v.g., nulidade do negócio jurídico, ante o estatuído no artº 286º do CC, e o abuso de direito, tal como vem caracterizado no artº 334º do mesmo Código), à caducidade em matéria de direitos indisponíveis e a inconstitucionalidade material de normas (por ex., as que afrontem intoleravelmente o cerne dos direitos fundamentais).

Portanto, as questões que não foram suscitadas em 1ª instância, não têm que ser ali tratadas, como o não têm que ser nas instâncias de recurso, sendo esta a jurisprudência assente, tanto anterior, como posterior à Reforma do Cód. Proc. Civil de 1995/96[8].

§ Sempre se diga, porém, que o recorrente lavra em meras e vagas ou académicas suposições, não provadas, ao afirmar que “a vítima tinha conhecimento de que o Réu BB não tinha habilitação legal para conduzir veículos automóveis e ainda assim aceitou fazer-se transportar na viatura”, daí ter de assumir a sua parte de culpa na “produção ou agravamento dos danos” (cit. artº 570º, nº1).

Ao contrário do que afirma, ou insinua, a verdade é que esta factualidade consta, sim, mas na relação dos factos não provados (cfr. al. h)[9].

Assim sendo, é despido de suporte factual a afirmação vertida pelo Recorrente, da qual pretende extrair a “partilha” de culpas, para efeitos do artº 570º do CC.


Mas mais.

Dispõe o artº 570º do Cód. Civil:

«(Culpa do lesado)

1. Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.

2. Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar.»

Não desconhecemos o entendimento que a doutrina vem dando a este normativo.

Com efeito, é um facto que o legislador consagrou aqui uma culpa ligada “à não adopção das medidas que teriam evitado o dano ou às consequências previsíveis do facto lesivo actuante, bem como à não eliminação/redução do dano sofrido”, tudo com uma função “nitidamente sancionatória e preventiva”[10]. E bem assim que o critério a aplicar aqui é o do bom pai de família – cujo significado (nem sempre fácil de discernir) vem assim explicado por FERNANDO BAPTISTA DE OLIVEIRA[11]:

[«O conceito de bom pai de família [12], é usado com alguma frequência no direito, maxime no direito civil (veja‑se, v. g., art. 487.º CC, quanto à determinação da culpa na responsabilidade civil por factos ilícitos — “… é apreciada, na falta de outro critério, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”).

É o tipo de homem‑médio ou normal que as leis têm em vista ao fixarem os direitos e deveres das pessoas em sociedade.

Trata‑se de um conceito meramente simbólico destinado a cobrir não só a actuação do homem no âmbito da sociedade familiar, mas todos os variados sectores da vida de relação, por onde se reparte a actividade das pessoas[13].

O bom pai de família é, por isso, um padrão para aferir a culpa, sendo que a palavra «culpa» tem aqui um significado também técnico. Não está em causa toda e qualquer apreciação dos comportamentos, mas apenas a aferição dos cuidados que, em certa ocasião, devam ser tomados. A diligência são os cuidados devidos. Por exemplo, se alguém lesa outrem intencionalmente, a sua «culpa» já não tem nenhuma relação com o bonus pater. O modelo do bom pai de família determina a «culpa» no sentido de «negligência», que é, naturalmente, o contrário de «diligência»].


*


Para se aplicar o regime ínsito naquele artº 570º CC é necessário que a actuação do lesado seja subjectivamente censurável em termos de culpa, não bastando assim a mera causalidade da sua conduta em relação aos danos. A actuação culposa do lesado que contribui para os danos não corresponde, porém, a um acto ilícito, mas apenas ao desrespeito de um ónus jurídico, pois que não existe um dever jurídico de evitar a ocorrência de danos para si próprio.

Ora, o ónus jurídico traduz-se na necessidade, imposta pela ordem jurídica a uma pessoa, de proceder de certo modo para conseguir ou manter uma vantagem[14] - podendo, portanto, cifrar-se em evitar a perda de um benefício antes adquirido[15].

Não se vislumbra que a ordem jurídica impusesse ao malogrado pai do Autor a obrigação de não circular na viatura sinistrada, mesmo que conduzida por alguém sem habilitação legal, sob pena de não manter, ou perder, o direito à indemnização a que tem direito, peticionada nos autos.

Por outro lado, deve ter-se em conta que, como ensina ANTUNES VARELA[16], a expressão facto culposo do lesado visa afastar os actos do lesado que embora contribuindo para a produção ou agravamento do dano não traduzam um comportamento censurável por não se poder afirmar que ele tenha agido com negligência. Afirmação esta última que, como vimos, se não pode fazer relativamente à conduta da vítima, no que aqui importa, precisamente porque se não provou que tivesse conhecimento “de que o Réu BB não tinha habilitação legal para conduzir veículos automóveis”.

Para que o tribunal goze da faculdade conferida no nº 1 do artº 570º do CC, necessário se torna que o acto do lesado tenha sido uma das causas do dano, consoante os mesmos princípios da causalidade adequada aplicáveis ao agente (ver artº 563º) e que o lesado tenha contribuído com a sua culpa para o dano[17].

O Professor ANTUNES VARELA dá, precisamente, como exemplo o caso de “alguém se meter, conscientemente, no veículo conduzido por quem não possui carta e se encontra em manifesto estado de embriaguez[18]. Aí, sim, poder-se-ia dizer que a vítima teria concorrido para a produção dos danos (pois, se soubesse que o condutor não estava habilitado para conduzir e, ainda por cima, se encontrava em manifesto estado de embriaguez, é claro que deveria, não apenas, tudo fazer para que ele não conduzisse a viatura, nesse estado, como não deveria, sequer, nela viajar).

Mas nada disso se provou: não se provou que a vítima soubesse que o condutor não tinha habilitação legal para conduzir, nem que o mesmo se encontrasse em manifesto estado de embriaguez, aquando do acidente ou em qualquer outro estado visível que lhe limitasse ou “toldasse” a capacidade de conduzir em segurança.

E não se almeja que (outro) facto culposo do lesado tenha, ou possa ter, concorrido para a produção ou agravamento dos danos.

Como é sabido, por regra a culpa não se presume (artº 487º, nº 1), sendo certo que casos há em que a funciona a presunção legal de culpa (v.g., arts. 491º, 492º e 493º CC). Aí, sim, a presunção cede provando-se a culpa do lesado.

Portanto, a responsabilidade há-de basear-se na culpa efectiva do agente, segundo a regra geral ínsita no artº 487º CC. Culpa que no caso sub judice se não provou, relativamente à vítima, pai do Autor.

Assim improcede esta questão.

DO MONTANTE ARBITRADO PELO DANO DA MORTE

Não importará aqui tecer particulares considerações sobre o direito à vida.

Bastará referir que o direito à vida é o matricial direito de personalidade, sendo o primeiro dos direitos fundamentais constitucionalmente enunciados, podendo ser denominado de direito essencialíssimo. É lógico que assim seja, pois é condição de todos os demais direitos fundamentais. Como mencionam J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, “[n]ão se trata, porém, apenas de um prius lógico: o direito à vida é material e valorativamente o bem (localiza-se, logo, em termos ontológicos no ter e ser vida, e não apenas no plano ético-deontológico do valor ou no plano jurídico-axiológico dos princípios) mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto”[19].


*

Na 1ª instância foi arbitrada a indemnização, a este título (dano da morte), no montante de 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros), a qual foi elevada na 2ª Instância para € 80.000,00 (oitenta mil euros).

Escreveu-se na sentença:

“ A vida é considerada pelo nosso ordenamento jurídico o bem mais precioso, razão pela qual a sua perda é, naturalmente, o dano de maior gravidade.

Na ponderação do valor desta compensação têm de se considerar, por um lado, as circunstâncias específicas da vítima: a sua idade, a sua saúde, a sua vontade de viver, a sua situação familiar, a sua realização profissional, etc.

No caso em apreço, DD tinha 45 anos e tinha um bom relacionamento com o seu filho, ora autor (cfr. pontos de facto provados n.ºs 13 a 15).

Nada mais se apurou; contudo, é possível afirmar, com estes elementos factuais que tinha, pelo menos, mais de trinta anos de vida pela frente (tendo em conta a esperança de vida média dos homens em Portugal), e condições para dela usufruir, designadamente acompanhando o ora autor, seu único filho. A privação da vida de DD constitui, por isso, como supra se referiu, um dano de gravidade superior.

No que respeita à culpa do réu BB, e como também já se referiu, não se provaram factos que permitam imputar-lhe culpa no acidente.

Em face disto, e tendo em consideração a necessidade de uniformização de critérios em termos jurisprudenciais, ponderando que o Supremo Tribunal de Justiça vem atribuindo indemnizações que, na maioria dos casos, oscilam entre € 50 000,00 e € 100 000.00[20], julga-se adequado fixar este dano em valor indemnizatório de € 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros).[21].


E, outrossim, no Acórdão da Relação:

“…………A lei consagra um direito de indemnização autónomo, pela supressão (biológica) do direito à vida, direito reconhecido constitucionalmente, mais concretamente quando essa ablação da vida surge, não por razões da própria natureza humana, da ordem natural da vida, mas por uma acção natural ou humana, que ocorre de forma inopinada no curso normal da vida de um indivíduo — cfr. Diogo Leite de Campos in Indemnização pelo Dano de Morte, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. I, Coimbra, 1974 — 251e Ac. STJ de 10/5/17, relator Conselheiro Gabriel Catarino in "www.dgsi.pt”[22].

E rematou:

In casu, atentos os factos apurados, constata-se que a pai do autor, com apenas 45 anos de idade, faleceu em consequência do acidente, tinha uma boa relação com o autor seu filho que, com a sua perda, sofre de muita tristeza, angústia e amargura.

Ora, atento o extractado supra e aos valores que a jurisprudência tem atribuído no que ao dano de morte respeita (entre € 50.000,00 a € 120.000,00), fixa-se o valor deste dano (de morte) em € 80.000,00.”.


Será ajustado este valor compensatório arbitrado pela Relaçao?

Vejamos.

No caso de morte, do artigo 496.º, n.º s 2 e 3, do Código Civil, como é sabido, tem sido entendimento na doutrina e na jurisprudência[23] que há três danos não patrimoniais indemnizáveis a considerar: a) o dano pela perda do direito à vida; b) o dano sofrido pelos familiares com a sua morte e; c) o dano sofrido pela vítima antes de morrer.

No que respeita ao dano da morte (único que ora e aqui nos importa analisar), porque o mesmo contende com a violação do mais importante e valioso bem da pessoa, a indemnização deve aferir-se pelo valor da vida para a vítima enquanto ser.

Não se ignorando o entendimento de LEITE E CAMPOS segundo a qual “O prejuízo é o mesmo para todos os homens” pelo que “(...) a indemnização deve ser a mesma para todos”[24], perfilhado por alguma jurisprudência[25], entende-se, pelo contrário, que, não obstante a idêntica dignidade de toda e qualquer vida humana, as circunstâncias pessoais não são, não podem ser, irrelevantes face ao valor em presença, sob pena de em nome de um conceptualismo extremo se olvidarem as realidades da vida e a ordem natural das coisas.

Assinalou DARIO MARTINS DE ALMEIDA:

«Sabe-se que o direito, através da etiqueta da personalidade, faz dos homens seres iguais, de tal sorte que se colocam, no mesmo plano, o homem de bem e o criminoso, o sábio e o ignorante. Mas nada de mais ilusório, quando se desce ao terreno duma vida encarada em concreto»[26].

Depois de evidenciar as diferenças, do ponto de vista social, entre a vida de um sábio, de um humilde cavador, de um deficiente físico ou mental, e de salientar que quer a idade, quer o factor saúde também podem demarcar diferenças no valor da vida, conclui, muito justamente, que «(...) uma vida não tem apenas um valor de natureza: tem sobretudo, um valor social, porque o homem é um ser em situação. E é em função desse valor que os tribunais têm de apreciar, em concreto, o montante da indemnização pela lesão do direito à vida»[27].

Aliás, a jurisprudência largamente dominante pronuncia-se expressamente no sentido de que a perda do direito à vida é indemnizável em montante variável, atendendo v.g. à idade da vítima, ao seu apego à vida, à sua situação socio-económica[28].

Felizmente, a Doutrina e a Jurisprudência vêm soprando sempre novos ventos de justiça sobre este campo indemnizatório, nomeadamente, o anunciado sentimento de que a indemnização ou compensação deverá constituir um lenitivo para os danos suportados, não devendo, portanto, ser miserabilista. E desde há bastante tempo que a jurisprudência vem defendendo que a compensação dos danos não patrimoniais, mormente a perda do direito à vida, deve ser significativa e aproximar‑se dos padrões europeus[29]

Por outro lado, o aumento dos limites do seguro obrigatório neste domínio teve em vista permitir a atribuição de indemnizações que fossem capazes de ressarcir e compensar de forma mais justa os danos sofridos[30].

Ora, compulsando a jurisprudência dos Tribunais Superiores (sem olvidar que alguma disparidade de quantitativos processuais arbitrados é imputável ao funcionamento das regras do processo civil, por via dos próprios pedidos dos lesados), constata-se que o dano morte tem oscilado, na sua quantificação nos últimos anos, em valores um tanto díspares, mas que no geral se situam entre os € 50 000 e os € 80 000, por vezes indo mais longe (ou, mesmo, bem mais longe).

Para a determinação do valor indemnizatório, e sem perder de vista que aqueles valores não são limitativos, deve ter-se presente que o recurso à equidade aludido no nº 3 do artº 496º CC não contende com a necessidade de atender às exigências do princípio da igualdade, a exigir a busca de uma uniformização de critérios, obviamente sem descurar a especificidade das circunstâncias do caso concreto a apreciar.

Assim, portanto, há que seguir critérios passíveis de ser generalizados e que se harmonizem com os critérios ou padrões que devem ser seguidos em situações análogas ou equiparáveis.

Voltando aos valores indemnizatórios arbitrados pela jurisprudência, no que tange ao dano da morte (ou dano morte), correspondente à lesão do direito à vida, concorda-se com o plasmado no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de Novembro de 2016[31], reproduzido no Acórdão do mesmo Tribunal de 16 de Março de 2017[32]: “A jurisprudência portuguesa foi, durante muito tempo, extremamente avara quando se tratava de determinar a indemnização correspondente a este tipo de dano, mas verificou-se, nesse campo, um salto qualitativo, com o progressivo aumento do montante indemnizatório pela perda do direito à vida. Isso mesmo se constata através do teor do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/2/2002, acessível em www.dgsi.pt, onde se mencionam vários outros arestos do mais Alto Tribunal, fixando a indemnização pelo dano morte entre €40 000,00/8.000.000$00 e €50 000,00/10.000.000$00[33]. Consolidou-se, assim, na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça o entendimento de que o dano pela perda do direito à vida, direito absoluto e do qual emergem todos os outros direitos, situa-se, em regra e com algumas oscilações, entre os €50 000,00 e €80 000,00, indo mesmo alguns dos mais recentes arestos a €100.000,00 (cfr, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Janeiro de 2012, de 10 de Maio de 2012 (processo 451/06.7GTBRG.G1.S2), de 12 de Setembro de 2013 (processo 1/12.6TBTMR.C1.S1), de 24 de Setembro de 2013 (processo 294/07.0TBETZ.E2.S1), de 19 de Fevereiro de 2014 (processo 1229/10.9TAPDL.L1.S1), de 09 de Setembro de 2014 (processo 121/10.1TBPTL.G1.S1), de 11 de Fevereiro de 2015 (processo 6301/13.0TBMTS.S1), de 12 de Março de 2015 (processo 185/13.6GCALQ.L1.S1), de 12 de Março de 2015 (processo 1369/13.2JAPRT.P1S1), de 30 de Abril de 2015 (processo 1380/13.3T2AVR.C1.S1), de 18 de Junho de 2015 (processo 2567/09.9TBABF.E1.S1) e de 16 de Setembro de 2016 (processo 492/10.0TBB.P1.S1), todos acessíveis através de www.dgsi.pt.).”.

Tudo ponderado, tendo em vista a já referida necessidade de uniformização de critérios, que é, como dito, uma decorrência do princípio da igualdade (donde, não poder deixar de se ter como referência o que vem sendo decidido pelos tribunais em casos comparáveis) e tendo em conta as circunstâncias específicas da vítima (como a idade - 45 anos, o que significa que ainda estava no auge da sua vida, com pelo menos mais de trinta anos de vida pela frente, considerando a esperança de vida média dos homens em Portugal – , a natural vontade de viver, o bom relacionamento que mantinha com o seu filho, ora autor, que permitiria a este (seu único filho) manter durante muitos anos um saudável e desejável convívio com o seu progenitor, tendo-se visto, com a morte do pai, decepado desse pilar essencial para a sua vida, ficando privado do seu convívio para o resto de toda a sua (presumida longa) vida e em todos os momentos dela), para além da consideração dos demais parâmetros supra aludidos, em particular, sem esquecer a lição do Ac. do S.T.J. de 16-12-1993[34], paradigma da jurisprudência que vem prevalecendo, segundo o qual “é mais que tempo de se acabar com os miserabilismos indemnizatórios”, crê-se perfeitamente aceitável, por equitativo, manter o montante indemnizatório arbitrado pela Relação (€80.000,00 – oitenta mil euros), como compensação pela perda do direito à vida do pai do autor.

Assim improcede esta questão.

Consequentemente, há-de ser julgado improcedente o recurso de revista interposto pelo réu Fundo de Garantia Automóvel.


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Decisão:

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, negar a revista, mantendo-se o decidido no Acórdão da Relação.

Custas da revista a cargo do Recorrente Fundo de garantia Automóvel.

Notifique.

Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A/20, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, atesto o voto de conformidade dos srs. Juízes Conselheiros adjuntos.


Lisboa, 13.05.2021


Fernando Baptista (Juiz Conselheiro Relator)

Vieira e Cunha (Juiz Conselheiro 1º Adjunto)

Abrantes Geraldes (Juiz Conselheiro 2º Adjunto)

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[1] Exemplos: cumulação de pedidos (v. g., condenação no capital e condenação nos juros de mora) ou de o réu ter deduzido um pedido reconvencional.
[2] Cfr. AUJ nº 13/96, de 15.10 – DR I-A de 26.11.96.
[3] Cfr., neste sentido, ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª ed., pp303-304.
[4] Na doutrina, v.g., NUNO PISSARRA e ARMINDO RIBEIRO MENDES, Recursos em Processo Civil. Reforma de 2007, 2009, 145.
[5] Nas palavras de LOPES DO REGO (ac. STJ 19-2-2015/ Proc. 302913/11.6YIPRT.E1.S1).
[6] Sobre estas, ver F. M Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, 2ª ed., 2019, pág. 468 e Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 3ª ed., Almedina, pp 1341.
[7] Cfr., por todos, A STJ de 6.5.93 (BMJ, 427, p. 456).
[8] Cfr.: RODRIGUES BASTOS, Notas, vol. III, pág. 266; ARMINDO RIBEIRO MENDES, Recursos em Processo Civil, p 51 e FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, 3ª ed., pp 133-134.
Na jurisprudência, v.g., Acs. STJ, de 29.4.98, in BMJ 476-400, de 2.7.91, Bol. M.J. 409º-690, de 18.01.94, Bol. M.J. 433-536 e Acs. STJ no Bol. M.J., 364º-849, CJ, 1990-13º-14º,31, Col. Jur., 1993, III, 101; ainda ACS Relação de Lisboa, Col. Jur., 1985, II, 109, 1995-5-98 e de Évora, Col. 1986, IV,313.
[9] h. Que o falecido Rui Neves tinha conhecimento de que o condutor do veículo, réu André Mergulhão, não estava habilitado para conduzir veículos automóveis e, ainda assim, assumiu o risco de seguir como ocupante do veículo (artigo 8.º do réu Fundo de Garantia Automóvel).
[10] Cfr. BRANDÃO PROENÇA, in Culpa do Lesado, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, Vol. III – Direito das Obrigações, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 140 e s..
[11] InCONTRATOS PRIVADOS – Das Noções à Prática Judicial, Coimbra Editora, vol. I, 2ª Ed., pp 210-211.
[12] A expressão latina é pater familias, com «s», e não pater familiae, porque se manteve um genitivo arcaico, tal como noutras expressões relativas a uma qualidade jurídica e familiar, designadamente em filius famílias.
[13] Pires de Lima e Antunes Varela, in C. C. Anot., 2.ª ed., 1.º- 424.  Idem Antunes Varela, Das Obrigações, 3.ª ed., 1.º, p. 464.
[14] MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, ed., 1979, 197, nota 1 E almeida costa, Direito das Obrigações, 3ª ed., 45.
[15] ANNTNUNES VARELA, Direito das Obrigações 3ª ed., 49
[16] Obrigações, 667.
[17] Cfr. artº 487º, nº2 e VAZ SERRA, Conculpabilidade do prejudicado, nº2; Nol., 86).
[18] Cód. Civil Anotado, anotação ao artº 570º - destaque nosso.
[19] J. J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pág. 447.
[20] Cfr. Acs. do STJ de 03.11.2017 e de 08.06.2027, proferidos nos processos nºs 6/15.5T8VFR.P1.S1 e n.º 2104/4TBPVZ.P1.S1, ambos consultáveis in www.dgsi.pt.
[21] Destaques nossos.
[22] Não interessa aqui analisar a questão do tipo de dano a atribuir em caso de morte, pois que a questão ficou resolvida com o Assento do STJ de 17/3/71: a perda do direito à vida, por morte ocorrida por acidente de viação é, em si mesma, passível de reparação pecuniária, sendo a obrigação pela acção ou omissão e qua a morte é consequência; o direito a essa reparação integra-se no património da vítima e, com a sua morte, mantém-se e transmite-se.
[23] Em especial após o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Março de 1971[23] Processo n.º 33.142, tirado em reunião conjunta das então três Secções deste Supremo Tribunal, constituindo o que o Professor João de Castro Mendes apelidava de “precedente persuasivo”, publicado no BMJ n.º 205, págs. 150 a 164, comentado na Revista dos Tribunais, Ano 90 (1972), n.º 1872, págs. 274 a 279 e na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 105.º (1972-1973), n.º 3469, págs. 53 a 63, aqui seguida, a págs. 63/4, de anotação concordante com a solução, por parte de Vaz Serra, “não obstante os cinco votos de vencido”.
[24] A Vida, a Morte e a sua Indemnização, B.M.J. n.º 365, pág. 15.
[25] Cfr., v.g., Ac. da Rel. de Lisboa de 15 de Dezembro de 1994, Col. de Jur. ano XIX, tomo 4, pág. 135 e Ac. do S.T.J. de 17 de Fevereiro de 2000 (revista 13/00, da 2ª secção).
[26] Manual de Acidentes de Viação, 2ª ed., Coimbra, 1980, pág. 185.
[27] Cit., pág. 186.
[28] Cfr. por todos os Acs. do S.T.J. de 13 de Maio de 1986, B.M.J. n.º 357, pág. 399, 16 de Dezembro de 1999, revista 899/99, 2ª secção, os Acs. da Rel. de Évora de 16 de Fevereiro de 1983 (Col. de Jur. ano VIII, tomo 1, pág. 308), da Rel. de Lisboa de 20 de Fevereiro de 1990   (Col. de Jur., ano XV, tomo 1, pág. 188) e da Rel. de Coimbra de 26 de Novembro de 1991 (Col. de Jur., ano XVI, tomo 5, pág. 71) no último dos quais, perante um acidente que vitimou uma jovem de 23 anos de idade que havia completado dias antes a licenciatura em Ciências Biológicas após um exemplar comportamento escolar, se assinala que no juízo de equidade que deve presidir à determinação concreta da indemnização pela perda do direito à vida, deverá o tribunal atender nomeadamente, ao grau de culpa do lesante e também ao valor intelectual e humano da vítima, à sua formação académica e científica, às suas qualidades de trabalho e idoneidade moral.
[29]- Cfr. Ac. STJ de 25.03.2004 in http://www.dgsi.pt/ processo n.º 03B4193.
[30]- Encarando a vida um valor absoluto, independente da idade, condição sócio-cultural, ou estado de saúde, tem sido desconsiderada na fixação da compensação pela perda do direito à vida a ponderação quaisquer outros elementos da vitima, que não a vida em si mesma e os critérios do artigo 494.º, aplicável ex vi n.º 3 do artigo 496.º vide Ac. STJ de 8.06.2006 in http://www.dgsi.pt/ processo n.º 06A1464 e Ac. STJ de 25.03.2004 in http://www.dgsi.pt/ processo n.º 03B4193.
[31] Processo n.º 6/15.5T8VFR.P1.S1), in,www.dgsi.pt.
[32] Processo n.º 294/07.0TBPCV.C1.S1.
[33] E nessa linha de orientação se inserem ainda os acórdãos do STJ de 25/1/2002, in C.J. ano X, tomo I, pág. 62, de 29/5/2002 e de 27/2/2003, estes acessíveis em www.dgsi.pt.
[34] Col. de Jur.- Acs do S.T.J., ano I, tomo 3, pág. 181.