Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
458/21.4TXPRT-A.P1-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PANDEMIA
COVID-19
PERDÃO
PENA DE PRISÃO
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Data do Acordão: 05/04/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO
Sumário :
Nestes termos e pelo exposto, acorda o pleno das secções criminais do STJ em declarar extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art. 277.º, al. e), do CPC, ex vi do art.4.º do CPP.
Decisão Texto Integral:


Proc. n.º 458/21.4TXPRT-A.P1-A.S1

Recurso extraordinário para fixação de jurisprudência

Acordam no Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. O arguido AA inconformado com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13 de outubro de 2021, proferido no proc. n.º458/21.4TXPRT-A.P1, transitado em julgado em 28 de outubro de 2021, que manteve a decisão do Tribunal de Execução de Penas do Porto de indeferir a aplicação do perdão da pena de prisão em que foi condenado, previsto na Lei n.º9/2020, embora com o fundamento, diverso, de o arguido durante a vigência da referida Lei ainda não ter assumido o estatuto de recluso, interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, para o Supremo Tribunal de Justiça, em 29 de novembro de 2021, ao abrigo do disposto no art.437.º do Código de Processo Penal, ex vi artigos 240.º e 241.º, al. b), da Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro, alegando encontrar-se aquele acórdão em oposição com o decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23 de fevereiro de 2021, proferido no proc. n.º 784/16.4PHSNT-A.L1-5, transitado em julgado em 31 de março de 2021.

2. Por acórdão de 24 de março de 2022, proferido em Conferência, o Supremo Tribunal de Justiça, decidiu que o recurso devia prosseguir por se verificar oposição de julgados sobre a mesma questão fundamental de direito, em situações factuais idênticas, e no domínio da mesma legislação.

3. Notificados os sujeitos processuais, nos termos e para os efeitos do disposto no art.442.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o arguido apresentou alegações que rematou nos seguintes termos (transcrição):

1. O perdão de penas previsto na Lei n.º 9 /2020, de 10 de Abril, é também aplicável aos reclusos que passam a sê-lo após a entrada em vigor da referida Lei, desde que a Sentença que os condenara tenha transitado em julgado antes da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, ocorrida a 11 de Abril, e desde que se mostrem reunidos os outros requisitos previstos no Artigo 2.º daquela lei.

2. De facto a Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, visou responder à situação de emergência de saúde pública provocada pelo COVID-19 que provocou uma vaga de pandemia a nível mundial, procurando impedir o surto e a propagação da doença, designadamente, na população prisional, um dos grupos mais expostos ao contágio e alastramento do coronavírus devido ao funcionamento e características do sistema prisional, através da substituição da reclusão por medidas não privativas da liberdade, temporárias, antecipatórias ou mesmo definitivas, para desta forma afastar os condenados das prisões, salvaguardando-a dos surtos sem no entanto, descurar o respeito pelas vítimas.

3. Se o Legislador, com a redação da Lei n.º 9/2020, que prevê tanto o perdão como o indulto como extintivos das penas, procurasse apenas abranger os reclusos existentes em Estabelecimentos Prisionais ao tempo da entrada em vigor a 11 de Abril de 2020, a mesma Lei não poderia ter uma norma (O Artigo 10.º) que prevê a sua vigência por um período indeterminado de tempo, porquanto encontrando-se todos os reclusos existentes em Estabelecimento Prisional em 11 de Abril de 2020 abrangidos pela Lei n.º 9/2020, que mais pessoas poderiam ser abrangidas pelo referido perdão?

4. A razão da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, prendeu-se, e ainda se prende, com razões e preocupações sanitárias, as quais não só existiam ao tempo da sua entrada em vigor, mas ainda continuam a existir volvidos vários meses, sendo que ainda não foi publicada a Lei que põe termo ao regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-COV-2 e da doença Covid-19, prevista no Artigo 10.º da Lei n.º 9/2020.

5. O que está verdadeiramente na génese e razão de ser da Lei n.º 9/2020 de 10 de Abril, foi, é, e continuará a ser, a preocupação de propagação da doença Covid-19 em meio prisional atentas as especificidade que este meio, em Portugal, apresenta com sobrelotação e falta de condições sanitárias.

6. Se o motivo que levou o Legislador a elaborar a Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, foi o facto das prisões portuguesas, já de si sobrelotadas, criarem focos de infeção, esses focos não deixam de existir porque num determinado momento, em 11 de Abril de 2020, foram libertados várias centenas de Arguidos, se continuassem a dar entrada nos estabelecimentos prisionais outras tantas dezenas ou até centenas de condenados.

7. Recluso é toda e qualquer pessoa fisicamente presa dentro de um Estabelecimento Prisional, independentemente do momento dessa prisão.

8. A utilização pelo legislador da palavra “recluso” não permite excluir arguidos que só venham a estar nessa condição após a entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, porquanto o que o legislador quis acautelar foram, precisamente, “reclusos”, ou seja, pessoas com entrada em Estabelecimento Prisional, local de possíveis focos de infeção dadas as suas condições precárias, com características fechadas.

9. Efetivamente, esta interpretação, que o perdão de penas também se aplica aos reclusos que também passarão a cumprir pena de prisão após a entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, é a interpretação que melhor se coaduna com o objetivo primordial que o legislador quis alcançar com a criação da lei n.º 9/2020, de 10 de Abril.

10. Este normativo estabeleceu um “Regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19”, visando diminuir o número de presos nas prisões portuguesas, através de medidas de clemência e, evitar uma situação de alastramento dramático, nos estabelecimentos prisionais, procurando, também, evitar a nova entrada de reclusos nos Estabelecimentos Prisionais, até porque, se assim não fosse, tal normativo legal não teria qualquer efeito prático e seria totalmente contraproducente.

11. Tendo por base o Artigo 9.º do Código Civil, respeitando a letra da Lei (recluso é toda e qualquer pessoa fisicamente presa dentro de um Estabelecimento Prisional, independentemente do momento dessa prisão) respeita igualmente a razão da Lei n.º 9/2020, ou seja, acautelar um problema de saúde pública dentro dos estabelecimentos prisionais, bem como a sua inserção sistemática, dado que o Artigo 10.º da referida Lei leva a concluir, inelutavelmente, que a vigência de tal normativo legal é indeterminada e não está afeta a um único momento temporal.

80. Nessa conformidade, e sem a necessidade de mais amplas considerações, propõe-se que o conflito de jurisprudência existente seja resolvido nos seguintes termos:

Na pendência da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, tendo sido revogada pena de substituição, nos termos proclamados no n.º 5 do Artigo 2.º do supra aludido normativo legal, o perdão das penas, deve ser igualmente aplicado quer ao recluso que se encontre em cumprimento de pena de prisão à data da entrada em vigor da referida lei, quer aos Arguidos que durante a vigência daquela possam eventualmente ser reclusos, verificados que sejam os demais requisitos substantivos legais.

4. O Ministério Público apresentou também alegações, que concluiu nos seguintes termos (transcrição):

1. O artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, estabelece que «são perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado» (art.º 2.º, n.º 1); «são também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado» (art.º 2.º, n.º 2); e «o perdão (…) é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei» (art.º 2.º, n.º 7).

2. À luz do disposto no artigo 2.º da Lei n.º 9/2000, de 10 de Abril, verifica-se que que os números 1, 2, 4 e 7, deste normativo se reportam invariavelmente a “reclusos”, o que não nos deixa margem para dúvida de que o primeiro requisito de aplicação desta específica medida de graça em que se traduz o perdão de penas de prisão, é a condição de recluso, ou seja, só pode beneficiar do perdão de penas, quem esteja em cumprimento de uma pena.

3. O segundo requisito é que tenha sido condenado por sentença transitada em julgado, em data anterior a publicação da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril.

4. Dúvidas não existem que a expressão recluso, tanto em termos técnico-jurídicos, ou mesmo literais refere-se “à pessoa que está privada da liberdade, aquele que esta preso” e, não a quem é suscetível de vir a ser preso.

5. Mas se dúvidas não existem quanto aos números 1, 2, 4 e 7, de que se aplica a reclusos, face à redação dos mesmos, já o mesmo não se poderá dizer quanto ao n.º 5, face a expressão que o legislador utilizou, a qual poderá suscitar dúvidas.

6. De facto, estabelece o nº 5 do artigo 2.º que: o perdão a que se refere este artigo só deve ser aplicado se houver lugar à revogação ou suspensão “ o que numa primeira leitura poderia indicar que este normativo, ao invés dos números anteriores, se aplica a situações futuras, ou seja, que neste normativo o legislador previu e quis que o perdão de penas fosse aplicável quando ocorresse a revogação da suspensão, o que poderia ocorrer em momento posterior à entrada em vigor da presente lei, já que só neste caso existiria verdadeiramente reclusão (ou perspetiva de reclusão) e necessidade de libertação.

7. Mas tal interpretação não é compatível com o restante elemento gramatical deste normativo, já que, se atentarmos à própria redação do artigo 2.º n.º 5 verifica-se que o legislador utiliza a expressão “o perdão a que se refere este artigo, ou seja, o próprio legislador remete para o perdão de penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado

8. É que o artigo 2.º n.º 5 não pode ser lido de forma isolada, estando a sua área de aplicação subjetiva delimitada pelo preceito para o qual se remete, o qual exige, também a qualidade de recluso.

9. Aliás se nos socorrermos se outros elementos de interpretação, resulta claramente que também no caso de revogação ou suspensão de pena, o condenado já tem que se encontrar em cumprimento da mesma para poder beneficiar do perdão de penas.

10. De facto a Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, visou responder à situação de emergência de saúde pública provocada pelo COVID19 que provocou uma vaga de pandemia a nível mundial, procurando impedir o surto e a propagação da doença, designadamente, na população prisional, um dos grupos mais expostos ao contágio e alastramento do coronavírus devido ao funcionamento e características do sistema prisional, através da substituição da reclusão por medidas não privativas da liberdade, temporárias, antecipatórias ou mesmo definitivas, para desta forma afastar os condenados das prisões, salvaguardando-a dos surtos sem no entanto, descurar o respeito pelas vítimas,

11. Pelo que a única forma de criar as condições mínimas do reconhecido e exigido distanciamento físico para evitar o possível contágio e essencialmente a sua propagação/expansão (tendo em conta a realidade que já se vivia na comunidade em geral), era

libertar reclusos em cumprimento de pena ou seja, que efetivamente estavam em meio prisional

12. Libertação a que, todavia, o legislador pretendeu impor um limite estabelecendo que a mesma teria que ser efetuada: “sem quebra da ordem social e do sentimento de segurança da comunidade”. Daí as opções legislativas no que respeita quer, às concretas penas a que deveria ser aplicado o perdão, nomeadamente no que respeita à efectiva medida da pena, bem como, aos demais requisitos substantivos enumerados na lei, tais como a indicação dos crimes que não estavam abrangidos pelo perdão.

13. Ora, verifica-se que face à proposta de Lei n. º 23/XIV (que esteve na origem da Lei n.º 9/2020) apresentada pelo Governo, que o perdão de penas se aplicava a todos os reclusos independentemente do momento em que adquiriam tal qualidade – se antes, durante ou depois da entrada em vigora da lei 9/2020.

14. O legislador ao alterar a redação inicial do artigo 2.º optando por aprovar a proposta apresentado pelo PCP e, aditando, a exigência que, os reclusos para beneficiarem do perdão de penas “tivessem sido condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à entrada em vigor da presente lei”, bem como, atribuindo competência para proceder a aplicação, do perdão de penas, com caracter urgente, ao Tribunal de Execução de Penas, pretendeu restringir o âmbito de aplicação do perdão de penas, aos reclusos que já se encontravam em cumprimento de pena à data da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril.

15. Pois a não ser assim, não compreendemos o motivo pelo qual o legislador em vez de aprovar a proposta apresentada, quer pelo Governo, quer pelo PAN que abrangia, os reclusos que já se

encontravam a cumprir pena de prisão, e quem futuramente ficasse numa situação de reclusão, optou por conferir ao artigo 2.º n.º 7 e 8 da Lei n.º 9/2020, de 10 Abril a redação proposta pelo PCP.

16. Pelo que, a verdade é que a intenção inicial do legislador na proposta de lei 23/XIV/1/ ia no sentido que todos os condenados que, na vigência da Lei n.º 9/2020, reunidos os demais requisitos, beneficiassem do perdão de penas, mas resulta do processo legislativo que, o legislador resolveu limitar o mesmo aos reclusos que se encontravam em cumprimento de pena, na altura da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril.

17. Assim, atendendo ao elemento histórico de interpretação, só podemos concluir que aquele aponta no sentido de só ser admissível o perdão de penas dos reclusos que já se encontravam em cumprimento de pena à data da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, quer tivessem a cumpri-la a titulo principal, ou na sequência de revogação ou suspensão de uma pena de substituição (nºs 3 e 5 do artigo 2).

18. A interpretação contrária - de que o artigo 2.º n.º 5 se aplica as revogações ou suspensões de penas, que ocorram na vigência da Lei n.º 9/2020, não tendo, nesse caso o condenado que se encontrar no interior do estabelecimento prisional aquando da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020 não só viola a interpretação gramatical, e histórico deste artigo, como viola o princípio da igualdade.

19. Efectivamente, esta interpretação, que o perdão de penas se aplica apenas aos reclusos que se encontravam em cumprimento de pena à data da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, é a que melhor se coaduna com o objectivo primordial que legislador quis alcançar com criação da lei n.º 9/2020, de 10 de Abril. Este normativo como o próprio nome indica, estabeleceu um “Regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19”, visando diminuir o número de presos nas prisões portuguesas, através de medidas de clemência e, evitar uma situação de alastramento dramático, nos estabelecimentos prisionais, da pandemia causada pelo vírus COVID.19, naquele concreto momento temporal, bem delimitado no tempo, isto é apenas para o imediato e naquela conjuntura sanitária específica (em que todo o país se encontrava em confinamento rigoroso, e em que se corria o sério risco de infeção generalizada da população prisional).

20. O legislador não pretendeu conceder um “perdão” geral de penas, mas sim, retirar “reclusos”, urgentemente, das prisões portuguesas, de modo a prevenir uma putativa situação de emergência sanitária.

21. Assim, defender que a Lei n.º 9/2020, de 10 Abril visou a aplicação do perdão de penas aos condenados que, na data da sua publicação, ainda não se encontrassem em cumprimento de pena no interior dos estabelecimentos, excede, claramente em nosso entender, os próprios objectivos da Lei.

22. Verifica-se um outro argumento resultante da interpretação sistemática, a favor da tese que defendemos, que tem a ver com o facto de o legislador ter atribuído a competência para a aplicação do perdão de pena, e com carácter de urgência, aos tribunais de execução de penas (artigo 2.º, n.º 8), e não aos tribunais da condenação, como deveria acontecer, caso o perdão de penas abrangesse os condenados em pena de prisão por sentença transitada em julgado, ainda não privados da sua liberdade.

23. O princípio da igualdade que se encontra previsto no artigo 13º. da CRP pressupõe tratamento igual do que é igual e tratamento diferente do que é diferente, de acordo com a medida da diferença.

24. Daí que, o Tribunal Constitucional afirme que uma diferenciação de tratamento fundada em motivações objectivas, razoáveis e justificadas, não é atentatória do princípio da igualdade.

25. Ou seja, no caso da exclusão do perdão aqui em causa, sendo colocados como são, em plano de igualdade todos aqueles que, se encontram em cumprimento de pena de prisão à data da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, não existe tratamento diverso de quem se encontra em situação idêntica

26. Da mesma forma não comporta a exclusão tratamento arbitrário, sendo como é explicável e racionalmente compreensível por razões de saúde, a fim de evitar o risco de contágio nos estabelecimentos prisionais.

Propõe-se, pois, que o conflito de jurisprudência existente, seja resolvido nos seguintes termos:

“Na pendência da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, tendo sido revogada uma pena de substituição, (nos termos do disposto no nº 5, do art.º 2º, da referida Lei) só pode ser aplicado o perdão de penas, ao recluso que se encontre em cumprimento de pena de prisão à data da entrada em vigor da referida lei, verificados que sejam os demais requisitos substantivos legais”.

5. Colhidos os vistos e reunido o Pleno das Secções Criminais, cumpre decidir.

II - Fundamentação

A) Da verificação dos pressupostos do recurso

A conferência da secção julgou verificados, como dissemos, os pressupostos do recurso, mormente a oposição de julgados.

Como resulta do n.º 4 do art.692.º do Código de Processo Civil, ex vi art.º4.º do Código de Processo Penal, o pleno não está vinculado a essa decisão, podendo decidir em sentido contrário.

Assim, passa o pleno a reapreciar a questão.

     

1) Requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.

A admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência implica a observância de determinados requisitos ou pressupostos, uns de ordem formal e outros de ordem substancial, encontrando-se os primeiros essencialmente enunciados no art.437.º e os segundos no art.438.º, ambos do Código de Processo Penal.

O art.437.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe «fundamentos do recurso», dispõe o seguinte:  

«1 - Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.

2 - É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

3 - Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida.

4 - Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.

5 - O recurso previsto nos n.ºs 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.».

O art.438.º, do mesmo Código, estabelece, por sua vez, com interesse para a decisão:

« 1 - O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

2- No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.

3 - (…).».

Sintetizando o sentido da jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal, são os seguintes os requisitos de admissibilidade do recurso de fixação da jurisprudência:

 A) Requisitos formais:

(i) A legitimidade e interesse em agir do recorrente;

(ii) A interposição do recurso no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar;

(iii) Invocação no recurso do acórdão fundamento do recurso, com junção de cópia do mesmo ou do lugar da sua publicação;

(iv) O trânsito em julgado dos dois acórdãos; e

(v) Justificação da oposição que origina o conflito de jurisprudência.

B) Requisitos substanciais:

(i) A existência de julgamentos, da mesma questão de direito, entre dois acórdãos do STJ, dois acórdãos da Relação ou entre um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e um outro da Relação (o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento);

(ii)  Os acórdãos assentam em soluções opostas, de modo expresso e a partir de situações de facto idênticas; e

(iii)  São ambos proferidos no domínio da mesma legislação, ou seja, «quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida».

     

2) Ocorrências processuais relevantes a considerar para verificação da admissibilidade do presente recurso extraordinário.

Do acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto resulta assente o seguinte:

- O arguido, ora recorrente, AA, por sentença transitada em julgado em 31 de março de 2017, proferida no proc. n.º 1/10...., pelo Juízo de Competência Genérica ..., foi condenado pela prática de um crime de fraude fiscal, previsto e punível pelos artigos 103.º, n.º 1, al. b) do R.G.I.T e 30.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, que foi substituída por 480 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade.

- Por despacho de 6 de junho de 2020, o Juiz do mesmo Juízo de Competência Genérica ..., decidiu revogar a pena de trabalho a favor da comunidade e determinar o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, descontado o período de 10 dias correspondentes a 10 horas de trabalho que havia sido efetivamente prestado.

- Tal despacho foi mantido por acórdão de 23 de março de 2021, do Tribunal da Relação de Guimarães, que julgou improcedente o recurso interposto pelo arguido e, na sequência desta improcedência foram emitidos pelo Juiz do Juízo de Competência Genérica ..., mandados de detenção do condenado ao Estabelecimento Prisional, para cumprimento da pena de prisão. 

- Em função deste despacho de emissão de mandados, o arguido, por requerimento de 31 de maio de 2021, solicitou ao Tribunal de Execução de Penas do Porto, Juízo de Execução das Penas do Porto, Juiz ..., a aplicação do perdão da pena de prisão, ao abrigo do art.2.º da Lei n.º 9/ 2020 de 10 de abril.

- Por despacho de 8 de julho de 2021, o Juízo de Execução das Penas do Porto, Juiz ..., indeferiu a pretensão do requerente e determinou que a decisão fosse comunicada ao processo da condenação, considerando, em síntese, que a Lei n.º 9/ 2020 de 10 de abril, deve ser interpretada em consonância com o seu art.2.º, onde se define que o âmbito de aplicação do Perdão são “ as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado”, querendo o legislador que os beneficiários deste perdão excecional fossem apenas os condenados que simultaneamente fossem reclusos, ou seja, que se encontrassem em cumprimento de pena de prisão em estabelecimento prisional no momento da entrada em vigor da Lei e, no caso, em 10 de abril de 2020, o requerente não se encontrava condenado em pena de prisão, pois o despacho revogatório só transitou em julgado em 4/5/2021 e, muito menos, era recluso.        

 - O arguido interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação do Porto, que proferiu o acórdão ora recorrido, onde após reproduzir o disposto nos artigos 1.º, alínea a), 2.º, n.ºs 1 a 5, da Lei n.º 9/ 2020 de 10 de abril, e citar diversa jurisprudência e doutrina, concluiu:

Em suma, embora não comungando os argumentos expostos na decisão recorrida que, ao fim e ao cabo (embora com acolhimento na jurisprudência nela citada e, bem assim, na jurisprudência, parecer e estudos mencionados pelo Ministério Público em ambas as instancias) apenas seria permisso à aplicação do perdão da Lei n.º 9/2020 nos casos em que o condenado fosse recluso à data em vigor da referida Lei (e por não o ser a essa data proferiu o despacho sob censura), mesmo assim, consideramos, desde logo, em virtude do recorrente, durante a vigência da referida Lei, ainda não ter assumido o estatuto recluso, não pode beneficiar do almejado perdão. 

Daqui resulta ser nosso entendimento que a situação de recluso (que não ocorre em relação ao recorrente dado que tão somente assume nos autos a qualidade ou estatuto de condenado) a par da verificação dos demais requisitos plasmados no art.2º da referida lei, constitui condição sine qua non para a aplicação do pretendido perdão.

E essa mesma exigência de estatuto/qualidade de recluso também se deteta no nº 8 do art. 2º da Lei nº 9/2020 quando daquele mesmo número resulta a atribuição da competência aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes para procederem à aplicação do perdão estabelecido na presente lei e emitirem os respetivos mandados com caráter urgente.”

Em conformidade com o exposto, decidiu que “…embora por razões algo diversas das que a fundamentaram, negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se a decisão recorrida”.  

Do acórdão fundamento, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, resulta, por sua vez, assente o seguinte:

- O arguido foi condenado, por sentença de 7 de outubro de 2016, transitada em julgado em 7/11/2016, pela prática, em 6/9/2016, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.

- Em consequência da comissão de novo crime no período da suspensão, esta foi revogada, tendo sido determinado, por despacho de 5/2/2020, o cumprimento da prisão em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, para o qual o arguido deu inicialmente o seu consentimento. Todavia, chegado o momento de concretizar a medida com a colocação dos aludidos meios técnicos, tal não foi possível, dada a manifesta falta de colaboração do arguido, tendo de seguida ficado incontatável, tendo deixado de atender as chamadas telefónicas dos técnicos da DGRSP, o que conduziu à prolação do despacho de 29 de outubro de 2020, que ao abrigo do art.44.º, n.ºs 2 , al. a) e 3 do Código Penal, determinou a revogação do aludido regime e o subsequente cumprimento da prisão em estabelecimento prisional.

- O arguido não se conformou com este despacho dele interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, sendo um dos objetos do recurso o pedido de que lhe seja declarada  perdoada, ao abrigo do art.2.º, n.º1, da Lei n.º 9/2020, a pena em que foi condenado.

O Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão ora indicado como acórdão-fundamento, conhecendo deste objeto do recurso, consignou, além do mais, o seguinte:

A mencionada Lei aprovou um «regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença. (…).

Ou seja, no âmbito do combate àquela doença e de molde a evitar a entrada e transmissão do vírus no interior dos estabelecimentos prisionais, visa a aludida medida de graça reduzir a população prisional, dentro dos limites traçados.

Razão por que, a lei se dirige aos «reclusos» cuja condenação já houvesse transitado em julgado, sendo competente para a concessão do perdão e emissão dos respetivos mandados de libertação o Tribunal de Execução das Penas (n.º 8 do artigo 2.º).

Todavia, em caso de condenação em penas de substituição, manda o n.º 5 do mesmo artigo que o perdão seja aplicado se houver lugar à revogação de tal pena, ou seja, quando o arguido tiver de recolher ao estabelecimento prisional para cumprimento da prisão que havia sido substituída.

Sendo, pois, de aplicar o perdão se tal revogação ocorrer ainda durante a vigência da Lei 9/90, sendo certo que, tal vigência só cessará com a publicação de nova Lei que “declare o final do regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-Cov2 e da doença COVID-10”, conforme decorre do artigo 10.º daquela Lei, na redação da Lei 16/2020, de 29/5.

Dúvidas não há em como a revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada nestes autos ao ora recorrente, bem como a revogação do regime de permanência na habitação, que substituiu aquela, com a consequente imposição do cumprimento da prisão, pelo arguido BB, em estabelecimento prisional, ocorreram na vigência da Lei 9/90, a qual ainda não cessou.

Se o arguido, na sequência do despacho recorrido, for detido e apresentado em estabelecimento prisional para cumprimento da respetiva pena de prisão, terá de ser imediatamente equacionada a aplicação do perdão em causa, sendo-lhe o mesmo aplicável, do nosso ponto de vista e em concordância com a jurisprudência existente de que temos conhecimento acerca desta concreta questão, de que é exemplo o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7/10/2020, proferido no P. 719/16.4TXPRT-F.C1, do Juízo de Execução das Penas (j...) de Coimbra, em cujo sumário se pode ler:

«I. O perdão de pena previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, só pode ser concedido a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor, excluindo os condenados que não tenham ainda ingressado fisicamente no estabelecimento prisional.

II. Todavia, o perdão do artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, verificados que sejam os demais requisitos substantivos legais, pode ser igualmente aplicado a condenados que, no decurso da vigência daquela Lei, venham a estar na situação de reclusão.»

Todavia, verificando-se no presente caso todos os demais pressupostos para a concessão do perdão e apenas faltando o estatuto de “recluso”, parece-nos completamente ilógico e insensato exigir que o arguido seja detido e apresentado nessa qualidade no estabelecimento prisional, ou que ele aí se apresente voluntariamente, de molde a adquirir aquele estatuto, para que lhe possa ser aplicado o perdão a que, então, terá direito, sendo certo que, com tal procedimento se estaria a frustrar o objetivo da lei ao conceder o perdão, fazendo entrar no EP alguém que, vindo do exterior, poderá estar contaminado com o vírus que se pretende combater, pondo em perigo de contágio quem aí se encontra e obrigando aquele estabelecimento, de qualquer modo e independentemente de existir infeção, a medidas de prevenção que à partida se tornarão inúteis com a libertação do arguido logo a seguir e que podem desde já ser evitadas com a concessão do perdão antes dessa entrada na prisão.

É nosso entendimento, pois, que, em caso de revogação da pena de substituição e havendo lugar ao cumprimento, em estabelecimento prisional, da prisão que havia sido substituída, nos termos do n.º 5 do artigo 2.º, da Lei n.º 9/90, de 10/4, o perdão a que o “condenado” tiver direito e caso ele abranja toda a pena a cumprir, pode e deve ser de imediato aplicado, sem que haja necessidade de serem emitidos mandados de detenção e de aquele adquirir a qualidade de “recluso”, sendo tal ato da competência do tribunal em que pende o processo e que será o tribunal da condenação.”.

Em resultado desta fundamentação, decidiu julgar “…procedente o recurso interposto pelo arguido BB e, consequentemente, declara-se integralmente perdoada a pena de 1 ano e 6 meses de prisão aplicada ao mesmo arguido no presente processo, determinando-se o subsequente arquivamento deste.”.

     

3) Da verificação, em concreto, dos requisitos de admissibilidade do recurso.

No que respeita aos requisitos formais de admissibilidade do recurso, mantém-se o entendimento de que eles se mostram verificados, pois:

(i) o recorrente, na qualidade de arguido no processo, tem legitimidade para interpor o recurso (art.437.º, n.º 5 do C.P.P.) e, ainda, interesse em agir, na medida em que o recurso tem utilidade prática, afetado que está pela decisão, desfavorável, que lhe negou a aplicação do perdão da Lei n.º 9/2020 de 10 de abril e, na hipótese de o recurso de uniformização lhe vir a ser favorável, a decisão repercute-se no acórdão recorrido; 

(ii) o recurso é tempestivo, uma vez que foi interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar, pois o acórdão recorrido transitou em julgado no dia 28/10/2021 e o requerimento de interposição do recurso deu entrada por via eletrónica no dia 29/11/2021;

(iii) o acórdão fundamento transitou em julgado no dia 31 de março de 2021;

(iv) os dois acórdãos, recorrido e fundamento, transitaram, pois, em julgado; e

(v) o recorrente justificou a oposição de julgados que, no seu entender, origina o conflito de jurisprudência.          

Também os requisitos substanciais de admissibilidade deste recurso extraordinário, se devem ter como verificados.

Assim, a questão de direito, julgada nos dois acórdãos da Relação é a mesma, qual seja: tendo sido revogada uma pena de substituição, na pendência da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, é aplicável ou não o perdão das penas previsto no art.2.º, n.º1 da mesma Lei, a quem não assumiu ainda a situação de recluso.

Os acórdãos assentem em “situações de facto” idênticas, globalmente similares, pois, em ambos os casos, os arguidos foram condenados por sentenças transitadas em julgado, em datas anteriores à entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril (11 de abril de 2020); as penas de substituição da prisão foram revogadas por despachos proferidos após 11 de abril de 2020; nenhum dos dois condenados se encontrava na situação de reclusão quando foram proferidos os despachos recorridos que determinaram o cumprimento das penas de prisão fixadas nas sentenças; e os crimes pelos quais foram condenados não se mostram excluídos de perdão pelo n.º2 do art.1.º e pelo n.º 6 do art.2.º, daquele diploma.  

Confrontadas as decisões dos dois acórdãos, recorrido e fundamento, concluímos que as duas decisões estão em oposição, pois enquanto o acórdão-recorrente apreciando a questão da aplicação do perdão parcial da pena previsto na Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, decidiu que não tendo o recorrente/condenado adquirido ainda a qualidade de recluso, mas apenas de condenado, não se mostra verificado um dos requisitos básicos para lhe poder ser aplicável e beneficiar daquele perdão, e por isso manteve a decisão recorrida que não lhe aplicou o perdão; já o acórdão-fundamento, apreciando a mesma questão, decidiu que não há necessidade do recorrente adquirir a qualidade de recluso na pendência da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, para poder beneficiar do perdão desta Lei, bastando a de condenado, razão pela qual lhe aplicou de imediato o perdão da pena e determinou o arquivamento do processo.   

Por fim, durante o intervalo da prolação do acórdão-recorrido e do acórdão-fundamento, não ocorreu modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida, traduzida na aplicação do perdão parcial de penas nos termos dos artigos 1.º, alínea a) e 2.º, n.º1, da Lei n.º 9/ 2020 de 10 de abril.

           

B) Da relevância do Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 2/2023 no presente recurso interposto do acórdão recorrido

1) Pese embora não tenha ocorrido modificação legislativa durante o intervalo da prolação do acórdão-recorrido e do acórdão-fundamento, o Supremo Tribunal de Justiça veio decidir, no proc. n.º 132/15.0TXEVR-F.E1-A.S1, o conflito de jurisprudência existente entre dois acórdãos de Tribunais da Relação, sobre a questão de saber se o perdão previsto no artigo 2.º, da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, verificados que sejam os demais requisitos, só pode ser aplicado a condenados que sejam reclusos à data da sua entrada em vigor, ou seja, em 11 de abril de 2020, ou se pode ser aplicado ainda a condenados que, no decurso da sua vigência, venham a estar na situação de reclusão.

No acórdão de 15 de dezembro de 2022, proferido naquele processo, o Supremo Tribunal de Justiça, procedeu à uniformização da jurisprudência, nos seguintes termos:

O perdão de penas de prisão previsto no artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, verificados que sejam os demais requisitos legais, só pode ser aplicado a condenados que sejam reclusos à data da sua entrada em vigor.”.[1]

            

2) De acordo com o art.445.º, n.º1, do Código de Processo Penal, a decisão sobre o recurso de fixação da jurisprudência tem eficácia no processo em que o recurso foi interposto e nos processos cuja tramitação tiver sido suspensa nos termos do art.441.º, n.º 2, sem prejuízo da reformatio in pejus.

O AFJ n.º 2/2023 não foi proferido no presente processo, nem a tramitação deste foi suspensa nos termos do art.441.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, pelo que o acórdão uniformizador não tem eficácia nos presentes autos ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.445.º do mesmo Código.

O n.º 3 do art.445.º, do mesmo Código, acrescenta, ainda, que «A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão».

Quebrada a força vinculativa do acórdão de fixação da jurisprudência, pelo n.º 3 do art.445.º do Código de Processo Penal, importa decidir se existem novos argumentos para divergir da jurisprudência fixada no AFJ n.º 2/2023 e, assim, afastar a sua observância.

Os artigos 446.º e 447.º, do Código de Processo Penal, deixam antever que não basta uma qualquer fundamentação divergente sobre a jurisprudência fixada pelo acórdão uniformizador, para afastar a sua observância, ao estabelecerem, com interesse para a presente questão:

Artigo 446.º: 

«1- É admissível recurso direto para o Supremo Tribunal de Justiça, de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada, a interpor no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, sendo correspondentemente aplicáveis as disposições do presente capítulo.

2- O recurso pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.

3- O Supremo Tribunal de Justiça pode limitar-se a aplicar a jurisprudência fixada, apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que está ultrapassada.».

Artigo 447.º:

«1- O Procurador-Geral da República pode determinar que seja interposto recurso para fixação da jurisprudência de decisão transitada em julgado há mais de 30 dias.

2- Sempre que tiver razões para crer que uma jurisprudência fixada está ultrapassada, o Procurador-Geral da República pode interpor recurso do acórdão que firmou essa jurisprudência no sentido do seu reexame. Nas alegações o Procurador-Geral da República indica logo as razões e o sentido em que jurisprudência anteriormente fixada deve ser modificada.

3 - (…)».[2]

     

Como esclarece, entre outros, o acórdão do STJ de 5-11-2009, “A lei indica com suficiente clareza, assim, que os Acórdãos para fixação de jurisprudência têm um peso próprio, que lhes é dado pelo facto de provirem do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça. Há, pois, que lhes conceder o benefício, para não dizer a presunção, de que foram lavrados após ponderação exaustiva, face à legislação, à doutrina e à jurisprudência existentes sobre o assunto.

Deste modo, embora os tribunais sejam livres de seguirem a jurisprudência que julgam mais adequada, já que o STJ não “faz lei”, parece estultice tomar outro caminho que não o acolhido no Pleno do STJ, a não ser que se invoquem argumentos novos, não considerados na decisão que fixa a jurisprudência, ou que, considerando a legislação no seu todo, a jurisprudência fixada se mostre já ultrapassada.».[3]

Como o Supremo Tribunal de Justiça tem enfatizado, o tribunal divergente não pode limitar-se ao desacato da jurisprudência uniformizada baseado tão-somente na convicção de que aquela não é a melhor solução legal.[4]

Na doutrina, defende Maia Gonçalves que o segundo período do n.º3 do art.445.º do C.P.P., ao conter uma particular chamada de atenção para o dever de fundamentar as divergências relativamente à jurisprudência que se encontra fixada, impõe “… que os argumentos invocados para o efeito, além de ponderosos, sejam novos, no sentido de não terem sido considerados no acórdão uniformizador, e suscetíveis de criar algum desequilíbrio na avaliação do peso de argumentos a favor do reexame e alteração da doutrina fixada no acórdão uniformizador.”[5]

No mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque esclarece que “Os tribunais só devem divergir da jurisprudência uniformizada quando haja razões para crer que ela está ultrapassada, isto é, quando a) o tribunal tiver desenvolvido um argumento novo e de grande valor, não ponderado no acórdão uniformizador, suscetível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada; b) se tornar patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, por forma a que, na atualidade, a sua ponderação conduziria a resultado diverso; ou finalmente c) a alteração da composição do STJ torne claro que a maioria dos juízes das secções criminais deixou de partilhar fundadamente da posição fixada.”.[6]     

O acórdão de fixação de jurisprudência n.º 2/2023, foi proferido em data muito recente, sem votos de vencido, depois de apreciado, exaustivamente, o enquadramento histórico-legislativo e teleológico da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril e de ponderados os argumentos a favor e contra a posição que tomou, pelo que não existem razões para crer que a jurisprudência uniformizada se mostra ultrapassada.

Não se verificam, desta forma, razões para divergir da jurisprudência uniformizada pelo S.T.J. no AFJ n.º 2/2023.

 3) Não havendo razões para afastar a jurisprudência fixada pelo acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 2/2023, nada obsta a que esta jurisprudência fixada possa ser aplicada ao presente caso, se relevar para a decisão do presente recurso extraordinário.

Recordamos que para o acórdão recorrido - como para o acórdão fundamento -, a qualidade ou estatuto de recluso à data da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, não é requisito necessário para a aplicação do perdão previsto no artigo 2.º, verificados que sejam os demais requisitos.

Por conseguinte, o acórdão recorrido entendeu que o condenado por sentença transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, que no decurso da vigência desta lei, vê revogada a pena de substituição pode vir a beneficiar do perdão da prisão previsto no artigo 2.º desta Lei e, no caso, só manteve a decisão do TEP porquanto o recorrente, que viu revogada a pena de substituição na vigência desta Lei, ainda não era recluso, “dado que tão somente assume nos autos a qualidade ou estatuto de condenado”.

Já o acórdão fundamento decidiu que nem sequer é necessário o recorrente adquirir esta qualidade na vigência da Lei n.º 9/2020, em caso de revogação da pena de substituição, bastando a de condenado, razão pela qual lhe aplicou o perdão do art.2.º da mesma Lei.

A relevância da jurisprudência fixada no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 2/2023 é evidente no presente recurso.

Tendo o AFJ n.º. 2/2023  decidido que “o perdão de penas de prisão previsto no artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, verificados que sejam os demais requisitos legais, só pode ser aplicado a condenados que sejam reclusos à data da sua entrada em vigor.”, e sendo agora a  questão de direito, saber se revogada uma pena de substituição, na pendência daquela Lei, é aplicável ou não o perdão do art.2.º da mesma Lei a quem não assumiu a situação de recluso, deixou de ter utilidade a decisão sobre a oposição de julgados no presente recurso de fixação de jurisprudência, quando no acórdão recorrido e no acórdão fundamento o condenado não tem a qualidade de recluso à data da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020.

Considerando o exposto, impõe-se declarar extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art.277.º, alínea e), do Código de Processo Civil, ex vi do art.4.º do Código de Processo Penal. Julgando-se extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, mantém-se, consequentemente, o acórdão recorrido, sem necessidade do pleno o declarar.

III

Dispositivo

Nestes termos e pelo exposto, acorda o pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça em declarar extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art.277.º, alínea e), do Código de Processo Civil, ex vi do art.4.º do Código de Processo Penal.

Sem tributação.

*

Supremo Tribunal de Justiça, 4 de maio de 2023

Orlando Manuel Jorge Gonçalves (Relator)

Maria do Carmo da Silva Dias

Pedro Branquinho Ferreira Dias

Leonor do Rosário Mesquita Furtado

Teresa de Almeida

Ernesto Carlos dos Reis Vaz Pereira

Agostinho Soares Torres

António Latas

José Eduardo Miranda Santos Sapateiro

Helena Moniz

José Luís Lopes da Mota

Nuno António Gonçalves

Paulo Jorge Fonseca Ferreira da Cunha

Maria Teresa Féria Gonçalves de Almeida

Eduardo Almeida Loureiro

António Gama

Sénio Alves

Ana Maria Barata de Brito

___________________________________________________


[1] Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2023, publicado no DR, I – Série, de 1 de fevereiro.  
[2] Sublinhados nossos.

[3] Proc. n.º418/07.8PSBCL-A.S1, in www.dgsi.pt
[4] Cf. ainda, neste sentido, Pereira Madeira, in “Código de Processo Penal comentado”, obra coletiva de Conselheiros do STJ, Almedina, 2014, pág.1591.
[5] Código de Processo Penal anotado, Almedina, 17.ª edição, pág.s 1045 e 1046

[6] In "Comentário do Código de Processo Penal", UCE, edição de 2007, pág.s 1202 e 1203