Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
947/11.9TBEVR.E1.S3
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: NUNO PINTO OLIVEIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE DO GERENTE
SOCIEDADE COMERCIAL
DEVER DE NÃO CONCORRÊNCIA
DEVER DE LEALDADE
ACTAS
ATAS
FALTA DE ASSINATURA
VALOR PROBATÓRIO
PRESUNÇÃO DE CULPA
PRESCRIÇÃO
DANO
LIQUIDAÇÃO ULTERIOR DOS DANOS
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
DECISÃO PENAL CONDENATÓRIA
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA.
DIREITO DAS SOCIEDADES – PARTE GERAL / DELIBERAÇÕES DOS SÓCIOS / RESPONSABILIDADE CIVIL PELA CONSTITUIÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E FISCALIZAÇÃO DA SOCIEDADE – SOCIEDADES POR QUOTAS / GERÊNCIA E FISCALIZAÇÃO.
Doutrina:
- António Menezes Cordeiro (coord.), Código das sociedades comerciais anotado, 2.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2011, p. 739 a 742;
- António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de processo civil anotado, vol. I, Parte geral e processo de declaração, Livraria Almedina, Coimbra, 2018, p. 736 a 738;
- Catarina Monteiro Pires, lgumas considerações críticas sobre a responsabilidade civil dos administradores perante os accionistas no ordenamento jurídico português, O Direito, ano 137.º (2005), p. 81 a 135;
- Jorge Manuel Coutinho de Abreu (coord.), Código das Sociedades Comerciais em comentário, vol. I , Livraria Almedina, Coimbra, 2010, p. 92 a 104, 711 a 720;
- Manuel Carneiro da Frada, I Congresso Direito das sociedades em revista, Livraria Almedina, Coimbra, 2011, p. 353 a 358;
- Nuno Manuel Pinto Oliveira, Responsabilidade civil dos administradores. Entre direito civil, direito das sociedades e direito da insolvência, Livraria Almedina, Coimbra, p. 131,134 a 137, 148 a 161.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 615.º, N.º 1, ALÍNEAS B) E C).
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 63.º, N.ºS 1, 3 E 7, 72.º, N.º 1, 78.º, 79.º, N.º 1 E 254.º, N.º 6.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 346.º, 371.º E 372.º.
Sumário :
I - A alegação de que o acórdão é nulo por falta de fundamentação contradiz a alegação de que é nulo por contradição entre os fundamentos e a decisão (cfr. art. 615.º, n.º 1, als. b) e c), do CPC).

II - O art. 63.º, n.º 1, do CSC não atribui às actas das assembleias uma específica força probatória. A sua força depende da sua forma: as actas constantes de documento particular avulso têm o valor de princípio de prova (art. 63.º, n.º 7, do CSC); as actas constantes do livro de actas têm o valor de prova bastante (art. 346.º do CC); e as actas notariais têm força probatória plena (arts. 371.º e 372.º do CC).

III - Não tendo a acta sido assinada pela sócia autora e tendo a sociedade em questão, tão-só, dois sócios com participações iguais, não tem a acta sequer o valor de princípio de prova da alegada deliberação (art. 63.º, n.º 3, do CSC).

IV - O princípio do art. 72.º do CSC (responsabilidade de membros da administração para com a sociedade), desenvolvido pela regra do art. 254.º do CSC (proibição de concorrência), faz com que os gerentes fiquem obrigados a indemnizar a sociedade pelos danos ou prejuízos que lhe causem.

V - Numa acção proposta por uma sociedade comercial contra o réu, seu sócio-gerente, provando-se que este violou os seus deveres de lealdade, confundindo o seu património com o património da sociedade administrada, passando a exercer, a título de empresário em nome individual, actividade concorrente com a mesma clientela e fornecedores, no circunstancialismo concretamente apurado na acção e não tendo ilidido a culpa que sobre si recaía (parte final do n.º 1 do art. 72.º do CSC), deve o mesmo ser condenado no pagamento à sociedade dos danos emergentes que se vierem a apurar em sede de liquidação de sentença.

VI - Tal direito à indemnização não se encontra prescrito ao abrigo do art. 254.º, n.º 6, do CSC, porquanto o prazo de prescrição de cinco anos aí previsto apenas se começar a contar desde a data em que o sócio-gerente retomou a sua actividade como empresário em nome individual concorrente com a da sociedade, a tal não obstando o facto de anteriormente ter exercido essa actividade comercial em nome próprio e a ter cessado aquando da constituição da sociedade.

VII - Peticionando, na mesma acção, a outra sócia-gerente, e ex-mulher do réu, a condenação deste, designadamente, no pagamento de um montante a título de desvalorização da quota em consequência do referido em V, estão em causa danos causados a sócios, em relação aos quais rege o disposto no art. 79.º, n.º 1, do CSC.

VIII - Em sede de responsabilidade dos gerentes ou administradores a distinção entre o regime do art. 78.º (responsabilidade para com os credores sociais) e do art. 79.º do CSC (responsabilidade para com os sócios e terceiros), encontra-se na intermediação do património da sociedade.

IX - O art. 79.º, n.º 1, do CSC, ao exigir que o dano seja directamente causado exclui a responsabilidade do réu gerente perante a autora, como sócia, pelos danos reclamados a título perda do valor da quota uma vez que a autora relacionou causalmente ao seu dano com a diminuição do património da sociedade, atento o alegado “esvaziamento do património da sociedade”, o que confirma que o réu, como gerente, não é responsável pelos danos em causa.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. — RELATÓRIO

           

1. AA - Equipamentos Industriais, Lda. e BB, intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra CC, na qual peticionam a condenação do Réu no seguinte:

— Pagar à Autora AA - Equipamentos Industriais, Lda. o montante que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença decorrente da análise contabilística da sociedade Autora e do Réu enquanto empresário em nome individual, através de perícia a efectuar nos presentes autos, acrescido de juros à taxa legal em vigor desde a citação até integral cumprimento, a título de danos imediatos;

— Pagar à Autora AA - Equipamentos Industriais, Lda. o montante que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença, em valor global a determinar através de perícia a efectuar nos presentes autos, acrescido de juros à taxa legal em vigor desde a citação até integral cumprimento a título de lucros cessantes;

— Pagar à sócia BB o montante que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença decorrente da análise contabilística da sociedade Autora e do Réu enquanto empresário em nome individual, através de perícia a efectuar nos presentes autos, acrescido de juros à taxa legal em vigor desde a citação até integral cumprimento, a título de desvalorização da quota que detém na sociedade Autora;

— Pagar à sócia BB o montante de €39.000,00 (trinta e nove mil euros) a título de vencimentos que a sócia BB deixou de auferir com o esvaziamento total do património da sociedade Autora, acrescidos de juros à taxa legal em vigor desde a citação até integral cumprimento;

— Pagar à sócia BB o montante de €20.000,00 (vinte mil euros) a título de danos morais, acrescidos de juros à taxa legal desde a citação até integral cumprimento.

            O Réu contestou pugnando pela improcedência da acção.

  2. O processo seguiu os seus termos no Tribunal da Comarca de … e, depois de realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu o Réu dos pedidos.

3. Os Autores recorreram para o Tribunal da Relação de Évora, tanto da decisão relativa à matéria de facto como da decisão de direito.

4. O Tribunal da Relação de Évora julgou o recurso improcedente.

5. Os Autores interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, que,  conforme consta das fls. 1344 a 1358 dos autos, anulou o acórdão recorrido e determinou:

— que se apreciasse a impugnação do facto provado sob o n.º 33;

— que se atendesse ao acórdão da Secção Criminal do Tribunal da Relação de … de 13 de Setembro de 2016 e proferido no processo n.º 551/09.1TDEVR, face ao disposto no art. 623.º do Código de Processo Civil.

6. O Tribunal da Relação de Évora deu provimento ao recurso da matéria de facto, eliminando os factos provados sob os n.ºs 33 e 36, e em consequência, “[deu] provimento ao recurso interposto peia Ré, revogando a sentença recorrida e condenando o recorrente a

 1.° — Pagar à Autora AA - Equipamentos Industriais, Lda. o montante que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença decorrente da análise contabilística da sociedade Autora e do Réu enquanto empresário em nome individual, através de perícia a efectuar nos presentes autos, acrescido de juros à taxa legal em vigor desde a citação até integral cumprimento, a título de danos imediatos;

 2.° — Pagar à Autora AA - Equipamentos Industriais, Lda. o montante que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença, em valor global a determinar através de perícia a efectuar nos presentes autos, acrescido de juros à taxa legal em vigor desde a citação até integral cumprimento a título de lucros cessantes;

 3.° — Pagar à sócia BB o montante que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença decorrente da análise contabilística da sociedade Autora e do Réu enquanto empresário em nome individual, através de perícia a efectuar nos presentes autos, acrescido de juros à taxa legal em vigor desde a citação até integral cumprimento, a título de desvalorização da quota que detém na sociedade Autora;

4.° — Pagar à sócia BB o montante que se vier a apurar a título de vencimentos que a mesma deixou de auferir com o esvaziamento total do património da sociedade Autora”.

7. O Réu interpôs recurso de revista, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes conclusões, que se transcrevem sem quaisquer correcções:

1. — O presente recurso de Revista vem interposto do, aliás, mui douto acórdão de fls. … e seg.s, dos autos, através da qual os venerandos Juízes Desembargadores decidiram dar provimento ao recurso interposto pela Ré, revogando a sentença recorrida e condenando o recorrente a:

l.° - Pagar à Autora AA - Equipamentos Industriais, Lda. o montante que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença decorrente da análise contabilística da sociedade Autora e do Réu enquanto empresário em nome individual, através de perícia a efectuar nos presentes autos, acrescido de juros à taxa legal em vigor desde a citação até integral cumprimento, a título de danos imediatos;

2.° - Pagar à Autora AA - Equipamentos Industriais, Lda. o montante que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença, em valor global a determinar através de perícia a efectuar nos presentes autos, acrescido de juros à taxa legal em vigor desde a citação até integral cumprimento a título de lucros cessantes;

3.° - Pagar à sócia BB o montante que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença decorrente da análise contabilística da sociedade Autora e do Réu enquanto empresário em nome individual, através de perícia a efectuar nos presentes autos, acrescido de juros à taxa legal em vigor desde a citação até integral cumprimento, a título de desvalorização da quota que detém na sociedade Autora;

4.° - Pagar à sócia BB o montante que se vier a apurar a título de vencimentos que a mesma deixou de auferir com o esvaziamento total do património da sociedade Autora.

2. — A Revista pode ter por fundamento qualquer uma das situações a que se refere o art. 674.°, n.º 1, do CPC e, no douto acórdão, em crise, estamos perante não só a circunstância constante da alínea a), tal como da consignada na aliena b). Senão vejamos:

3. — O acórdão recorrido, fundamenta a prolação do acórdão em crise, na decisão do Supremo Tribunal de anular o acórdão da Relação (aquele que fora julgado improcedente e que manter a decisão de primeira instancia) e que determinou que se apreciasse a impugnação do facto provado n.º 33, bem como que se atendesse ao acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora, no âmbito do Proc. n.º 551/09.1TDEVR, cuja certidão fora anexa aquando do recurso de Revista

4. — A este respeito e quanto ao facto a que se refere o facto provado n.º 33, é alegado, pelo Tribunal recorrido, para justificar a procedência da pretensão das AA, que o mesmo deve ser retirado, porquanto, em suma, "NO CONTEXTO GERAL", "CUSTA A CRER”;

5. — Ademais, o acórdão em crise alega que o depoimento da testemunha DD é nesse sentido (no da decisão da primeira instancia), de que, em Junho de 2010, existiu um acordo entre BB e CC de venda de bens da sociedade, como veículos automóveis;

6. - contudo, como a A. não assinou a acta, conclui, a decisão ora em crise, é-lhe restada qualquer relevância.

7. - Ora, salvo o devido respeito por opinião diversa, ao decidirem como o fizeram, os Venerandos Juízes Desembargadores violaram o disposto nos art.s 640.° e 662.°, ambos do CPC, fazendo destes preceitos errada interpretação, pois que,

8 - A modificabilidade pela Relação da decisão da matéria de facto pressupõe que, para além da indicação dos pontos de factos considerados incorrectamente julgados, sejam indicados os concretos meios de prova constantes do processo ou de gravação realizada que imponham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

9 - Bem como se impõe se prova produzida ou documento superveniente impuser decisão diversa.

10 - Ora, é consabido que, não estando em causa formalidades especiais de prova legalmente exigidas para a demonstração de qualquer facto e assentando a decisão da matéria de facto na convicção criada no espírito do juiz e baseada na livre apreciação das provas testemunhal e documental que lhe foram apresentadas, a sindicância de tal decisão não pode deixar de respeitar a liberdade da primeira instancia na apreciação dessas provas.

11 - Mais, o erro na apreciação das provas (a ser isto que a recorrente alega, uma vez que, concretamente, nada alega a respeito) consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto quando a conclusão deveria ter sido manifestamente contrária, seja por força de uma incongruência lógica, seja por ofender princípios e leis científicas ou contrariar princípios gerais da experiência comum (sendo em todos os casos o mesmo erro evidente e notório), seja também quando a valoração das provas produzidas apontarem num sentido diverso do acolhido peia decisão judicial mas, note-se, excluindo este.

12 - Em caso de duvida sobre o sentido da decisão, face apenas às provas documentais que são alegadas e atendendo a que a prova testemunhal não foi trazida cabalmente à reapreciação, somos em crer que, sem mais, a 2.a instancia deverá fazer prevalecer a decisão da l.a instancia, em homenagem à livre convicção e à liberdade de julgamento.

13 - Não podemos olvidar que, a garantia do duplo grau de jurisdição em caso algum pode subverter o principio da livre apreciação da prova, de acordo com a prudente convicção do juiz acerca de cada facto e, por isso, o objecto do recurso não pode ser nem a liberdade de apreciação das provas, nem a convicção que presidiu à matéria de facto, mas esta própria decisão.

14 - Neste sentido, AC. RE, de 05-05-2011, Proc. n.º 34/07.3TBASLE1, disponível em www.dgsi.pt.

15 - Termos em que, pelos motivos atrás aduzidos, o douto Acórdão recorrido enferma de vicio de erro na interpretação do disposto nos art.s 640.° e 662.°, ambos do CPC, fazendo destes preceitos errada exegese e violando a lei de processo, de forma crassa, devendo, consequentemente, ser revogado, com as demais consequências legais.

16 - Ademais, a decisão ora em crise também peca por uma errada aplicação do disposto no art. 63.°, n.º 3, do Cód. Das Sociedades Comerciais, porquanto, este preceito consigna que, quando a acta deva ser assinada por todos os sócios que tomaram parte na assembleia e algum deles não o faça, podendo fazê-lo, deve a sociedade notificá-lo judicialmente para que, em prazo não inferior a oito dias, a assine; decorrido esse prazo, a acta tem a força probatória referida no n.º 1, desde que esteja assinada pela maioria dos sócios que tomaram parte na assembleia, sem prejuízo do direito dos que a não assinaram de invocarem em juízo a falsidade da acta.

17 - A fls.. dos autos, acha-se a NOTIFICAÇÃO JUDICIAL AVULSA, que deu entrada em juízo em Julho de 2010 e que, sendo notificada à sócia Sandra Carvalho, esta não assinou, nem arguiu falsidade, dentro do prazo de 30 dias que lhe cabia.

18 - Destarte e salvo o devido respeito por opinião diversa, o acórdão ora recorrido fez uma errada interpretação desta norma, violando-a, quer no que ao n.º 3, como ao n.º 1.

19 - Destarte, a decisão ora em crise JAMAIS PODERIA, NA NOSSA MODESTA OPINIÃO, SEM QUALQUER OUTRO MEIO PROBATÓRIO, derrogar a força probatória atribuída à Notificação Judicial Avulsa efectuada.

20 - Pelo que, decidindo como o fez, erroneamente interpretou aquela norma, devendo, consequentemente, ser revogada a decisão de dar como não provado o ponto 33, dos factos provados, com as demais consequências legais.

21 - Sem prescindir, o acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora, igualmente, padece de nulidade, nos termos do disposto no art. 674,°, n.º 1, ai. c) do Cod. Proc. Civil; bem como faz uma errónea exegese do disposto no art. 254.°, n.º 1, do Cód. Sociedades Comerciais, art. 623.°, do Cód. Proc. Civil e do art. 342.°, n.º 1, do Cód. Civil; tal como padece de erro na norma aplicável, ao caso em apreço.

22 - Pois que, o Venerando Tribunal da Relação de Évora, no que à demais decisão proferida diz respeito, assenta no acórdão proferido pela secção criminal, desse Tribunal e no alegado cumprimento do disposto no art. 623.°, do Cód. Proc. Civil.

23 - Falece, contudo, na nossa modesta opinião, o argumento de que a alteração da decisão proferida em primeira instancia e confirmada pela segunda deverá ser totalmente revogada com base no facto de que o ora recorrente foi condenado, em matéria penal, pelo crime de infidelidade.

24 - O acórdão ora recorrido, pura e simplesmente, com base na matéria de facto dada como provada no âmbito do processo crime n.º 551/09.1TDEVR (e que supra se transcreveu e que se dá aqui integralmente reproduzida para todos os efeitos legais), condena o aqui recorrente nos termos abaixo também explanados, apenas com recurso ao disposto no art. 254.°, n.º 1, do Cód. Soc. Comerciais.

25.- Preceitua o art. 615.°, que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em contradição com a decisão (cfr. n.º 1, ai. c)).

26 - In casu, após transcrever a matéria de facto dada como provada no processo crime acima já identificado, o douto acórdão recorrido faz constar, como parte da fundamentação da sua decisão, que:

27 - "Analisando os factos provados, afirma que é inegável que o Réu retomou uma actividade paralela à da empresa, com o mesmo objecto e com os mesmos clientes e fornecedores, sendo certo, também, que a sua actividade registou franca evolução, a par do decréscimo do volume de vendas da empresa e até á cessação de actividade da mesma, com liquidação do passivo pelo Réu e aquisição do activo por ambos os sócios - Autora e Réu.

28 - Mas explica, também com base na matéria de facto, a razão de ser deste procedimento: a actividade que retomou, era a sua antes do casamento, a qual suspendeu constituindo a sociedade com a Autora BB, sua mulher. Se é verdade que tal constituição não lhe permitia agora retomar a actividade — apropriando-se do que integrou voluntariamente na pessoa colectiva aquando da sua criação — também é verdade que se apurou tê-lo feito no seguimento do divórcio, da decisão tomada de cessação da actividade da sociedade e com a concordância da única sócia para além do próprio para venda dos bens da empresa, o que só pode demonstrar que conhecia toda a situação e que com a mesma terá concordado.”

29 - Ora, salvo o devido respeito por opinião diversa, mais quando se deverão manter como provados os pontos 33 e 36, dos anteriores factos provados, em matéria cível, tal fundamentação NÃO PERMITE, DE FORMA ALGUMA, QUE, POSTERIORMENTE, O AQUI RECORRENTE SEJA CONDENADO NO TERMOS QUE O FOI.

30 - É totalmente contraditória e decisão em crise com a sobredita fundamentação.

31 - Logo, o acórdão recorrido é nulo, nos termos aqui alegados, devendo tal nulidade ser declarada, com as demais consequências legais.

32 - Dispõe, efectivamente, o art. 254.°, n.º 1, do Cod. Soc. Comerciais, que os gerentes não podem exercer, por conta própria actividade concorrente com a da sociedade, contudo, também dispõe que:

33 - 5 - A infracção do disposto no n,° 1, além de constituir justa causa de destituição, obriga o gerente a indemnizar a sociedade pelos prejuízos que esta sofra.

34 - 6 - Os direitos da sociedade mencionados no número anterior prescrevem no prazo de 90 dias a contar do momento em que todos os sócios tenham conhecimento da actividade exercida pelo gerente ou, em qualquer caso, no prazo de cinco anos contados do início dessa actividade.

35 - Ora, tendo sido dado como provado que o aqui recorrente nunca cessou, desde o inicio da sua laboração, a sua actividade como empresário em nome individual e que tal laboração foi anterior à constituição da sociedade e que a sua ESPOSA, ao tempo e aqui Autora, DE TAL TINHA CONHECIMENTO (tal como referiu a testemunha EE), havia mais do que consentimento para o exercício dessa actividade e que, mesmo que não o fosse, atendendo a que é anterior ao início da sociedade, sempre foi existente há mais de cinco anos, contando como referência o ano de 2009.

36 - Destarte, mostrava-se prescrito o direito da sociedade a qualquer indemnização.

37 - Ademais, teriam sempre de estar preenchidos, na nossa modesta opinião, os pressupostos do art. 483.° e seg.s do Cód. Civil que sequer foram mencionados pelo acórdão em crise, existindo, assim e na nossa modesta opinião, erro na determinação nas normas aplicáveis, pois que, apenas por referencia ao art. 254.°, do CSC não caberá sequer que direito indemnizatório seja, porquanto, ademais, teriam de estar preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil

38 - Ora, se atentarmos para o teor do acima transcrito no supra ponto 28 das conclusões, quanto à fundamentação da instancia, forçoso é concluir que, mesmo que rebuscado fosse o art. 483.° e seg.s do CC, não existiu qualquer culpa por banda do arguido, na sua actuação.

39 - Destarte, nem os pressupostos do art. 254.°, n.º 1, do CSC, foram interpretados devidamente pela decisão da 2.a instancia, como não houve, como deveria, a aplicação da norma do art. 483.°, do Cód. Civil, devendo, consequentemente, o acórdão em crise ser revogado, com as demais consequências legais

40 - Ademais, a decisão em crise condena o aqui recorrente a pagar à sociedade Sandra em nome individual quantias a apurar, com base no disposto no art. 254.°, do CSC.

41 - Ora, tal disposição legal sequer determina o pagamento de qualquer indemnização que seja a sócios, pelo que, é notório o erro na determinação da norma aplicável, devendo, consequentemente, a decisão ser revogada, com as demais consequências legais.

42 - A tudo ainda acresce que, é o recorrente condenado a pagar vencimentos à sócia BB, quando esta sequer era funcionaria da sociedade e quando foi a própria que deixou de exercer as suas funções, por sua iniciativa.

43 - Decisão também totalmente desprovida de suporte legal, inquinando mais uma vez, a decisão de nulidade, porquanto, não especifica os fundamentos de facto e de direito, em que fundamenta a sua decisão - vd. Art. 615.°, n.º 1, ai. b), do Cód. Proc. Civil, devendo, consequentemente, ser declarada nula a decisão recorrida, com as demais consequências legais.

Assim decidindo, mais uma vez será feita, Venerandos Conselheiros, a costumada e verdadeira JUSTIÇA!”

           

            Os Autores não contra-alegaram.

  8. O recurso foi admitido por despacho de 27 de Novembro de 2018.

9. Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do Recorrente (cf. arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608.º, n.º 2, por remissão do art. 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), as questões a decidir, in casu, são as seguintes:

  1.º — se a eliminação do facto n.º 33 envolve ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (cf. n.ºs 4 a 20 das conclusões);

 2.º — se o acórdão do Tribunal da Relação de Évora é nulo, por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito da decisão (cf. n.º 43 das conclusões);

 3.º — se o acórdão do Tribunal da Relação de Évora é nulo, por contradição entre os fundamentos e a decisão (cf. n.ºs 21 a 24 e, sobretudo, n.ºs 25 a 35 das conclusões);

 4.º — se o Réu é responsável, perante a sociedade, pelos danos decorrentes da violação de deveres de lealdade (n.ºs 32 a 39 das conclusões);

 5.º — desde que o Réu seja responsável, se terá havido prescrição (n.º 36 das conclusões);

6.º — se o Réu é responsável, perante a Autora BB pelos danos decorrentes da perda de rendimentos ou pela perda de valor da quota (n.ºs 40 a 43 das conclusões).

 II. — FUNDAMENTAÇÃO

            OS FACTOS

 1. O acórdão recorrido deu como provados os factos seguintes:

 1 - A AA - Equipamentos Industriais, Lda. é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à actividade de comércio e representação de máquinas e equipamentos industriais, importação, exportação, com capital social de € 5.486,78 (cinco mil quatrocentos e oitenta e seis euros e setenta e oito cêntimos).

2 - Esta sociedade foi constituída entre o Réu CC e a Autora BB.

3 - Pertencendo a cada um cinquenta por cento do capital social da sociedade, com uma quota nominal de € 2.743,39 (dois mil setecentos e quarenta e três euros e trinta e nove cêntimos).

4 - A sociedade obriga-se com a assinatura de um dos gerentes, tendo sido, desde o início, nomeados gerentes o Réu CC e a Autora BB.

5 - A Sociedade autora, em 2009 possuía equipamentos e veículos automóveis.

6 - O Réu foi casado com a Autora BB, tendo o divórcio ocorrido em 04.02.2009.

7 - A sociedade Autora foi constituída na pendência do matrimónio, dando sequência à actividade já desempenhada pelo Réu enquanto empresário em nome individual, em que a Autora BB desempenhava as funções de administrativa, procedendo a facturação, organização de documentação para a contabilidade, depósitos bancários.

8 - Função que continuou a desempenhar aquando da constituição da sociedade Autora, já no âmbito desta.

9 - Na pendência do matrimónio a sócia Sandra limitava-se a fazer o que o Réu, então marido, lhe solicitava.

10 - Assinando os documentos que o mesmo lhe exibia.

11 - Tomando o Réu todas as decisões ao nível da gestão e dos investimentos da sociedade;

12 - A Autora BB solicitou, por escrito, ao Técnico Oficial de Contas a documentação que seguidamente se indica, referente à sociedade Autora:

— Extracto de conta - contabilidade geral - anual 2009 (Caixa FF de …);

— Extracto de conta - contabilidade geral - anual 2009 (GG);

— Extracto de conta - contabilidade geral- anual 2009 (HH);

— Extracto de conta - contabilidade geral- anual 2009 (Caixa-Sede);

 — Anexo A - Quadro 03 - Demonstração de resultados por natureza (200S);

 — Anexo A - Quadro 04 - Balanço Analítico - Exercício de 200S;

 — Demonstração de resultados de 2009;

— Balanço Analítico Exercício de 2009;

 — I.R.C. Modelo 22 - Ano de 2009;

— I.R.C. Modelo 22 - Ano de 2010;

 — I.E.S. 2008;

— I.E.S. 2009;

—  Declarações periódicas - Modelo B - Janeiro a Dezembro de 2008;

— Declarações periódicas - Modelo B - 2009lü3T, 2009lü6T, 2009lü9T, 2009112T;

 — Declarações periódicas - Modelo B - Janeiro a Março de 2010;

 — Declaração periódica - Modelo B - Abril de 2011;

 —  Declarações periódicas - Modelo B - Maio a Agosto de 2010;

  — I.R.C. - Modelo 22 - Ano de 2008;

— I. R.C. - Modelo 22 - Ano de 2009;

— I. R.C. - Modelo 22 - Ano de 2010;

— Balancete Analítico - Contabilidade Geral, Encerramento 2008;

 — Balancete Analítico - Contabilidade Geral, Janeiro 2009;

— Balancete Analítico - Contabilidade Geral, Fevereiro 2009;

— Balancete Analítico - Contabilidade Geral, Março de 2009;

— Listagem movimentos C/C, Cooperativa União Agrícola n." 180;

— Reconciliações Bancárias;

— Extracto de conta n.º 62025100589911;

— Extracto conta do HH Business (Janeiro de 2009);

— Extracto conta do HH Business (Fevereiro de 2009);

— Extracto conta do HH Business (Março de 2009);

— Extracto conta do HH Business (Abril de 2009);

— Extracto conta do HH Business (Maio de 2009);

— Extracto conta do HH Business (Dezembro de 2008);

— Extracto conta do GG (Março de 2009);

— Extracto conta do GG (Fevereiro de 2009);

— Extracto conta do …- Extracto conta do II de 15 de Abril de 2009;

— Carta/missiva do II datada de 02.06.2009.

13 - De acordo com tais elementos, em 31.03.3009, o saldo da caixa da sociedade Autora era de € 227.959,50 (duzentos e vinte e sete mil novecentos e cinquenta e nove euros e cinquenta cêntimos);

14 - Dos mesmos resulta também, que entre 01.10.2008 e 19.03.2009, foram debitados vários cheques na Caixa FF, ainda não lançados na contabilidade da sociedade Autora;

15 - E que, no período compreendido entre 31.12.2008 e 31.03.2009, inexistem quaisquer movimentos nas contas correntes dos clientes da empresa;

16 - E que em 31.12.2008 e 31.03.2009, o saldo devedor da conta de clientes era do mesmo montante, concretamente, € 12.440,30 (doze mil quatrocentos e quarenta euros e trinta cêntimos);

17 - Sendo o volume de vendas registado, em Janeiro de 2009 de € 43.131 ,04 (quarenta e três mil cento e trinta e um euros e quatro cêntimos) mais IV A, em Fevereiro de 2009 de € 3.391,96 (três mil trezentos e noventa e um euros e noventa e seis cêntimos) mais IVA, e em Março de 2009 de € 66.211,73 (sessenta e seis mil duzentos e onze euros e setenta e três cêntimos) mais IV A;

18 - Em Janeiro, Fevereiro e Março de 2009, as compras da sociedade, registadas na conta dos fornecedores, eram, respectivamente, de € 21.974,47 (vinte e um mil novecentos e setenta e quatro euros e quarenta e sete cêntimos), € 21.955,37 (vinte e um mil novecentos e cinquenta e cinco euros e trinta e sete cêntimos), e €44.166,76 (quarenta e quatro mil cento e sessenta e seis euros e setenta e seis cêntimos);

19 - No encerramento do ano de 2008, o saldo registado da conta de fornecedores era de € 127.722,59 (cento e vinte e sete mil setecentos e vinte e dois euros e cinquenta e nove cêntimos), em Janeiro de 2009 o saldo era de € 136.968,94 (cento e trinta e seis mil novecentos e sessenta e oito euros e noventa e quatro cêntimos), em Fevereiro de 2009 o saldo era de € 137.314,41 (cento e trinta e sete mil trezentos e catorze euros e quarenta e um cêntimos) e em Março de 2009 era de 152.462,62 (cento e cinquenta e dois mil quatrocentos e sessenta e dois euros e sessenta e dois cêntimos);

20 - De acordo com os documentos bancários do primeiro semestre de 2009, o valor do endividamento da sociedade junto das instituições bancárias é mais elevado do que o que resulta do balancete analítico de Março de 2009;

21 - De acordo com os extractos das contas, ocorreram movimentos entre as contas particulares do Réu e contas da sociedade;

22 - O Réu retomou em 2009 e em nome individual actividade paralela com a da sociedade Autora, com a mesma clientela e fornecedores desta;

23 - A sociedade cessou a sua actividade em 31.08.2010;

24 - O Réu liquidou o passivo da sociedade Autora, adquirindo parte do activo;

25 - A sociedade Autora sempre teve como contabilista a testemunha DD, sendo também e, simultaneamente até ao encerramento da sociedade, contabilista do Réu, na sua actividade em nome individual;

26 - O referido contabilista esteve presente em Assembleias Gerais da sociedade Autora;

27 - O volume de vendas da sociedade Autora no exercício de 2008 é de €628.104,69 (seiscentos e vinte e oito mil cento e quatro euros e sessenta e nove cêntimos), passando no exercício de 2009 para €463.750,40 (quatrocentos e sessenta e três mil setecentos e cinquenta euros e quarenta cêntimos) e, no período de 2010 (até 31.08.2010) para € 26.868,56 (vinte e seis mil oitocentos e sessenta e oito euros e cinquenta e seis cêntimos);

28 - Quanto ao seu resultado líquido de exercício, registou o valor positivo de € 16.383,65 (dezasseis mil trezentos e oitenta e três euros e sessenta e cinco cêntimos) no exercício de 2008, passando para € 4.420,24 (quatro mil quatrocentos e vinte euros e vinte e quatro cêntimos) positivos no exercício de 2009, e para € 57.533,43 (cinquenta e sete mil quinhentos e trinta e três mil euros e quarenta e três cêntimos) negativos no exercício de 2010;

29 - Paralelamente, de acordo com as declarações fiscais apresentadas, o Réu, em nome individual, não declarou qualquer volume de negócios (compras e vendas) no ano de 2008, mas em 2009 declarou valor de vendas de € 88.556,54 (oitenta e oito mil quinhentos e cinquenta e seis euros e cinquenta e quatro cêntimos), e em 2010 € 528.718,46 (quinhentos e vinte e oito mil setecentos e dezoito euros e quarenta e seis cêntimos);

30 - A Autora BB cumulava com as suas funções administrativas na sociedade, as de dona de casa e encarregada de educação dos dois filhos menores;

31 - A quota da Autora BB na sociedade não tem qualquer valor comercial;

 32- A Autora BB teve conhecimento, em 03.07.2009, que o Réu exercia actividade concorrente com a da sociedade, em nome individual, tal como declarou no âmbito do procedimento cautelar não especificado, que correu termos com o n.º 1416/09.2TBEVR, no então 1.º Juízo Cível da Comarca de …, em sede de oposição;

33 - [Eliminado];

34 - Com a oposição referida em 32, apresentada em juízo em 13.07.2009, a Autora juntou a maioria dos documentos referidos em 12;

35 - Na sequência de uma queixa apresentada pelas Autoras, de conteúdo equivalente à petição inicial dos presentes autos, que deu origem ao processo n.º 551/09.1TDEVR, o Réu foi ali pronunciado e julgado pela prática de um crime de infidelidade, p. e p. pelo artigo 224.º, do Código Penal, imputando-se-lhe, em suma, a execução de uma estratégia delineada no sentido de proceder à transferência para si, enquanto empresário em nome individual, da área de negócios que constituía o objecto da sociedade Autora, em função dos conhecimentos privilegiados acerca da área de negócio e do mercado em que a sociedade actuou desde sempre, adquiridos em consequência das suas funções de gerente da mesma. Imputa-se-lhe o facto de o ter feito sem consentimento da Autora Sandra, esgotando os activos da sociedade e cessando a actividade da mesma, provocando prejuízo patrimonial relevante à sociedade;

36 - [Eliminado].

 

  2. O Tribunal da Relação de Évora deu ainda como provados os factos abrangidos pela presunção do art. 623.º do Código de Processo Civil, ou seja, os “factos que integram os pressupostos da punição”, os elementos do tipo legal de crime e os elementos que respeitam às formas do crime, constantes do acórdão da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora de 13 de Setembro de 2016, proferido no processo n.º 551/09.1TDEVR.

  3. O acórdão da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora de 13 de Setembro de 2016, proferido no processo n.º 551/09.1TDEVR, deu como provados os factos seguintes (transcritos no acórdão recorrido):

1. - Em data não determinada do ano de 2008, o arguido CC passou a desenvolver por conta própria, como empresário em nome individual, actividade comercial semelhante e concorrente com a que era desenvolvida pela sociedade AA.

2. - Na verdade, o arguido encontrava-se inscrito como empresário em nome individual, com o Código de Actividades Económicas 47521, porquanto, em data anterior ao seu casamento com BB, desenvolvia actividade comercial em nome próprio, o que deixou de suceder com a constituição da sociedade AA - Equipamentos Industriais Lda..

3. - Contudo, a partir de meados de 2008, o arguido formulou o propósito de transferir os activos da sociedade — bens e clientes — para a sua empresa individual, o que veio a fazer desta forma prejudicando os interesses patrimoniais da sociedade que geria.

4. - Na verdade, em data não concretamente apurada do ano de 2008 e até 31 de Agosto de 2010, no âmbito dos poderes de gestão de que dispunha e aproveitando-se do conhecimento privilegiado da área de negócio (mercado) em que a sociedade actuava com sucesso há mais de 10 anos, o arguido, fazendo uso dos recursos financeiros, humanos e materiais pertencentes à sociedade, passou a desenvolver em nome próprio a actividade que era objecto da socie­dade, actuando como empresário em nome individual com o CASE 47521.

5. - Para o efeito, o arguido contactou com fornecedores e clientes da sociedade e negociou com os mesmos aquisições e vendas que depois realizou utilizando para a sua concretização os funcionários, bens e equipamentos daquela, mas que facturou em nome individual, recebendo dos clientes as quantias que integrou no seu património pessoal.

6. - Assim, os fornecedores e clientes da sociedade foram, progressivamente, entre finais de 2008 e Agosto de 2010, passando a ser fornecedores e clientes do arguido, empresário em nome individual.

7. - Em 2008 e 2009, a sociedade tinha os seguintes clientes (…).

8. - No mesmo período eram os seguintes os seus fornecedores (…).

9. - Já em 2010, era a seguinte a relação de clientes do arguido enquanto empresário em nome individual (…).

10. - E no mesmo ano, no âmbito da actividade comercial que desenvolvia em nome individual, o arguido tinha os seguintes fornecedores (…).

11. - Desta conduta do arguido, traduzida na retoma do exercício da actividade comercial em nome individual a que corresponde o CAE47521, resultou que o volume de vendas (proveitos) da sociedade diminuiu de €628.104,69, no exercício de 2008, para €463.750,40 no exercício de 2009 e para €26.868,56 no ano de 2010, até 31 de Agosto de 2010, data em que o arguido fez cessar a actividade da sociedade para efeitos fiscais.

12. - Em linha com aquele decréscimo das vendas, também o resultado líquido dos exercícios da sociedade evoluíram negativamente no mesmo período, passando de um valor positivo de €16.383,65 no exercício de 2008, para o valor negativo de €4.420,24 no ano de 2009 e para um resultado negativo de €57.533,43 no ano de 2010.

13. - Paralelamente, os rendimentos comerciais e industriais obtidos nos mesmos exercícios pelo arguido no exercício em nome individual da actividade comercial com o CAE 47521 aumentaram na proporção daquela diminuição do volume de vendas da sociedade.

14. - De facto, a declaração modelo 3 do IRS do ano de 2008, do casal CC e BB integra o anexo B, destinado à indicação de rendimentos comerciais e industriais obtidos naquele exercício pelo arguido, sem indicação de qualquer valor em termos de volume de negócios.

15. - Mas no mesmo anexo da declaração de modelo 3 do ano de 2009, apresentada pelo arguido, já são declarados rendimentos comerci­ais e industriais pelo mesmo exercício no montante de €88.556,52.

16. - E na declaração IES/DA, declaração anual de informação contabilística entregue à administração fiscal, em complemento da informação disponibilizada na declaração modelo 3 de IRS do exercício do ano de 2010 do arguido, ano em que foi declarada, para efeitos fiscais, a cessação da actividade que vinha sendo exercida pela sociedade, já consta a declaração de vendas no montante de €528.718,46.

17. - A variação positiva do volume de vendas alcançado pelo arguido enquanto empresário em nome individual entre 2009 (ano de retoma da actividade) e 2010 e a paralela variação negativa do volume de vendas da sociedade são o resultado da estratégia delineada e executada dirigida à transferência para o arguido, enquanto empresário em nome individual, da área de negócios que constituía o objecto da sociedade.

18. - O arguido logrou executar tal transferência porque detinha conhecimentos privilegiados acerca da área de negócio e do mercado em que a sociedade actuou desde sempre, adquiridos em consequência das funções de gerente que estava incumbido de exercer.

19. - Tal conhecimento e o exercício daquela gerência permitiram ao arguido apoderar-se de modo gradual, ao longo do período de tempo referido, de todos os negócios da sociedade em benefício do seu património pessoa e em prejuízo do património da sociedade.

20. - Neste processo de transferência gratuita, real, efectiva e sem o consentimento da sócia BB, esgotou os activos da sociedade, o que culminou, à data de 31 de Agosto de 2010, com a declaração de cessação da actividade comercial que constituía o objecto da aludida sociedade.

21. - Ao ser designado gerente da sociedade, o arguido ficou legalmente incumbido de gerir criteriosamente os interesses dessa sociedade, bem sabendo que lhe não era permitido por lei, mais precisamente pelo art.° 254.° do Cód. das Sociedades Comerciais, o exercício da actividade comercial concorrente com a desenvolvida pela sociedade, sem o consentimento da outra sócia.

22. - Não obstante tal conhecimento, durante cerca de um ano e meio, continuou a exercer de facto e de direito a gerência da sociedade, desenvolvendo em paralelo e sem o consentimento de BB, a mesma actividade em nome individual, o que lhe permitiu, em prejuízo daquela sociedade e em seu benefício, desviar para si os negócios e clientes da sociedade.

23. - Ao actuar da forma descrita, desviando para a sua empresa individual a carteira de clientes e de negócios da sociedade, o arguido causou à mesma um prejuízo patrimonial relevante na medida em que a sociedade deixou de gerar lucros e de lograr prosseguir a sua actividade.

24. - Agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção concretizada de prejudicar os interesses patrimoniais da sociedade, os quais deveria gerir criteriosamente em virtude de exercer a gerência da mesma.

25. - Tinha, além disso, perfeito conhecimento que os seus comportamentos eram proibidos e punidos por lei.

 

            O DIREITO

 1. O Réu, agora Recorrente, imputa ao acórdão recorrido erro na apreciação das provas e na interpretação dos arts. 640.º e 662.º do Código de Processo Civil.

I. — Em relação ao erro na apreciação das provas, o art. 674.º, n.º 3, do Código de Processo Civil é do seguinte teor:

“O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

O Recorrente alega que houve um acordo entre a Autora BB e o Réu CC no sentido da venda da sociedade e dos veículos automóveis; que o acordo constava de acta de uma assembleia da sociedade; e que, ao dar-se como não provado o acordo, há ofensa das disposições legais que fixam a força probatória das actas das assembleias das sociedades, chamando ao caso os n.ºs 1 e 3 do art. 63.º do Código das Sociedades Comerciais:

1. — As deliberações dos sócios só podem ser provadas pelas actas das assembleias ou, quando sejam admitidas deliberações por escrito, pelos documentos donde elas constem.

3. — Quando a acta deva ser assinada por todos os sócios que tomaram parte na assembleia e algum deles não o faça, podendo fazê-lo, deve a sociedade notificá-lo judicialmente para que, em prazo não inferior a oito dias, a assine; decorrido esse prazo, a acta tem a força probatória referida no n.º 1, desde que esteja assinada pela maioria dos sócios que tomaram parte na assembleia, sem prejuízo do direito dos que a não assinaram de invocarem em juízo a falsidade da acta.

  Em primeiro lugar, o n.º 1 do art. 63.º não atribui às actas das assembleias uma específica força probatória. A sua força depende da sua forma: as actas constantes de documento particular avulso têm o valor de princípio de prova (art. 63.º, n.º 7, do Código das Sociedades Comerciais); as actas constantes de livro de actas têm o valor de prova bastante (art. 346.º do Código Civil); e as actas notariais têm força probatória plena (arts. 371.º e 372.º do Código Civil) [1].

   Em segundo lugar, a acta não foi assinada pela Autora e o art. 63.º, n.º 3, do Código das Sociedades Comerciais só atribui à acta a força probatória referida no n.º “desde que esteja assinada pela maioria dos sócios que tomaram parte na assembleia”. Ora a circunstância de a sociedade em questão ter, tão-só, dois sócios torna impossível que esteja assinada pela maioria.

   Logo, a acta não tem sequer o valor de princípio de prova da (alegada) deliberação.

 II. — Em relação aos art. 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente alega que o Tribunal da Relação de Évora não poderia ter alterado a decisão relativa à matéria de facto, por não ter sido observado o ónus da especificação e, em relação ao art. 662.º do Código de Processo Civil, o Recorrente alega que o Tribunal da Relação de Évora não poderia ter alterado a decisão relativa à matéria de facto, por não haver factos assentes, documentos ou prova produzida que determinassem decisão diversa.

  A alegação de que os Autores não observaram o ónus da especificação não pode ser apreciada, por força do art. 620.º do Código de Processo Civil. 

   O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão constante das fls. 1344 a 1358 dos autos, pronunciou-se no sentido de que o ónus da especificação tinha sido suficientemente observado, em termos que fazem caso julgado formal (cf. art. 620.º do Código Processo Civil).

  A alegação de que, ainda que os Autores tivessem observado o ónus da especificação, não havia factos assentes ou prova produzida que determinassem decisão diversa, essa, não pode ser apreciada por força do art. 674.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

   O Tribunal da Relação de Évora, ao dar como não provado o facto de a Autora BB ter consentido na actividade concorrente do Réu CC, não envolve nenhuma “ofensa de disposição expressa da lei que fixe a força de determinado meio de prova”, relevante para efeitos do art. 674.º do Código de Processo Civil.

  2. Quanto à alegação de que o acórdão recorrido é nulo, por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificaram a decisão sobre a matéria de facto, dir-se-á duas coisas:

      Em primeiro lugar, que a alegação de que o acórdão é nulo por falta de fundamentação contradiz a alegação de que é nulo, por contradição entre os fundamentos e a decisão. Em segundo lugar, que a falta de fundamentação prevista na alínea b) do art. 615.º do Código de Processo Civil deve interpretar-se em termos de designar, tão-só, uma absoluta falta de fundamentação [2].

   Ora o acórdão recorrido fundamenta a sua decisão atendendo ao “contexto factual” e, em particular, ao hiato entre a data do início da actividade concorrente do Réu e a data dos factos de que se pretende deduzir o consentimento da Autora: à circunstância de a acta não ter sido assinada pela Autora e ao conjunto dos factos dados como provados no processo crime.

   Quanto à alegação de que o acórdão recorrido é nulo, por contradição entre os fundamentos e a decisão sobre a matéria de facto, dir-se-á só uma coisa: que os elementos convocados pelo tribunal a quo para sustentar a sua decisão — “contexto factual”, circunstância de a acta não ter sido assinada pela Autora e conjunto dos factos dados como provados no processo crime — depõem, e depõem fortemente, no sentido da decisão.

 3. Finalmente, o Réu, agora Recorrente, alega que o acórdão recorrido é nulo, por não especificar os fundamentos de facto e de direito da condenação a “[p]agar à sócia BB o montante que se vier a apurar a título de vencimentos que a mesma deixou de auferir com o esvaziamento total do património da sociedade Autora”.

  A falta de especificação deve distinguir-se da especificação de fundamentos inadequados e da especificação de fundamentos insuficiente, em termos de só a (absoluta) falta de fundamentação ter como efeito a nulidade da decisão judicial. Ora o acórdão recorrido pronuncia-se, ainda que sumariamente, sobre a condenação, especificando que o faz por considerar que o Réu “esvaziou” o património da sociedade e que, ao fazê-lo, violou deveres de lealdade, designadamente o dever de não concorrência (cf. art. 254.º do Código das Sociedades Comerciais).

  Embora possa discutir-se se os fundamentos especificados são adequados, ou suficientes, não pode discutir-se que foram especificados.

4. Excluída a nulidade do acórdão recorrido, considerar-se-á a responsabilidade do Réu CC, agora Recorrente, perante a sociedade AA - Equipamentos Industriais, Lda., e perante a Autora BB, agora Recorrida.

  O princípio de que “[o] juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”, consignado no art. 6.º do Código de Processo Civil, exige que sejam consideradas disposições legais que não foram consideradas nem nas alegações das partes, nem no acórdão recorrido — que sejam considerados, designadamente, os arts. 72.º, 78.º e 79.º do Código das Sociedades Comerciais.

  5. Em tema de responsabilidade do Réu CC perante a Autora AA - Equipamentos Industriais, Lda., deve aplicar-se os arts. 64.º e 254.º [3], em ligação com o 72.º do Código das Sociedades Comerciais.

    Os factos provados são suficientes para se concluir que o Réu violou os seus deveres de lealdade, confundindo o seu património com o património da sociedade administrada (cf. n.º 21 dos factos provados) e exercendo actividade concorrente, “com a mesma clientela e fornecedores” (cf. n.º 22 dos factos provados). O princípio do art. 72.º, desenvolvido pela regra do art. 254.º do Código das Sociedades Comerciais, faz com que os gerentes fiquem obrigados a indemnizar a sociedade pelos danos ou prejuízos que lhe causem [4].

    O Réu defende-se, alegando que não teve culpa na violação de deveres de lealdade e, em particular, na violação de deveres de não concorrência e deduzindo a excepção de prescrição.

   Quanto à alegação de que o Réu não teve culpa, deve atender-se ao art. 72.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, de que decorre uma presunção de culpa:

 “Os gerentes ou administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa[5].

 

  Os factos provados não permitem ilidi-la, pelo que a culpa do Réu deve ter-se como provada.

  Quando à alegação de que, ainda que o Réu tivesse culpa, sempre a sua responsabilidade teria prescrito, deve convocar-se o art. 254.º, n.º 6, do Código das Sociedades Comerciais: 

  Os direitos da sociedade mencionados no número anterior prescrevem no prazo de 90 dias a contar do momento em que todos os sócios tenham conhecimento da actividade exercida pelo gerente ou, em qualquer caso, no prazo de cinco anos contados do início dessa actividade.

  O Réu alega que, “… tendo sido dado como provado que o aqui recorrente nunca cessou, desde o inicio da sua laboração, a sua actividade como empresário em nome individual e que tal laboração foi anterior à constituição da sociedade e que a sua ESPOSA, ao tempo e aqui Autora, DE TAL TINHA CONHECIMENTO (tal como referiu a testemunha EE), havia mais do que consentimento para o exercício dessa actividade e que, mesmo que não o fosse, atendendo a que é anterior ao inicio da sociedade, sempre foi existente há mais de cinco anos, contando como referência o ano de 2009”.

  Ora o acórdão recorrido dá como provados os factos abrangidos pela presunção do art. 623.º do Código de Processo Civil e constantes do acórdão da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora de 13 de Setembro de 2016, proferido no processo n.º 551/09.1TDEVR. Entre os factos constantes do acórdão da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora de 13 de Setembro de 2016 estão o de que o Réu deixou de desenvolver actividade comercial em nome próprio com a constituição da sociedade (n.º 2) e que, a partir de data não determinada de 2008, retomou a actividade comercial em nome próprio, exercendo-a com prejuízo para os interesses patrimoniais da sociedade que geria (n.ºs 3 e 4). Face ao exposto, não pode sustentar-se, como sustenta o Réu, que “nunca cessou, desde o inicio da sua laboração, a sua actividade como empresário em nome individual”. O prazo de prescrição de cinco anos só deverá começar a contar-se da data em que retomou a sua actividade comercial em nome próprio, ou seja, de data não determinada de 2008 — e a propositura da presente acção, em 2011, fez com que o prazo se interrompesse [cf. art. 323.º do Código Civil], pelo que não procede a excepção deduzida pelo Réu. 

  A condenação do Réu CC a indemnizar a Autora AA - Equipamentos Industriais, Lda., deverá confirmar-se, substituindo-se, tão-só, a referência a danos imediatos, constante do acórdão recorrido, pela referência a danos emergentes.

   6. Em tema de responsabilidade perante a Autora BB, deve distinguir-se a responsabilidade pela perda de rendimentos e a responsabilidade pela perda de valor da quota.

   Embora use o termo vencimento, a Autora não pede uma indemnização pela frustração de um direito de crédito, designadamente do direito de crédito a uma retribuição ou a um vencimento, no quadro de um contrato de trabalho subordinado — pede sim uma indemnização pela perda de rendimentos, cujo título não é especificado, e pela perda do valor da quota.

   A Autora BB alegou que, pelos serviços que prestava à sociedade, o Réu CC lhe entregava mensalmente a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) “para gestão pessoal, da casa de morada de família e actividades escolares e extra-escolares dos filhos”, e que “com a actuação do Réu, deixou de auferir qualquer montante muito antes do esvaziamento do património da sociedade, o que lhe causou um prejuízo de 39.000,00 euros”. Em coerência com as suas alegações, não se trataria de um vencimento, que fosse pago pela sociedade à Autora, e sim de um quantia, que lhe era pago pelo Réu; não se trataria de um quantia determinada por aquilo que prestava à sociedade, e sim de um quantia determinada por aquilo de que precisava, para si e para o seu agregado familiar.

  7. Os factos provados são insuficientes para que se conclua que a Autora BB tivesse um qualquer direito de crédito contra a Autora AA - Equipamentos Industriais, Lda., ou contra o Réu CC.

        Entre os factos provados estão, tão-só, os seguintes:

“A Autora BB cumulava com as suas funções administrativas na sociedade, as de dona de casa e encarregada de educação dos dois filhos menores” (n.º 30).

“A sociedade Autora foi constituída na pendência do matrimónio, dando sequência à actividade já desempenhada pelo Réu enquanto empresário em nome individual, em que a Autora BB desempenhava as funções de administrativa, procedendo a facturação, organização de documentação para a contabilidade, depósitos bancários”, “função que continuou a desempenhar aquando da constituição da sociedade Autora, já no âmbito desta” (n.ºs 7 e 8).

“Na pendência do matrimónio a sócia BB limitava-se a fazer o que o Réu, então marido, lhe solicitava, Assinando os documentos que o mesmo lhe exibia [e] tomando o Réu todas as decisões ao nível da gestão e dos investimentos da sociedade” (n.ºs 9 a 11).

          Entre os factos não provados, estão os seguintes:

“Pelos serviços prestados à sociedade e entregas que lhe eram feitas pelo Réu/gerente, a sócia e Autora BB dispunha mensalmente da quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) para gestão pessoal, da casa de morada de família e actividades escolares e extra-escolares dos filhos” — facto não provado z —;

“O Réu deixou de pagar à Sócia BB o referido montante em Janeiro de 2009 [f]icando esta, em função da conduta do Réu, numa situação de desemprego forçado” — factos não provados aa. e bb.

      Face ao teor dos factos provados e não provados, foi alegado, e não foi provado, que a Autora BB tivesse um crédito contra o Réu CC; não foi alegado e não foi provado que a Autora BB tivesse um crédito contra a Autora AA - Equipamentos Industriais, Lda.; e ainda que tivesse sido alegado e provado que a Autora BB tinha um crédito, não foi alegado e não foi provado nenhum dos requisitos específicos da responsabilidade dos gerentes pelos danos causados aos credores, previstos no art. 78.º do Código das Sociedades Comerciais [6].

      A Autora BB não alegou nem que houvesse uma infracção de disposições legais de protecção dos interesses dos credores, nem que a infracção de disposições legais de protecção tivesse sido a causa da insuficiência do património da sociedade, ou que a insuficiência do património da sociedade tivesse sido a causa da não satisfação dos seus créditos. Como que a admitir que o não era, está o facto de ter alegado que, “com a actuação do Réu, deixou de auferir qualquer montante muito antes do esvaziamento do património da sociedade”. 

  8. Em relação à perda do valor da quota, dir-se-á que estão em causa danos causados a sócios e que, em tema de danos causados a sócios, deve aplicar-se o art. 79.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, cujo teor é o seguinte:

 “Os gerentes ou administradores respondem também, nos termos gerais, para com os sócios e terceiros pelos danos que directamente lhes causarem no exercício das suas funções”.  

  O critério de distinção entre os danos directos e os danos indirectos, entre os danos directamente causados no sentido do art. 79.º e os danos indirectamente causados no sentido do art. 78.º do Código das Sociedades Comerciais, encontra-se na intermediação do património da sociedade [7]. Os danos directos produzem-se na esfera do terceiro sem a intermediação do património da pessoa colectiva; os danos indirectos, com a intermediação do património da pessoa colectiva [8]. O art. 79.º, n.º 1, ao exigir que o dano directo seja um dano directo (directamente causado) exclui a responsabilidade do Réu CC, perante a Autora BB, como sócia, pelos danos decorrentes da perda de valor da quota.

  O facto de a Autora relacionar causalmente o seu dano com a diminuição do património da sociedade, com o alegado “esvaziamento do património da sociedade”, confirma que o dano é indirecto, indirectamente causado, e, por consequência, confirma que o Réu CC, como gerente, não é responsável pelos danos causados à Autora BB, como sócia, pela perda do valor da sua participação social.

 III. — DECISÃO

 Pelo exposto, concede-se parcialmente revista e, em consequência, revoga-se parcialmente o acórdão recorrido, nos seguintes termos:

     I. — confirma-se a condenação o Réu CC a pagar à Autora AA - Equipamentos Industriais, Lda. o montante que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença decorrente da análise contabilística da sociedade Autora e do Réu enquanto empresário em nome individual, através de perícia a efectuar nos presentes autos, acrescido de juros à taxa legal em vigor desde a citação até integral cumprimento, a título de danos emergentes;

       II. — confirma-se a condenação do Réu a pagar à Autora AA - Equipamentos Industriais, Lda. o montante que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença, em valor global a determinar através de perícia a efectuar nos presentes autos, acrescido de juros à taxa legal em vigor desde a citação até integral cumprimento a título de lucros cessantes;

        III. — revoga-se a condenação do Réu a pagar à Autora BB qualquer montante, a título de desvalorização da quota; nesta parte, absolve-se o Réu do pedido;

        IV. — revoga-se a condenação do Réu a pagar à sócia BB qualquer montante “a título de vencimentos que a mesma deixou de auferir com o esvaziamento total do património da sociedade Autora”; nesta parte, absolve-se o Réu do pedido.

        Custas pelo Recorrente CC e pela Recorrida BB, na proporção de 50% para cada um.

         

Lisboa, 28 de Fevereiro de 2019



Nuno Manuel Pinto Oliveira (Relator)

Maria dos Prazeres Beleza

Olindo Geraldes

________

[1] Cf. designadamente Jorge Manuel Coutinho de Abreu, anotação ao art. 63.º, in: Jorge Manuel Coutinho de Abreu (coord.), Código das Sociedades Comerciais em comentário, vol. I — Artigos 1.º a 84.º, Livraria Almedina, Coimbra, 2010, págs. 711-720 (719).

[2] Cf. designadamente António Santos Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa, anotação ao art. 615.º, in: Código de processo civil anotado, vol. I — Parte geral e processo de declaração. Artigos 1.º a 702.º, Livraria Almedina, Coimbra, 2018, págs. 736-738.

[3] Sobre o art. 254.º do Código das Sociedades Comerciais, vide designadamente Diogo Pereira Duarte, anotação ao art. 254.º, in: António Menezes Cordeiro (coord.), Código das sociedades comerciais anotado, 2.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2011, págs. 739-742, e / ou Alexandre de Soveral Martins, anotação ao art. 254.º, in : Jorge Manuel Coutinho de Abreu (coord.), Código das Sociedades Comerciais em comentário, vol. IV — Artigos 246.º a 270.º-G, Livraria Almedina, Coimbra, 2012, págs. 92-104.

[4] Embora, em abstracto, a Autora AA — Equipamentos Industriais, Lda., tivesse a faculdade de optar entre uma indemnização e uma restituição, concretizada em “exigir que os negócios efectuados pelo sócio, de conta própria, sejam considerados como efectuados por conta da sociedade” [cf. art. 180.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, sobre as sociedades em nome colectivo, aplicável, por analogia, às sociedades por quotas ou anónimas — cf. Manuel Carneiro da Frada, “Sobre a obrigação de restituir dos administradores”, in: I Congresso Direito das sociedades em revista, Livraria Almedina, Coimbra, 2011, págs. 353-358), em concreto o pedido deduzido permite concluir que optou por uma indemnização.

[5] Sobre o ónus da prova do requisito da culpa na responsabilidade interna dos administradores perante a sociedade, vide, p, ex., Nuno Manuel Pinto Oliveira, Responsabilidade civil dos administradores. Entre direito civil, direito das sociedades e direito da insolvência, Livraria Almedina, Coimbra, pág. 131.

[6] Sobre os requisitos da responsabilidade dos administradores pelos danos causados aos credores, vide Nuno Manuel Pinto Oliveira, Responsabilidade civil dos administradores. Entre direito civil, direito das sociedades e direito da insolvência, cit., págs. 148-161.

[7] Expressão de Catarina Monteiro Pires, “Algumas considerações críticas sobre a responsabilidade civil dos administradores perante os accionistas no ordenamento jurídico português”, in: O Direito, ano 137.º (2005), págs. 81-135 (92).

[8] Cf. Nuno Manuel Pinto Oliveira, Responsabilidade civil dos administradores. Entre direito civil, direito das sociedades e direito da insolvência, cit., págs. 134-137.