Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6735/09.5YIPRT-B.G1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: DÍVIDA DE CÔNJUGES
EMBARGOS DE TERCEIRO
RECURSOS
Data do Acordão: 01/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DA FAMÍLIA - CASAMENTO / EFEITOS DO CASAMENTO QUANTO AOS BENS DOS CONJUGES / DÍVIDAS DOS CONJUGES / REGIME DE BENS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL / INCIDENTES DA INSTÂNCIA / INTERVENÇÃO DE TERCEIROS - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS - PROCESSO DE EXECUÇÃO / EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA - PROCESSOS ESPECIAIS / PARTILHA DE BENS.
Doutrina: - Alberto dos Reis, Processos Especiais, I, reimpressão, 1982, 410; na ROA, 10, n.ºs 3 e 4, 414; na “Revista dos Tribunais”, 56, 66, 82 e 98; e, acta 4B, BMJ, 118, 45 ss..
- Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 5.ª ed., 248.
- Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Direito de Família, 426.
- Pinto de Mesquita, na “Revista de Legislação e de Jurisprudência”, ano 48.º, 50.
- Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 4.ª, 195-196.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1695.º, N.ºS 1 E 2, 1696.º, N.ºS 1 E 2, 1722.º, 1723.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 352.º, 684.º-A, 825.º, N.ºS1, 2 E 6, 1406.º, N.º1, ALÍNEA A).
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 6/11/2012, PROCESSO N.º 786/07. ITJVNF-B.P1.S1.
Sumário :
1. Na formulação inicial do Código de Processo Civil, e os embargos de terceiro eram um processo especial limitado à defesa da posse ofendida por diligência judicialmente ordenada, designadamente a penhora, o arrolamento, o arresto, a posse judicial avulsa e o despejo.

2. É o que resultava expressamente da tese do Prof. Alberto dos Reis, depois vertida no artigo 1037.º do Código de Processo Civil, que teve na sua origem a Lei de 23 de Dezembro de 1761 (passando para o artigo 635.º da Novíssima Reforma Judiciária) sendo considerados “meios de impedir”, que não “meios de pedir”.

3. Com a reforma do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, o processo especial passou a ser caracterizado como um incidente da instância visando neutralizar um acto judicialmente ordenado com a virtualidade de ofender o direito patrimonial do impetrante.

4. Trata-se, então e agora, de uma “sub espécie de oposição espontânea”, destinada a lograr a revisão do acto turbativo pelo órgão jurisdicional que o ordenou.

5. O cônjuge do executado que tenha a posição de terceiro (por não ser parte na lide) pode lançar mão desta medida não só para defender os bens próprios mas também os bens comuns ilegalmente atingidos pela diligência judicial de natureza executória.

6. Tratando-se de bens próprios, por não integrados na comunhão (artigos 1722.º e 1723.º do Código Civil) é-lhe permitido, desde logo, e sem qualquer medida preliminar, embargos de terceiro. Sendo bens comuns, o fundamento dos embargos é, para além de não ser parte na lide executiva, o não ter sido citado nos termos do n.º 1 do artigo 825.º do Código de Processo Civil.

7. Se ambos os cônjuges não figurarem como executados a diligência turbativa pode efectivar-se sobre bens próprios do cônjuge do executado – e subsidiariamente sobre a sua meação nos bens comuns (n.º 1 do artigo 1696.º do Código Civil) – o cônjuge não executado terá de ser citado para declarar se aceita a comunicabilidade da dívida (n.ºs 2 e 6 do artigo 825.º do Código de Processo Civil).

8. Mas nomeando-se à penhora qualquer dos bens referidos no n.º 2 do artigo 1696.º do Código Civil não há que proceder à citação do executado para, querendo, requerer a separação de bens.

9. Nos regimes de separação, os bens comuns do casal são objecto de uma relação de compropriedade, enquanto que nos regimes de comunhão esses bens constituem um património colectivo de afectação especial considerando-se a sua titularidade conjunta por marido e mulher, estando adstritos à satisfação das necessidades da sociedade conjugal.

10. Ou seja, o cônjuge não é dono de metade de cada um dos bens do casal. Tem direito a metade do casal, o que é diferente.

11. Os bens comuns respondem pelas dívidas de ambos os cônjuges e assim na falta ou insuficiência daqueles bens, quer solidária, quer conjuntamente (se o regime for de separação) os bens próprios de qualquer dos cônjuges, mesmo estando em causa dívida da responsabilidade de ambos.

12. O artigo 825.º do Código de Processo Civil utiliza o conceito de cônjuge até à data da divisão e partilha do acervo patrimonial, que não limitado à constância do casamento.

13. Se no recurso de apelação o recorrido não usar da faculdade do artigo 684.º-A do Código de Processo Civil, já não o poderá fazer em sede de revista por não ter, oportunamente, acautelado, ainda que a título subsidiário, o conhecimento de fundamento da sua defesa que a 2.ª Instância entendeu prejudicada e a 1.ª Instância não apreciara.

Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

“AA, Limitada” intentou execução para pagamento de quantia certa contra BB.

Por apenso à mesma, CC deduziu embargos de terceiro contra a penhora do imóvel onde reside e do respectivo recheio.

Alegou, nuclearmente, que tais bens integravam o património comum do casal que formou com o executado.

Esse casamento foi dissolvido por divórcio sem que  os mesmos bens tivessem sido partilhados, pelo que constituem um património autónomo que não podia ser atingido pela penhora.

A exequente contestou defendendo que, apesar do divórcio, os bens que integravam o património comum do casal, constituído pela embargante e pelo executado, podiam ser penhorados desde que aquela fosse citada, como foi, nos termos do n.º 1 do artigo 825.º do Código de Processo Civil.

Em consequência defendeu a improcedência dos embargos.

Na Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Braga os embargos de terceiro foram julgados improcedentes.

A embargante apelou para a Relação de Guimarães que julgou procedente a apelação e, revogando a sentença recorrida, julgou procedentes os embargos e determinou o levantamento das penhoras.

É agora a exequente/embargada quem pede revista.

E assim conclui a sua alegação:

“I. O Executado e a Recorrida divorciaram-se em Março de 2010, contudo, tal dissolução não implica que deixem de existir bens comuns decorrentes do regime de casamento pois, pelo menos até à partilha, os bens permanecem comuns em virtude do casamento.

II. A norma prevista nos artigos 826.º e 862.º do Código de Processo Civil consagra, por seu lado, as regras aplicáveis à execução movida apenas contra algum ou alguns dos contitulares de património autónomo ou bem indiviso, ou seja, a situações que resultem de motivo diverso da comunhão conjugal, estabelecendo, para além do mais, que não podem ser penhorados os bens compreendidos no património comum ou uma fracção de qualquer deles, nem uma parte especificada do bem indiviso.

III. Tendo a Recorrida sido citada nos termos do disposto no artigo 825.º do Código de Processo Civil, como foi, para requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência da acção pode o juiz ordenar, como ordenou, a penhora de bens comuns.

IV. A Recorrida não tinha a posição de terceiro nestes autos em virtude da citação mencionada supra e, em consequência, não deveriam, salvo melhor opinião, os embargos de terceiro ser admitidos.

V. Atenta a jurisprudência maioritária (veja-se, a título de exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/05/2009, processo 8654/05.5TBVFR-A.P1 in www.dgsi.pt; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo 2680/05, in www.trc.pt) os embargos de terceiro não são o meio adequado para oposição ao acto de penhora e, como tal, os actos de penhora efectuados não contrariaram quaisquer normas ou direitos da Recorrida, devendo ser mantidos nos exactos termos determinados pelo Tribunal da Comarca de Braga.

VI. Sem prescindir, revogada que foi a sentença recorrida, impunha-se ao Tribunal a quo, à luz do disposto no artigo 715.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, conhecer das questões consideradas prejudicadas pela solução dada à questão da adequação do meio processual utilizado pela Recorrida, o que, tal como consta da decisão em crise não sucedeu.

VII. Por outro lado, não ocorreram sequer quaisquer diligências probatórias relativas à simulação do divórcio e da partilha invocados pelo Recorrente, razão pela qual tal matéria de facto não foi averiguada.

VIII. Não tendo este Supremo Tribunal de Justiça poderes em matéria de facto, impõe-se, atento o disposto nos artigos 729.º e 730.º do Código de Processo Civil ordenar que os autos regressem à 1.ª instância, a fim de aí, após julgamento da matéria de facto pertinente, se conhecer desses fundamentos, o que aqui expressamente se requer.”

A Recorrida contra alegou em defesa do julgado.

No essencial, e em acervo conclusivo, refere que:

“- A recorrente/embargada voltou a “esquecer” que a recorrida já não era cônjuge do executado quando foi intentada a presente execução, mas sim ex-cônjuge do executado, de quem se divorciou em 11-03-2010.

- Até à data da instauração da presente execução e realização das penhoras, não havia sido efectuada a partilha dos bens comuns do casal, pelo que o executado não era dono e legítimo proprietário da totalidade do prédio urbano – casa de morada de família – nem do mobiliário existente no mesmo.

- As penhoras realizadas sobre o imóvel e sobre os bens móveis referidos ofendiam manifestamente a posse e propriedade da recorrida.

- Não podia, nem pode, a recorrida beneficiar do estatuto de cônjuge do executado, prescrito no artigo 864-A do Código de Processo Civil mesmo que, erradamente, notificada pelo agente de execução para esse efeito.

- Tendo sido decretado o divórcio, o único meio de reagir à penhora dos bens comuns do casal é o incidente de embargos de terceiro (artigos 351.º e seguintes do Código de Processo Civil) – Acórdão Tribunal da Relação do Porto de 16/09/2010 in www.dgsi.pt – não podendo a recorrida socorrer-se do mecanismo previsto no artigo 825.º do Código de Processo Civil e pedir a separação de bens do casal ou opor-se à penhora realizada, por este artigo se aplicar exclusiva e especificamente ao cônjuge do executado.

- O Acórdão citado pela embargada/aqui recorrente em nada se assemelha ao presente caso, já que aquele diz expressamente que “os embargos de terceiro não devem ser admitidos na hipótese do cônjuge do executado haver sido citado”.

- Do título executivo que deu origem á presente execução – sentença condenatória – consta apenas como devedor e executado, o ex-cônjuge da recorrida, sendo que nunca ao longo de todo o processo e seus apensos foi sequer invocada pela embargada/recorrente a comunicabilidade da dívida.

- Não pode agora em sede de recurso vir alegar factos novos, não invocados e como tal não dados como provados na acção principal.

- Estando em causa uma execução movida só contra um dos ex-cônjuges apenas podia penhorar-se o direito do executado relativo a um bem indiviso ou património autónomo ou comum, e não bens específicos compreendidos na comunhão ou uma fracção da comunhão ou parte especificada dos bens indivisos (artigo 826.º, n.º 1 do Código de Processo Civil) sendo que a penhora só pode consistir na notificação do facto ao administrador dos bens, se houver, e aos contitulares, com a expressa advertência de que o direito fica à ordem do agente de execução. (artigo 862.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

- Tendo o divórcio os mesmos efeitos jurídicos da dissolução do casamento por morte, a partir da data do divórcio (11-03-2010) os bens comuns do casal passaram a constituir um património autónomo, num sentido lato, enquanto património comum.

- O artigo 715.º, n.º 2, do Código de Processo Civil não tem qualquer aplicação ao caso concreto, não procedendo o argumento de que se impunha ao Tribunal a quo conhecer as questões prejudicadas pela solução dada à questão da adequação do meio processual utilizado pela requerida.

- A embargada/requerente deveria ter usado o mecanismo previsto no artigo 684.º-A do Código de Processo Civil aquando da interposição do recurso de apelação, o que não sucedeu.

- Não acautelou a requerente a hipótese de decaimento no recurso de apelação da primeira instância para o Tribunal da Relação de Guimarães, ao não alegar ou contra-alegar as questões que haviam ficado prejudicadas com a decisão da 1.ª instância.

- Não pode vir agora alegar que o Tribunal da Relação de Guimarães no douto Acórdão recorrido omitiu o dever de pronuncia e conhecimento de questões que não foram alegadas pela aqui recorrente em sede de recurso de apelação.

- Essas questões ficaram prejudicadas logo em primeira instância e não em sede de recurso de apelação e não tendo sido suscitada pela requerente nas suas contra alegações a sua apreciação precludiu o direito de as fazer valer em juízo.”

Das instâncias vem assente a seguinte matéria de facto:

1. No âmbito da execução de que os presentes autos constituem apenso, procedeu-se, em 2 de Julho de 2010, à penhora do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Amares sob o n.º 00/Rendufe e, em 12 de Outubro do mesmo ano, à penhora de diversos bens móveis ali existentes – cfr. docs. de fls. 63 a 68 do processo principal, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
2. A penhora do imóvel mostra-se definitivamente inscrita no registo por apresentação datada de 2 de Julho de 2010 – cf. doc. de fls. 26 a 28 do processo principal;
3. Por carta registada com aviso de recepção expedida na sequência da penhora, em 18 de Outubro de 2010 a embargante foi citada para, em 20 dias, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de acção em que a separação já tivesse sido requerida, sob pena da execução prosseguir nos bens comuns, nos termos do artigo 825.º do Código de Processo Civil – cf. doc. de fls. 84 e 85 do processo principal;
4. A embargante foi casada com o executado entre 18 de Setembro de 2004 e 11 de Março de 2010, data em que o casamento foi dissolvido por divórcio – cf. doc. de fls. 10 e 11;
5. Por transacção efectuada no âmbito do inventário para partilha dos bens que integravam o património comum do dissolvido casal formado pela embargante e pelo executado, que correu termos pelo Tribunal Judicial de Amares sob o n.º 574/10.8TBAMR, foram adjudicados à embargante todos os bens ali relacionados, neles se incluindo os penhorados no processo de que estes autos constituem apenso, tendo o executado declarado que recebeu as tornas devidas – cf.doc. de fls. 109 a 111, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
6. O divórcio foi registado, por averbamento em 12 de Março de 2010 (fls. 11, verso);
7. A penhora dos bens móveis foi efectuada em 12 de Outubro de 2010 (fls. 12).

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,

1. Embargos de terceiro – evolução e dogmática.

2. Embargos de terceiro do cônjuge.

3. “In casu”.

4. Conclusões.

1 Embargos de terceiro – evolução e dogmática.

1.1. Na formulação inicial do Código de Processo Civil, os embargos de terceiro caracterizavam-se por serem um processo especial limitado à defesa da posse ofendida por diligência ordenada judicialmente, designadamente a penhora, o arrolamento, o arresto, a posse judicial avulsa e o despejo.

É o que resultava, expressamente, do artigo 1037.º daquele diploma a permitir, por essa via, que o terceiro ofendido (por não ter tido intervenção no processo) pudesse, como lesado, fazer-se restituir à posse.

Como ensinava o Prof. Alberto dos Reis (in “Processos Especiais”, I – reimpressão, 1982, 410) era “função dos embargos de terceiro”, ou “restituir o embargante à posse de que foi privado por determinada diligência judicial”; ou “obstar a que o embargante seja esbulhado da sua posse em consequência de diligência judicial já ordenada.”

E concluía afirmando que no primeiro caso tinha a fisionomia de verdadeira acção de restituição de posse, sendo que, no segundo, apresentava-se “com o aspecto de acção possessória de prevenção”.

E, por se tratar de meio de oposição contra actos judiciais, estas medidas foram chamadas de embargos, dizendo-se, no passado, serem “meios de impedir”, que não “meios de pedir”, tendo tido origem na Lei de 23 de Dezembro de 1761, passando, depois, para a Novíssima Reforma Judiciária (artigo 635.º).

A caracterização dos embargos de terceiro como meio possessório foi objecto de larga controvérsia, hoje ultrapassada.

Acabou por vingar a acima referida posição do Prof. Alberto dos Reis, com grande oposição do Dr. José Gualberto Sá Carneiro, vogal da Comissão Revisora do Código de Processo Civil (cf. ROA – 10 – n.ºs 3 e 4, 414; “Revista dos Tribunais”, 56, 66, 82 e 98 e acta 4B – BMJ – 118 – 45 ss).

Actualmente, e com a reforma do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, aquele processo especial passou a ser caracterizado como um incidente da instância.

E como julgou o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Novembro de 2012 – 786/07. ITJVNF-B.P1.S1 – do qual foi 1.º Adjunto o ora Relator e 2.º Adjunto o ora 1.º – “na base desta opção esteve o entendimento de que em termos estruturais o que realmente caracteriza os embargos de terceiro é a circunstância de a pretensão do embargante se enxertar num processo pendente entre outras partes e visar a efectivação de um direito incompatível com a subsistência dos efeitos de um acto de agressão patrimonial, judicialmente ordenado no interesse de alguma das partes da causa e que terá atingido ilegitimamente o direito invocado pelo terceiro.”

Foi esta uma das consequências daquela reforma que eliminou as acções possessórias do conjunto dos processos especiais com a revogação dos artigos 1033.º a 1043.º quando a função dos embargos estava limitada à defesa da posse ofendida por qualquer diligência judicialmente ordenada (artigo 1037.º, n.º 1), como consequência do regime substantivo.

De facto, o artigo 1285.º do Código Civil definia os embargos de terceiro como um meio de defesa possessório, com especiais características por se destinar à defesa das agressões à posse “por penhora ou diligência ordenada judicialmente.”

Actualmente, e como já acima, enfaticamente, se deixou dito, os embargos de terceiro não são adjectivamente um meio possessório mas um incidente da instância, ou seja, como refere o Cons. Amâncio Ferreira, “uma verdadeira subespécie da oposição espontânea, sob a denominação de oposição mediante embargos de terceiro (artigo 351.º e seguintes). E assim, como é do conceito de oposição (artigo 342.º, n.º 1) encontramo-nos perante um incidente que permite a um terceiro intervir numa causa para fazer valer no confronto de ambas as partes, um direito próprio, total ou parcialmente incompatível com as pretensões por aquelas deduzidas.” (in “Curso de Processo de Execução”, 5.ª ed., 248).

Ou, na opinião do Cons. Salvador da Costa: “No fundo representam os embargos de terceiro uma forma particular de reclamação tendente à revisão, pelo mesmo órgão jurisdicional, da questão sobre que incidiu a decisão de que derivou a diligência posta em causa. Não visam, porém, a destruição da prova em que assentou a decisão que ordenou a diligência dita ofensiva. (…) A estrutura dos embargos é essencialmente caracterizada, não tanto pela particularidade de se consubstanciarem numa acção declarativa que corre por apenso a uma acção executiva, com a especificidade de inserirem uma sub-fase introdutória de apreciação sumária da sua viabilidade, mas, sobretudo, por a pretensão do embargante se inserir num processo pendente entre outras partes e visar a efectivação de um direito incompatível com a subsistência dos efeitos de algum acto judicial de afectação ilegal de um direito patrimonial do embargante.” (in “Os Incidentes da Instância”, 4.ª, 195-196).

Do exposto resulta que o cônjuge do executado que tenha a posição de terceiro pode lançar mão desta medida não só para defender os bens próprios mas também os bens comuns ilegalmente atingidos pela diligência judicial de natureza executória.

Vejamos, então,

2 Embargos de terceiro do cônjuge.

2.1 O cônjuge do executado pode não ser parte na execução.

No entanto a penhora – ou outra diligência judicial lesiva da sua posse – pode incidir sobre os seus bens próprios ou sobre bens comuns do casal.

Tratando-se de bens próprios – por não integrados na comunhão (cf. os artigos 1722 e 1723 do Código Civil) é-lhe permitido, desde logo, e sem qualquer outra medida prévia, ou preliminar, embargar de terceiro (artigo 352 do Código de Processo Civil).

Sendo, contudo, bens comuns, o fundamento dos embargos é (para além de não ser parte na lide executiva) o não ter sido citado para requerer a separação de bens, nos termos do n.º 1 do artigo 825.º do principal diploma processual.

Este preceito tem duas componentes: a adjectiva, quando se reporta à “execução movida contra um só dos conjuges”; a substantiva quando se refere à comunicabilidade da dívida exequenda.

Daí a oportunidade da sua conjugação com o artigo1696º do Codigo Civil.

Outrossim, podendo a diligência turbativa da posse efectivar-se sobre bens próprios do cônjuge do executado, e subsidiariamente sobre a sua meação nos bens comuns, nos termos do n.º 1 do artigo 1696.º do Código Civil, se ambos os cônjuges não figurarem como executados, o cônjuge não executado terá de ser citado para declarar se aceita a comunicabilidade da dívida (n.º 2 e 6.º do citado artigo 825.º do Código de Processo Civil).

Mas não se olvide que, “ex vi” do n.º 2 do artigo 1696.º do Código Civil, respondem com os bens próprios do cônjuge devedor (“ao mesmo tempo”) “os bens por ele levados para o casal ou posteriormente adquiridos a título gratuito, bem como os respectivos rendimentos; o produto do trabalho e os direitos de autos do cônjuge devedor; os bens subrogados no lugar” dos primeiros.

Nomeando-se à penhora qualquer destes bens não há que proceder à citação do executado para, querendo, requerer a separação de bens. (cf. Profs. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “Direito de Família”, 426).

2.2 Verifica-se, assim, que o artigo 352.º do Código de Processo Civil consagra, no essencial, o regime do n.º 1 do artigo 1038.º anterior.

É que, não obstante a eliminação da moratória conjugal ( cfr o artigo 10º do Código Comercial e dívidas provenientes de crimes ou que tivessem por objecto indemnizações, restituição, custas judiciais ou multas,e não abrangidas pelos nºs 1 e 2 do artigo 1691ºCC) pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, nos artigos 1696.º do Código Civil e 825.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, verifica-se que continua a vigorar a mesma disciplina.

Daí que o cônjuge do executado possa embargar de terceiro relativamente aos bens próprios e aos bens comuns que tenham sido atingidos pela diligência judicial.

Há, por conseguinte, que percorrer o seguinte caminho: verificar contra qual dos cônjuges foi movida a execução; determinar a natureza da dívida exequenda; apurar se os bens penhorados são comuns ou próprios do cônjuge do executado; verificar se, no caso de serem comuns, e a execução tiver sido movida apenas contra um dos cônjuges, o não executado foi citado para requerer a separação de bens ou declarar se aceita a comunicabilidade da dívida.

Não se olvide, contudo, que nos regimes de separação os bens comuns do casal são objecto de uma relação de compropriedade, enquanto que nos regimes de comunhão esses bens constituem um património colectivo de afectação especial, considerando a sua titularidade conjunta por marido e mulher e o estarem adstritos à satisfação das necessidades da sociedade conjugal.

Ou seja, o cônjuge não é dono de metade de cada um dos bens do casal; tem direito a metade do casal, o que é diferente.

E aqui esteve, salvo o devido respeito, o equívoco do Dr. Pinto de Mesquita ao comentar, na “Revista de Legislação e de Jurisprudência”, ano 48.º, 50, na redacção dada ao artigo 1114 § 1.º do Código Civil pelo Decreto n.º 19126.

Facultou-se, então, ao credor, para sua garantia, seguir com a acção e execução até à penhora do direito e acção do marido nos bens do casal comum.

Em comentário, aquele Ilustre Jurista disse que o acréscimo tinha por fim evitar que o credor fosse ludibriado e não encontrasse à dissolução do casamento, bens à vista por onde pudesse pagar-se.

Só que o equívoco deste comentário reside, como se deixou dito, na propriedade dos bens e na possibilidade da respectiva penhora.

Os bens comuns respondem, por isso, pelas dívidas de ambos os cônjuges, também respondendo, na falta ou insuficiência daqueles bens, quer solidária, quer conjuntamente (se o regime for de separação de bens) os bens próprios de qualquer dos cônjuges, mesmo estando em causa dívida da responsabilidade de ambos, “ex vi” dos artigos 1695.º, n.ºs 1 e 2 e 1696.º, n.º 1 do Código Civil.

É por este regime que, e como acima se acenou, o cônjuge do executado, que tenha a posição de terceiro em relação à execução pode (mesmo sem autorização do demandado) deduzir embargos de terceiro para defender os bens próprios e os bens comuns.

Quanto aos primeiros alegando não ser parte na lide executiva; quanto aos segundos por não ter sido citado para declarar se aceita a comunicabilidade da dívida ou para requerer a separação de bens.

Feita esta exegese, vejamos então,

3 “In casu”.

3.1 Do acima elencado quanto à matéria de facto resulta que, na execução intentada contra o cônjuge da embargante, foram penhorados um prédio urbano e vários móveis ali existentes, em 12 de Outubro de 2010.

Em 18 seguinte a embargante foi citada para requerer a separação de bens ou demonstrar a pendência de acção com tal pedido, nos termos do artigo 825.º do Código de Processo Civil.

A embargante casou com o executado em 18 de Setembro de 2004, sob o regime de comunhão de adquiridos.

O casamento foi dissolvido por divórcio em 11 de Março de 2010, registado, por averbamento, no dia seguinte.

Por transacção efectuada no inventário para partilha dos bens que integravam o património comum do dissolvido casal, os bens penhorados foram adjudicados à embargante.

E o executado declarou que recebeu as tornas devidas.

Mas tal aconteceu após a penhora, como resulta do documento junto.

Perante este quadro fáctico resulta claro que aquando da penhora o casamento da embargante com o executado já tinha sido dissolvido por divórcio, sendo que aquela ainda não procedera à partilha de bens que integravam o património comum do casal e os bens penhorados,que só após aquela diligencia lhe foram adjudicados, tendo o executado recebido as respectivas tornas, matéria de facto insindicável por este Supremo Tribunal de Justiça.

A exequente não teve intervenção no inventário para a separação da meações, o qual também poderia impulsionar,nos termos do nº1, alínea a) do artigo 1406º CPC.

Assim, o cônjuge do executado não podia defender, pela via dos embargos de terceiro, o direito aos precisos bens que,mais tarde, por força da partilha, transitaram do património comum para o acervo dos seus bens próprios.

Alega que não tinha sequer que ser citada nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 825.º do Código de Processo Civil uma vez que o casamento já tinha sido dissolvido por divórcio não podendo falar-se de cônjuge mas sim de “ex cônjuge”.

Sem razão, porém.

É que, aquele preceito, utiliza o conceito de cônjuge independentemente da dissolução do casamento mas até à data da divisão e partilha do acervo patrimonial que, nuclearmente, é o que aqui está em causa.

Apesar do termo da comunhão conjugal, como consequência do divórcio, dar origem a uma situação de compropriedade, ou de património colectivo, a extinção do vínculo conjugal não faz operar automaticamente a alteração do regime de bens, razão porque, sendo a obrigação exequenda anterior à dissolução do casamento, os bens comuns do casal mantém essa qualidade até à sua divisão e partilha.

Daí que tivesse de ser cumprido, como foi, o n.º 1 do artigo 825.º do diploma processual.

3.2 Finalmente, a recorrente insurge-se por não ter sido tomado conhecimento da matéria alegada quanto à “simulação do divórcio e da partilha”, que o Acórdão posto em crise considerou poder ser objecto de eventual recurso de revisão.

Independentemente de se tratar de questão prejudicada pelo decidido,sempre se dirá,por tal ter sido questionado, que a recorrente, quando confrontada com a impugnação da decisão da 1.ª Instância, não lançou mão da faculdade do artigo 684.º-A do Código de Processo Civil, pelo que não poderá fazê-lo nesta fase.

O recorrido tem a possibilidade de requerer ao tribunal “ad quem”, na sua alegação (ainda que subsidiariamente) o conhecimento do fundamento em que decaiu, acautelando a necessidade da sua apreciação, no caso de pluralidade de fundamentos da acção ou da defesa.

Mas o recorrido pode (se o Tribunal de 2.ª Instância mantiver integralmente a decisão da 1.ª) solicitar ao tribunal de revista na contra alegação que conheça, ainda que a título subsidiário, do fundamento em que decaiu nas instâncias prevenindo a hipótese do Supremo Tribunal de Justiça considerar não verificado o fundamento que venceu anteriormente.

O terceiro tipo de ampliação do objecto do recurso traduz-se na possibilidade dada ao recorrido de, na respectiva alegação, e a título subsidiário, impugnar a decisão proferida sobre pontos concretos da matéria de facto não impugnada pelo recorrente, prevenindo a hipótese de triunfar a questão por este suscitada.

Só a primeira modalidade aqui relevaria, estando fora a hipótese da segunda e terceira.

Porém, mau grado a recorrente ter decaído quanto ao fundamento em apreço, e que fez parte da sua defesa, não pediu o seu conhecimento, a título subsidiário quando contra-alegou no recurso de apelação, perspectivando a possibilidade de aí decair, como aconteceu.

Daí que já não pudesse fazê-lo nesta fase.

4 Conclusões.

Pode concluir-se que:

a) Na formulação inicial do Código de Processo Civil, e os embargos de terceiro eram um processo especial limitado à defesa da posse ofendida por diligência judicialmente ordenada, designadamente a penhora, o arrolamento, o arresto, a posse judicial avulsa e o despejo.

b) É o que resultava expressamente da tese do Prof. Alberto dos Reis, depois vertida no artigo 1037.º do Código de Processo Civil, que teve na sua origem a Lei de 23 de Dezembro de 1761 (passando para o artigo 635.º da Novíssima Reforma Judiciária) sendo considerados “meios de impedir”, que não “meios de pedir”.

c) Com a reforma do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, o processo especial passou a ser caracterizado como um incidente da instância visando neutralizar um acto judicialmente ordenado com a virtualidade de ofender o direito patrimonial do impetrante.

d) Trata-se, então e agora, de uma “sub espécie de oposição espontânea”, destinada a lograr a revisão do acto turbativo pelo órgão jurisdicional que o ordenou.

e) O cônjuge do executado que tenha a posição de terceiro (por não ser parte na lide) pode lançar mão desta medida não só para defender os bens próprios mas também os bens comuns ilegalmente atingidos pela diligência judicial de natureza executória.

f) Tratando-se de bens próprios, por não integrados na comunhão (artigos 1722.º e 1723.º do Código Civil) é-lhe permitido, desde logo, e sem qualquer medida preliminar, embargos de terceiro. Sendo bens comuns, o fundamento dos embargos é, para além de não ser parte na lide executiva, o não ter sido citado nos termos do n.º 1 do artigo 825.º do Código de Processo Civil.

g) Se ambos os cônjuges não figurarem como executados a diligência turbativa pode efectivar-se sobre bens próprios do cônjuge do executado – e subsidiariamente sobre a sua meação nos bens comuns (n.º 1 do artigo 1696.º do Código Civil) – o cônjuge não executado terá de ser citado para declarar se aceita a comunicabilidade da dívida (n.ºs 2 e 6 do artigo 825.º do Código de Processo Civil).

h) Mas nomeando-se à penhora qualquer dos bens referidos no n.º 2 do artigo 1696.º do Código Civil não há que proceder à citação do executado para, querendo, requerer a separação de bens.

i) Nos regimes de separação, os bens comuns do casal são objecto de uma relação de compropriedade, enquanto que nos regimes de comunhão esses bens constituem um património colectivo de afectação especial considerando-se a sua titularidade conjunta por marido e mulher, estando adstritos à satisfação das necessidades da sociedade conjugal.

j) Ou seja, o cônjuge não é dono de metade de cada um dos bens do casal. Tem direito a metade do casal, o que é diferente.

k) Os bens comuns respondem pelas dívidas de ambos os cônjuges e assim na falta ou insuficiência daqueles bens, quer solidária, quer conjuntamente (se o regime for de separação) os bens próprios de qualquer dos cônjuges, mesmo estando em causa dívida da responsabilidade de ambos.

l) O artigo 825.º do Código de Processo Civil utiliza o conceito de cônjuge até à data da divisão e partilha do acervo patrimonial, que não limitado à constância do casamento.

m) Se no recurso de apelação o recorrido não usar da faculdade do artigo 684.º-A do Código de Processo Civil, já não o poderá fazer em sede de revista por não ter, oportunamente, acautelado, ainda que a título subsidiário, o conhecimento de fundamento da sua defesa que a 2.ª Instância entendeu prejudicada e a 1.ª Instância não apreciara.

Nos termos expostos, acordam conceder a revista revogando o Acordão recorrido para prevalecer a sentença da 1ª instância.

Custas pela recorrida

Lisboa 15 de Janeiro de 2013

Sebastião Póvoas (Relator)

Moreira Alves

Alves Velho