Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2243/20.1T8CBR.C1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AGUIAR PEREIRA
Descritores: LIVRANÇA
LIVRANÇA EM BRANCO
CAUÇÃO
OBRIGAÇÃO CAMBIÁRIA
AVAL
AVALISTA
RESTITUIÇÃO
EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES
BANCO
REPRISTINAÇÃO
Data do Acordão: 02/27/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :
I - Numa livrança-caução entregue sem estar completamente preenchida no que tange ao valor e data (livrança-caução em branco), a obrigação cambiária de quem nela dá o seu aval ao cumprimento do subscritor só surge no momento em que o título é completamente preenchido;

II - Sendo a livrança devolvida aos “avalistas”' no estado em que foi entregue ao credor e quando a obrigação garantida se havia extinguido pelo pagamento, o negócio cambiário do aval não chegou a consumar-se.

III - Tendo o credor da obrigação causal deixado de ser portador da livrança-caução, ainda que, pela não aprovação do seu crédito no processo de inventário da subscritora mutuante, tenha sido compelido a repor as quantias de que se havia pago, não ocorre a repristinação da obrigação cambiária relativa aos “avalistas”.

IV - Nessas circunstâncias, não subsiste qualquer obrigação de natureza cambiária dos “avalistas” da obrigação da subscritora na livrança caução entregue e oportunamente devolvida.

Decisão Texto Integral:


Em nome do POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


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RELATÓRIO

Parte I – Introdução

1) AA e esposa BB, intentaram ação declarativa contra Banco Santander Totta, S.A. (doravante banco primeiro réu) e Hefesto - Sociedade de Titularização de Créditos, S.A. (doravante segunda ré), tendo formulado o pedido seguinte:

a) Declarar-se que os autores nada devem ao primeiro réu, pelo que este não podia transmitir ao segundo réu qualquer crédito sobre os autores, relativamente ao contrato de mútuo constante do documento 1 junto com a petição, condenando-se ambos os réus a reconhecer que nada lhes é devido pelos autores no que a esse contrato se refere.

b) Consequentemente, condenado o segundo réu a retirar a comunicação que fez à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal.

c) Condenarem-se os réus a pagar solidariamente aos autores a indemnização por danos não patrimoniais por eles sofridos e a sofrer em consequência da comunicação referida na alínea anterior e enquanto esta se mantiver, no montante de € 10.000 para cada um dos autores, como indemnização mínima, justa, legal e equitativa de todos esses danos não patrimoniais.

O pedido formulado na alínea a) foi posteriormente reduzido nos termos seguintes:

“a) Declarar-se que os autores nada devem ao primeiro réu, a título de avalistas de uma livrança em branco subscrita por CC para garantia de um contrato de abertura de crédito por conta corrente, por ela celebrada em 1 de agosto de 2006 com o primeiro réu, pelo que este não podia transmitir ao segundo réu qualquer crédito sobre os autores, relativamente ao referido contrato de mútuo constante do documento 1 junto com a petição, condenando-se ambos os réus a reconhecer que nada lhes é devido pelos autores no que ao aval dado nesse contrato se refere”.

2) Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença em primeira instância em 10 de setembro de 2022 que julgou a ação totalmente improcedente e absolveu as rés do pedido, condenando os autores como litigantes de má-fé.

A absolvição das rés do pedido assentou na circunstância de no âmbito do processo de inventário por morte de CC e no seguimento da não aprovação do passivo e do envio dos interessados para os meios comuns ter sido ordenada, por despacho de 20 de junho de 2014, a reposição da verba respeitante ao passivo da herança em que figurava como credor o Banco Santander Totta, S.A., o que foi cumprido em 24 de abril de 2015, fazendo com que a dívida em causa fosse alvo de repristinação e o banco recorrido novamente titular “de um direito de crédito emergente do contrato firmado, crédito esse garantido, precisamente, pela livrança avalizada pelos autores”, acrescendo que, não tendo a livrança chegado a ser preenchida, não poderia ocorrer a prescrição da obrigação cartular.

3) Por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 14 de março de 2023 foi a apelação interposta pelos autores julgada parcialmente procedente, sendo alterada a decisão sobre a matéria de facto 1, mantida a absolvição das rés dos pedidos e revogada a condenação dos autores como litigantes de má-fé.

Pode ler-se na parte relativa à fundamentação da decisão sobre a questão da existência da dívida garantida pela livrança:

“(…) afigura-se correto o enquadramento traçado pelo Mm.º Juiz do Tribunal a quo, pois que, nas apontadas circunstâncias, foi incumprido o contrato de abertura de crédito e dada sem efeito a “liquidação” da quantia devida.

(…)

Repristinada a situação anterior ao imbróglio da liquidação/pagamento que não se quis sancionar (fazendo ressurgir a dívida na esfera jurídica da 1ª Ré e relegando a sua discussão para os meios comuns), o que constituiu verdadeira anulação deste procedimento, parece-nos que se imporia a total repristinação das coisas ao seu estado anterior (…).

Daí, como na 1ª instância, poder-se-á concluir que a 1ª Ré passou, novamente, a ser titular de um direito de crédito emergente do contrato firmado, crédito esse garantido, precisamente, pela livrança avalizada pelos AA..”

4) Inconformados os autores interpuseram recurso de revista invocando a sua admissibilidade pela via ordinária, por inexistir dupla conforme (artigo 671.º n.º 3 do Código de Processo Civil) dada a modificação da matéria de facto e a revogação da sentença na parte em que condenou os autores como litigantes de má-fé.

Para o caso de assim não se entender alegam que o recurso de revista é admissível a título excepcional nos termos do artigo 672.º n.º 1 alínea a) e b) do Código de Processo Civil.

O banco recorrido pronunciou-se, além do mais pela inadmissibilidade legal do recurso de revista interposto pelos autores.

5) Por despacho de 29 de outubro de 2023 o relator declarou inadmissível a interposição do recurso de revista pela via ordinária.

A Formação de Juízes Conselheiros a que alude o artigo 672.º n.º 3 do Código de Processo Civil, por seu acórdão de 29 de novembro de 2023, admitiu o recurso de revista interposto pelos autores, a título excepcional, atenta a relevância jurídica e social da resolução da questão colocada consistente em saber “se a entrega/devolução de uma livrança ao avalista no contexto de pagamento integral da quantia em divida determina a extinção da obrigação cartular num caso, como o dos autos, em que, por via de uma decisão judicial posterior, foi determinada a devolução ao devedor (falecido) das quantias alocadas ao pagamento da dívida”.


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Parte II – A Revista

6) Os recorrentes rematam as suas alegações do recurso de revista interposto com as CONCLUSÕES que se transcrevem na parte relevante 2:

“(…)

K) A decisão de direito, tem antes de mais de ser limitada pelo pedido formulado e esse pedido não é o que foi formulado na petição inicial, mas sim o que resultou da redução do pedido feito pelos autores no seu requerimento de 18/11/2021 – refª. CITIUS ...99 - com a redução do pedido da alínea a), pelo que o objecto da presente acção corresponde ao seguinte petitório: a) Declarar-se que os autores nada devem ao 1º. réu, a título de avalistas de uma livrança em branco subscrita por CC para garantia de um contrato de abertura de crédito por conta corrente, por ela celebrada em 1 de agosto de 2006 com o 1º. Réu, pelo que este não podia transmitir ao 2º. Réu qualquer crédito sobre os autores, relativamente ao referido contrato de mútuo constante do documento 1 junto com a presente petição, condenando-se ambos os réus a reconhecer que nada lhes é devido pelos autores no que ao aval dado nesse contrato se refere, sendo que a referida redução do pedido foi admitida conforme consta da sentença ora recorrida.

L) Além disso, conforme consta de requerimento apresentado pela R. Hefesto STC, S.A. em 19/2/2021 – refª. CITIUS ...00 – foi informado nos autos que “cessou a comunicação do saldo referente aos Autores à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal, bem como procedeu à eliminação do histórico de comunicações” e este requerimento/informação corresponde à satisfação do pedido formulado na alínea b) do petitório desde a petição inicial, que corresponde à confissão desse pedido pela R. Hefesto STC, S.A., mas não existe a mais leve referência na sentença final, pelo que, nessa parte acção procedeu com a confissão do pedido, pelo que deveria a R. Hefesto STC, S.A.

M) Quanto ao pedido da al. a), entendem os AA. que a sua responsabilidade como avalistas na garantia do crédito concedido pelo 1º. R. a sua Tia CC e titulado pelo CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO POR CONTA CORRENTE, com o limite de € 80.000,00 (Oitenta mil euros) e destinado pela mutuária a apoio de tesouraria. (facto provado nº. 1) já cessou.

N) Desse contrato é relevante, por um lado, que os ora autores intervieram como garantes, por meio de caução, nos termos definidos na cláusula 8ª. desse contrato. (facto provado nº. 2), como consta da citada cláusula 8ª. (facto provado nº. 3) que “Para caução do integral pagamento de todas as responsabilidades emergentes da presente abertura de crédito, designadamente reembolso de capital, pagamento de juros e outros encargos a liquidar nos termos deste contrato, BENEFICIÁRIO e GARANTES, respectivamente, subscreve e avalizam uma livrança em branco, a qual desde já autorizam o seu preenchimento pelo BANCO pelo valor que estiver em dívida e a sua imediata apresentação a pagamento, se na data de vencimento de qualquer das prestações convencionadas as mesmas não foram integralmente pagas.”

O) A referida cláusula 8ª. contém o acordo de entrega ao banco credor da livrança e a autorização para o seu preenchimento e a primeira conclusão a extrair desta cláusula é a de que a garantia dos AA. era apenas de aval da livrança e não qualquer fiança à dívida contratada, como resulta do teor da mesma, onde expressamente se refere que “para caução do integral pagamento de todas as responsabilidades emergentes da presente abertura de crédito, designadamente reembolso de capital, pagamento de juros e outros encargos a liquidar nos termos deste contrato, BENEFICIÁRIO e GARANTES, respectivamente, subscreve (no singular) e avalizam (no plural) uma livrança em branco.”

P) A primeira questão que se coloca é a de que é ou não possível afirmar-se a responsabilidade dos autores pela dívida objecto dos presentes autos, pois que não existe a livrança, ou qualquer documento que a substitua, sendo os autores avalistas, o aval tem de constar da livrança, nos termos do artº. 31º. da Lei Uniforme das Letras e Livranças, essa livrança é formalidade ad substantiam da existência do aval, ou, pelo menos, formalidade ad probationem do mesmo aval, pelo que, sem a livrança, não pode fazer-se a prova da existência do aval e que é a causa da obrigação imputada aos autores, atento o disposto no artº. 364º. do Cod. Civil, segundo o qual, se exige um documento com força probatória superior, o que não acontece, nos presentes autos.

Q) Além disso, “havendo pacto de preenchimento, tal pacto deve ser objecto de interpretação à luz dos critérios previstos no artigo 236º e seg. do Código Civil” e qualquer declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, como os autores, só podiam deduzir do comportamento do declarante e do texto da cláusula que os mesmos autores, apenas eram garantes através da avalização da letra entregue.

R) Relativamente ao preenchimento da livrança em branco, especialmente quando devia ser preenchida e qual o prazo de vencimento da mesma a ser nela inscrito, deve ser por interpretação dessa cláusula, segundo os mesmos critérios do artº. 236º., nº1 do Cod. Civil, que deve ser encontrada a resposta e nessa cláusula 8ª. consta que a beneficiária e os avalistas “desde já autorizam o seu preenchimento pelo BANCO pelo valor que estiver em dívida e a sua imediata apresentação a pagamento, se na data de vencimento de qualquer das prestações convencionadas as mesmas não foram integralmente pagas.”

S) Do texto referido na alínea anterior resulta que existe a obrigação para o BANCO de proceder ao seu imediato preenchimento e a sua imediata apresentação a pagamento, na data de vencimento de qualquer das prestações convencionadas, pois da declaração constante do contrato resulta para um declaratário normal que o BANCO assume a obrigação de preenchimento imediato da livrança com a falta de pagamento de qualquer das prestações convencionadas, ao mesmo tempo que é acordado que a data relevante para esse pagamento é a data de vencimento dessas prestações não pagas tempestivamente.

T) Não resulta dos autos, qualquer outra interpretação e é possível retirar do contexto em que o acordo de preenchimento é celebrado – e, sobretudo, da sua remissão para o evento que legitima o portador a completar o título – um limite temporal, que uma vez ultrapassado, tome o preenchimento abusivo porque desconforme à vontade objectivamente manifestada pelo subscritor em branco.

U) O ponto nevrálgico da solução a adoptar é fornecido pelo evento – tipicamente, o incumprimento e/ou a resolução do contrato fundamental -, cuja superveniência legitima o portador a preencher o título, sendo que da Lei Uniforme de Letras e Livranças, resulta até uma valoração legislativa de que o credor cambiário exerça a rapidamente o seu direito (no prazo de um ano a contar do protesto, contra sacador e endossantes; no prazo de três anos a contar do vencimento, contra o aceitante – art. 70º II e I LU).

V) Atento o teor da cláusula 8ª., existia uma obrigação de preenchimento por parte do banco credor, da livrança, nela apondo como data de vencimento a data em que deixaram de ser pagas as prestações ou em que o banco resolveu o contrato, respectivamente 1/8/2009 e 29/1/2010, como se alcança do doc. 6 junto com a petição inicial.

X) Verifica-se assim que actuou o banco, com violação das regras da boa fé, em manifesto abuso de direito, tal como o define o artº. 334º. do Cod. Civil, ao não preencher a livrança, logo que a devedora entrou em mora, não pagando os avalistas o que faltava pagar e apesar de os interpelar para o pagamento, é MANIFESTO que o banco detentor da livrança abusou do direito ao preenchimento que as partes convencionaram e devolveu a livrança aos ora autores, dando a entender que a sua obrigação de caução estava extinta, criando a convicção nos autores de que a sua obrigação se extinguira, pelo que ao ceder esse crédito ao 2º. Réu, o banco, 1º. Réu, agiu em manifesto venire contra factum proprium, pois nada exigiu após essa entrega aos autores.

Y) Atentos os princípios da boa fé e do fim económico e social do direito, essa obrigação de preenchimento da livrança no caso dos presentes autos, não pode ser permitida com um dilação excessivamente alargada, sob pena de se violarem aqueles princípios da boa fé e do fim económico e social do direito de preenchimento atribuído ao credor, normalmente entidade bancária, que o leva a retardar esse preenchimento durante largos anos e, no caso concreto, decorreram mais de 2 anos entre o momento em que foi liquidada a dívida, após a resolução do contrato de mútuo e a entrega da livrança aos autores, em que a 1ª. Ré poderia ter procedido ao preenchimento dessa livrança e posterior execução.

Z) Constitui manifesto abuso de direito a dilação do preenchimento de uma livrança para além de 3 anos após a resolução por incumprimento do subscritor e do avalista.

AA) Além disso, não pode subsistir a obrigação cartular para além da destruição da livrança, que foi entregue aos AA. pelo banco credor, pelo que, nos termos do artº. 39º. da Lei uniforme de Letras e Livranças, “o sacado que paga uma letra pode exigir que ela lhe seja entregue com a respectiva quitação” e a entrega da livrança equivale à desoneração da garantia da obrigação que com a mesma se pretende acautelar o pagamento da obrigação principal, sendo que a obrigação principal subsiste, apesar da extinção da garantia da mesma, porque o que se extingue é a obrigação cartular.

BB) Tem de considerar prescrita a obrigação cartular, mesmo sem ter havido preenchimento da livrança, pois que, como atrás se referiu, atento o teor da cláusula 8ª., existia uma obrigação de preenchimento por parte do banco credor, da livrança, nela apondo a data de vencimento a data em que deixaram de ser pagas as prestações ou em que o banco resolveu o contrato, respectivamente 1/8/2009 e 29/1/2010, como se alcança do doc. 6 junto com a petição inicial e tendo decorrido o prazo de 3 anos sobre a data que o banco estava obrigado a colocar na livrança em branco que lhe foi entregue, como data de vencimento, nos termos do artº. 70º., aplicado ex vi do artº. 77º. Da Lei Uniforme de Letras e Livranças, encontra-se prescrita a obrigação cartular.

CC) Mesmo que ainda existisse a livrança, o seu preenchimento com outra data que não fosse como data de vencimento a data em que deixaram de ser pagas as prestações ou em que o banco resolveu o contrato, respectivamente 1/8/2009 e 29/1/2010, era sempre susceptível de impugnação por preenchimento abusivo, com a consequente declaração da prescrição.

DD) Tendo sido extinta a obrigação cartular, não pode essa livrança servir de quirógrafo contra o avalista, pois que extinta a obrigação cartular, pela entrega do título ao avalista ou pela prescrição dessa obrigação nos termos que deixam expostos, “fica extinta a obrigação cambiária resultante do aval e, portanto, de nada serve o quirógrafo contra o avalista pois este garantiu apenas o cumprimento da extinta obrigação cartular e não o cumprimento da obrigação do subscritor/emitente que tem a sua fonte na relação subjacente”, como já decidiu o Ac. da Relação de Coimbra de 12-06-2018, proferido no Proc. 3224/17.8CBR.C1.

EE) como consta do requerimento apresentado pela R. Hefesto STC, S.A. em 19/2/2021 – refª. CITIUS ...00 – foi informado nos autos que “cessou a comunicação do saldo referente aos Autores à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal, bem como procedeu à eliminação do histórico de comunicações” e esta comunicação corresponde à satisfação do pedido formulado na alínea b) do petitório desde a petição inicial, sendo assim uma confissão desse pedido pela R. Hefesto STC, S.A.

FF) Essa confissão demonstra claramente que a R. Hefesto STC, S.A. reconheceu a ilicitude do seu acto, pelo que existe a obrigação de ela indemnizar os autores pelos danos não patrimoniais que lhe causou.

GG) Devendo ser considerado provado que “por virtude da informação constante da Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal o autor viveu ansioso, nervoso, preocupado e envergonhado por ter tido necessidade de comunicar esse facto aos gestores da sua clínica, o que levou ao seu afastamento consensual e de facto da assinatura de documentos da sociedade e das suas reuniões” (nova redação do facto provado 24), têm os autores, em especial o autor, o direito de ser indemnizado pela referida ré.

HH) É que os autores eram cumpridores das suas obrigações, incluindo bancárias e eram pessoas consideradas e de respeito como como cidadãos e o autor também, como profissional da área médica (facto 25 aditado), os danos patrimoniais por ele sofridos, assumem a gravidade necessária para merecerem a tutela do direito.

II) Tendo a acção procedido nessa parte, com a confissão do pedido da al. b), tem a R. Hefesto STC, S.A ser condenada indemnizar os autores, ou pelo menos, o autor pelos danos não patrimoniais sofridos e o valor da indemnização pedida de € 10.000 é um valor que equitativamente justo e legal, que não apagando os danos sofridos, em especial pelo autor, o compensa, mitigando esses danos, devendo a R. Hefesto STC, S.A ser condenada no pagamento da indemnização pedida pelos autores.

JJ) Face ao que se deixa exposto, deve a presente acção ser julgada totalmente procedente e provada, considerando-se a redução do pedido feita pelos autos, revogando-se o acórdão ora recorrido, por violar o disposto nos artigos 236º., nº. 1 do Cod. Civil, artº. 39º. e artº. 70º., aplicado ex vi do artº. 77º. Da Lei Uniforme de Letras e Livranças, entre outros, assim se cumprindo a lei e fazendo JUSTIÇA!”


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7) O recorrido Banco Santander Totta, S A apresentou articulado de resposta às alegações do recurso de revista que remata pela forma seguinte:

“CONCLUSÕES:

I. Vem o Recorrido, mui respeitosamente, manifestar a sua inteira discordância relativamente às considerações e conclusões constantes das alegações de recurso apresentadas pelo Recorrente, as quais visam a revogação e substituição da decisão proferida nos autos.

II. De facto, ao contrário do referido pelo Recorrente, bem esteve a sentença recorrida ao julgar a acção improcedente e, em consequência, absolver o Recorrido do pedido.

III. Desde já se refira que entende o Recorrido que não é admissível o presente recurso, nem como revista, nem como revista excepcional.

IV. No entendimento do Recorrido, não cessou a responsabilidade dos AA., enquanto avalistas da livrança caução entregue como garantia do crédito concedido à tia do A., Sra. CC, pelo que bem esteve a sentença recorrida a julgar improcedente o pedido formulado na alínea a) mesmo na redacção que resultou da redução do pedido, bem como o Acórdão qua a confirmou.

V. Ora, esta matéria tem de ser conjugada com a matéria de facto dada como provada e, em particular, a seguinte

“7. Tendo sido citado para os termos do processo de inventário, como titular de uma dívida passiva da herança, em determinada altura, o Banco Santander, ora 1º. Réu, resolveu pagar-se dessa quantia com as quantias que a mesma senhora tinha aplicadas nesse banco. - Cfr. docs. 7, 8 e 24 [art9pi]

8. A mutuária dispunha, junto do BANCO, de vários depósitos e aplicações financeiras, os quais eram compostos de valores adequados e suficientes à integral liquidação do valor em divida (cf. relação de bens junta como documento n.º 3), motivo pelo qual, em 13/05/2010, o BANCO remeteu carta de interpelação a todos os 23 herdeiros (carta junta como documento n.º 6) para que procedessem ao pagamento do valor em divida e para, bem assim, autorizarem que fossem utilizadas, para esse efeito, os referidos fundos [art14contbanco].

9. Com base no clausulado (concretamente na cláusula 7.ª), em 02/11/2011, o BANCO liquidou o valor em divida (verba n.º 2 do passivo) com a aplicação Fundo de Investimento SantiMultiPremium (verba n.º 9 do activo Títulos de Crédito) e com o depósito à ordem n.º 0003.10411163.020 (verba n.º 17 do activo Títulos de Crédito) [art16contbanco].

10. Após a referida liquidação o banco procedeu à entrega da livrança aos avalistas [art10pi e 17contbanco].

11. Tal entrega do título – livrança – não foi feita de forma espontânea pelo BANCO, antes foi resposta a uma solicitação pelos mesmos formulada [art18contbanco].

12. Depois deste pagamento, os herdeiros, usando da sua possibilidade de não aprovar o passivo, fizeram-no e a magistrada que presidia ao processo ordenou ao Banco que devolvesse o dinheiro que havia retirado, o que o Banco ora 1º. Réu veio a fazer em outubro de 2014. – Cfr. docs. 7 e 8 [art14pi].

13. Interessados esses que incluíram o A. marido e isto numa altura em que o mesmo já tinha na sua posse a livrança caução que garantia a divida que, entretanto, havia sido liquidada [art25contbanco].

14. E isto também depois do A. marido, que, durante algum tempo, ainda suportou os juros vencidos do empréstimo, ter vindo, a dado momento, declarar ao BANCO que não mais o faria, precisamente porque o crédito do BANCO estava garantido pelos depósitos e pelas aplicações existentes (cfr. Documento n.º 2) [art26contbanco].”

VI. Não tendo existido, no caso, qualquer preenchimento da livrança, sem que isso corresponda a violação do pacto, dado que o pacto de preenchimento autoriza, mas não obriga, o preenchimento da livrança pelo valor que esteja em divida e a sua imediata apresentação a pagamento.

VII. Apresentação essa que apenas não ocorreu pelas vicissitudes suprarreferidas nos factos provados, vicissitudes essas do total conhecimento dos AA. e nos quais os mesmos tiveram intervenção directa

VIII. Assim, o não preenchimento da livrança e a sua posterior destruição, resultou, precisamente, de um comportamento assumido pelo A. marido.

IX. Mantendo-se a obrigação cartular, não podendo entender-se, in casu e face à factualidade dada como provada, que tal entrega da livrança ao avalista, a pedido do mesmo, equivale-se à exoneração da divida.

X. Concluindo-se, ao contrário do alegado pelos AA., que nunca a livrança estaria prescrita, nos termos previstos no artigo 70.º da LULL (aplicável ex vi art. 77º da LULL), dado que a mesma nunca chegou a ser preenchida, sendo jurisprudência maioritária, se não unanime, que o prazo de prescrição da livrança apenas começa a correr após a data do seu vencimento.

XI. E, mesmo tendo sido extinta a obrigação cartular (no que não se concede), pode essa livrança servir de quirógrafo contra o avalista.

XII. Não ocorreu, assim, a extinção da obrigação cartular e, salvo o devido respeito, mesmo que tivesse ocorrido, não poderão os AA./Recorrentes invocar essa extinção por se revelar, in casu, manifestamente abusivo o exercício desse direito – cfr. Artigo 334.º do C.Civil que, desde já, se argui e pode ser objecto de conhecimento oficioso.

XIII. Consistindo o abuso de direito do facto de terem sido os mesmos a dar azo à extinção que o R. não aceita, mas os AA. invocam.

XIV. Bem esteve, assim, a sentença recorrida a julgar totalmente improcedente a acção e o Acórdão a confirmar.

XV. Crê, pois, o Recorrido que V.as Ex.as manterão, na íntegra, a decisão recorrida, julgando a revista totalmente improcedente.”


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8) Colhidos os Vistos dos Senhores Juízes Conselheiros adjuntos, cumpre conhecer da revista.

Tendo em conta o teor das conclusões das alegações deste recurso de revista admitido a título excepcional e a definição do seu objecto pela Formação de Juízes Conselheiros a que alude o artigo 672.º n.º 3 do Código de Processo Civil, identificam-se as seguintes questões que importa decidir:

1. A extinção da relação cartular na sequência da entrega da livrança avalizada aos avalistas por parte do credor portador e suas consequências;

2. A cessação dos efeitos da comunicação efectuada pela segunda ré à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal;

3. A compensação dos autores por danos não patrimoniais sofridos em decorrência da actuação dos réus.


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FUNDAMENTAÇÃO

Parte I – Os Factos

São estes os factos que dos autos emergem como provados, tal como foi consignado no acórdão recorrido, tendo já em consideração a alteração aí operada quanto à decisão da matéria de facto:

1) Em 1 de agosto de 2006, o primeiro Réu celebrou com CC, solteira, maior, um Contrato de Abertura de Crédito por Conta Corrente, com o limite de € 80 000 e destinado pela mutuária a apoio de tesouraria.

2) Nesse contrato, os autores intervieram como garantes, por meio de caução, nos termos definidos na cláusula 8ª desse contrato.

3) Consta do referido contrato – cláusula 8ª – o seguinte:

“Para caução do integral pagamento de todas as responsabilidades emergentes da presente abertura de crédito, designadamente reembolso de capital, pagamento de juros e outros encargos a liquidar nos termos deste contrato, BENEFICIÁRIO e GARANTES, respetivamente, subscreve e avalizam uma livrança em branco, a qual desde já autorizam o seu preenchimento pelo BANCO pelo valor que estiver em dívida e a sua imediata apresentação a pagamento, se na data de vencimento de qualquer das prestações convencionadas as mesmas não foram integralmente pagas.”

4) CC veio a falecer em ..., no dia ... de janeiro de 2008.

5) Na sequência do falecimento da mutuária, o empréstimo não foi pago e na relação de bens foi relacionado tal empréstimo, como dívida passiva da respetiva herança, na parte que faltava pagar, cerca de € 70 000, como dívida da herança.

6) Conforme missiva junta pelos autores, com a petição inicial, como documento n.º 4, o Banco denunciou o referido contrato de empréstimo.

7) Tendo sido citado para os termos do processo de inventário, como titular de uma dívida passiva da herança, em determinada altura, o Banco Santander (1ª Ré) resolveu pagar-se dessa quantia com as quantias que a mesma senhora tinha aplicadas nesse Banco.

8) A mutuária dispunha, junto do Banco, de vários depósitos e aplicações financeiras, os quais eram compostos de valores adequados e suficientes à integral liquidação do valor em dívida (cf. relação de bens junta como “documento n.º 3”), motivo pelo qual, em 13 de maio de 2010, o Banco remeteu carta de interpelação a todos os 23 herdeiros (carta junta como “documento n.º 6”) para que procedessem ao pagamento do valor em dívida e para, bem assim, autorizarem que fossem utilizadas, para esse efeito, os referidos fundos.

9) Com base no clausulado (concretamente na cláusula 7ª), em 2 de novembro de 2011, o Banco liquidou o valor em dívida (verba n.º 2 do passivo) com a aplicação Fundo de Investimento SantiMultiPremium (verba n.º 9 do activo Títulos de Crédito) e com o depósito à ordem n.º ...20 (verba n.º 17 do activo Títulos de Crédito).

10) Após a referida liquidação o Banco procedeu à entrega da livrança aos avalistas.

11) Tal entrega do título – livrança – não foi feita de forma espontânea pelo Banco, antes foi resposta a uma solicitação pelos mesmos formulada.

12) Depois deste pagamento, os herdeiros, usando da sua possibilidade de não aprovar o passivo, fizeram-no e a magistrada que presidia ao processo ordenou ao Banco que devolvesse o dinheiro que havia retirado, o que o Banco (1ª Ré) veio a fazer em outubro de 2014.

13) Interessados esses que incluíram o autor e isto numa altura em que o mesmo já tinha na sua posse a livrança caução que garantia a dívida que, entretanto, havia sido liquidada.

14) E isto também depois do Autor, que, durante algum tempo, ainda suportou os juros vencidos do empréstimo, ter vindo, a dado momento, declarar ao Banco que não mais o faria, precisamente porque o crédito do Banco estava garantido pelos depósitos e pelas aplicações existentes.

15) Após esta decisão a 1ª Ré interpôs um recurso, que não foi admitido naquele momento, e não veio a interpor recurso depois de notificada da sentença.

16) O Banco Santander cedeu em 16 de novembro de 2018, à segunda Ré, a titularidade do crédito com a referência ...97 - ...09, decorrente do incumprimento definitivo do crédito associado ao Contrato de Abertura de Crédito por Conta Corrente, celebrado em 1 de agosto de 2006, pelo montante de € 80 000, entre o Banco Santander Totta, CC (entretanto falecida) e os autores (na qualidade de avalistas).

17) Após a cessão de créditos, a Ré Hefesto iniciou a gestão do crédito, gestão que passou a ser efetuada por entidade terceira contratada para efeito – A....

18) A Ré Hefesto comunicou o saldo referente ao crédito sub judice ao Banco de Portugal.

19) Desde outubro de 2019, o autor tem o seu nome indicado no ficheiro da Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal, como tendo entrado em incumprimento em 24 de abril de 2015 e relativamente à quantia de € 70 000.

20) Essa informação que se mantém nos meses seguintes até ao passado mês de abril de 2020 resulta de informação prestada pela segunda Ré.

21) Os autores dirigiram à segunda Ré, a carta datada de 27 de maio de 2020, cuja cópia consta de fls. 32.

22) O autor, sendo médico, é sócio da sociedade Clínica ..., Lda., com sede na Rua ..., na cidade de ....

23) Exerce desde 29 de maio de 2019, o cargo de Presidente do Conselho de Gerência.

24) Por virtude da informação constante da Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal o autor viveu ansioso e preocupado.

25) O autor é considerado pessoa cumpridora das suas obrigações.


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Parte II – O Direito

1) A título preliminar, há que precisar que, não obstante os recorrentes terem suscitado outras questões, o objeto do presente recurso se encontra circunscrito ao fundamento de admissibilidade da revista excecional interposta, isto é, à apreciação da questão delimitada na decisão de admissão da revista excecional – assim como às questões que com a mesma apresentam ligação incindível – à qual foi atribuída relevância jurídica justificativa da concessão de um regime excecional de superação do obstáculo à admissão da revista adveniente da dupla conforme (cfr., neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de janeiro de 2015 (revista 2482/12.9TBSTR-A.E1.S1, disponível para consulta em www.dgsi.pt.) 3

2) A questão essencial a abordar nesta sede é a da extinção da relação cambiária na sequência da entrega da livrança avalizada aos avalistas por parte do credor portador.

Após a redução do pedido oportunamente admitida os autores ora recorrentes pretendem obter a declaração de que nada devem ao banco primeiro réu, enquanto avalistas de uma livrança em branco subscrita por CC para garantia de um contrato de abertura de crédito por conta corrente, por esta celebrada com o banco réu em 1 de agosto de 2006.

Sustentam que a relação cartular se extinguiu com a entrega da livrança pelo banco réu, alegando que nos termos do artigo 39º. da Lei Uniforme das Letras e Livranças (LULL), “o sacado que paga uma letra pode exigir que ela lhe seja entregue com a respectiva quitação” e que “a entrega da livrança equivale à desoneração da garantia da obrigação que com a mesma se pretende acautelar o pagamento da obrigação principal, sendo que a obrigação principal subsiste, apesar da extinção da garantia da mesma, porque o que se extingue é a obrigação cartular.”

3) Recapitulando os factos mais relevantes, importa ponderar que vem provado que:

- em 1 de agosto de 2006 o banco primeiro réu celebrou com CC, tia do autor, um contrato de abertura de crédito por conta corrente, com o limite de € 80.000,00, destinado pela mutuária a apoio de tesouraria;

- os autores intervieram nesse acordo, constando da cláusula 8.ª do mesmo o seguinte: “Para caução do integral pagamento de todas as responsabilidades emergentes da presente abertura de crédito, designadamente reembolso de capital, pagamento de juros e outros encargos a liquidar nos termos deste contrato, BENEFICIÁRIO e GARANTES, respetivamente, subscreve e avalizam uma livrança em branco, a qual desde já autorizam o seu preenchimento pelo BANCO pelo valor que estiver em dívida e a sua imediata apresentação a pagamento, se na data de vencimento de qualquer das prestações convencionadas as mesmas não foram integralmente pagas”;

- CC veio a falecer no dia ... de janeiro de 2008, tendo o empréstimo continuado a ser pago até outubro de 2009, altura em que o autor comunicou ao banco primeiro réu que, havendo sido citado para reclamar o crédito no processo de inventário por óbito da sua referida tia - relacionado como verba n.º 2 do passivo - e assegurados que estavam os direitos do banco pelas diferentes aplicações que nele existiam em nome da sua falecida tia, deixava de pagar as subsequentes prestações (capital e juros), devendo o banco reclamar todos os seus eventuais créditos naquele inventário;

- por carta datada de 4 de agosto de 2010 o banco primeiro réu interpelou os autores para pagamento da quantia ainda em dívida decorrente do mencionado convénio;

- em 2 de novembro de 2011, como titular de uma dívida da herança, o banco primeiro réu resolveu pagar-se utilizando as quantias que CC tinha aplicadas no banco;

- na sequência da troca de comunicações de julho de 2012 entre o autor e o banco primeiro réu, foi entregue / “devolvida” ao primeiro, a solicitação deste, «a Livrança (original) que serviu de caução»;

- no processo de inventário, na conferência de interessados que teve lugar em 2 de junho de 2014, os interessados presentes (entre os quais, o autor) não aprovaram o passivo inerente ao contrato celebrado com a inventariada e o banco primeiro réu;

- por despacho judicial de 20 de junho de 2014 – transitado em julgado – foi ordenado ao banco primeiro réu que procedesse “à reposição das verbas n.ºs 9 e 17, do ativo, porquanto o seu crédito (descrito na verba n.º 2) não foi aprovado, sendo tido como litigioso”;

- a reposição ordenada viria a ocorrer em outubro de 2014.

- o banco primeiro réu cedeu, em 16 de novembro de 2018 à segunda ré, a titularidade do crédito decorrente do incumprimento definitivo do sobredito contrato de abertura de crédito;

- desde outubro de 2019 e até data não anterior a abril de 2020, o autor teve o seu nome inscrito no ficheiro da Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal, como tendo entrado em incumprimento, em 24 de abril de 2015, relativamente à quantia de € 70.000,00.

4) Quanto aos efeitos da entrega da livrança aos avalistas, na pressuposição do cumprimento das obrigações emergentes da relação causal que ela se destinava a garantir, a sentença proferida em primeira instância, considerou, ainda que de forma não inteiramente explícita, ter existido uma cessação temporária e repristinação dessa relação causal, na sequência da devolução pelo banco primeiro réu à herança do valor correspondente ao passivo não aprovado e do consequente ressurgimento, na esfera jurídica deste, do direito de crédito subjacente à sua subscrição.

O Tribunal da Relação aderiu a este entendimento, desenvolvendo a seguinte linha de argumentação: “Repristinada a situação anterior ao imbróglio da liquidação/pagamento que não se quis sancionar (fazendo ressurgir a dívida na esfera jurídica da 1ª Ré e relegando a sua discussão para os meios comuns), o que constituiu verdadeira anulação deste procedimento, parece-nos que se imporia a total repristinação das coisas ao seu estado anterior, cabendo, pois, aos AA. devolver/restituir a livrança à entidade credora! Daí, como na 1ª instância, poder-se-á concluir que a 1ª Ré passou, novamente, a ser titular de um direito de crédito emergente do contrato firmado, crédito esse garantido, precisamente, pela livrança avalizada pelos autores. Assim se responde aos interesses em presença, numa leitura dos factos simples e clara, e atendendo a elementares princípios do direito civil (aplicando, por analogia, v. g., o disposto no art.º 289º, n.º 1 do Código Civil).”

Cremos que a conclusão a que as instâncias chegaram, justificada embora pela tutela da boa fé do credor, não teve na devida conta a específica natureza da relação cambiária em discussão e a sua articulação com a relação subjacente constituída.

Vejamos.

5) No contexto do enquadramento da solução que se adoptará, tem-se por justificada uma referência breve à natureza do aval e às suas específicas características enquanto título de crédito.

De acordo com o disposto no artigo 30.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças 4, “o pagamento de uma letra pode ser no todo ou em parte garantido por aval. Esta garantia é dada por um terceiro ou mesmo por um signatário da letra”.

Por sua vez o artigo 32.º do mesmo diploma estabelece que “o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada. A sua obrigação mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma. Se o dador de aval paga a letra, fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra.”

O aval é o negócio jurídico de natureza cambiária através do qual uma pessoa (avalista ou dador do aval) garante o pagamento de uma livrança por parte de um dos subscritores (avalizado), integrando uma relação de garantia.

Na formulação constante do Acórdão para Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2013, publicado no DR I Série de 21 de janeiro de 2013, o aval é definido como “o negócio cambiário típico, por força do qual se oferece aos tomadores do título cambiário a garantia de uma pessoa, o avalista, formalmente dependente da de outro obrigado no título, o avalizado, mas configurada num plano substancial com carácter autónomo.”

Diferentemente do que sucede nos restantes negócios cambiários, em que a operação económica subjacente congrega, tipicamente, dois sujeitos, a prestação de aval enquadra-se numa relação triangular, “reclamando como vértices o garante, o garantido e o credor — que, no nosso caso, são respectivamente, o avalista, o avalizado e o credor cambiário (isto é, o credor cambiário que está em relações imediatas com o avalizado, ainda que o aval enquanto garantia tenha a particularidade de poder vir a beneficiar qualquer outro credor futuro).” 5

6) No caso dos autos, os autores prestaram um aval destinado a garantir o pagamento de uma livrança subscrita por CC que celebrou com o banco primeiro réu um mútuo comercial bancário, na modalidade de abertura de crédito em conta corrente, convénio esse “por via do qual a instituição de crédito se vincula a colocar à disposição do seu cliente determinada quantia em dinheiro e este se obriga a restituir-lha, em montante idêntico, com juros remuneratórios, podendo o último operar, por aquela forma, uma pluralidade de levantamentos de depósitos de parcelas do crédito” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de dezembro de 2007 - Processo n.º 07B4135 disponível em www.dgs.pt ).

Foi subscrita uma livrança-caução, uma modalidade de título cambiário legalmente reconhecida (artigos 10.º e 77.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças) que se reconduz “à ideia genérica de garantia de responsabilidades futuras e ilíquidas, supondo, normalmente, uma relação fundamental que comporta um direito de crédito ainda não inteiramente definido, porque falta determinar o respectivo montante, ou data de vencimento, e aparece como expediente para fazer face ao espectro do incumprimento de prestações pecuniárias.” – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de abril de 2013 na revista 1752/07.2TBCBR-B.C1.S1.

O recurso à “livrança-caução ou livrança-garantia” é usual na prática negocial, ocorrendo quando “uma sociedade e um banco acordam que, para garantir créditos deste perante aquela, emergentes de contratos de financiamento, a sociedade emita uma livrança em branco, destinada a ser preenchida no futuro, se e quando ocorrer o não cumprimento por parte da sociedade das suas obrigações contratuais e pelos montantes devidos por força do contrato de financiamento.

(…) Embora estruturalmente não estejamos perante uma caução ou uma garantia, a sua existência reforça a posição do banco como credor, sobretudo, se, como é comum, à sociedade como “subscritor em branco”, se juntarem sócios e (ou) gerentes ou administradores seus como “avalistas em branco” – a função prática desempenhada por um título assim emitido é a de caucionar ou garantir, adicionalmente ao património da sociedade, as dívidas desta6.

7) A livrança em branco corresponde, assim, ao “documento que, não contendo todas as menções obrigatórias essenciais referidas no artigo 1.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, possua já a assinatura de, pelo menos, um dos obrigados cambiários, acompanhado de um acordo expresso ou tácito de preenchimento futuro das menções em falta.” 7

A subscrição e a entrega de uma livrança em branco, em rigor, não traduz a constituição de uma vinculação cambiária, consubstanciando antes o seu embrião, no contexto de uma fattispecie complexa 8.

Com efeito, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e a doutrina 9 têm acentuado que o que existe para o emitente antes do preenchimento do título não é a obrigação cambiária, mas, tão-só, a relação de sujeição ao exercício do direito (potestativo) do portador de preencher a livrança, sendo o preenchimento desta que marca o nascimento da obrigação cambiária, de acordo com o princípio da literalidade e o sentido expresso pelo artigo 1.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças.

8) Antes do preenchimento do título, “o próprio aval não existe sequer enquanto negócio jurídico: o que temos é a vinculação jurídica constante do acordo de preenchimento, mais a vinculação cambiária em estado embrionário (através da assinatura aposta no título) e o poder fáctico de o portador do título o vir a preencher.” 10

Estamos perante “um contrato de garantia pessoal atípica que "engloba, complexivamente, o acordo ou autorização de preenchimento e o documento em branco assinado pelo avalista.” 11

9) No presente caso, na sequência do falecimento da mutuária, o banco primeiro réu veio a liquidar o valor em dívida, no montante de € 70.000,00, utilizando, para o efeito, as quantias inerentes à aplicação de um fundo de investimento e de um depósito à ordem que a “de cujus” dispunha na instituição bancária.

Nesse momento, e sob o prisma da relação causal, verificou-se a extinção da obrigação garantida através do cumprimento do mútuo bancário, mediante restituição do capital (cfr. Artigos 762.º/1 e 1142.º do Código Civil e 362.º a 363.º e 394.º a 396.º do Código Comercial).

A livrança foi, pois, devolvida num momento em que a obrigação causal se havia extinguido pelo cumprimento, sem que tivesse sido preenchida, pelo que, de acordo com o enquadramento expresso, não se poderá considerar que o negócio cambiário de aval se tenha chegado a perfectibilizar-se.

Sendo assim não pode, em coerência, falar-se de uma “repristinação” da relação cartular que não se chegou a constituir.

10) Mas, ainda que tal não fosse exato, a responsabilização dos autores perante as rés, a título de avalistas, encontrar-se-ia sempre inviabilizada na situação de facto apurada.

Senão vejamos.

Após a entrega aos autores da livrança por eles avalizada, no âmbito do processo de inventário o passivo respeitante à dívida subjacente ao mencionado contrato de abertura de crédito por conta corrente não foi aprovado pelos interessados presentes, o que determinou a decisão judicial de devolução à herança, pelo banco primeiro réu, do valor com que se havia pago anteriormente, sem embargo do exercício do seu alegado direito de crédito noutra sede.

Isto é, em decorrência de factos supervenientes ocorridos em sede de processo de inventário o banco primeiro réu enquanto credor deixou de ver reconhecido o crédito emergente da relação causal, sem poder, por já não ser portador da livrança, sustentar a manutenção da relação cambiária perante os avalistas, respectivos garantes.

11) Porque se suscita a questão da (in)oponibilidade das vicissitudes da relação subjacente sobre a obrigação cambiária justifica-se uma abordagem, ainda que breve, acerca da típica característica da abstração dos títulos cambiários, que nuclearmente se prende com a “invulnerabilidade direta e total às vicissitudes da causa12.

A abstração da obrigação cambiária é uma técnica jurídica que “opera uma cisão entre os efeitos jurídicos e a respectiva causa: os efeitos jurídicos produzem-se com abstracção da sua causa, e, portanto, com abstracção das vicissitudes que possam afectar essa causa.” 13

Existe a este respeito uma consabida dualidade na posição defensiva do devedor cambiário: se as exceções causais fazem parte da categoria das “exceções fundadas sobre relações pessoais”, sendo inoponíveis a um terceiro portador da letra, nos termos da regra fundamental consagrada pelo artigo 17.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, tais exceções causais não deverão deixar de relevar interpartes”, “isto é, sempre que o credor e o devedor cambiário que em concreto se defrontam sejam, simultaneamente, partes na mesma convenção executiva.” 14

Como salienta Carolina Cunha, “admite-se, portanto, uma incontornável dualidade na posição defensiva do devedor cambiário, consoante se encontre ou não ligado por "relações pessoais" ao credor cambiário que concretamente o demanda. Dualidade que é vertida no plano terminológico com recurso à conhecida dicotomia "relações imediata" vs. "relações mediatas" – terminologia que acolhemos fazendo coincidir a ideia de "imediatismo" não com a contiguidade na sequência cambiária, mas com a participação numa mesma convenção executiva.” 15

12) No seio da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, é reiterada a afirmação de que a nota da abstração, segundo a qual obrigação cambiária é independente da “causa debendi”, apenas opera quando o título deixa de estar nas relações imediatas, e não no âmbito destas. Assim, entre outros, os acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 10 de julho de 2008 proferido no processo 08B2107, de 13 de abril de 2011 no processo 2093/04.2TBSTB-A.L1.S1 ou de 14 de setembro de 2021, todos consultáveis em www.dgsi.pt).

No caso presente, no momento em que se verificou o cumprimento da obrigação causal e a livrança avalizada foi entregue aos autores, o título encontrava-se no âmbito das relações imediatas, na medida em que os avalistas e portador da livrança outorgaram o negócio subjacente e respetivo pacto de preenchimento em que o mesmo de desdobrou (ponto 3 dos factos provados).

13) Para mais completa análise do grau de (in)vulnerabilidade da relação cambiária assumida pelos autores importa ainda ter presente o princípio da incorporação, “segundo o qual são uma identidade a obrigação e o título que a exprime” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de junho de 2009 na revista 344/05.5TBBGC-A.S1, acessível em www.dgsi.pt) uma vez que a relação jurídica cambiária (ou o direito cambiário, a promessa cambiária, a obrigação cambiária) se encontra “incorporada” no documento 16, detendo este uma relevante função probatória porquanto “aquele concreto documento permanece fundamental para o exercício e transmissão do direito cartular nele representado.” 17

14) No caso, a entrega da livrança aos avalistas depois de o banco réu ter obtido a satisfação do seu crédito através de quantias integrantes da herança da mutuária encontra-se justificada à luz de uma interpretação adaptada dos artigos 39.º-I e 50.º-I da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças.

Com a entrega da livrança aos autores o banco primeiro réu deixou de ser o seu portador, perdendo, ipso facto, a sua legitimidade ativa para o exercício do direito cartular, no domínio das relações imediatas, junto dos autores avalistas.

E, independentemente das concretas vicissitudes posteriores relativas à satisfação da obrigação causal, por não ser portador da livrança, o banco primeiro réu deixou de poder endossar validamente a livrança à segunda ré, cessionária do crédito adveniente da relação subjacente.

15) O aval é uma garantia dada pelo avalista ao cumprimento da obrigação cambiária.

Ainda que, no caso concreto, se tivesse chegado a constituir entre os autores e o banco primeiro réu uma relação cartular inerente ao negócio cambiário de aval – o que não sucedeu – não se alcança com que fundamento se poderia sustentar – ademais no domínio das relações mediatas entre os autores e a segunda ré cessionária – a manutenção dessa relação (cartular), no contexto da cessão do crédito emergente da obrigação causal subjacente.

16) Deve aliás frisar-se que, com a redução do pedido efetuada passou a estar unicamente em causa nesta acção a responsabilidade cambiária dos autores enquanto avalistas da livrança em branco dada como caução. Daí que seja irrelevante, tendo em conta o alcance do pedido e o objeto do recurso, que a livrança possa servir de quirógrafo contra os avalistas, uma vez que, por definição, um quirógrafo é um documento particular privado de força cambiária.

Destarte, o pedido dos autores no sentido de que se declare que os mesmos nada devem ao banco primeiro réu, enquanto avalistas de uma livrança em branco subscrita por CC, para garantia de um contrato de abertura de crédito por conta corrente, por ela celebrada em 1 de agosto de 2006, não poderá deixar de proceder.


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17) O banco primeiro réu suscita nas suas contralegações a questão do abuso de direito em que os autores estariam a incorrer ao invocar a extinção da obrigação cartular, por serem os próprios autores a dar azo a tal extinção.

Sempre se dirá, no entanto, que a entrega da livrança avalizada aos autores avalistas em 2012, a qual impossibilitou o seu preenchimento na sequência das vicissitudes ocorridas em sede do processo de inventário aberto por morte da mutuária em 2014, não teve na sua génese qualquer ato violador de normas jurídicas por parte dos autores, mas um ato voluntário do banco que não pode deixar de ser interpretado, no momento em que foi praticado, como uma declaração tácita (artigo 217.º, n.º 1 do Código Civil) de desoneração dos recorrentes das suas obrigações de avalistas.

Os autores lograram obter a entrega da livrança avalizada num momento em que a obrigação causal havia sido objeto de cumprimento e sem que houvesse qualquer indício de que tal situação iria ser revertida no processo de inventário, sendo justificada a confiança no banco primeiro réu de que tal livrança não seria necessária à tutela dos seus interesses patrimoniais.

A aceitação da livrança em que estava dado o aval pelos autores não pode ser interpretada como acto destes tendente a criar no banco primeiro réu a convicção de que o passivo inerente ao contrato de abertura de crédito iria ser aprovado no processo de inventário.

O que o desenrolar dos acontecimentos veio a demonstrar é que a entrega da livrança aos autores antes da conclusão do processo de inventário da mutuante CC, sendo plenamente justificada no momento em que teve lugar, veio a redundar em perda da garantia de que o credor dispunha, mas em consequência da posição dos herdeiros de não aprovação do crédito e da subsequente decisão judicial.

Numa outra abordagem, o ato de não aprovação pelos herdeiros do passivo garantido pela livrança avalizada (em que, de resto, apenas interveio o autor e não de modo exclusivo) após a devolução da livrança aos autores na sequência do cumprimento da obrigação extracartular, não constitui acto atentatório da boa-fé objectiva objetiva 18 que possa ser enquadrável na previsão do artigo 334.º do Código Civil.

E muito menos, para o que ora mais releva, que a comprovada conduta dos autores, ainda que possa ser tida por contraditória, possa ter por efeito a ilicitude do exercício do direito que pretendem ver reconhecido nesta acção e o ressurgimento da sua vinculação jurídica nos termos constantes do acordo de preenchimento, acrescida da vinculação cambiária em estado embrionário.


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18) Remanescem para apreciação dois pedidos formulados pelos autores, que apresentam ligação incindível com o pedido já apreciado: o de condenação da segunda ré a retirar a comunicação que fez à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal e o de condenação dos réus a pagar solidariamente aos autores uma indemnização por danos não patrimoniais em consequência de tal comunicação.

19) No que concerne ao primeiro a segunda ré informou em 19 de fevereiro de 2021 (cfr. requerimento referência "Citius" n.º ...35) que tinha cessado a comunicação do saldo referente aos autores à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal, bem como que procedeu à eliminação do respectivo histórico de comunicações.

A referida cessação da comunicação que os autores reclamavam na petição inicial significa que os autores lograram obter, na pendência da acção por iniciativa extrajudicial da segunda ré, a satisfação da sua pretensão fora do esquema da providência pretendida.

Em causa não está, ao contrário do que defendem os autores recorrentes, uma declaração que, atendendo aos termos em que foi formulada, se reconduza a uma confissão do pedido (muito menos quanto aos danos alegados) a que alude o artigo 283.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, integrante de um negócio jurídico de direito substantivo que coloque “termo a uma situação litigiosa, no exercício de um poder de disposição sobre direitos e obrigações das quais as partes são sujeitos” (assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de março de 2021 proferido na revista 574/18.0T8PTS.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt), mas uma declaração conducente à extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, que faz com que a apreciação do pedido vertente careça de utilidade.

A extinção da instância por inutilidade superveniente será assim declarada no dispositivo do presente acórdão.


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20) E que dizer quanto ao pedido de condenação solidária dos réus no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais alegadamente sofridos pelos autores com a comunicação à Central de Responsabilidade de Crédito do Banco de Portugal?

É sabido que, dos danos não patrimoniais eventualmente sofridos pelos lesados com uma conduta ilícita alheia só são ressarcíveis aqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. É o que dispõe o artigo 496.º n.º 1 do Código Civil.

Na linha do que tem sido reiteradamente afirmado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, a apreciação da gravidade de um dano não patrimonial deve operar-se segundo um critério objetivo, tomando-se em consideração as circunstâncias do caso concreto.

Ora, no caso, e independentemente de se entender, como em situação algo semelhante foi referido pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de janeiro de 2023 proferido na revista 1855/19.0T8LSB.L1.S1 acessível em www.dgsi.pt, que a comunicação à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal do incumprimento de uma dívida anteriormente declarada inexistente constitui facto ilícito suscetível de fazer incorrer os responsáveis em responsabilidade civil pela reparação dos prejuízos decorrentes de tal ato, no presente caso, e no que respeita ao preenchimento do pressuposto da responsabilidade civil relativo ao dano, os autores não demonstraram, como lhes competia nos termos do artigo 342.º n.º 1 do Código Civil os respectivos factos integradores.

Na realidade quanto à autora, nenhum prejuízo foi demonstrado.

E no que se refere ao autor resultou apenas provado que, sendo médico e exercendo o cargo de Presidente do Conselho de Gerência da sociedade exploradora de uma clínica, por virtude da informação constante da Central da Responsabilidades de Crédito, viveu ansioso e preocupado.

Nada mais foi apurado susceptível de consubstanciar o alegado dano, nomeadamente, do circunstancialismo e duração desse estado de ansiedade e preocupação ou do conhecimento generalizado da comunicação operada, suscetível de comprometer, de forma séria, o seu crédito e bom nome, enquanto pessoa cumpridora das suas obrigações.

Da matéria de facto demonstrada a este respeito resulta claramente inviabilizada a qualificação do estado de ansiedade e preocupação do autor, aferidos objetivamente, como danos não patrimoniais “graves” e, por isso merecedores da tutela do direito.

O pedido de indemnização por danos não patrimoniais alegadamente sofridos pelos autores carece de fundamento.


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21) De acordo com as regras gerais em matéria de custas processuais os autores e as rés são responsáveis pelo pagamento das custas a que deram causa, fixando-se a proporção do respectivo decaimento em metade (50/100) para os autores, em 40/100 para o Banco Santander Totta, S.A e em 10/100 para a Hefesto – Sociedade de Titularização de Créditos, S.A (artigo 527.º n.º 1 e 2 e artigo 536.º n.º 1 e 3 do Código de Processo Civil).

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DECISÃO

Termos em que, julgando parcialmente procedente a revista interposta pelos autores AA e BB:

1 – Declaram que os autores nada devem ao Banco Santander Totta, S. A., a título de avalistas de uma livrança em branco subscrita por CC para garantia de um contrato de abertura de crédito por conta corrente, por ela celebrada com tal entidade em 1 de agosto de 2006, pelo que este não podia transmitir à Hefesto – Sociedade de Titularização de Créditos, S.A., qualquer crédito sobre os autores, relativamente ao referido contrato de mútuo;

2 – Julgam extinta a instância por inutilidade superveniente da lide (artigo 277.º alínea e) do Código de Processo Civil) no que se refere ao pedido formulado contra a Hefesto – Sociedade de Titularização de Créditos, S.A., de retirar a comunicação que fez à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal.;

3 – Mantêm, ainda que com diferente fundamento, a absolvição do Banco Santander Totta, S.A. e Hefesto – Sociedade de Titularização de Créditos, S.A. do pedido de condenação no pagamento de indemnização por danos de natureza não patrimonial sofridos pelos autores.

4 – Condenam os autores e as rés no pagamento das custas na proporção do respectivo decaimento, fixado no ponto 21 da fundamentação de direito do acórdão.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 27 de fevereiro de 2024

Manuel José Aguiar Pereira (relator)

António José de Moura Magalhães

António Pedro de Lima Gonçalves

_____________________________________________

1. A alteração consistiu na especificação das funções exercidas pelo autor na Clínica ..., Lda. (ponto 23), no desenvolvimento das consequências sofridas pelo autor com a com a comunicação da dívida à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal (ponto24) e no aditamento do facto de o autor ser considerado pessoa cumpridora das suas obrigações (ponto 25).↩︎

2. Não se transcrevem as conclusões relativas à admissibilidade do recurso de revista.↩︎

3. Entre essas questões encontram-se a da prescrição da obrigação cambiária suscitada pelos autores em especial nas conclusões P a DD e a da avaliação da conduta do banco primeiro réu.↩︎

4. Aplicável ex vi do artigo 77.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças↩︎

5. Carolina Cunha, Manual de Letras e Livranças, Coimbra, Almedina, 2016, p. 119.↩︎

6. Filipe Cassiano dos Santos, “Aval, Livranças em Branco e Denúncia ou Resolução de Vinculação – Anotação ao Acórdão de Uniformização do STJ de 11-12-2012”, Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 3980, maio-junho de 2013, p. 315.↩︎

7. José Engrácia Antunes, Os títulos de crédito – Uma introdução, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p.65.↩︎

8. Carolina Cunha, Aval e Insolvência, 2018, reimpressão, Coimbra, Almedina, p. 21.↩︎

9. Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado, Títulos de Crédito, Coimbra, Almedina, p. 145; José Engrácia Antunes, Os títulos de crédito – Uma introdução, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p.68.↩︎

10. Carolina Cunha, Aval e Insolvência, 2018, reimpressão, Coimbra, Almedina, p. 22.↩︎

11. Januário Da Costa Gomes, “O (in)sustentável peso do aval em livrança em branco prestado por sócio de sociedade para garantia de crédito bancário revolving – Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2013, de 11.12.2012, Proc. 5903/09", Cadernos de Direito Privado, n.º 43, Julho/Setembro, p. 43.↩︎

12. Carolina Cunha, Manual de Letras e Livranças, Coimbra, Almedina, 2016, p. 62.↩︎

13. Carolina Cunha, Manual de Letras e Livranças, Coimbra, Almedina, 2016, p. 61.↩︎

14. Carolina Cunha, Manual de Letras e Livranças, Coimbra, Almedina, 2016, p. 63.↩︎

15. Carolina Cunha, Manual de Letras e Livranças, Coimbra, Almedina, 2016, p. 63.↩︎

16. Carolina Cunha, Manual de Letras e Livranças, Coimbra, Almedina, 2016, p. 85.↩︎

17. Carolina Cunha, Manual de Letras e Livranças, Coimbra, Almedina, 2016, p. 87.↩︎

18. Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português -Parte Geral, tomo IV, 2007, Coimbra, Almedina, 2005, p. 290.↩︎