Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
207/14.3TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: BERNARDO DOMINGOS
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
CHEQUE
CONFISSÃO DE DÍVIDA
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
OBRIGAÇÃO CARTULAR
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
ÓNUS DA PROVA
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
Data do Acordão: 03/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: BAIXA DOS AUTOS À RELAÇÃO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / JULGAMENTO DO RECURSO / TERMOS EM QUE JULGA O TRIBUNAL DE REVISTA.
Doutrina:
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5a edição, Almedina, 1991, p. 368 a 371;
- Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. I, 2.ª Ed., Coimbra Editora, 1982, p. 413;
- Castro Mendes, em Direito Civil, Teoria Geral, vol. III, AAFDL, 1979, p. 420 a 422;
- Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª Ed., Coimbra Editora 1997, p. 181/182;
- Lebre de Freitas, A acção executiva, Coimbra Editora, 5.ª Ed., 2009, p. 59 ; 7.ª ed., Gestlegal, 2017, p. 75;
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito civil, Tomo II do Direito das Obrigações, Almedina, 2010, p. 691 a 695;
- Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, Lex, 1999, p. 202 a 204.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 682.º, N.º 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 07-04-2005, PROCESSO N.º 05B612, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 20-09-2007, PROCESSO N.º 07B2156, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 13-03-2008, PROCESSO N.º 07A139, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 16-09-2008, PROCESSO N.º 08A2005, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 18-12-2008, PROCESSO N.º 07B3434, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 19-02-2009, RELATORA MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 07-07-2010, PROCESSO N.º 147/06.0TBMCN.P1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 12-12-2017, PROCESSO N.º 1181/13.9TBMCN-A.P1.S1.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

- DE 19-10-2010, PROCESSO N.º 5097/07.0TBVIS-A.C1.
Sumário :
I - A simples emissão e entrega de um cheque, por si só, não configura a existência de um contrato de mútuo. Se a acção não se basear na relação cartular que, por definição, é abstracta e autónoma, a obrigação de restituir a quantia titulada pelo cheque há-de derivar de um acordo entre os sujeitos da relação jurídica subjacente ou fundamental no sentido de um deles satisfazer uma prestação pecuniária mediante a emissão de um cheque.

II - O facto de, na acção, se provar a existência de cheques assinados pelo réu, no montante do valor alegadamente “emprestado”, por si só não permite colmatar a falta de prova da existência dos contratos de mútuo que a autora alega ter celebrado com aquele, porquanto desse facto não pode extrair-se um dos elementos integrantes daquele negócio jurídico, qual seja o de que o réu recebeu o dinheiro e assumiu com a autora a obrigação de o restituir.

III - Apesar de não haver prova directa da causa da entrega daquelas quantias ao réu (se a título de mútuo ou outro), justifica-se a baixa dos autos à Relação, nos termos do art. 682.º, n.º 3, do CPC, para ampliar a decisão de facto com vista a apurar a que título tais entregas foram feitas, por forma a que o tribunal, por via de presunções judiciais, consiga apurar o motivo ou a causa daquelas entregas.

IV – Se, na sequência de nova apreciação da decisão de facto, nada se apurar a esse respeito, cumprirá à Relação julgar a acção de acordo com o direito definido neste acórdão, ou seja, no sentido de que a simples existência dos cheques não configura uma confissão de dívida nem o reconhecimento de qualquer mútuo.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça Cível

2ª Secção Cível


Relatório[1]



« A Herança de AA (autora) intentou em 05/02/2014, uma acção contra BB e mulher, CC, pedindo a condenação dos réus a restituir à autora 199.519,16€, acrescido de juros vencidos a partir de 13/11/1998 e vincendos até integral pagamento, computando em 151.967,09€ os já vencidos, "que devem ser capitalizados a partir da citação."
Para tanto, alega, em síntese, que AA emprestou dinheiro ao réu, ao longo dos anos; em Fevereiro de 1995 o réu devia-lhe 25.000 mais 15.000 contos, "quantia materializada em mútuos, sem dependência de prazo: dois cheques sobre o BCP, emitidos à ordem de AA" naqueles valores; interpelou o réu para o pagamento, sem êxito; subsidiariamente, para a hipótese de os empréstimos serem considerados nulos, invoca a obrigação de restituição por força do art. 289 do CC; numa segunda parte dedicada aos factos ('factos II'), artigos 22 e segs da petição inicial (= PI), a autora diz que, em 2013, o réu veio invocar uma dívida do AA para consigo, no valor de 553.418,506, dizendo ele que ou a herança lhe pagava a dívida ou não prestava depoimento num processo judicial que terceiro tinha intentado contra a herança; na parte da PI que subordina ao 'direito', diz, ipsis verbis, que "Quanto ao momento em que o réu foi primeiramente interpelado para efectuar o pagamento, aquando do envio da relação de bens para o processo de inventário (doc. 3)." e logo a seguir acrescenta: "Poderemos fixar como data da interpelação 13/11/1998 (doc. 5)". O doc. 3 é um requerimento de inventário e o doc. 5 é composto de duas folhas iguais/repetidas, delas não constando nenhuma data; não há um único facto alegado na PI relativamente à ré.
O réu contestou a 06/11/2014, através de patrono nomeado;  excepcionando a. prescrição, dizendo que os cheques datam de 1992, ou seja foram emitidos há cerca de 22 anos, e não tinham data, pelo que o direito respectivo podia ser exercido imediatamente à sua entrega; logo, já decorreu o prazo ordinário de prescrição de 20 anos (arts. 306, 309, 303, 304, todos do Código Civil = CC); subsidiariamente alega a prescrição de todos os juros anteriores em 5 anos à notificação do réu (21/01/2014 - art. 301/do CC); a prescrição importa, diz, a absolvição do pedido (art. 576/3 do Código de Processo Civil = CPC); e (») impugnando: aceita especificadamente o teor de 6 artigos iniciais da PI [que correspondem aos factos abaixo dados como provados nos pontos 1 a 6] e diz que tudo o mais [incluindo os empréstimos] vai especificadamente impugnado por não corresponder à verdade dos factos; e a seguir diz que prestou inúmeros serviços ao AA ao longo de 8 anos e o JNG disse-lhe que os serviços lhe seriam pagos mais tarde, aceitando o réu tal promessa, nunca tendo sido feitas as contas entre ambos; quanto aos arts. 22 e segs da PI diz que são uma tentativa de falsear a realidade dos factos pela caracterização pouco abonatória do réu e entende que não são relevantes para o processo nem merecedoras de qualquer comentário; admite ter recebido os valores em causa, mas diz que a sua restituição nunca lhe foi exigida "pelo autor", na medida em que bem sabia que se encontravam por pagar os serviços prestados e que parte do dinheiro seria usado pelo réu para pagamento das despesas "do autor", tendo também pago várias destas despesas do seu [do réu] bolso; "a ser considerado empréstimo, como "o autor" defende, será sempre nulo por falta de forma (art. 1143 do CC); o réu não tem obrigação de restituição, na medida em que tem um contra-crédito contra o autor; e (iii) reconvenciona, se não for julgada procedente a prescrição, o pagamento dos serviços e despesas alegados, feitos de 1987 a 1995, no valor de 522.658,91€, subtraído dos 199.519,16€ pedidos pela autora.
A autora replicou, excepcionando a prescrição quanto ao crédito alegado pelo réu, pois os documentos juntos por ele datam de 1987 a 1993, sendo apenas um deles de 02/12/1994, quando a contestação só foi notificada a 13/11/2014, pelo que decorridos mais de 20 anos, quer relativamente ao capital, quer os juros; e a ilegitimidade passiva da herança quanto a alegadas dividas, pois as mesmas não dizem respeito ao AA, mas sim a sociedades; e 'impugna, para todos os legais efeitos, os factos alegados pelo réu para efeitos de reconvenção"; no art. 49 da réplica [à reconvenção], diz que "o réu não prova que o cheque (sic) seja de 1992 mas vem reclamar dívidas anteriores a essa data?!..."; conclui pela procedência das excepções e pela improcedência da reconvenção.
A  convite  do  tribunal,  o  réu  veio   responder às excepções deduzidas pela autora, impugnando os factos por ela alegados como base das excepções.
Não houve audiência prévia (foi dispensada...) e no início da audiência final não houve resposta da autora à excepção de prescrição deduzida pelo réu, nem lhe foi dada a palavra para o efeito.
Depois de realizado o julgamento, foi proferida sentença, julgando a acção e a reconvenção improcedentes e absolvendo os réus e a autora dos pedidos ali deduzidos».
A autora recorreu desta sentença, com o fim de ser alterada a decisão da matéria de facto e, em consequência, a decisão sobre a matéria de direito, com a condenação dos réus no pedido; pelo meio invocou nulidades.
O réu contra-alegou defendendo a improcedência do recurso, no essencial seguindo a decisão recorrida, quer na parte da fundamentação de facto quer na de direito.
A ré contra-alegou dizendo, no essencial, que o recurso da autora em momento algum coloca em crise a absolvição da ré».
O Tribunal da Relação, apreciando julgou a apelação parcialmente procedente e revogando a sentença condenou o R. a pagar à A. €199.519,16, com juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, vencidos desde 22/01/2004 e vincendos até integral pagamento. No resto manteve a sentença.
Inconformado com o decidido, veio o Réu, DD interpor recurso de revista, tendo rematado as suas alegações com as seguintes
Conclusões:
 
A)     O Acórdão de que se recorre andou mal ao entender ter existido por parte do aqui Recorrente um reconhecimento tácito de uma dívida - art 217º e 458º do CC)
B)     Baseando-se no facto dos dois cheques estarem assinados e na posse de AA.
C)     Entendendo ser motivo, pois, para se condenar o aqui Recorrente no pedido formulado pela contraparte, revogando a sentença de 1ª Instância.
D)     Na verdade, a sentença recorrida incorre em erro de apreciação crasso ao entender, mesmo que fosse de forma tácita, que alguma vez se deduz ou se alcança da conduta do Recorrente alguma manifestação de reconhecimento do que quer que seja.
E)      Ora, salvo o devido respeito, dados os factos considerados (e bem!) provados e não provados, aplicando-se o direito, jamais a decisão poderia ter sido no sentido que foi.
F)      Primeiro porque resultou não se logrou provar a existência de qualquer mútuo, empréstimo ou acordo mediante o qual foi cedido um valor monetário pelo Recorrente a AA com a obrigação de devolução.
G)     Até porque em vida AA nunca pediu directamente tal pagamento ao Recorrente nem encarregou ninguém de o fazer.
H) Tanto assim é que o seu Mandatário à data da sua morte desconhecia a existência dos referidos cheques a serem cobrados.
I) E a própria filha EE entendeu que os cheques não deviam ser cobrados pois eram uma antecipação da comissão de um negócio.
J) Mesmo que se argumente que, à la rigueur, este acto não consubstancia um perdão de dívida
K)  Sempre devendo ser atendido como indicação expressa para não cobrança.
L)   Ao contrário do putativo reconhecimento de dívida por parte do Recorrente.
M) Que não tendo sido de modo nenhum expresso, também não se consegue descortinar mesmo que tacitamente.
N) E se é certo que no reconhecimento de divida o ónus da prova se inverte, sempre se dirá que se exigiria suporte escrito à luz do art. 458º, nº2 do CC
O) Ou mesmo que fosse tácito o reconhecimento teria de haver decorrer de acto denotando a vontade real do Declarante – art. 217º, nº 1, 2ª parte do CC
P) Teoria que cai pela base se atendermos ao facto do próprio Declaratário (AA) conhecer perfeitamente a vontade declarada pelo aqui Recorrente.
Q) Diferentemente de qualquer reconhecimento de dívida (muito menos devolução de quantia mutuada) mas uma simples entrega de cheque como meio de garantia.
R)   Tal como tantas outras vezes requerido por AA.
S) E porque em matéria factual tal como expressamente se logrou (ou não) produzir prova cabal dúvidas não restam, o Tribunal a quo acabou por percepcionar algo sem qualquer correspondência possível com a realidade.
T)   Arrepiando caminho na sequência conclusiva a retirar dos factos provados e não provados.
U)  Certos que onde não existe algo, escusado procurar indício para inexistências em si mesmo.
V) Além do que se reitera: mesmo que existisse uma pretensa dívida, o aqui Recorrente de modo algum a reconheceu (nem podia!)
W) E mesmo que assim fosse, o que se não aceita, sempre a mesma ficaria por liquidar por vontade de AA secundado por acto expresso por EE, sua herdeira.
X)  Sendo por demais elementar nada ter a haver do Recorrente.
Y)  Tornando tanto mais incompreensível e incrível a decisão de que aqui se recorre.
Deste modo o, apesar de tudo, Douto Acordão deverá ser revogado e substituído por outro que julgando não verificada qualquer assunção de dívida e/ou promessa de cumprimento, mantenha na íntegra o teor da sentença de 1ª Instância, absolvendo o aqui Recorrente, só assim se fazendo a Costumada JUSTIÇA!
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Respondeu a autora pedindo a improcedência da revista e a confirmação do acórdão recorrido.
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Na perspectiva da delimitação pelo recorrente[2], os recursos têm como âmbito as questões suscitadas nas conclusões das alegações (art.ºs 635º nº 4 e 639º do novo Cód. Proc. Civil)[3], salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 608º do  novo Cód. Proc. Civil).
Das conclusões acabadas de transcrever decorre que a questão objecto do recurso se limita a saber se ante a factualidade dada como provada nas instâncias e que, ao contrário do que parece sugerir a alegação do recorrente, não cabe nas atribuições deste Supremo Tribunal sindicar, já que apenas conhece de direito, o Tribunal recorrido poderia ter condenado o R. nos termos em que o fez.
Dos Factos


Nas instâncias foram considerados provados os seguintes factos:
« 1.   AA faleceu em 16/01/1998, tendo deixado como herdeiros a sua viúva, FF, e seus 3 filhos, GG, EE e AA Júnior.
2.      EE é presentemente, a cabeça-de-casal (= c.c.) da herança de AA e de sua mulher, entretanto falecida.
3.      Heranças essas que se mantêm por partilhar, estando pendente inventário judicial que corre termos na 1ª vara, 2ª secção sob o n° 5453/09.9TVLSB (ex- 1195/98, da 17ª vara, 1ª secção).
4.      AA foi, durante cerca de 6 décadas, um empresário de referência no sector imobiliário, entre outros, com a sua actividade sedeada no distrito de Lisboa.
5.      O réu foi, durante os oito últimos anos da actividade empresarial de AA, pessoa da sua confiança, a quem recorria para a prática de actos materiais nos negócios que concretizava com terceiros.
6.      Em 1995, AA sofreu dois AVCs que o incapacitaram totalmente, para gerir a sua vida empresarial, ou mesmo a sua vida pessoal e veio a falecer sem nunca ter recuperado.
7.      O réu recebeu de AA valores que no total perfaziam o valor de 40.000.000$ (= 199.519,16€).
8.      O réu, emitiu dois cheques do Banco Comercial Português, emitidos à ordem de AA da conta DO n° 00000, nos valores de 25.000.000$ e 15.000.000$, cheques n°s, respectivamente, 00000 e 00000, sem aposição de data nos mesmos (alterado na Relação, eliminando-se a referência ao ano de 1992, como sendo o da emissão dos cheques).
8-A. Os cheques só foram entregues à actual c.c. em Outubro de 2006 (este ponto foi acrescentado na Relação).
9.      A 20/01/2014, foi o réu interpelado pela autora para efectuar o pagamento do valor de 199.519,166, em 8 dias.
10.    O réu recebeu tal carta a 21/01/2014.
11.    O réu em 01/05/2013, enviou à c.c, "mas também dirigida a G......, SA" e FundaçãoS......., uma carta, a interpelar a herança, e empresas da família para que lhe fossem pagas supostas dívidas, no total de 553.418,506.
12.    AA recorria ao réu para que este com ele colaborasse entre 1987 e 1995, nomeadamente em questões logísticas relacionadas com despejos levados a cabo em Camarate e num prédio do Campo Grande, pertencente à autora, nos quais se incluíam pagamentos devidos em tudo o que se prendia com a efectivação de negócios ou outros relacionados quer com os bens da herança, quer com as sociedades do titular da herança.
13.    (este ponto foi eliminado na Relação).
Do Direito

Aplicando o direito aos factos descritos o Tribunal da Relação fundamentou a sua decisão condenatória de restituição da quantia titulada pelos cheques, nos seguintes termos:
« Dado o que está provado em 8 e o que se sabe sobre o que consta de um cheque, pode concluir que, com a assinatura de dois cheques, o réu fez o reconhecimento tácito (art. 217 do CC) de uma dívida (art. 458 do CC) dele para com AA: com eles o réu diz ao banco respectivo que pague 25 + 15 mil contos a AA. Ora, se alguém dá instruções de pagamento é porque há uma dívida a pagar (que, muito provavelmente, se reporta ao que consta do facto do ponto 7, mas tal é irrelevante).
A decisão recorrida entende que não, socorrendo-se para tal do ac. do TRL de 23/02/2006 [proc. 323/2006-6]. Este acórdão, no entanto, representava, já antes da reforma de 2013 do CPC, uma corrente minoritária da jurisprudência, aquela que esquece, como diz Lebre de Freitas, "que o preenchimento do cheque à ordem ou a sua entrega ao portador, tem implícita a constituição ou o reconhecimento duma dívida, a satisfazer através da cobrança dum direito de crédito (cedido) contra a instituição bancária." (na 5.a edição da A acção executiva, Coimbra Editora, Maio de 2009, pág. 59; veja-se também, quanto à questão do reconhecimento da divida pela assinatura e entrega dos cheques, o já antigo ac. do STJ de 11/05/1999, publicado na C.ISTJ 1999, II, 88, com inúmeras referências doutrinárias neste sentido, sumariado em 99A353: "I - Em vez de título cambiário o cheque pode ser usado como quirógrafo de uma obrigação. II -Nesse caso servem como títulos de reconhecimento da dívida existente à data da sua subscrição. III - Essa natureza liberta o credor do ónus de alegar e provar a dívida causal." E ainda, apenas por exemplo, os três acórdãos invocados pela autora que dizem respeito a cheques; no ac. do TRC de 19/10/2010, proc. 5097/07.0TBVIS-A.C1, faz-se um apanhado das correspondentes jurisprudenciais sobre a questão conexa da possibilidade do cheque prescrito valer como titulo executivo por ser um reconhecimento de dívida, e já nessa altura a representada por aquele ac. do TRL era muito minoritária),
Sendo pois o cheque um reconhecimento da dívida, vale para ele o disposto no art. 458 do CC, epigrafado de promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida, que dispõe no seu n°. 1:
1. Se alguém, por simples declaração negocial, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.
2. A promessa ou reconhecimento deve, porém, constar de documento escrito, se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental.
Sobre este regime, dizem:
Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7." edição, Coimbra Editora 1997, págs. 181/182:
"e) Deslocadamente, ocupa-se o Código Civil da promessa de cumprimento e do reconhecimento de divida no artigo 458.°, integrado na secção sobre negócios unilaterais, do capítulo sobre fontes das obrigações.
Dizemos «deslocadamente» porque não estamos na presença de negócios unilaterais, como fontes autónomas de obrigações. Estamos na presença de simples declarações unilaterais que não criam obrigações mas apenas fazem presumir a existência de obrigações, derivadas de outros actos ou factos, que esses, sim, são a sua fonte.
A numa carta dirigida a B promete pagar-lhe mil contos ou reconhece dever-lhe essa importância; ou, como é vulgar, faz no seu testamento inserir este reconhecimento de dívida. Pode mesmo o declarante não especificar a causa ou título justificativo da dívida que promete cumprir ou reconhece existir. Perante a sua declaração, fica-se sem saber se essa dívida provém de uma compra ou de um empréstimo ou de um facto danoso gerador de responsabilidade.
Presume-se no entanto que a dívida realmente existe; que há uma causa que a justifica, ou seja, uma relação fundamental em que se integra, um acto ou facto que a gerou. Inverte-se pois o ónus da prova. Aquele que se arroga a posição de credor (B) não precisa provar a causa da dívida, visto beneficiar da presunção decorrente da declaração feita. À outra parte (A) é que competirá provar, se para isso dispuser dos elementos necessários, que afinal não é devedora porque a dívida nunca teve causa ou essa causa já cessara. Por exemplo os mil contos que A se comprometeu a pagar ou cujo débito reconheceu correspondiam a um empréstimo que lhe ia ser feito mas não chegou a sê-lo, ou a uma compra nula, ou a uma compra cujo preço veio a verificar que afinal já se encontrava, ao tempo, pago."
Antunes Varela, Das obrigações em geral, Almedina, 9.a edição, págs. 454/455:
"Já não constitui completo desvio à regra estabelecida [no art. 457 do CC] o regime que o artigo 458 consagra para a promessa de cumprimento e o reconhecimento de dívida.
Nenhum destes actos (A promete pagar 1000 a B; C reconhece dever 1000 acções da Torralta a D) constitui, com efeito, fonte autónoma de uma obrigação. Criam apenas a presunção da existência de uma relação negocial ou extranegocial (a relação fundamental a que aquele preceito se refere), sendo esta a verdadeira fonte da obrigação [Há neste caso não só uma inversão do ónus da prova, mas um agravamento desse ónus, na medida em que o aparente devedor não tem apenas que afastar determinada causa, mas convencer o tribunal de que a prestação prometida ou a divida reconhecida não têm nenhuma causa.] Por isso se inverte o ónus da prova, mediante uma verdadeira relevatio ab onere probandi. Se o declarante ou seus sucessores alegarem e provarem que semelhante relação não existe (porque o negócio que a promessa de prestação ou o reconhecimento de dívida pressupõem não chegou a constituir-se, porque é nulo ou foi anulado, porque caducou, ou os seus efeitos se extinguiram entretanto, porque não foi afinal o promitente o autor do dano que pretende reparar, porque contra a sua convicção inicial não há responsabilidade objectiva naquele tipo de casos, porque contra a sua expectativa a culpa foi da vítima ou de terceiro, etc.) a obrigação cai, não lhe servindo de suporte bastante nem a promessa de cumprimento nem o reconhecimento da dívida [A simples inversão do ónus probandi quanto à causa da relação fundamental estabelecida no artigo 458 é diferente do regime do negocio abstracto, cuja validade não dependa da existência daquela relação."
E quanto ao n.° 2 do art. 458 do CC, Antunes Varela, no CC anotado, vol. I, 2." edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 413, acrescenta:
"A aplicação da última parte do n.° 2 está dependente da prova da relação fundamental, que cabe, como vimos, ao devedor."
No mesmo sentido, veja-se também Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5a edição, Almedina, 1991, 368 a 371 (entre o mais: "como em tais actos não se indica a causa da obrigação, o tribunal terá de admiti-la até que o devedor a ilida") e Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, Lex, 1999, págs. 202 a 204, entre o mais:
"Neste caso, não se dá a abstracção da causa, mas antes a presunção da sua existência e a consequente inversão do ónus da respectiva prova. O credor não precisa, assim, de invocar, e provar a causa - a relação fundamental da qual emerge a promessa da prestação ou o reconhecimento da dívida -; cabe então ao devedor o ónus de invocar e provar a falta de causa, se for esse o caso."; e 248 a 260, entre o mais: "sempre que alguém, por uma declaração unilateral nua, isto é, sem invocação da respectiva causa, reconheça uma dívida ou prometa pagá-la, a procedência da pretensão do respectivo credor não fica prejudicada pela falta de demonstração da sua causa, ficando o devedor onerado com o encargo de demonstrar o contrário, isto é, que a causa não existe, ou cessou, ou é ilícita."
E ainda Menezes Cordeiro, Tratado de Direito civil, tomo II do Direito das Obrigações, Almedina, 2010, pág. 691 a 695:
Diz-nos o artigo 458.71: havendo uma declaração unilateral de existência de uma dívida, sem indicação da sua fonte, fica o credor dispensado de a exibir; poderá o devedor ilidir a presunção da sua existência, provando o contrário,
III. O artigo 458.71 não origina, se bem se atentar, nenhuma obrigação nova. Ele limita-se a permitir que se prometa uma "prestação", comum ou pecuniária ("reconhecer uma dívida"), devidas, anteriormente, por força de qualquer outra fonte. O único papel desse preceito é:
-        dispensar o beneficiário de indicar a verdadeira fonte da obrigação em jogo;
-        fonte essa cuja existência se presume, até prova em contrário.
Em bom rigor, existe aqui, ainda, um negócio unilateral: só que com uma mera eficácia declarativa, limitada à inversão do ónus da prova. Antes, caberia ao beneficiário que invocasse uma obrigação, provar a sua fonte ou origem (a "causa"); agora, pode o mesmo contentar-se com a apresentação de "promessa" ou do "reconhecimento", cabendo ao devedor demonstrar que, afinal, ela não existia. [...]
Precisados estes pontos há, contudo, que considerar o problema no seu todo. Havendo promessa de cumprimento ou reconhecimento de dívida, a obrigação preexistente já não é a mesma. Apenas por facilidade de expressão e de análise e pelas limitações de linguagem, nos vemos constrangidos a separar a substância da sua própria prova. Tudo isso é uma realidade que se apresenta em continuum. O reconhecimento, sendo declarativo, tem, também, uma eficácia constitutiva-'. Para além do decisivo aspecto da prova, devemos ter consciência que a dívida reconhecida nunca é precisamente a preexistente: bastaria a dispensa da "causa" para a tanto conduzir. [...].
Questão mais complicada é a de saber se a promessa de cumprimento ou o reconhecimento de dívida devem resultar, de modo directo e expresso, do documento que as contenha ou se podem ser extraídas de documentos que visem fins diversos mas que, de certo modo, os revelem. A questão tem-se posto em torno da invocação do cheque ou de outros títulos de crédito como meros quirógrafos, isto é, como simples documentos escritos, privados de força cambiária (normalmente por haver passado o prazo para o seu exercício) e dos quais conste uma obrigação. Em termos práticos, isso significaria, por exemplo, que o portador de um cheque que já não pudesse ser pago ao balcão, poderia usá-lo como reconhecimento de dívida do sacador. Respondem positivamente: ST.T 11/05/1999, CJ.STJ1999-11, págs. 88-92, STJ 29/01/2002, CJ2002-I, págs. 64-67, dependendo embora de natureza formal ou não formal do negócio de base, TRP 06/03/2007, CJ2007-I1, págs. 155-157; pela negativa, decidiram: TRL 11/10/2001, CJ2001-ÍV, págs. 120-121, TRP 21/10/2003, CJ2002-IV, págs. 186-187, e TRL 23/02/2006, CJ.2006-I, págs. 115-117.
A declaração de promessa de cumprimento ou de reconhecimento de dívida tem um destinatário: o próprio beneficiário. Deve ser interpretada nos termos normais (236.71). procurando-se o sentido que lhe daria o beneficiário normal, colocado na posição do beneficiário real. Se da declaração resultar a existência de uma dívida, ainda que, a tanto, ela não for primacialmente destinada, funciona a presunção do artigo 458.°.
V. No reverso da medalha: as pessoas devem ser responsáveis, perante aquilo que declarem e assinem. O artigo 458.°/2, ao exigir documento escrito, "se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental", protege os declarantes imprudentes. De todo o modo, caber-lhes-á sempre a prova de que as tais formalidades são exigidas, em função da relação principal."
E Castro Mendes, em Direito Civil, Teoria Geral, vol. III, AAFDL, 1979, págs. 420 a 422 (com a ajuda da interpretação de Lebre de Freitas, A confissão, notas 17, 24, 26 e 32 das págs. 387 a 394).
Assim, decorre do que é dito por estes autores, que (i) o credor, no caso a autora herança, não tem de alegar ou provar nada quanto à causa ou à relação fundamental subjacente ao reconhecimento da dívida. Ele tem simplesmente de invocar o reconhecimento da dívida, no caso os cheques; (ii) é o devedor, no caso o réu, que tem o ónus de alegar e provar que a dívida que reconheceu não tem qualquer causa, ou não corresponde a nenhuma relação fundamental ou que esta entretanto se extinguiu ou que dizia respeito a um mútuo inválido por falta de forma; (iii) pode ficar provado apenas o reconhecimento da dívida, não se provando qual a relação fundamental que lhe deu origem, por exemplo, se foi um mútuo; (iv) ficando provado apenas o reconhecimento da dívida, o devedor tem de ser condenado.
Pelo que, seguindo-se a posição de todos estes autores, tal levaria, sem mais nada, à solução de julgar o recurso e a acção procedente (quanto ao valor reconhecido em dívida nos cheques). Veja-se já agora o caso já citado acima, do ac. do STJ de 11/05/1999: provou-se apenas, no que interessa à questão, a emissão e entrega ao credor de 35 cheques no valor de 16.126,329$ entre 05/09/1983 e 20/04/1987; o réu foi condenado no pedido.
No entanto, Lebre de Freitas considera que a promessa de cumprimento e o reconhecimento de dívida constituem presunções legais que, como tal, invertem o ónus da prova, mas não dispensam o ónus da alegação (A acção executiva, 7.a edição, Gestlegal, Set2017, nota 48-B, pág. 75).
Ou seja,
"Sendo que a inversão do ónus da prova não dispensa do ónus da alegação e que o autor tem de alegar, na petição inicial, a causa de pedir (CPC, art. 467/1-c [=> agora 552/1-d na redacção de 2013]), o credor que, tendo embora em seu poder um documento em que o devedor reconhece uma dívida ou promete cumpri-la sem indicar o facto que a constituiu, contra ele propuser uma acção, deverá alegar o facto constitutivo do direito de crédito - o que é confirmado pela exigência de forma do art. 458/2 do CC, que pressupõe o conhecimento da relação fundamental. Este facto ficará provado por apresentação do documento, isto é, por ilação tirada, nos termos do art. 458/1 do CC, da declaração representada nesse documento conjugada com a alegação do credor, a qual, ao mesmo tempo que satisfaz uma exigência processual, é um acto integrador da fatispécie da norma probatória do art. 458 do CC, isto é, um acto processual com mera relevância substantiva [...]. Não se verifica, pois, o perigo de a prova se fazer relativamente a qualquer possível causa constitutiva do direito, pois se faz apenas relativamente àquela que for invocada pelo credor, e configura-se assim uma prova por presunção. [...] O devedor terá de fazer prova do contrário para que a presunção seja ilidida [...] A ilação que permite dar como provado o facto constitutivo da obrigação não é extraída directamente da declaração do devedor, mas sim do conjunto formado por esta declaração e pela alegação do credor" (A confissão no direito probatório, Coimbra Editora, 1991, págs. 387 a 394, espec. págs. 390 a 392; ou A acção declarativa (pág. 245, nota 26): [...] No caso da promessa de cumprimento ou do reconhecimento de dívida, a invocação da causa pelo credor completa a base da presunção, assim se configurando a presunção e não a dispensa de prova (A confissão, n.° 19.2.2.A [...]).
Esta posição de Lebre de Freitas tem sido seguida, de há muito, pela maioria da doutrina e da jurisprudência nas execuções e teve consagração legal nestas, por força do art. 703-c do CPC, na redacção que lhe foi dada pela reforma de 2013 do CPC.
E deve continuar a ser seguida, não só por necessidade de coerência, mas pela necessidade de alegação/invocação da causa de pedir, de formação de caso julgado (Lebre de Freitas, A confissão, pág. 391, nota 26) suficientemente identificado e de controlabilidade da validade formal da relação fundamental em causa.
Ou seja, não se pode exigir do credor que execute um cheque como quirógrafo que tenha de indicar a causa da obrigação, ou seja, os factos constitutivos da relação subjacente, e ao mesmo tempo, permitir-lhe que numa acção declarativa se dispensasse de a indicar, com o resultado de obter um título executivo onde não teria afinal que indicar a causa.
Seguindo-se então esta posição, dir-se-á que fazendo-se a conjugação do reconhecimento da dívida pelo réu com a alegação pelo credor de que ela proveio de mútuos (ao longo dos anos, até Fevereiro de 1995), extrai-se a ilação de que a dívida proveio daqueles mútuos, presunção legal esta (arts. 349 e 458 do CC) que o réu não conseguiu iludir. Sendo que tal não contraria a decisão da matéria de facto, pois que o facto de não se ter dado como provado aquilo que constava das alíneas a e b dos factos não provados, teve como base a prova documental e testemunhal produzida, que não se julgou suficiente para o efeito, e agora se estão a dar como provados os mútuos com base numa presunção legal que o réu não conseguiu ilidir (art. 350 do CC).
(Assim, Lebre de Freitas, AD, pág. 243: "Presunção legal (art. 344-1 CC). Consiste na ilação que a lei tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (art. 349 CC). Este não tem de ser provado, bastando que o seja o facto (exterior à previsão normativa em que se integra o facto presumido) que serve de base à ilação. [...] A presunção legal apela sempre a regras da experiência que, atendido o elevado grau de probabilidade ou verosimilhança da ligação concreta entre o facto que constitui base da presunção e o facto presumido, permitem dar este por assente quando o primeiro é provado). [...]". Introdução, 4.a ed, págs. 180/181: "De qualquer modo, o ónus da prova só em princípio repousa nas mesmas regras distributivas do ónus da alegação, pois tal deixa de acontecer quando se dá a sua inversão (arts. 344 CC e 345-1 CC), isto é, quando passa a caber à parte contrária àquela que com ele estava originariamente onerada, por disposição da lei (presunção ou dispensa legal) (62) ou, no campo do direito disponível, por convenção das partes (63): a inversão do ónus da prova não dispensa nunca o ónus da alegação (64), pelo que não está dispensado de os alegar aquele a quem, nos termos do art. 342 CC, aproveitam os factos não carecidos de prova (65). [...] (62) A distinção entre as figuras da presunção e da dispensa de prova, bem como a definição do facto impeditivo, não são fáceis e aparecem frequentemente confundidas na doutrina. A presunção estabelece-se entre um facto que é objecto de prova (base da presunção) e outro que dela é dispensado, considerada a ligação que, de acordo com a experiência, normalmente existe entre ambos [...]. (65) Tem assim o credor de dívida reconhecida sem indicação do facto que a constituiu o ónus de alegar este, não obstante não ter de o provar (art. 458-1 CC)"]
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Considerando-se então provados, por presunção legal não ilidida (arts. 458, 349 e 350, todos do CC), os mútuos feitos por AA ao réu, ao longo dos anos, até Fevereiro de 1995, dando origem à dívida que este reconheceu com a emissão de dois cheques sem data (com isto fica suficientemente salvaguardado o efeito de caso julgado, não podendo a herança/os herdeiros, voltai- a invocar qualquer empréstimo anterior a 1995).
Na dúvida sobre a validade dos mútuos, cujos pressupostos, seguindo-se esta posição, caberia naturalmente à autora alegar, temos que considerar que o direito alegado pela autora é o de uma série de mútuos nulos por falta de forma (arts. 1143 e 289 do CC e assento 4/95 do STJ de 28/03/1995, publicado in DR/I de 17/05/1995 - entre 1967 e 1985, durante a vigência da redacção originária do CC, se o mútuo fosse de valor superior a 10.000$ teria de haver, pelo menos, documento assinado pelo mutuário, para o contrato ser válido; entre 1985 e 1995 esse valor subiu para 50.000$ por força do DL 190/85, de 24/06) O que aliás ela já previa na petição inicial, como causa de pedir subsidiária). A validade do reconhecimento da dívida, decorrente de mútuos nulos por falta de forma não pode estar, natural e logicamente, dependente de outras formalidades para além do escrito particular respectivo. Assim sendo, os dois cheques, reconhecendo implicitamente a dívida, são documentos escritos bastantes para o efeito (art. 458/2 do CPC).
Para além de muitos outros, entre eles o já referido no ac. do STJ de 11/05/1999, veja-se que no caso que esteve na base do AUJ 3/2018, de 12/12/2017 (proc. 1181/13.9TBMCN-A.P1.S1), o STJ admitiu, sem um único voto de vencido, na prática, na sequência de jurisprudência maioritária, a exequibilidade de um reconhecimento de dívida, formalizado apenas num escrito particular, respeitante a um mútuo nulo por falta de forma (no valor de 6.000 contos, de 1995), embora sem referir o art. 458 do CC e muito menos o seu n.° 2: «O documento que seja oferecido à execução ao abrigo do disposto no artigo 46/1-c do CPC de 1961 (na redacção dada pelo DL 329-A/95, de 12/12) e que comporte o reconhecimento da obrigação de restituir uma quantia pecuniária resultante de mútuo nulo por falta de forma legal goza de exequibilidade, no que toca ao capital mutuado." (veja-se ainda, por exemplo, o ac. do STJ de 27/05/2014, 268/12.0TBMGD-A.P1.S1, respeitante a uma letra de 18.500 contos, de 1997).
No mesmo sentido, veja-se a posição de Lebre de Freitas, pág.90 e nota 84-A da 7a edição da acção executiva em que acrescentou a parte a seguir sublinhada: "no plano da validade formal, é óbvio que, quando a lei substantiva exija certo tipo de documento para a sua constituição ou prova, não se pode admitir execução fundada em documento de menor valor probatório para o efeito de cumprimento de obrigações correspondentes ao tipo de negócio ou acto em causa [...]. [...] a execução [baseada numa livrança relativa a um mútuo por falta de forma] não pode prosseguir, uma vez verificada a nulidade do acto constitutivo da relação fundamental, a não ser para a restituição da quantia cntrc-fuic.*' [com remessa ainda para outra nota, a 2 da pág. 46 em que já admite, com adaptações, a aplicação do assento 4/95 do STJ às execuções).
Posto isto, com a interpelação de 21/01/2014 (art. 224/1 do CC) a obrigação respectiva venceu-se (art. 777/1 do CC - já que não há razões para admitir a necessidade de estabelecimento de prazo: art. 777/2 do CC). A dívida entretanto não se pode dizer prescrita, pois que, não se provando quando é que os cheques foram emitidos, não se pode dizer em que data é que AA ou a sua herança podiam ter exercido o direito de interpelação para o pagamento (art. 306/1 do CC).
A partir daquela data da interpelação são devidos juros de mora à taxa legal (arts. 804, 806 e 559, todos do CC, e Portaria 291/03, de 08/04)».
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Como causa de pedir da acção a autora invocou a existência de diversos contratos de mútuo, concluídos ao longo de vários anos, entre o autor da herança (AA) e o R. nos termos dos quais aquele emprestava a este avultadas quantias. A autora alegou ainda que esses empréstimos em Fevereiro de 1995 totalizavam 40.000.000$00 (quarenta milhões de escudos) e que o R. entregou ao falecido AA, dois cheques sobre o Banco Comercial Português no montante global de 40.000.000$00 (um de 25.000.000$00 e outro de 15.000.000$00) que nunca foram pagos. A A. funda o seu pedido principal na obrigação de restituição das quantias peticionadas que resultaria desses sucessivos contratos, pois a lei – art.º 1142º do CC – justamente, define o mútuo como o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade. Subsidiariamente e admitindo que os referidos contratos sejam nulos por vício de forma, reclama as referidas quantias com fundamento no efeito da declaração de nulidade do negócio (art.º 289º do CC).
Vistos os factos alegados pela A. e os que as instâncias deram como provados é desde logo evidente que a A. não conseguiu demonstrar, como lhe competia em face do disposto no art.º 342º do CC, os factos constitutivos da causa de pedir invocada – a existência dos alegados empréstimos pecuniários.
Sobre esta matéria o que se provou foi apenas o que consta dos nºs 7 e 8 da decisão de facto acima descrita e que reza assim:
7.      O réu recebeu de AA valores que no total perfaziam o valor de 40.000.000$ (= 199.519,16€).
8.      O réu, emitiu dois cheques do Banco Comercial Português, emitidos à ordem de AA da conta DO n° 00000, nos valores de 25.000.000$ e 15.000.000$, cheques n°s, respectivamente, 00000 e 00000, sem aposição de data nos mesmos (alterado na Relação, eliminando-se a referência ao ano de 1992, como sendo o da emissão dos cheques).
Como é doutrina corrente, a simples emissão e entrega de um cheque, por si só, não configura a existência de um contrato de mútuo. Se a acção não se basear na relação cartular, que por definição é abstracta e autónoma, a obrigação de restituir a quantia titulada pelo cheque há-de derivar de um acordo entre os sujeitos da relação jurídica subjacente ou fundamental no sentido de um deles satisfazer uma prestação pecuniária mediante a emissão de um cheque. Ora, no caso em exame não se fez a prova da existência dessa relação fundamental, que seria, na tese do autor, o mútuo (ou mútuos) concluídos o réu e aparentemente causais da emissão e entrega dos cheques. O STJ tem reafirmado o entendimento de «que não basta que quem entregue um cheque ou mesmo deposite dinheiro numa conta de depósitos de outra pessoa invocando tratar-se de um empréstimo nulo por falta de forma possa obter ganho de causa sem provar os factos constitutivos deste direito, sendo que se nenhuma prova se fizer acerca das circunstâncias que motivaram a entrega será até abusivo falar-se de enriquecimento sem causa»[4]. No mesmo sentido foram os acórdãos deste STJ de  7.4.05 , proc. nº  05B612 e 20.9.07, proc. nº  07B2156, disponíveis in www.dgsi.pt. .
O facto de haver cheques assinados pelo R., no montante do valor alegadamente “emprestado”,  por si só não permite colmatar a falta de prova da existência dos contratos de mútuo que a Autora alega ter celebrado com aquele, porquanto desse facto não pode extrair-se um dos elementos integrantes daquele negócio jurídico, qual seja o de que o Ré recebeu o dinheiro e assumiu com a Autora (o AA) a obrigação de o restituir, cfr neste sentido inter alia o Ac STJ de 19 de Fevereiro de 2009 (Relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), in www.dgsi.pt. Na verdade e como bem se observa neste último aresto, a existência de um cheque assinado pelo R., não prova plenamente que o mesmo assumiu a obrigação de restituir o valor nele inscrito, porquanto « não resulta do disposto do nº 1 do artigo 376º do mesmo diploma que se possa considerar que fica provada a declaração (tácita) de que assume a obrigação de restituir o dinheiro e, consequentemente, “os factos decorrentes dessa declaração”.
No mesmo sentido se pronunciaram os Ac.S deste Supremo Tribunal de 7/7/2010, proc. nº 147/06.0TBMCN.P1, relatado por Gonçalo Silvano e de 13/03/2008, 16/09/2008 e 18/12/2008 (processos nº 07A139, 08A2005 e 07B3434) todos acessíveis em www.dgsi.pt).
No caso sub judicio acórdão recorrido reapreciou a matéria de facto e alterou o decidido na primeira instância, com relevo para a eliminação do ponto 13, onde tinha sido dado como provado que os montantes referidos no ponto sete se reportavam a pagamento de serviços prestados pelo R.. Ao eliminar este ponto e o Tribunal da Relação não curou de saber a que titulo as quantias referidas no ponto sete tinham sido entregues ao R. . E fê-lo por, no seu entender ser desnecessário apurar tal factualidade. Na verdade é isso que resulta indubitavelmente da seguinte passagem do acórdão recorrido:
« Dado o que está provado em 8 e o que se sabe sobre o que consta de um cheque, pode concluir que, com a assinatura de dois cheques, o réu fez o reconhecimento tácito (art. 217 do CC) de uma dívida (art. 458 do CC) dele para com AA: com eles o réu diz ao banco respectivo que pague 25 + 15 mil contos a AA. Ora, se alguém dá instruções de pagamento é porque há uma dívida a pagar (que, muito provavelmente, se reporta ao que consta do facto do ponto 7, mas tal é irrelevante)». Mas ao contrário do entendimento seguido no acórdão recorrido e como se demonstrou supra não é irrelevante saber a que título foram entregues ao R. aquelas quantias referidas no ponto 7, designadamente se o foram por empréstimo ou com a obrigação de as restituir. Na verdade a simples existência dos cheques não configura a existência dos alegados mútuos nem sequer a confissão de uma dívida. Pode suceder que apesar de não haver prova directa da causa da entrega daquelas quantias ao R. (se a título de mutuo ou a outro qualquer) o tribunal, por via de presunções judiciais possa apurar o motivo ou a causa daquelas entregas. Esta é uma competência das instâncias que não pode ser colmatada pelo STJ (art.º 682º nº 1 e 2 do CPC).  Por se entender ser  necessário e porque tal é possível, decide-se, nos termos do disposto no art.º 682º nº 3 do CPC, ordenar a baixa dos autos à relação para ampliar a decisão de facto com vista a apurar a que título as entregas referidas no ponto sete dos factos provados foram entregues ao R..
Se na sequência do nova apreciação da decisão de facto se apurar que tais entregas foram feitas a título de mútuo ou empréstimo, competirá à relação aplicar o pertinente direito. Se ao invés nada se apurar, como sucedeu no acórdão recorrido, então cumprirá à Relação julgar a causa de acordo com o direito acima definido, ou seja no sentido de que a simples existência dos cheques não configura uma confissão de dívida nem o reconhecimento de qualquer mútuo.

Concluindo

Pelo exposto, na procedência da revista, acorda-se em revogar a decisão recorrida e ordenada a baixa do processo, para ampliação da decisão de facto nos termos acima referidos e para se proceder a novo julgamento de harmonia com o disposto no nº 1 do artº 683º do CPC.
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Custas pelo vencido a final.
Notifique.

Lisboa, em 14 de março de 2019.



José Manuel Bernardo Domingos

João Luís Marques Bernardo

António Abrantes Geraldes (com declaração anexa)



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Declaração de voto

Embora considere que a emissão de cheque nominativo implique, por si, o reconhecimento de dívida, nos termos do art. 458º do CC, subscrevo a decisão determinativa da ampliação do objeto do recurso, na medida em que, sempre que possível, a matéria de facto deve reportar exaustivamente a realidade que está subjacente ao litígio.
No caso, como se diz no acórdão, a Relação “não curou de saber a que título as quantias referidas no ponto 7 tinham sido entregues ao R.. E fê-lo por, no seu entender, ser desnecessário apurar tal factualidade”.
Ora, estando provada a entrega de numerário ao R. e, por outro lado, estando provado o saque de cheques nominativos a favor de quem fez aquela entrega, para assegurar as diversas soluções plausíveis da questão de direito ainda se tornava relevante apurar a relação existente entre um facto e outro.
Abrantes Geraldes


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[1] Parcialmente transcrito do acórdão recorrido.
[2] O âmbito do recurso é triplamente delimitado. Primeiro é delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na 1.ª instância recorrida. Segundo é delimitado objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (art.º 684º, n.º 2 2ª parte do Cód. Proc. Civil antigo e 635º nº 2 do NCPC) ou pelo fundamento ou facto em que a parte vencedora decaiu (art.º 684º-A, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil, hoje 636º nº 1 e 2 do NCPC). Terceiro o âmbito do recurso pode ser limitado pelo recorrente. Vd. Sobre esta matéria Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa –1997, págs. 460-461. Sobre isto, cfr. ainda, v. g., Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra – 2000, págs. 103 e segs.
[3] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56.
[4] Cfr. Ac. do STJ de 13/03/2008, proc. nº  07A4139, disponível in www.dgsi.pt.