Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1831/12.4TXLSB-V.C1-A
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 03/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :
I - O objeto do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, exige, entre outros requisitos, a identidade dos factos contemplados nas duas decisões em conflito, dado que só assim é possível estabelecer uma comparação que permita concluir que relativamente à mesma questão de direito existem soluções opostas.
II - No acórdão fundamento a pendência de dois processos-crimes, anteriores à reclusão do condenado, era o único fundamento para ser recusada a liberdade condicional ao recluso aos 2/3 da pena, pelo que decidindo a Relação que essa situação não era imputável ao recluso, nem se presumindo que nesses processos será condenado, concedeu-lhe a liberdade condicional.
III - Já o acórdão recorrido, para recusar a liberdade condicional ao ora recorrente aos 2/3 da pena, anota que a referencia ao processo-crime contra o recorrente é feita no contexto de factos ocorridos em reclusão, que este aceita e por cuja prática se mostrou contristado, e que o número dos crimes por este praticados, a sua gravidade, a pena que cumpre e a não interiorização da censurabilidade da sua conduta leva a “não ser, ainda, o tempo, de o arguido ser libertado”.
IV - Assentando em situações de facto diversas, as soluções divergentes, tomadas nos arrestos em confronto, não se verifica o requisito de oposição de julgados.
Decisão Texto Integral:


Proc. n.º 1831/12.4TXLSB-V.C1-A

Recurso extraordinário para fixação de jurisprudência

*

Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I- Relatório

1. O arguido AA, inconformado com o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09-11-2022, proferido no proc. n.º 1831/12.4TXLSB-V.C1, transitado em julgado, vem interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, para o Supremo Tribunal de Justiça, por entender que aquele acórdão se encontra em oposição com o decidido no acórdão do mesmo Tribunal da Relação, de 09-12-2009, prolatado no âmbito do processo n.º 108/06.9TXCBR-A.C1, publicado em www.dgsi.pt.

2. São do seguinte teor as conclusões que o arguido AA,  extrai da motivação do recurso que apresentou (transcrição):

“1. AA, condenado/arguido nos autos de processo em epígrafe referenciados, não se conformando com o Acórdão que lhe negou a liberdade condicional, e por o mesmo se encontrar em oposição com outro acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, vem interpor recurso extraordinário de fixação de jurisprudência do Acórdão proferido em último lugar, ou seja, do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação Coimbra - 4ª Secção – no âmbito do processo n.º 1831/12.4TXLSB-V.C1., ao abrigo do disposto no artigo 437 n. º2 do Código de Processo Penal, art. 240º, 241º, al. b), e 243º e 244º todos do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, por o Acórdão recorrido estar em oposição com outro Acórdão da Relação de Coimbra, nomeadamente com o Acórdão de 09-12-2009 prolatado no âmbito do processo n.º 108/06.9TXCBR-A.C1 cujo relator foi Exmo. Sr.º Juiz Desembargador Paulo Valério, disponível em www.dgsi.pt.

2. Foi proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra o Acórdão de 09-12-2009, no âmbito do processo n.º 108/06.9TXCBR-A.C1, cujo relator foi o Exmo. Sr.º Juiz Desembargador Paulo Valério, disponível em www.dgsi.pt.

3. E em 09-11-2022, mas apenas transitado em julgado em 25-11-2022, foi também proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra o Acórdão, de que ora se recorre, no âmbito do processo 1831/12.4TXLSB-V.C1, cuja relatora foi a Exma. Sr.ª Juíza Desembargadora BB.

4. O acórdão recorrido, proferido no âmbito do processo 1831/12.4TXLSB-V.C1, acima melhor identificado, encontra-se em clara oposição com o Acórdão de 09-12-2009, prolatado no âmbito do processo n.º 108/06.9TXCBR-A.C1, melhor identificado supra.

5. Os acórdãos identificados, proferidos pelo mesmo Tribunal da Relação, encontram-se em clara oposição e originam um conflito de jurisprudência.

6. Ambos os Acórdãos versam sobre a aplicação do artigo 61º n.º 2 al. a) do Código Penal, concretamente se é suscetível de valoração (negativa) pelo Tribunal, para a concessão ou não da liberdade condicional ao condenado quando este já cumpriu 2/3 da pena, o facto de este ter processos crime pendentes a correr contra si, sendo manifestamente oposta e contraditória a decisão do Acórdão recorrido e do Acórdão fundamento de 09-12-2009 prolatado no âmbito do processo n.º 108/06.9TXCBR-A.C1, quanto à admissibilidade de valoração de tal facto.

7. No Acórdão fundamento supra identificado (de 09-12-2009), decidiu-se que: “a não concessão da liberdade condicional com base no facto da situação jurídica processual do arguido estar ainda indefinida, viola o princípio da presunção de inocência.”

8. Fundamentou-se tal decisão, da seguinte forma: “No caso em apreço, importa dizer desde logo que o facto de o recorrente não ter a sua situação processual criminal (dois processos crime pendentes) resolvida não lhe é imputável, e nem se pode presumir que nesses processos será condenado. Ora, consta dos autos e da decisão recorrida que desde 2008 o recorrente tem tido um comportamento prisional adequado, tem o apoio da família tem trabalho prometido uma vez em liberdade, está agora a ser acompanhado pelo CRI de ..., denotando motivação para a sua continuidade. Estas circunstâncias, nesta fase de cumprimento da pena, não impõem, de um ponto de vista de prevenção especial (desconsiderando naturalmente os dois processos pendentes, pelas razões referidas) um especial receio de ver o recorrente a cair na reincidência (em sentido geral), antes suportam uma esperança de que a ameaça da revogação da liberdade condicional será bastante para o fazer pensar na conduta futura. (…)”

9. Por sua vez, no acórdão recorrido foi decidido que: “A existência deste processo foi considerada apenas por integrar factos ocorridos durante o cumprimento da pena, factos cuja ocorrência, aliás, o arguido aceita e por cuja prática se mostrou contristado. Tratando-se de um conflito ocorrido durante a reclusão teria, necessariamente, que ser considerado, precisamente por se tratar de um episódio significativo. E sendo considerado tinha que relevar negativamente, por respeitar ao comportamento do arguido. (…) O relevo conferido a uma e outra situações foi semelhante. E deste modo, não foi violado o princípio da presunção de inocência do arguido, nem foi cometida qualquer ilegalidade decorrente da consideração da pendência do referido processo.”

10. Do confronto da factologia de ambos os acórdãos, verificamos a identidade da situação de facto subjacente aos dois acórdãos em conflito.

11. Em ambos os acórdãos, fundamento e recorrido, os condenados tinham um percurso prisional favorável indicativo do bom comportamento futuro, apesar de terem pareceres desfavoráveis dos Conselhos Técnicos devido à existência da pendência de processos crime, tendo, a primeira instância, considerado que o facto de os condenados terem processos-crime pendentes a correr contra si lhes era desfavorável e impedia que fosse efectuado um juízo de prognose favorável quanto ao comportamento posterior, considerando, assim, ser de valorar contra o condenado tal circunstância.

12. Em ambas as situações os condenados recorreram da decisão da primeira instância. E, em sede de recurso, no acórdão fundamento foi considerado que o facto de o condenado ter contra si processos-crime pendentes não podia ser valorado contra o condenado em sede de verificação dos requisitos do artigo 61º n.º2 al. a) do CP, ou seja, para atribuição ou não da liberdade condicional, porquanto tal constituiria uma violação ao princípio da presunção de inocência já que, o condenado não tem culpa de o outro processo estar ainda pendente e ainda não existir uma condenação, sendo que esta não se pode presumir.

13. Decidiu-se assim, no Acórdão Fundamento, que não podia valorar negativamente, isto é, contra o condenado a existência desse processo pendente, e que tal nunca poderia interferir na decisão de concessão da liberdade condicional daquele.

14. Ao verificar o preenchimento dos requisitos para a concessão da liberdade condicional, excluindo obviamente o processo pendente, decidiu que face ao comportamento do condenando lhe deveria ser concedida a mesma.

15. No acórdão recorrido considerou-se, por sua vez, que o facto de o condenado ter um processo-crime pendente contra si podia ser valorado negativamente no juízo de prognose a ser efetuado, e que podia ter relevância aquando da aferição dos requisitos do artigo 61 n.2 a a) do CP, aplicável por remissão do art.61.º n.º 3 do mesmo diploma legal, ou seja, para a concessão da liberdade condicional,

16. Do texto dos Acórdãos identificados (Fundamento e Recorrido), resulta à evidência que os mesmos estão em clara contradição, pois enquanto o Acórdão Fundamento (Acórdão de 09-12-2009) decidiu que “a não concessão da liberdade condicional com base no facto da situação jurídica processual do arguido estar ainda indefinida, viola o princípio da presunção de inocência.”, o Acórdão recorrido decidiu exatamente o oposto, ou seja, que “não foi violado o princípio da presunção de inocência do arguido, nem foi cometida qualquer ilegalidade decorrente da consideração da pendência do referido processo” para a não concessão da liberdade condicional, sendo esta oposição que origina o conflito de jurisprudência.

17. Ambos os acórdãos foram proferidos no domínio da mesma legislação, porquanto não houve alteração legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida, mantendo-se o texto e interpretação dos artigos em causa inalterados e actuais.

18. A resolução de tal conflito assume uma importância extrema na medida em que os condenados devem ser tratados de forma igualitária e os requisitos para a concessão da liberdade condicional devem ser interpretados de forma também igualitária sob pena de se criarem situações (injustas e desiguais).

19. Tal situação é claramente violadora do princípio da igualdade constitucionalmente garantido pelo artigo 13º da Constituição da República portuguesa.

20. Deve ser garantido aos condenados, que a avaliação dos requisitos para concessão da liberdade condicional seja efetuada de forma igual para todos e que os critérios atinentes à avaliação da prevenção especial sejam unânimes.

21. A figura da liberdade condicional constituiu uma resposta de natureza política criminal delineada como forma de reagir ao aumento de reincidência que se verificava sobretudo aquando do cumprimento de penas longas ou de média duração.

22. Esta é tida como uma fase de transição da reclusão para a liberdade definitiva, servindo a finalidade específica de prevenção especial positiva ou de socialização, visando minorar as dificuldades de adaptação à comunidade inevitavelmente associadas ao tempo de reclusão e alcançar uma gradual preparação ao reingresso na sociedade de alguém que há muito dela se encontra apartado.

23. Quando o condenado já cumpriu dois terços da pena o legislador abranda as exigências de defesa da ordem e paz social e prescinde do requisito de prevenção geral, considerando que o condenado já cumpriu uma parte significativa de prisão e que, por conseguinte, tais exigências já estarão minimamente garantidas.

24. Assim, aos dois terços da pena temos apenas como requisito a expectativa de que o condenado/a em liberdade, conduzirá a sua vida responsavelmente sem cometer crimes, ou seja prevenção especial, na perspectiva de ressocialização (positiva) e prevenção da reincidência (negativa).

25. No que respeita aos fins das penas, subsiste apenas a finalidade de ajuda ao recluso na mudança e regeneração (ressocialização) e na prevenção de cometimento de novos crimes (arts. 40° e 42° do Cód. Penal).

26. Na avaliação da prevenção especial terá o julgador de elaborar um juízo da prognose possível sobre o que irá ser o comportamento futuro do recluso no que respeita a reiteração criminosa e seu bom comportamento futuro, a aferir pelas circunstâncias do caso, antecedentes, personalidade e evolução durante o cumprimento da pena.

27. Nesta conformidade e para efeitos do disposto no art. 61.º, n.º 3, deve efectuar-se um prognóstico individualizado e favorável de reinserção social, assente, essencialmente, na probabilidade séria de que o condenado em liberdade adopte um comportamento socialmente responsável, sob o ponto de vista criminal.

28. Assim, para além da vontade subjectiva do condenado, o que releva é a “capacidade objectiva de readaptação”, de modo que as expectativas de reinserção sejam manifestamente superiores aos riscos que a comunidade deverá suportar com a antecipação da sua restituição à liberdade.

29. Daí que não seja tão decisivo o “bom comportamento prisional em si”, mas os índices de ressocialização revelados pelo condenado, que devem ser aferidos de acordo com as circunstâncias concretas de cada caso, mormente a sua conduta anterior e posterior à sua condenação, bem como a sua própria personalidade, designadamente a sua evolução ao longo do cumprimento da respectiva pena de prisão.

30. Sustentar a não concessão da liberdade condicional no facto do arguido/condenado, ter um processo-crime pendente, do qual aguarda julgamento, e por isso, ainda sem condenação, viola o princípio da presunção de inocência, princípio fundamental do processo penal em qualquer Estado de Direito.

31. A presunção de inocência significa que toda a pessoa é considerada inocente até ter sido condenada por sentença transitada em julgado — isto é, da qual já não se pode recorrer — num tribunal criminal.

32. É um princípio fundamental no direito penal português e não se esgota no processo propriamente dito, estende-se à organização dos tribunais e à execução de penas.

33. O tribunal só pode condenar uma pessoa pela prática de um crime se ficar provado, pelo grau de prova mais exigente, que ela o cometeu pelo que também deve estar impedido ao Juiz valorar negativamente a existência de um processo-crime, em que o arguido ainda não foi condenado, pois isso é estar a antecipar uma condenação que pode nem existir, estando já, a condenar-se o arguido sem ele ter sido sequer sujeito a julgamento.

34. O art.32.º, n.º2, da Constituição da República Portuguesa, estatui que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.

35. A presunção de inocência, inscrita ainda no art.6.º, §2.º da CEDH, é um princípio de inspiração jusnaturalista iluminista que assenta na dignidade do ser humano e na defesa da sua posição individual perante a omnipotência do Estado.

36. É mais abrangente do que o princípio do “in dubio pro reo”, já que este é exclusivamente probatório e aplica-se quando o tribunal tem dúvidas razoáveis sobre a verdade de determinados factos, ao passo que o princípio da presunção de inocência se impõe aos juízes ao longo de todo o processo e diz respeito ao próprio tratamento processual do arguido.

37. A possibilidade de o Juiz considerar/valorar a existência de processos-crime pendentes na avaliação dos requisitos da liberdade condicional (artigo 61.º n.º 2 al. a) do C.P.), mormente, em sede de prevenção especial aquando do juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro do condenado é manifestamente violador do Princípio da Presunção de Inocência, constante do art.32.º n.º 2 da CRP.

38. A uniformização da jurisprudência do STJ é de interesse público.

39. Trata-se, de matéria de grande relevância pública, tanto quanto a coerência da ordem jurídica e a previsibilidade da interpretação e aplicação da lei pelo STJ requerem.

40. Os acórdãos aqui identificados (fundamento e recorrido) encontram-se em clara oposição e é essencial que seja tomada posição quanto à mesma.

41. Pelo que pugna o ora recorrente pelo mesmo tratamento jurídico atribuído à situação semelhante à sua.

42. É inconstitucional e violador do preceituado no artigo 32º n.º 2 da C.R.P. e do Princípio da Presunção de Inocência aí vertido, a interpretação do artigo 61 n.º 2 al. a) e n.º 3 do C.P. efetuada no Acórdão Recorrido,

43. Devendo, ser declarado inconstitucional o artigo 61 n.º 2 al. a) e n.º 3 do Código Penal do CPP, quando interpretado no sentido de que o facto de o condenado ter contra si pendente um processo, em fase de julgamento, por factos ilícitos cometidos no decurso da reclusão é um indicador de que o condenado não demonstra ainda preparação para viver afastado da prática de novos crimes, não sendo, por isso, possível efetuar o juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro do condenado, de que, uma vez em liberdade conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, não se mostrando, por isso, preenchido o requisito vertido no artigo 61 n.º 2 al. a) do Código Penal para a concessão da liberdade condicional, por sempre daí resultar norma materialmente inconstitucional, pois, em razão da violação dos princípios constitucionais constantes dos artigos 2º, 18º, n.º1 e 2 e32º n.º2 da Constituição da República Portuguesa.

44. Tal interpretação é inconstitucional, por um lado, porque o facto de o condenado não ter a sua situação processual-criminal (um processo-crime pendente) resolvida não lhe ser imputável, e

45. Por outro, porque ao considerar que o facto de o condenado ter contra si pendente um processo, em fase de julgamento, por factos ilícitos cometidos no decurso da reclusão ser um indicador de que o condenado não demonstra ainda preparação para viver afastado da prática de novos crimes, não sendo, por isso, possível efetuar o juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro do condenado, de que, uma vez em liberdade conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes é antecipar uma condenação do mesmo naquele outro processo pelo qual está ainda a ser julgado.

46. Não se pode presumir que num qualquer processo-crime em curso o arguido será condenado, pois isso é estar a antecipar uma futura condenação estando, desse modo, o Tribunal a quo a violar a presunção de inocência que impende sobre qualquer arguido em qualquer processo-crime.

47. Não pode, o Tribunal sustentar a sua decisão de não concessão da liberdade condicional em tal argumento por tal ser violador do princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa

48. Deve o artigo 61 n.º2 al. a) do C.P. ser interpretado no sentido de que: Para concessão da liberdade condicional e para o preenchimento do requisito vertido no artigo 61 n.º 2 al. a) do Código Penal, não pode o Tribunal valorar/ter em consideração o facto da situação jurídico penal do condenado não estar definida por tal ser violador do art.º 32.º n. º2 da C.R.P. que estabelece o princípio da presunção de inocência.

49. Requer o recorrente a resolução do supra explicitado conflito de jurisprudência, devendo concluir-se pela existência de oposição de julgados e nessa medida ser fixada jurisprudência no sentido de: viola o princípio da presunção de inocência a não concessão da liberdade condicional com base no facto da situação jurídica processual do arguido estar ainda indefinida por este ter processos-crime pendentes contra si, não podendo tal facto ser valorado no âmbito da apreciação dos requisitos do artigo 61.º n.2 al. a) do CP.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve ser determinada a procedência do presente recurso e em consequência ser resolvido o conflito de jurisprudência supra exposto, devendo concluir-se pela existência de oposição de julgados entre o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09-12-2009, prolatado no âmbito do processo n.º 108/06.9TXCBR-A.C1, cujo relator foi o Exmo. Sr.º Juiz Desembargador Paulo Valério, disponível em www.dgsi.pt. e o Acórdão da mesma Relação de 09-11-2022, prolatado no âmbito do processo 1831/12.4TXLSB-V.C1, cuja relatora foi a Exma. Sr.ª Juíza Desembargadora BB e nessa medida ser fixada jurisprudência no sentido de: viola o princípio da presunção de inocência a não concessão da liberdade condicional com base no facto da situação jurídica processual do arguido estar ainda indefinida por este ter processos-crime pendentes contra si, não podendo tal facto ser valorado no âmbito da apreciação dos requisitos do artigo 61.º n.2 al. a) do CP.

3. O Ministério Público, junto do Tribunal da Relação de Coimbra, respondeu ao recurso extraordinário, concluindo (transcrição):

“1. O recorrente AA veio interpor recurso extraordinário de fixação jurisprudência do acórdão proferido no âmbito deste processo em 9/11/2022 uma vez que, no seu entendimento, o mesmo se encontra em oposição com o decidido também por este Tribunal da Relação no processo nº 108/06.9TXCBR-A.C1 em acórdão de 09/12/2009, publicado em www.dgsi.pt e do qual junta uma cópia.

2. No acórdão proferido neste processo, foi decidido julgar improcedente o recurso interposto pelo ora recorrente, no qual este alegava que a pendência de um processo crime contra si por factos ocorridos no EP de ... não poderia ser considerada na decisão sobre a concessão de liberdade condicional, pois que tal consideração, sem que tenha ocorrido condenação transitada em julgado, viola o princípio da presunção de inocência.

3. Ou seja, decidiu-se, em tal acórdão, que tratando, tal processo pendente contra o arguido, “…de um conflito ocorrido durante a reclusão teria, necessariamente, que ser considerado precisamente por se tratar de um episódio significativo. E sendo considerado tinha que relevar negativamente (na decisão sobre a concessão de liberdade condicional), por se respeitar ao comportamento do arguido”. E, dessa forma, confirmou, o acórdão em apreço, a decisão da 1ª instância de negar a concessão ao arguido de liberdade condicional.

4. No acórdão em oposição, entendeu-se que “…o facto de o recorrente não ter a sua situação processual-criminal (dois processos crime pendentes) resolvida não lhe é imputável, e nem se pode presumir que nesses processos será condenado”. E, desse modo, desconsiderou os dois processos pendentes contra o ali recorrente e concedeu-lhe a liberdade condicional.

5. Ambas as decisões mostram-se transitadas em julgado.

6. A doutrina e a jurisprudência têm vindo a assinalar a exigência da verificação de vários requisitos para que se esteja perante uma oposição de julgados, sendo um deles o de que as decisões contraditórias sejam relativas à mesma questão/identidade de factos e, outro, que ambas as decisões sejam proferidas no âmbito da mesma legislação.

7. Ora, no caso em apreço, surgem-nos algumas dúvidas sobre se tais requisitos se mostram verificados.

8. Na verdade, ambas as decisões se pronunciaram, desde logo, sobre a questão da liberdade condicional aos recorrentes/reclusos cujos pressupostos constam, como se sabe, do art. 61º, nºs 2, 3 e 4, do C. Penal, consoante estejam cumpridos, respectivamente, metade da pena, dois terços da pena e, nas penas superiores a seis anos, cinco sextos da pena.

9. Ora, o mencionado art.61º foi alvo de alteração pela Lei nº 79/2021, de 24-11, de forma que quando o acórdão recorrido foi proferido, em 9/11/2022, vigorava já a nova redacção introduzida a esta norma (concretamente à al. b) do seu nº 2).

10. Por seu turno, o acórdão em oposição data de 09/12/2009, quando o art.61º ainda não tinha sido alterado pela referida Lei nº 79/2021.

11. Assim sendo, estamos em crer que não se pode afirmar que ambas as decisões tenham sido proferidas no âmbito da mesma legislação, pelo que, a ser assim, não se verificará este requisito exigido para que se esteja perante uma oposição de julgados.

12. Por outro lado, no acórdão recorrido a questão da pendência de processo crime contra o recorrente foi considerada unicamente por integrar factos ocorridos durante o cumprimento da pena, em reclusão, cuja prática o recorrente, aliás, admitiu e pelos quais se mostrou contristado, e, por se tratar de um conflito ocorrido durante a reclusão, a respectiva factualidade teria, necessariamente, de ser considerada.

13. Já no acórdão em oposição, os dois processos ainda pendentes contra o arguido não respeitam a factos ocorridos durante a reclusão mas sim a factos cometidos anteriormente a esta, e que, por qualquer motivo, não foram ainda alvo de julgamento. E foram tidos em conta, tais processos, apenas pelo facto de se encontrarem ainda pendentes - e não pela factualidade respeitante aos mesmos.

14. Além de que, no acórdão recorrido, não foi, tal processo pendente, o único fundamento para ser recusada a concessão de liberdade condicional ao recorrente, contrariamente ao sucedido no acórdão em oposição, onde a pendência de dois processos contra o ali recorrente surgia como o único motivo para não lhe ser concedida a liberdade condicional.

15. Deste modo, parece-nos que as decisões contraditórias não respeitam à mesma questão/identidade de factos, pelo que não se verificará também este segundo requisito exigido para que se esteja perante uma oposição de julgados.

16. Afigura-se-nos, pois, que não se verificam estes dois pressupostos (pontos 11 e 15) para apreciação do presente recurso para fixação de jurisprudência, razão pela qual não deverá o mesmo ser apreciado.”

4. O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto, no Supremo Tribunal de Justiça, pronunciou-se igualmente no sentido da rejeição do recurso, nos termos dos artigos 440.º, n.º3 e 441.º, n.º1, 1.ª parte, do Código de Processo Penal, porquanto não se mostra preenchido o pressuposto da oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, por inexistência de identidades de situação de facto nos dois acórdãos.

5. No exercício do contraditório relativamente à posição assumida pelo Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça, respondeu o recorrente, discordando dos argumentos apresentados pelo Ministério Público, designadamente da interpretação do acórdão recorrido, mantendo a posição de que existe identidade de situações de facto nos dois acórdãos, pelo que o recurso deve ser decidido em conformidade com o peticionado.

6. Realizado o exame preliminar a que alude o art.440.º, n.º1 do Código de Processo Penal, e colhidos os vistos, cumpre decidir em Conferência, nos termos do art.440.º, n.º4 do Código de Processo Penal.

II - Fundamentação

7. A questão objeto do recurso, nos termos em que o recorrente a configura nas conclusões da motivação, consiste em saber se existe oposição de julgados, justificativa deste recurso extraordinário, entre o acórdão recorrido e o acórdão recorrente, quanto à aplicação do art.61.º, n.º2, alínea a), do Código Penal, “concretamente se é suscetível de valoração (negativa) pelo Tribunal, para a concessão ou não da liberdade condicional ao condenado quando este já cumpriu 2/3 da pena, o facto de este ter processos crime pendentes a correr contra si.”.

8. A apreciação da questão impõe, antes do mais, a fixação do regime legal que lhe subjaz.

O Código de Processo Penal, no Capítulo II, epigrafado «Da fixação de jurisprudência» - do Título II «Dos recursos extraordinários», do Livro IX «Dos recursos» -, estabelece um conjunto de normas sobre a finalidade, objeto, fundamentos e eficácia da fixação de jurisprudência (artigos 437.º a 448.º).

Integra-se este recurso no âmago da competência do Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista que vela pela correta aplicação da lei por todos os tribunais judiciais.

Submetidas à mesma rúbrica estão três especiais de recursos, cada um com as suas especificidades:

- recurso de fixação de jurisprudência propriamente dito (artigos 437.º a 445.º);

- recurso de decisões proferidas contra jurisprudência fixada (art.446.º); e

- recursos interpostos no interesse da unidade do direito (art.447.º).

A finalidade do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência é a interpretação uniforme da lei, evitando contradições entre acórdãos dos tribunais superiores.

Como observa o Prof. Alberto dos Reis, justificando o recurso de fixação de jurisprudência propriamente dito, no exercício da sua atividade de interpretação da regra formulada pelo legislador “…há-de assegurar-se ao magistrado plena independência e completa liberdade; o juiz deve ter o poder de interpretar a lei segundo os ditames da sua consciência, sem estar sujeito a pressões nem a influências exteriores. Só assim se obterá Justiça, que mereça respeito e inspire confiança.”. Porém, existe o reverso da medalha, podendo o princípio da liberdade de interpretação conduzir a resultados indesejáveis: “A máxima constitucional – a lei é igual para todos – fica reduzida a fórmula vã, se, em consequência da liberdade de interpretação jurisdicional, a casos concretos rigorosamente iguais corresponderem soluções jurídicas antagónicas ou divergentes. O que importa essencialmente, para efeitos práticos é a atuação concreta da lei, e não a sua formulação abstrata.

Sente-se, pois, a necessidade de conciliar o princípio da liberdade de interpretação da lei com o princípio da igualdade da lei para todos os indivíduos. Quer dizer, reconhece-se a conveniência de tomar providências tendentes a assegurar, quanto possível, a uniformidade da jurisprudência.”.1

O que está em causa não é, pois, a reapreciação da decisão de aplicação do direito ao caso no acórdão recorrido, transitado em julgado, mas verificar, partindo de uma factualidade equivalente, se a posição tomada no acórdão recorrido, quanto a certa questão de direito, seria a que o mesmo julgador tomaria, se tivesse que decidir no mesmo momento essa questão, no acórdão fundamento, e vice-versa. 2

O recurso fundado em oposição de acórdãos, tem vocação «normativa», ou de fixação de uma quase-norma, com efeito de generalidade, tendencialmente destinada a ter validade geral, que exprime a posição do S.TJ através do pleno das respetivas secções.3

8.1. A oposição de julgados suscetível de fazer seguir o recurso para fixação de jurisprudência pressupõe a verificação de determinados requisitos que, em termos gerais, constam dos artigos 437.º e 438.º do Código de Processo Penal.

Assim:

O art.437.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe «fundamentos do recurso», dispõe:

«1 - Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.

2 - É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

3 - Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida.

4 - Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.

5 - O recurso previsto nos n.ºs 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.».

O art.438.º, do mesmo Código, estabelece, por sua vez, com interesse para a decisão:

« 1 - O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

2- No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.

3 - (…).».

O objeto do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, previsto nestas normas, são as decisões colegais contraditórias, “acórdãos”, proferidas em qualquer tipo de recurso, pelos Tribunais Superiores e, como fundamento de uma concreta oposição, só pode invocar-se um único acórdão anterior, transitado em julgado, pois só assim se delimita com precisão a questão ou questões a decidir.

Para além dos requisitos resultantes diretamente destas normas, como a fulcral verificação de oposição de julgados, no domínio da mesma legislação, acrescentou a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, desde há muito tempo, dois outros requisitos: a) a identidade dos factos contemplados nas duas decisões em conflito (dado que só assim é possível estabelecer uma comparação que permita concluir que relativamente à mesma questão de direito existem soluções opostas); e b) a decisão expressa sobre a questão objeto de termos contraditórios (ou seja, as soluções em oposição têm que ser expressamente proferidas em cada uma das decisões).4

8.2 Estando em causa recurso para fixação de jurisprudência, sobre questão de direito em matéria de execução das penas e medidas privativas da liberdade, importa considerar o disposto nos artigos 240.º e seguintes do Código da Execução das penas e medidas privativas da Liberdade (CEPMPL), aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro.

No Capítulo II (do Título V, do Livro II, do CEPMPL), sob a epígrafe «recursos especiais para uniformização de jurisprudência», estabelece o art.240.º:

«1 - Quando, no domínio da mesma legislação, um tribunal da Relação proferir acórdão que, relativamente à mesma questão de direito em matéria de execução das penas e medidas privativas da liberdade, esteja em oposição com outro da mesma ou de diferente Relação, é permitido recorrer do acórdão proferido em último lugar.

2 - Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida.

3 - Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.».

Sobre legitimidade, estabelece o art.241.º do CEPMPL, que têm legitimidade para recorrer, o Ministério Público (al. a) e o sujeito contra o qual foi proferido o acórdão (al. b).

A disciplina estabelecida nos artigos 240.º e 241.º, al. a), do CEPMPL, coincide, na parte aplicável, com a prevista no Código de Processo Penal.

O art.244.º do CEPMPL, refere por sua vez, que «À interposição, tramitação e julgamento dos recursos anteriormente previstos e à publicação e eficácia da respetiva decisão aplicam-se, com as necessárias adaptações, aos artigos 438º a 446º do Código de Processo Penal».

8.3. A admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência implica, pois, a observância de determinados requisitos ou pressupostos, uns de ordem formal e outros de ordem substancial.

A) Os requisitos formais de admissibilidade do recurso de fixação da jurisprudência   são, no caso:

(i) A legitimidade do recorrente;

(ii) A interposição do recurso no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar;

(iii) O trânsito em julgado dos dois acórdãos;

(iv) Invocação no recurso do acórdão fundamento do recurso, com junção de cópia do mesmo ou do lugar da sua publicação; e

(v) Justificação da oposição que origina o conflito de jurisprudência.

B) São requisitos substanciais de admissibilidade, deste recurso extraordinário, por sua vez:

(i) A existência de julgamentos, da mesma questão de direito, entre dois acórdãos da Relação (o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento);

(ii) Os acórdãos assentam em soluções opostas, de modo expresso e a partir de situações de facto idênticas; e

(iii) São ambos proferidos no domínio da mesma legislação.

Sendo a fixação de jurisprudência um recurso “extraordinário” devem ser rigorosamente apreciados os respetivos requisitos, já que a sua interposição coloca em crise o caso julgado formado sobre um acórdão, no caso, da Relação.

Como bem expende o acórdão deste Supremo Tribunal, de 19/04/2017, “Do carácter excecional deste recurso extraordinário decorre necessariamente um grau de exigência na apreciação da respetiva admissibilidade, compatível com tal incomum forma de impugnação, em ordem a evitar a vulgarização, a banalização dos recursos extraordinários”, obstando a que possa transformar-se em mais um recurso ordinário, contra decisões transitadas em julgado.”. 5

8.2. Retomando o caso concreto.

8.2.1. No que respeita aos requisitos formais de admissibilidade do recurso de fixação da jurisprudência, entendemos poder adiantar, desde já, que se mostram verificados.

Efetivamente:

(i) O recorrente AA, na qualidade de condenado contra quem foi proferido o acórdão, negando-lhe a concessão de liberdade condicional, tem legitimidade para interpor o recurso (artigos 437.º, n.º5 do C.P.P. e 241.º, al. b) do CEPMPL);

(ii) O recurso é tempestivo, uma vez que foi interposto no prazo de 30 dias, a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

Com efeito, resulta dos elementos juntos ao presente recurso, que o acórdão recorrido, proferido a 9 de novembro de 2022, transitou em julgado em 24 de novembro de 2022. Assim, a interposição do recurso em 23 de dezembro de 2022, ocorreu no prazo de 30 dias, a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido, proferido em último lugar.

(iii) O acórdão fundamento transitou em julgado em 26 de janeiro de 2010, pelo que transitaram em julgado os dois acórdãos.

(iv) O recorrente invocou no recurso o acórdão fundamento e indicou o local onde se encontra publicado, pelo que foi ordenada e junta aos presentes autos certidão do acórdão com nota de trânsito.

(v) Justificou, ainda, o recorrente a oposição de julgados que, no seu entender, origina o conflito de jurisprudência.

8.2.2. Vejamos, seguidamente, se também se mostram verificados os requisitos substanciais de admissibilidade, deste recurso extraordinário.

No que respeita ao requisito (i), suprarreferido, anotamos a existência nos autos de dois acórdãos do Tribunal da Relação, com julgamento da mesma questão de direito, que era saber se estavam verificados os pressupostos da concessão da liberdade condicional aos 2/3 da pena, previstos no art.61.º, n.ºs 2, alínea a) e 3 do Código Penal.

Os acórdãos do Tribunal da Relação proferidos em 9-11-2022 e em 9-12-2009, foram proferidos no domínio da mesma legislação, como é exigência do requisito substancial a que já se aludiu (iii), pois durante o intervalo da sua prolação, manteve a mesma redação.

Pese embora o art.61.º, n.º 2 do Código Penal, tenha sofrido uma alteração na redação entre a data em que foi proferido o acórdão fundamento e a data em que foi proferido o acórdão recorrido, através da Lei n.º 79/2021, de 24 de novembro, ela incidiu apenas na alínea b), que respeita aos requisitos de concessão da liberdade condicional ao ½ da pena, pelo que em nada interferiu com a decisão tomada nos acórdãos.

Deste modo, ambos os acórdãos foram proferidos no domínio da mesma legislação.

Mais problemática é a existência de oposição de julgados, no sentido de que os acórdãos assentam em soluções opostas, de modo expresso e a partir de situações de facto idênticas.

A verificação deste requisito substancial (ii) exige que se clarifique, em primeiro lugar, o essencial das decisões proferidas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento sobre a questão objeto de recurso.

Só comparando as duas decisões se pode, num segundo momento, optar pela existência de oposição, ou não, de julgados e consequente prosseguimento ou rejeição do recurso.

A) Acórdão fundamento

O acórdão da Relação de Coimbra, de 9-12-2009, que concedeu provimento ao recurso do condenado e revogando a decisão recorrida, concedeu ao recorrente a liberdade condicional imediatamente, consignou, com particular relevo para a decisão do presente recurso extraordinário:

(…) 5- Apreciando

O despacho recorrido tem a seguinte fundamentação, em resumo e com interesse:

« (...) Resulta dos autos, que o arguido se encontra a cumprir, sucessivamente, as penas de, 99 dias de prisão subsidiária, (já cumprida integralmente de 17/01/06 a 27/04/06), 6 meses de prisão (também já integralmente cumpridos de 08/01/08 a 08/07/08) e, única, de 5 anos e 3 meses de prisão, impostas nos processos nºs 612/0...,116/0... e 3400/0... (que englobou os processos nºs.157/0..., 2685/0..., 2841/0..., 2705/0... 114/0...), respectivamente, por ter praticado crimes de furto simples e qualificado, detenção de arma proibida, ofensa à integridade física qualificada, roubo, detenção ilegal de arma, tráfico de estupefacientes de menor gravidade e falsidade de declaração, cuja totalidade da duas primeiras com os 2/3 da última, ocorreu em 20/05/09, atingindo os 5/6 de todas, em 19/02/10 e termina em 20/02/11, de acordo com as liquidações do tribunal da condenação, juntas a folhas 262 e 326.

Tem pendentes os processos n.s 646/0... e 115/0..., com julgamentos já aprazados para Outubro próximo. (1.ª secção da Vara Mista de ...)

(...) Da anterior apreciação em 07/10/08, constava o seguinte: “Dos elementos colhidos nos autos, sustentados nos factos que constam dos pareceres, relatórios e informações bem como da audição do arguido e do Conselho Técnico, resulta que este, deverá estabilizar a sua conduta, estruturando um projecto de vida credível, bem como interiorizando devidamente, a censurabilidade da sua actuação criminosa. Neste EPR, onde se encontra há menos de 1 mês, (vindo do EPR de ..., em 11/09/08), vem tendo comportamento adequado, dizendo-se abstinente e não evidenciando, por ora, motivação para ser acompanhado na problemática da toxicodependência; Está a frequentar actividades extra curriculares, dando mostras de querer mudar o seu percurso de vida. No EPR de ..., teve inicialmente, conduta prisional instável, registando várias punições disciplinares, evidenciando fraca adesão às regras e tendo rejeitado as oportunidades que lhe foram sendo sugeridas, quer ao nível da escolaridade quer ao nível de Programas terapêuticos. Na problemática da toxicodependência, estava a ser acompanhado mas por incumprimento dos requisitos, foi suspenso do programa terapêutico. Nos últimos tempos começava a evidenciar alguma vontade de mudança e a apresentar alguma consciência crítica dos actos que cometeu, parecendo começar a interiorizar o desvalor da sua conduta. No exterior tem apoio da família, especialmente de 2 irmãos (...), que se disponibilizam a ajudá-lo na sua reinserção social, se se dedicar ao trabalho e se afastar, do consumo de drogas; Em Março passado, juntou aos autos uma Declaração, datada de Janeiro, da Pastelaria V…, onde trabalham os seus irmãos, de onde consta, que aquela entidade Patronal, está na disposição de o receber ao seu serviço, quando à liberdade restituído for. Não obstante, e face ao percurso vivenciado, importa que estabilize a sua conduta, bem como, interiorize devidamente a censurabilidade da sua actuação criminosa, denotando intimidação suficiente e se afaste do consumo de estupefacientes.”.

De então para cá vem mantendo comportamento adequado, sem registo de sanções. Não obstante ter solicitado ocupação laboral, está inactivo por dificuldades do próprio Estabelecimento Prisional em dispor de oferta de ocupação. Na problemática da toxicodependência está agora a ser acompanhado pelo CRI de ..., denotando motivação para a sua continuidade. Continua sem beneficiar de medidas de flexibilização da pena, em parte por ter a sua situação jurídica indefinida e agora com vários julgamento marcados para Outubro próximo;

Do que acima se expôs, forçoso se torna concluir que não estão demonstrados os requisitos que permitem fazer funcionar o regime da Liberdade Condicional, tanto mais que tem a sua situarão jurídica, ainda indefinida, tendo 2 julgamentos já aprazados para 02/10/09 e 07/10/09. Com efeito, atento os crimes cometidos, a sua personalidade e não obstante a postura, recentemente adoptada, não se nos afigura, que já esteja em condições de conduzir a sua vida de modo socialmente responsável.

Por tudo o exposto, decide-se não conceder ao arguido a Liberdade Condicional.

(…)».

Também se refere no princípio do dito despacho que «Em Conselho Técnico, reunido em 29 do corrente mês de Junho, foram prestados os necessários esclarecimentos e foi emitido, Parecer Desfavorável, por unanimidade, à concessão da Liberdade Condicional ao arguido».

Consta ainda de fls 163 e 164 destes autos que os processos ainda pendentes contra o recorrente ainda não foram julgados: o n.º 115/05 tem julgamento agendado para 10-2-2010, e o n.º 646/07 foi remetido á vara mista para aí ser julgado.

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, extraídas da motivação apresentada, cabe agora conhecer da única questão ali suscitada, a de saber se o tribunal recorrido fez um uso desconforme do art. 61.º-2-a) do Cod.Penal, ao denegar a concessão da liberdade condicional ao recorrente.

(…).

No caso em apreço, importa dizer desde logo que o facto de o recorrente não ter a sua situação processual-criminal (dois processos crime pendentes) resolvida não lhe é imputável, e nem se pode presumir que nesses processos será condenado.

Ora, consta dos autos e da decisão recorrida que desde 2008 o recorrente tem tido um comportamento prisional adequado, tem o apoio da família, tem trabalho prometido uma vez em liberdade, está agora a ser acompanhado pelo CRI de ..., denotando motivação para a sua continuidade.

Estas circunstâncias, nesta fase de cumprimento da pena, não impõem, de um ponto de vista de prevenção especial (desconsiderando naturalmente os dois processos pendentes, pelas razões já referidas) um especial receio de ver o recorrente cair na reincidência (em sentido geral), antes suportam uma esperança de que a ameaça da revogação da liberdade condicional será bastante para o fazer pensar na conduta futura. Isto tendo também em conta que dos autos não consta que os crimes praticados exprimam uma tendência de personalidade do recluso, antes fazem sugerir que se tratou de criminalidade ligada ao consumo de droga e que o recorrente está a ser tratado a tal adição.

Assim, e com o juízo de cautela e de reserva (um juízo condicional) que o caso impõe, conceder-se-á provimento ao recurso.”

B) Acórdão recorrido

O acórdão da Relação de Coimbra, de 9-11-2022, que não concedeu provimento ao recurso do condenado, mantendo a decisão recorrida, consignou, com particular relevo para a decisão do presente recurso extraordinário:

(…) FACTOS PROVADOS

5. O despacho recorrido julgou provados os seguintes factos:

- «1) O recluso AA encontra-se no Estabelecimento Prisional de ... a cumprir a pena única de dezassete anos e um mês de prisão, decidida no Processo n.º 137/0..., do Juízo Central Criminal de ... pela prática de crimes de associação criminosa, roubo qualificado, extorsão, rapto, rapto qualificado, coacção agravada, homicídio qualificado na forma tentada e detenção de arma proibida.

2) De acordo com a liquidação efectuada, o cumprimento do meio desta pena foi atingido em 3/09/2018, os 2/3 ocorreram em 9/07/2021, os 5/6 verificar-se-ão em 14/05/2024 e o fim da pena será alcançado em 19/03/2027.

3) No exterior o condenado pretende ir residir com a sua actual mulher CC, com quem casou no decurso da reclusão, residente em Rua ..., em ..., mostrando esta disponibilidade para o receber e prestar o apoio necessário.

4) O condenado tem tido visitas íntimas, tendo um filho da sua actual mulher com dois anos de idade.

5) Antes da reclusão o condenado residia em ..., com a anterior mulher e filho.

6) Iniciou o seu percurso escolar em idade própria, tendo concluído aos 17 anos de idade o 11.º ano de escolaridade.

7) Entretanto emigrou para ..., a convite do seu co-arguido, para quem trabalhou como assistente desportivo, tendo passado depois a exercer funções de monitor num ginásio situado na zona de ....

8) Em meados de 2008 obteve licença de vigilante, passando a exercer funções de segurança em estabelecimentos de diversão nocturna.

9) Em liberdade perspectiva trabalhar no num stand de automóveis.

10) O condenado ainda não beneficiou de medidas de flexibilização da pena.

11) Regista a prática de infracções disciplinares, datando a última punição, 8 dias de POA, de 02/11/2018.

12) Em reclusão concluiu o 12º ano e efectuou unidades de curta duração de educação física e inglês.

13) Trabalha como faxina no bar de reclusos desde finais de Julho de 2019.

14) O condenado não demonstra ter já interiorizado a censurabilidade da sua conduta, tendendo a desvalorizar a gravidade da sus participação nos crimes cometidos.

15) Tem pendente o processo nº 352/1..., em fase de julgamento».

6. Dos autos resultam mais os seguintes factos, relevantes à decisão:

- o arguido está detido desde 19-2-2010;

- o arguido tem um processo crime pendente, a aguardar julgamento;

- em 20-6-2016, 14-12-2016, 21-6-2017, 20-12-2017, 30-5-2018, 9-9-2019, 5-11-2020 e 23-9-2021 foram recusadas ao arguido saídas precárias prolongadas;

- do relatório social para a concessão de liberdade condicional, elaborado pela DGRSP e datado de 3-6-2022, consta o seguinte:

- o relatório foi elaborado com base no dossiê individual de acompanhamento do arguido, entrevista ao arguido e contacto telefónico com a esposa;

- conheceu a actual mulher há cerca de 15 anos, estiveram muitos anos sem se verem, e já depois de ele estar detido ela visitou-o na prisão, depois disso iniciaram uma relação de namoro, em 2018 casaram e entretanto tiveram um filho;

- a esposa do arguido reside com os pais num apartamento de tipologia T3, com condições de habitabilidade, na zona da ..., em ..., mas pretende adquirir uma habitação em ..., para onde quer ir residir com o filho e com o arguido;

- a esposa afirma manter uma relação afectiva gratificante com o arguido e disponibiliza-se para o apoiar em meio livre;

- segundo a esposa do arguido, a situação económica do agregado é estável;

- o arguido tem outro filho, actualmente com cerca de 13 anos;

- o arguido veio para ... em 2004 e até 2006 residiu com o amigo e coarguido DD, que o convidou para vir para o país, e foi seu assistente desportivo, no ginásio ..., na ..., em 2006 passou a trabalhar noutro ginásio e em 2008 obteve a licença de vigilante e passou a exercer funções de segurança numa discoteca, da ...;

- está no EP de ... há 3 anos e tem mantido comportamento globalmente adaptado;

- trabalha como faxina do bar de reclusos desde 2019;

- instado a reflectir sobre os seus antecedentes criminais, revelou crítica globalmente ajustada;

- ainda não beneficiou de medidas de flexibilização da pena;

- tem um processo pendente, por acontecimentos ocorridos no EP de ...;

- o relatório concluiu do seguinte modo: até à reclusão o arguido alcançou estabilidade familiar, laboral e económica, tem capacidades pessoais e algumas competências profissionais para se reorganizar em meio livre, o seu futuro depende exclusivamente da sua determinação para alcançar alguns objectivos a que se propôs, que passam sobretudo por retomar a vida familiar, conta com o apoio da esposa e família desta, é importante a resolução do processo pendente e que beneficie de medidas de flexibilização da pena, para ser testado na aproximação ao meio livre, de tudo resultando não estarem reunidas, ainda, as condições para a libertação condicional;

- do relatório de liberdade condicional, elaborado pela técnica gestora do caso, EE, datado de 7-4-2022, elaborado com base em entrevista ao recluso e articulação com a equipa de Reinserção Social, consta o seguinte:

- o recluso declarou lamentar não ter sido capaz de gerir o seu percurso de forma mais equilibrada, principalmente no que respeita ao incidente em ..., agressões entre reclusos, que determinou o seu regresso a Monsanto;

- apresenta reduzido número de medidas disciplinares, a mais relevante das quais foi a de 25 dias de cela disciplinar pelo incidente no EP de ..., em 2013;

- em Novembro de 2018 teve 8 dias de POA no EP de ...

tem uma medida disciplinar pendente por apreensão de telemóvel destruído e carregador, em 2-11-2021;

- tem o salário dividido por estar a pagar indemnização às vítimas;

- frequenta o ginásio e disponibiliza-se para outro tipo de actividades ocupacionais;

- durante a reclusão tem evidenciado dispor de recursos adaptativos, mantendo uma postura e conduta de forma a evitar situações problemáticas;

- a nível emocional vivencia a reclusão como muito penosa, principalmente com o surgimento de novo processo por factos ocorrido no EP de ..., e tem mantido o equilíbrio e capacidade de controle;

- em reclusão concluiu o 12º ano e Unidades Formativas de curta duração a nível de TIC, educação física e inglês;

- desde 2019 é faxina no bar de reclusos, executando a função e acordo com as exigências requeridas;

- no EP de ... fez formação Modular Certificada “Formar para Integrar” e disponibiliza-se para participar nos programas psicoeducacionais que lhe forem propostos;

- não beneficiou de medidas de flexibilização de pena;

- lamenta ter-se envolvido em grupos marginais para a prática de crimes;

- em 26-6-2022 a esposa do arguido juntou aos autos pedido de autorização de residência do arguido, datado de 17-6-2022;

- em 30-6-2022 o conselho técnico emitiu parecer unânime desfavorável à concessão de liberdade condicional;

- o Ministério Público emitiu parecer desfavorável à liberdade condicional;

- o arguido deu o seu consentimento à sua colocação em liberdade condicional.

(…).

Atento o disposto no art.412º, nº 1, in fine, do C.P.P. as questões a decidir respeitam à impugnação da decisão da matéria de facto provada e à verificação dos pressupostos de concessão da liberdade condicional aos dois terços do cumprimento da pena.

(…).

Portanto, a concessão da liberdade condicional aos dois terços do cumprimento da pena depende, para além do mais, da satisfação das exigências de prevenção especial de socialização, ou seja, da prognose favorável sobre o futuro comportamento do condenado em liberdade em meio livre.

O juízo de prognose é um juízo de probabilidade sobre o comportamento futuro do condenado e o tribunal recorrido não logrou alcançar esse patamar.

A propósito o tribunal recorrido decidiu que o juízo favorável resulta de se concluir pela satisfação das necessidades preventivas da pena, tendo em conta as repercussões que o seu cumprimento estão a ter na personalidade do arguido e podem ter na vida futura, de que ele, em liberdade, adoptará comportamento socialmente responsável, «a aferir de acordo com as circunstâncias do caso, mormente a sua conduta anterior e posterior à respectiva condenação, bem como à sua própria personalidade, designadamente a evolução verificada ao longo do cumprimento da pena».

Continua dizendo que no caso o recluso regista a prática de infracções, sendo a última punição de Novembro de 2018, «vindo ultimamente a manter um comportamento mais adaptado, estando a trabalhar» e «no exterior tem apoio familiar e perspectivas de inserção laboral».

Mais diz que, não obstante, «o condenado não demonstra ainda ter verdadeiramente interiorizado a censurabilidade da sua conduta tendendo a desvalorizar a gravidade da sua participação nos crimes cometidos. Aliás, diga-se que neste momento até tem contra si pendente um processo, em fase de julgamento, a factos ilícitos cometidos no decurso da reclusão, o que é mais um indicador de que o condenado não demonstra ainda preparação para viver afastado da prática de novos crimes.

Assim, é evidente que as exigências de prevenção especial ainda se não mostram devidamente satisfeitas; com efeito, o recluso deverá ainda aprofundar a interiorização do desvalor imanente às condutas que praticou, e bem assim esforçar-se por adquirir competências que lhe permitam evoluir comunitariamente vivendo afastado da prática de ilícitos criminais.

… a concessão da liberdade condicional tem que ancorar numa prognose fundada de que o recluso que dela beneficie está munido da preparação bastante que leve a acreditar que interiorizou a censurabilidade das suas condutas e que será capaz de levar uma vida sem cometer novas infracções de coloração penal».

Concluiu «que as exigências de prevenção especial não estão ainda satisfeitas, a ponto de se poder afirmar que, em liberdade, o arguido viesse a conduzir a sua vida de modo socialmente responsável caso lhe fosse concedida, nesta fase, a liberdade condicional».

É verdade que, como o arguido refere, o relatório de liberdade condicional diz que ele declarou lamentar não ter sido capaz de gerir o seu percurso de forma mais equilibrada, que durante a reclusão tem evidenciado dispor de recursos adaptativos, mantendo uma postura e conduta de forma a evitar situações problemáticas, que encetou formação escolar em reclusão, que trabalha no EP desde 2019.

Do relatório social para a concessão de liberdade condicional consta que o arguido está a trabalhar desde 2019, que revelou crítica globalmente ajustada aos seus antecedentes criminais, que tem estabilidade familiar, laboral e económica e capacidades pessoais e competências profissionais para se reorganizar em meio livre.

Não obstante conclui dizendo «não estarem reunidas, ainda, as condições para a libertação condicional».

E também o conselho técnico foi unanimemente desfavorável à libertação.

Imediatamente uma tal unanimidade causa estranheza, porque os considerandos parecem apontar em sentido contrário.

O arguido está detido desde 19-2-2010 a cumprir a pena de 17 anos e 1 mês de prisão pela prática dos crimes de associação criminosa, roubo qualificado, extorsão, rapto, rapto qualificado, coacção agravada, homicídio qualificado na forma tentada e detenção de arma proibida.

São muitos crimes e crimes indiscutivelmente muito graves.

Sobre a sua evolução em detenção, resulta que tem mantido comportamento globalmente adaptado, mas sofreu uma sanção disciplinar em 2018 e tem pendente um processo crime por factos ocorridos no EP de ....

O arguido alegou que a pendência deste processo não poderia ser considerada pois tal consideração, sem que tenha ocorrido condenação transitada em julgado, viola o princípio da presunção e inocência.

A existência deste processo foi considerada apenas por integrar factos ocorridos durante o cumprimento da pena, factos cuja ocorrência, aliás, o arguido aceita e por cuja prática se mostrou contristado. Tratando-se de um conflito ocorrido durante a reclusão teria, necessariamente, que ser considerado, precisamente por se tratar de um episódio significativo. E sendo considerado tinha que relevar negativamente, por respeitar ao comportamento do arguido.

Aliás, tal como o tribunal considerou este dado, ao relevar a sanção disciplinar aplicada em 2018 também considerou, implicitamente, os factos que a determinaram.

O relevo conferido a uma e outra situações foi semelhante. E deste modo, não foi violado o princípio da presunção de inocência do arguido, nem foi cometida qualquer ilegalidade decorrente da consideração da pendência do referido processo.

Resulta ainda que o arguido não beneficiou, até ao momento, de qualquer medida de flexibilização da pena.

Nos termos do art.76º, nº 1, do CEPMPL, podem ser concedidas ao recluso, com o seu consentimento, licenças de saída jurisdicionais ou administrativas.

Nos termos do art.78º, nº 1 e 2, a concessão de licenças de saída dependem de haver fundada expectativa de que o recluso se comportará de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, de ela ser compatível com a defesa da ordem e da paz social e de que o recluso não se subtrairá à execução da pena ou medida privativa da liberdade, devendo ponderar-se aquando da decisão da sua concessão a evolução da execução da pena, as necessidades de protecção da vítima, o ambiente social ou familiar em que o recluso se vai integrar, as circunstâncias do caso e os antecedentes conhecidos da vida do recluso.

O arguido tem visto recusadas, consecutivamente, as saídas precárias prolongadas e a razão só pode ser por os requisitos da concessão não estarem preenchidos.

E daí que se perceba que, não obstante certos indícios de que o arguido, em liberdade, se comportaria de acordo com o direito, de todos quantos acompanham a reclusão serem contra a concessão da liberdade condicional.

Conforme determina o art.61º, nº 2, al. a), do Código Penal, decisivo à concessão ou negação da liberdade condicional é a formulação, ou não, da prognose favorável, «atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes».

No caso a decisão recorrida afastou este juízo sobre a expectativa, mais positiva do que negativa, de o condenado conduzir a sua vida de acordo com o direito, por as exigências de prevenção especial ainda não estarem satisfeitas.

Tendo em conta o exposto, concluímos não ser, ainda, o tempo, de o arguido ser libertado.”

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Comparando estas duas decisões, poderá concluir-se que a negação da liberdade condicional, aos 2/3 da pena, no acórdão recorrido e a concessão da liberdade condicional, aos 2/3 da pena, no acórdão fundamento, resultaram de, no primeiro caso, ter sido valorado (negativamente) o facto do condenado ter processos-crime pendentes contra si, e no último caso, não se ter feito essa valoração?

No entender do ora recorrente AA, existe identidade de situações de facto, em ambos os acórdãos, porquanto e em síntese:

- os condenados tinham um percurso prisional favorável indicativo do bom comportamento futuro, tinham pareceres desfavoráveis dos Conselhos Técnicos devido à existência da pendência de processos-crime, e a 1.ª instância considerou que o facto de os condenados terem processos-crime pendentes a correr contra si lhes era desfavorável e impedia que fosse efetuado um juízo de prognose favorável quanto ao comportamento posterior (artigos n.ºs 10 e 11 das conclusões da motivação); em sede de recurso, enquanto o acórdão fundamento decidiu que: “a não concessão da liberdade condicional com base no facto da situação jurídica processual do arguido estar ainda indefinida, viola o princípio da presunção de inocência.”, o acórdão recorrido decidiu exatamente o oposto, ou seja, que “não foi violado o princípio da presunção de inocência do arguido, nem foi cometida qualquer ilegalidade decorrente da consideração da pendência do referido processo” para a não concessão da liberdade condicional,…” ( artigos n.ºs 7 a 9 e 12 a 16 das conclusões da motivação).

O Ministério Público considera, por outro lado, que as situações de facto pertinentes para a aferição das necessidades de prevenção especial que subjazem aos dois acórdãos são diferentes nalguns pontos fulcrais, e por isso não existem soluções jurídicas opostas, argumentando, em síntese:

- no acórdão recorrido, a questão da pendência do processo crime contra o recorrente foi considerada, unicamente, por integrar factos ocorridos em reclusão, durante o cumprimento da pena, cuja prática o recorrente, aliás, admitiu e pelos quais se mostrou contristado; no acórdão fundamento, os factos que constam dos dois processos crime pendentes foram cometidos anteriormente à reclusão do recorrente, que, por qualquer motivo, não foram ainda alvo de julgamento, tendo sido tidos em conta apenas pelo facto de estarem pendentes e não pela factualidade respeitante aos mesmos;

- no acórdão fundamento, a pendência dos dois processos crime era o único fundamento para ser recusada a concessão de liberdade condicional ao recorrente; no acórdão recorrido, a pendência do processo crime não foi o único fundamento para ser recusada a concessão de liberdade condicional ao recorrente.

- O acórdão recorrido considerou, ainda, para recusar a concessão da liberdade condicional, que os crimes pelos quais o recorrente cumpre uma pena de 17 anos e 1 mês de prisão são “indiscutivelmente muito graves” e que o condenado “não demonstra ter já interiorizado a censurabilidade da sua conduta, tendendo a desvalorizar a gravidade da sua participação nos crimes cometidos”; já no acórdão fundamento consigna-se, a propósito dos crimes pelos quais cumpria, sucessivamente, penas de 99 dias de prisão subsidiária, 6 meses de prisão e uma pena conjunta de 5 anos e 3 meses de prisão, que “não consta que (…) exprimam uma tendência de personalidade do recluso, antes fazem sugerir que se tratou de criminalidade ligada ao consumo de droga e que o recorrente está a ser tratado a tal adição” e que o condenado “começava a evidenciar alguma vontade de mudança e a apresentar alguma consciência crítica dos atos que cometeu, parecendo começar a interiorizar o desvalor da sua conduta.”.

Vejamos.

Antes do mais importa anotar que o segmento, referido nos artigos n.ºs 7 e 16 das conclusões da motivação do recorrente AA, “a não concessão da liberdade condicional com base no facto da situação jurídica processual do arguido estar ainda indefinida, viola o princípio da presunção de inocência”, como se fosse uma transcrição da decisão do acórdão-fundamento, não corresponde à realidade, pois este segmento não consta do seu texto.

Esta transcrição do ora recorrente corresponderá, sim, a uma ideia implícita na decisão do acórdão-fundamento, que se retira, essencialmente, da parte do acórdão onde se refere que “…o facto de o recorrente não ter a sua situação processual-criminal (dois processos crime pendentes) resolvida não lhe é imputável, e nem se pode presumir que nesses processos será condenado.”.

Não há, assim, decisão expressa, no acórdão-fundamento, mas apenas implícita, de que a não concessão da liberdade condicional com base no facto da situação jurídica processual do arguido estar ainda indefinida, viola o princípio da presunção de inocência.

No que respeita à pendência de processo(s)-crime, como identidade de situações de facto, subjacente às decisões proferidas nos dois acórdãos da Relação, entendemos que o acórdão- fundamento considerou que a simples pendência de dois processos, por factos cometidos anteriormente à reclusão, não pode ser imputada ao recorrente e nem se pode presumir que nesses processos será condenado, ou seja, os dois processos-crimes foram tidos em conta na decisão de 1.ª instância, revogada pelo acórdão-fundamento, por estarem pendentes para julgamento, e não pela sua factualidade que se depreende ser anterior à reclusão.

Diversa é a situação de facto no acórdão-recorrido, relativamente à pendência de um processo-crime por factos ocorridos no EP de ....

O acórdão-recorrido consigna que a existência daquele processo-crime, valorada na 1.ª instância, “foi considerada, apenas por integrar factos ocorridos durante o cumprimento da pena, factos cuja ocorrência, aliás, o arguido aceita e por cuja prática se mostrou contristado. Tratando-se de um conflito ocorrido durante a reclusão teria, necessariamente, que ser considerado, precisamente por se tratar de um episódio significativo. E sendo considerado tinha que relevar negativamente, por respeitar ao comportamento do arguido. Aliás, tal como o tribunal considerou este dado, ao relevar a sanção disciplinar aplicada em 2018 também considerou, implicitamente, os factos que a determinaram.”.

Daí concluir, “E, deste modo, não foi violado o princípio da presunção de inocência do arguido, nem foi cometida qualquer ilegalidade decorrente da consideração da pendência do referido processo”.

O acórdão recorrido considera a existência do processo-crime contra o recorrente, não propriamente por estar pendente, mas “apenas” por integrar factos ocorridos em reclusão, durante o cumprimento da pena, e se tratar de episódio significativo do comportamento do arguido em reclusão, que o arguido aceita e por cuja prática se mostrou contristado.

Os elementos literal e racional dos segmentos supra descritos do acórdão-recorrido, apontam, ainda, no sentido de que o “conflito ocorrido durante a reclusão”, cuja ocorrência “o arguido aceita e por cuja prática se mostrou contristado”, para além de integrar matéria do processo-crime pendente, integra também matéria de processo disciplinar, onde teria sido objeto de sanção disciplinar e é esta factualidade, que ocorreu durante a reclusão, que é valorada na decisão sobre a liberdade condicional do ora recorrente.

É verdade que o ora recorrente, na resposta ao parecer do Ministério Público, neste S.T.J., vem dizer que não assumiu os factos do processo-crime pendente e que a sanção disciplinar referida no acórdão-recorrido de 2018 não corresponde à matéria daquele processo, mas não deixa de reconhecer que da forma como a exposição foi feita neste acórdão, parece poder retirar-se a conclusão de que os factos praticados durante o cumprimento da pena configuram simultaneamente infração disciplinar, que o recorrente reconheceu e pela qual foi sancionado disciplinarmente, como é entendimento do Ex.mo P.G.A..

Para além da pendência do processo-crime, como factualidade, ser algo desvalorizada para a decisão, de negação da liberdade condicional, no acórdão recorrido, existem outras situações de facto diversas e fulcrais entre ambos os acórdãos, que determinaram, num caso, a concessão da liberdade condicional ao condenado que já cumpriu 2/3 da pena, e noutro caso, a sua negação.

Assim:

No acórdão-fundamento a pendência dos processos-crimes era o único fundamento para ser recusada a liberdade condicional ao recorrente, pelo que afastada a relevância dessa pendência, foi concedida essa liberdade.

Já o acórdão-recorrido considerou vários fundamentos para recusar a liberdade condicional ao ora recorrente.

Para concluir que não estavam satisfeitas as exigências de prevenção especial relativamente ao ora recorrente aos 2/3 da pena cumprida, o acórdão recorrido, considerou - além dos factos ocorridos durante a reclusão no EP de ... e que integram um processo-crime e matéria disciplinar -, ainda, o número dos crimes, a sua gravidade, a pena que cumpre e a não interiorização da censurabilidade da sua conduta.

O acórdão-recorrido relevou a circunstância do ora recorrente estar a cumprir a pena única de 17 anos e 1 mês de prisão e os crimes por ele praticados, de associação criminosa, roubo qualificado, extorsão, rapto, rapto qualificado, coação agravada, homicídio qualificado na forma tentada e detenção de arma proibida, quantificando como “muitos crimes” e qualificando-os como “crimes indiscutivelmente muito graves”.

Mesmo que o ora recorrente discorde da relevância deste fator - como discorda -, para a apreciação e decisão da liberdade condicional aos 2/3 da pena, não compete ao Supremo Tribunal de Justiça, num acórdão de fixação de jurisprudência, apreciar a sua legalidade.

No acórdão-fundamento, o arguido encontrava-se a cumprir, sucessivamente, as penas de, 99 dias de prisão subsidiária, (já cumprida integralmente), 6 meses de prisão (também já integralmente cumprida) e, única, de 5 anos e 3 meses de prisão, impostas, respetivamente, por ter praticado crimes de furto simples e qualificado, detenção de arma proibida, ofensa à integridade física qualificada, roubo, detenção ilegal de arma, tráfico de estupefacientes de menor gravidade e falsidade de declaração. Tanto estes crimes, como as penas aplicadas ao arguido, têm claramente uma menor gravidade relativamente aos crimes e penas reportadas no acórdão-recorrido.

O próprio recorrente o reconhece, quando na resposta ao parecer do Ministério Público, afirma que, “Entendemos a relutância ao conceder a liberdade condicional quando se está perante crimes mais graves e penas mais pesadas como a do recorrente, no entanto, a lei foi feita para todos de igual forma e deve ser aplicada a todos de igual forma,…”.6

O acórdão-recorrido adere também à afirmação da 1.ª instância, quando refere que «o condenado não demonstra ainda ter verdadeiramente interiorizado a censurabilidade da sua conduta tendendo a desvalorizar a gravidade da sua participação nos crimes cometidos”, o que o leva a concluir que, tendo em conta o exposto, “não ser, ainda, o tempo, de o arguido ser libertado.”.

Já o acórdão-fundamento consigna, para conceder a liberdade condicional ao recluso, designadamente, que “…dos autos não consta que os crimes praticados exprimam uma tendência de personalidade do recluso, antes fazem sugerir que se tratou de criminalidade ligada ao consumo de droga e que o recorrente está a ser tratado a tal adição.”

Do exposto, resulta que as soluções divergentes no acórdão fundamento e no acórdão recorrido, concedendo aquele a liberdade condicional ao recluso e não concedendo este a liberdade condicional ao ora recorrente AA, assentam em situações de facto diversas.

Assentando em situações de facto diversas, as soluções divergentes, tomadas nos arrestos em confronto, não se verifica o requisito de oposição de julgados.

Não se verificando o requisito substancial da oposição de julgados exigido pelo art.437.º, n.º1 do Código de Processo Penal , mais não resta que rejeitar o presente recurso para fixação de jurisprudência, nos termos dos artigos 440.º, n.º 4 e 441.º, n° 1, do mesmo Código.

III. Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes desta Secção do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) rejeitar o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pelo condenado AA, nos termos do disposto no art.441.º, n.º 1 do Código de Processo Penal; e

b) condenar o mesmo recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UCs (artigos 513.º, n.ºs 1 e 3 do C.P.P. e 8.º, n.º 9 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais).

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(Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.P.).

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Lisboa, 9 de março de 2023

Orlando Gonçalves (Relator)

Leonor Furtado (Juíza Conselheira Adjunta)

Agostinho Torres (Juiz Conselheiro Adjunto)

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1. Cf. “Código de Processo Civil anotado”, Coimbra Ed., 1981, Vol. VI, pág. 234.↩︎

2. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de janeiro de 2021, proc. n.º 454/17.6T9LMG-E.C1-A.S1- 3.ª Secção., in www.gdsi.pt↩︎

3. Cf. Pereira Madeira e Henriques Gaspar, in “Código de Processo Penal Comentado” de Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Medes, Pereira Madeira e Pires da Graça, 2016. Almedina - edição 2014, páginas 1554 e 132, respetivamente.↩︎

4. Cf., entre muitos, os acórdãos de 21-2-1969, in BMJ n.º184, pág. 249 e de 04-02-2021, proc. n.º 68/15.5IDFUN .L1-A.S1- 5.ª Secção, in www.dgsi.pt.↩︎

5. Proc. n.º 175/14.1GTBRG.G1-A.S1, in www.dgsi.pt.↩︎

6. Num parêntesis, diremos a este propósito, que o facto de a lei ser feita para todos, não obsta a que na sua aplicação se tenha em consideração o princípio da igualdade, que postula que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento desigual para as situações de facto desiguais (proibindo, inversamente, o tratamento desigual de situações iguais e o tratamento igual das situações desiguais).↩︎