Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1213/21.7T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: SOUSA LAMEIRA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE VIDA
DECLARAÇÃO INEXATA
ANULABILIDADE
SEGURADORA
ERRO
PRESSUPOSTOS
ÓNUS DA PROVA
NEXO DE CAUSALIDADE
QUESTIONÁRIO
Data do Acordão: 03/14/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I. A seguradora goza do direito de anulação do contrato, nos termos do art. 429º do Código Comercial se o segurado no preenchimento do questionário clínico que lhe foi apresentado prestar declarações inexactas omitindo patologias que não podia desconhecer por serem pessoais, não podendo razoavelmente desconhecer que, pela sua gravidade e relevância, era importante para a aferição do risco pela seguradora.

II. O art. 429º do Cód. Comercial não impõe o requisito da existência de nexo de causalidade entre os factos omitidos e o sinistro para que se verifique a anulabilidade do contrato.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – RELATÓRIO

l. AA e BB intentaram a presente ação declarativa, sob a forma comum, contra Mapfre – Seguros de Vida, SA, alegando resumidamente que:

Em 29 de dezembro de 1999, celebraram três contratos de mútuo com o Banco de Investimento Imobiliário, SA, entretanto incorporado, por fusão, no BCP, por via dos quais ficaram obrigados a restituir-lhe o montante global de € 166 786,42.

Em 25 de outubro de 2006, celebraram com a Ré um contrato de seguro, titulado pela apólice n.º ....54, que garantia a restituição do capital em dívida ao BCP na referida data, no montante de € 115 000,00, em caso de morte ou invalidez profissional permanente de qualquer um dos Autores. Esse seguro garantia também o pagamento do remanescente do capital seguro aos Autores, no caso de invalidez profissional permanente de um deles, ou aos respetivos herdeiros legais, no caso de morte.

A proposta de seguro e o questionário clínico que a acompanhava foram preenchidos por um comercial da Ré, ao qual disseram que o Autor AA, por sofrer de ansiedade, com períodos de depressão, estava medicado com Xanax 0,5 mg e Triticum 100 mg.

No início do ano de 2015, o Autor AA começou a evidenciar deterioração cognitiva e funcional, com repercussões importantes a nível profissional, quadro que se foi progressivamente agravando, até lhe ter sido diagnosticado síndrome demencial (doença de Alzheimer). Por essa razão, em 2 de maio de 2018, foi submetido a uma junta médica que lhe conferiu uma incapacidade permanente global de 80%.

Comunicada essa situação à Ré, designadamente através de carta de 25 de setembro de 2018, esta recusou o cumprimento das obrigações que para si decorrem do contrato de seguro e continuou a cobrar os respetivos prémios aos Autores. Estes, por sua vez continuaram também a pagar as prestações devidas ao BCP para garantia dos capitais mutuados.

Concluem pedindo a condenação da Ré:

- No pagamento ao Banco Comercial Português (BCP), SA, do capital em dívida nos três contratos de mútuo que com ele celebraram, à data da verificação da invalidez profissional do Autor AA, no montante global de € 36 403,18;

- No pagamento aos Autores do remanescente do capital do contrato de seguro de vida celebrado com a Ré, no montante de € 78 596,82;

- No reembolso aos Autores das quantias pagas a título de prémio do contrato de seguro celebrado com a Ré, desde 2 de maio de 2018, que à data da petição inicial atingiam a quantia de “cerca de € 9 000,00” (sic.);

- No pagamento aos Autores do montante correspondente ao reembolso das prestações mensais dos contratos de mútuo celebrados com o BCP, pagas desde 2 de maio de 20181, que à data da petição inicial atingiam o montante de “cerca de € 17 000,00.

2. Citada, a Ré contestou, pugnando pela procedência da exceção peremptória da anulabilidade do contrato, julgando-se a acção improcedente.

Alegou, em síntese, que os Autores ocultaram, aquando do preenchimento da proposta de seguro e do questionário clínico, que o Autor AA sofria de clínica relacionada com a doença que originou a sua invalidez. Com efeito, o Autor era acompanhado em psiquiatria, por sintomatologia ango-depressiva, insónia e queixas de memória, havia mais de 20 anos e, não obstante, respondeu negativamente ao ponto em que era perguntado se lhe tinha sido diagnosticada alguma doença nos dez anos anteriores, pelo que o seguro é anulável.

Acresce que os prémios de seguro foram cobrados pelo BCP e não pela Ré, por estarem associados ao montante da prestação do crédito à habitação.

3. Os Autores responderam, dizendo que deram conhecimento ao comercial da Ré do estado de saúde do Autor AA, designadamente da medicação que lhe estava prescrita. Assim, a omissão desse facto apenas pode ser imputada àquele comercial. Acrescentaram que nunca lhes foi entregue cópia do questionário, nem das condições gerais, especiais e particulares do contrato.

4. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, onde se afirmou a validade e regularidade da instância; foi fixado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova, bem como foram admitidos os meios de prova.

Procedeu-se à realização de audiência de discussão e julgamento.

Posteriormente, foi proferida sentença, nos termos da qual, “no reconhecimento da anulabilidade do contrato de seguro celebrado nos termos referidos em D) da factualidade assente”, decidiu julgar totalmente improcedente a ação e, em consequência, absolveu a ré do pedido contra si deduzido pela autora.

5. Inconformados com o decidido, os Autores interpuseram recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães, por Acórdão de 04 de Outubro de 2023 decidido:

«em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando a sentença recorrida».

6. Inconformados vieram os Autores interpor recurso de revista formulando as seguintes conclusões:

1) Os Autores/Recorrentes, não concordam com a procedência da exceção perentória invocada pela Ré e, em consequência, não deveria te sido decretada a anulabilidade do contrato de seguro do Ramo Vida celebrado entre a Ré, Mapfre – Seguros de Vida, SA, e os Autores, AA e BB, titulado pela apólice n.º VI ....54/11,

2) Os Autores/Recorrentes, não concordam com a absolvição da Ré, por entenderem que presente ação deveria ter sido julgada procedente e por consequência deveria a condenar-se a Ré, Mapfre – Seguros de Vida, SA, no pedido formulado pelos Autores, AA e BB,

3) As declarações inexatas ou omissão de quaisquer factos aquando do preenchimento da proposta de seguro do Ramo Vida celebrado entre a Ré e os Autores em 25/10/2006,

4) Não foram prestadas pelos Autores de forma intencional, dolosa ou deliberada,

5) Na medida em que as pretensas declarações inexatas ou omissões eram do pleno conhecimento do mediador da Ré CC (... dos Autores e simultaneamente agente de seguros da Ré Mapfre),

6) O mediador da Ré CC na qualidade de ... dos Autores e em simultâneo agente de seguros da Ré Mapfre, aquando do preenchimento da proposta do contrato Ramo vida celebrado entre Autores e Ré em 25/10/2006, teve/tinha conhecimento de que o Autor tomava xanax e nada fez no sentido de informar a Ré dessa circunstância, apesar de constar como mediador de seguros na proposta de seguro ramo vida Ramo Vida celebrado entre a Ré e os Autores (25/10/2006),

7) As eventuais declarações inexatas ou omissões devem ser atribuídas ao agente de seguros da Ré CC, na medida em que eram do seu conhecimento e os Autores não podia nem deviam ter conhecimento das mesmas pois que a Proposta de Seguro de Vida por eles assinada não lhes foi lida e/ou explicada Autores quanto ao seu conteúdo e alcance, nem lhes foi facultada cópia da mesma.

8) A terem existido, as mesmas omissões não influenciaram a existência ou as condições do seguro do Ramo Vida celebrado entre a Ré e os Autores em 25/10/2006.

9) Inexiste qualquer nexo de causalidade entre as pretensas declarações inexatas ou omissões e a verificação do risco/dano coberto pelo contrato de seguro Ramo Vida celebrado entre a Ré e os Autores em 25/10/2006).

10) Tendo um agente de uma companhia de seguros preenchido a proposta de seguro e o segurado se limitado a assiná-la, com desconhecimento do seu conteúdo, a eventual inexatidão das declarações nela insertas deve ser atribuída a esse agente, desde que não se demonstre que o segurado podia e devia ter conhecimento dessa inexatidão (Acórdão do STJ de 31/05/2012, Relator Oliveira Vasconcelos, processo 56/05.0TBMDB.P1.S1).

11) A declaração do segurado na proposta de seguro só será inexacta ou reticente se puder influir sobre a existência ou condições do contrato.

12) Traduzindo-se a declaração inexacta ou reticente num facto impeditivo ou extintivo da validade do contrato, incumbe à seguradora, nos termos do n.º 2 do art. 342.º do C. Civil, fazer a prova da sua influência sobre a existência ou condições do contrato.

13) O encargo que recai sobre o tomador do seguro de declarar o risco sem omissões, reticências ou inexactidões não pode deixar de envolver também a seguradora.

14) Terá de haver nexo de causalidade entre as alegadas declarações inexactas ou factos omitidos na proposta de seguro e a verificação do risco/dano coberto pelo contrato de seguro, para que haja lugar à consideração da invalidade do contrato.

15) Conforme artigos 24.º, n.ºs 1 e 2, e 26.º, n.º 4, alínea b), do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, em caso de se verificação do sinistro, a seguradora não responde pelo risco quando ocorram cumulativamente os seguintes requisitos:

1. ocorrência de uma declaração inicial do risco por parte do tomador do seguro ou do segurado com elementos desconformes à realidade ou insuficientes para a caracterização da situação segura;

2. natureza considerável, expressiva, significativa, de tais elementos desconformes ou omitidos na apreciação do risco pelo segurador;

3. descuido, distração, incúria, quanto ao preenchimento da declaração inicial do risco e no que respeita àqueles elementos desconformes ou omitidos;

4. nexo de causalidade adequada entre a desconformidade/omissão ocorrida e o sinistro verificado.

16) No que respeita àquele último requisito importa que a circunstância omitida ou insuficientemente declarada tenha uma relação causal com o sinistro.

17) Nos presentes autos não ocorreu o nexo de causalidade adequada entre a desconformidade/omissão ocorrida e o sinistro verificado.

18) Atento tudo o supra alegada nas duas anteriores questões, deverá a deve a presente ação ser julgada totalmente procedente por provada para todos os efeitos legais e, em consequência deve ser a Ré condenada:

a) no pagamento ao Banco Comercial Português S.A., do capital em dívida dos três contratos de mútuo invocados, à data da verificação da invalidez profissional do Autor marido (02/05/2018), no montante global à data de e €36.403,18, valor esse ao qual deverá ser abatido e reembolsado aos Autores o valor das prestações mensais dos contratos de mútuo celebrados com o Banco Comercial Português S.A., pagas desde 02 de Maio de 2028 e cuja total e integral quantificação se relega para posterior incidente de liquidação

b) no pagamento aos Autores do remanescente do capital do contrato de seguro de vida invocado, à data da verificação da invalidez profissional do Autor marido (02/05/2018), no montante de € 78.596,82, acrescido do pagamento/reembolso aos Autores das quantias pagas a título de prémio do contrato de seguro invocado desde 02/05/2018, que, na data da propositura da ação ascendiam ao montante de cerca de € 9.000,00 e cuja total e integral quantificação se relega para posterior incidente de liquidação, acrescido ainda do pagamento/reembolso aos Autores do montante correspondente ao reembolso das prestações mensais dos contratos de mútuo celebrados com o Banco Comercial Português S.A., pagas desde 02 de Maio de 2028, que, na data da propositura da ação, ascendiam ao montante de cerca de €17.000,00 e cuja total e integral quantificação se relega para posterior incidente de liquidação.

19) O Douto Acórdão, violou, entre outros que V.Exas mui doutamente suprirão, as seguintes disposições legais:

1. artigo 798.º do C. Civil,

2. artigos 342º, 500.º, n.º1, 998.º, n.º1 do Código Civil,

3. artigo 429.º do Código Comercial e artigo 2.º do código das sociedades comerciais, pelos quais: “A sociedade responde civilmente pelos atos ou omissões dos seus (…) agentes (…) nos mesmos termos em que os comitentes respondem pelos atos ou omissões dos seus comissários” – nº1 do artigo 998º do Código Civil, aplicável subsidiariamente às sociedades comerciais por força do disposto no artigo 2º do Código das Sociedades Comerciais”

4. art. 42º do Decreto-lei n.º 144/2006 de 31 de Julho),

5. art. 24º n.º 3 d) do Decreto-lei n.º 72/2008 de 16 de Abril,

6. Artigos 32.º e 102.º do Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril (Regime Jurídico do Contrato de Seguro).

Concluem pedindo que o presente recurso de revista excecional ou normal, ser julgado totalmente procedente por provado, devendo o acórdão recorrido proferido pelo tribunal da Relação de Guimarães, ser revogado e substituído por acórdão que condene a ré/recorrida na medida do acima assinalado, com as demais consequências legais.

7. Por despacho de 05 de Janeiro de 2024, após se ter apreciado a verificação de dupla conforme, foi decidido remeter os presentes autos à formação prevista no n.º 3 do artigo 672 do CPC.

8. Por Acórdão, de 7 de Fevereiro de 2024, da Formação deste Supremo Tribunal de Justiça, a que alude o artigo 672 n.º 3 do Código de Processo Civil, foi decidido que:

«Sendo o regime jurídico das declarações inexatas uma temática muito presente neste Supremo e que conhece respostas divergentes, tal não significa que todas as questões de direito debatidas a este propósito tenham relevância jurídica. Desde logo a primeira questão não está definida em termos suficientemente generalizados e precisos para assumir relevância jurídica, em termos de a resposta que eventualmente recebesse ser suscetível de influenciar outros casos semelhantes. Por outro lado, não constituiu ratio decidendi do acórdão recorrido.

Relativamente à segunda questão, baseia-se na interpretação do n.º 1 do artigo 24.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (DL n.º 72/2008, de 16 de abril), que ainda não estava em vigor à data da celebração do contrato de seguro subscrito em 31-01-2007, pelo que lhe falta o requisito da identidade da legislação.

9. Deve, todavia, reconhecer-se relevância jurídica à questão da interpretação do artigo 429.º do Código Comercial, que prevê os requisitos para ser inválido o contrato de seguro celebrado com declarações inexatas do segurado.

Entendeu o acórdão recorrido que, tendo sido o contrato dos autos subscrito no dia 31 de janeiro de 2007, antes da entrada em vigor do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, é aplicável o regime constante do artigo 429º do Código Comercial às questões relativas à formação do contrato, por ser a lei em vigor à data da sua conclusão do contrato.

Com efeito, esta norma tem conhecido interpretações divergentes na jurisprudência, existindo uma corrente na jurisprudência das Relações, de que fez eco também o aqui invocado como acórdão fundamento (Acórdão da Relação de Lisboa, de 14-09-2023) que exige, com base no princípio da proporcionalidade, para o contrato de seguro ser inválido o requisito do nexo causal entre a inexatidão da declaração e o facto que determinou o sinistro (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 16/11/2010, proc. n.º 5721/06.1TBBRG.G1) e outra, adotada no acórdão recorrido, segundo a qual «O mencionado art. 429º do Cód. Comercial não estabelece o requisito da existência de nexo de causalidade entre os factos omitidos e o sinistro para que se verifique a anulabilidade do contrato».

Sendo assim, importa que a atividade clarificadora do Supremo Tribunal de Justiça se debruce sobre esta questão».

E, concluiu:

«10. Em conclusão, admite-se o recurso de revista excecional quanto a esta questão de direito, ficando prejudicada a análise dos requisitos da oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC».

II – FUNDAMENTAÇÃO

Foram dados como provados os seguintes factos:

11. No dia 29 de Dezembro de 1999, ambos os Autores celebraram com o Banco de Investimento Imobiliário, S.A., por escritura pública, três contratos de mútuo garantidos por hipoteca, outorgados no 2.º cartório Notarial de ....

2. Através dos três referidos contratos de mútuo, os Autores ficaram devedores ao Banco de Investimento Imobiliário, S.A., respetivamente, das seguintes quantias: i) € 28 144,44 (à data 5 636 441$00) destinado a transferência da habitação própria e permanente com o n.º 14394993; ii) € 51 376,16 (à data 10 300 000$00) destinado a crédito hipotecário com o n.º 14395293; e iii) € 87 295,82 (à data 17 501 249$00), destinado a transferência da habitação própria e permanente com o n.º 14394803, perfazendo assim o montante global de € 166 786,42, a que acresceriam os respetivos juros remuneratórios.

3. Para garantia dos referidos três contratos de mútuo, foi constituída hipoteca a favor do Banco de Investimento Imobiliário, S.A., sobre o Prédio urbano, propriedade dos Autores, composto de casa de habitação de cave, rés do chão, andar e sótão, com quintal, sito no lugar do ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 296 e inscrito na respetiva matriz 992, tudo conforme escrituras públicas cujas cópias foram apresentadas como documentos 1, 2 e 3 com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.

4. Para garantia do capital mutuado pelo referido banco, os Autores celebraram um contrato de seguro de vida com a seguradora “Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A.”, com efeitos a partir do dia 29/12/1999, pelo prazo de um ano, renovável, cobrindo o risco de morte ou invalidez profissional permanente de qualquer um dos Autores, com o capital de € 166 786,42.

5. Em 25/10/2006, deslocou-se à residência dos Autores um comercial da Ré, em representação desta, de nome DD, que lhes propôs a celebração de um outro contrato de seguro de vida, que substituísse aquele, oferecendo-lhes melhores condições.

6. Foi devido às melhores condições contratuais apresentadas pelo referido comercial da Ré, e por não ter qualquer período de carência, que os Autores aceitaram e concordaram em mudar o seguro para a ora Ré.

7. Nessa ocasião, aquele comercial preencheu, pelo seu punho, o formulário denominado “Questionário – Proposta de Seguro de Vida”, a que foi atribuído o n.º ......04, identificando o Autor como tomador e ambos os Autores como pessoas seguras, com as seguintes profissões: Autor – Empresário de restauração; Autora - ....

8. Como beneficiário irrevogável, indicou o BCP “até ao montante do capital em dívida. O remanescente para os herdeiros legais.”

9. No questionário, escreveu “Não” nas seguintes questões: “1. Esteve de baixa alguma vez, ou interrompeu a sua atividade habitual, por um período superior a 15 dias devido a doença ou acidente?; 2. Encontra-se atualmente submetido a tratamento ou controle médico? 3. Encontra-se atualmente de baixa por doença ou acidente? 4. Nos últimos dez anos, esteve alguma vez internado num hospital, clínica ou sanatório? 5. Vai submeter-se proximamente a alguma intervenção cirúrgica? 7. Padece de alguma limitação física, como consequência de alguma doença ou acidente (surdez, coxear, mudez, perda de membros, etc.)? 8. Utiliza ou utilizou alguma vez estupefaciente (drogas)? 9. No último ano, o seu peso diminuiu 10 kg ou mais? 12. Nos últimos dez anos, foi-lhe diagnosticada alguma doença?”

10. Escreveu “Sim” nas seguintes questões: “6. Já fez alguma vez alguma análise ou exame médico especial, tal como eletrocardiograma, TAC, radiografias a algum órgão concreto, curva de glicose, provas à função renal ou hepática, teste da SIDA ou outros?; 10. Nos últimos dez anos foi visto ou tratado por algum médico?; 13. Tem algum tipo de defeito ou limitação visual, como miopia hipermetropia, presbitia, astigmatismo, etc.)?”

11. Nada escreveu na seguinte questão: “11. Consultou alguma vez um cardiologista ou oncologista?”

12. De seguida aos dizeres “Se respondeu afirmativamente a alguma questão, detalhe por favor, para cada caso, o tipo de doença, a data de início, o tipo de tratamento ou intervenção e o estado atual (…)”, escreveu: “6. Em Abril/2005 fez ecografia vesico-prostática com resultados normais conforme relatório anexo e em Outubro/2015 fez exame aos intestinos com resultados normais conforme relatório anexo. 10. Idem pergunta n.º 6. 13. Miopia (…)”, tudo cf. documento 1 apresentado com o requerimento com a ref. ......23, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.

13. O preenchimento do questionário nos termos indicados foi feito de acordo com as indicações dadas pelo Autor ao referido DD.

14. No final do preenchimento, o Autor assinou o formulário.

15. No dia 8 de janeiro de 2007, o Autor foi submetido a um exame médico, por clínico indicado pela Ré, tendo respondido a questionário.

16. As respostas do Autor foram negativas às seguintes questões: “1. Tem alguma doença atualmente? 2. Está atualmente submetido a algum tratamento? Toma algum medicamento? (…) 9. Esteve submetido a algum tratamento médico prolongado (mais de 15 dias)? (…) 42. Necessitou recorrer a um médico ou tomar algum medicamento por problemas emocionais? (Quando? Motivo?).”

17. No final, com as suas respostas assinaladas, o Autor assinou o questionário, cf. documento 2 apresentado com o requerimento com a ref. ......23, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.

18. Após análise dos referidos questionários e exame médico, a Ré aceitou a proposta de seguro, emitindo a respetiva apólice, a que atribuiu o n.º VI 110854/11, com início no dia 31 de janeiro de 2007, sendo o pagamento do prémio feito através de débito na conta bancária indicada para esse efeito pelo Autor, cf. documento 1 apresentado com o requerimento com a ref. ......47, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.

19. Nos termos da Condição Especial 2.2., “(…) a Mapfre Vida, SA, obriga-se caso a Pessoa Segura fique inválida de forma absoluta e permanente para todo o trabalho, a pagar a quantia que se especifica nas Condições Particulares, ficando a apólice automaticamente anulada. / Entende-se por invalidez absoluta e permanente para todo o trabalho, a situação física ou mental irreversível que impossibilita por completo a Pessoa Segura para a manutenção de qualquer relação laboral ou atividade profissional. / Faz-se constar expressamente que se considera invalidez absoluta e permanente a paralisia permanente de todo o corpo ou metade do corpo, a perda anatómica ou funcional dos dois membros superiores ou inferiores ou de um superior e outro inferior ou das duas mãos completas ou dos dois pés completos, a alienação mental absoluta e incurável, a cegueira incompleta e incurável e as doenças crónicas que provoquem um estado geral de fraqueza do organismo (caquexia) em consequência do qual o doente fique definitivamente condenado à imobilidade”, cf. documento 3 apresentado com o requerimento com a ref. ......23, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.

20. As condições particulares da apólice são do seguinte teor: “Pessoa segura: AA (…)

Pessoa segura: BB Beneficiários

Em caso de morte: Herdeiros legais das pessoas seguras por esta apólice; BCP, SA Irrevogáveis: BCP, SA Cláusula beneficiária:

O BCP, SA, até ao montante em dívida. O remanescente para os herdeiros legais. Garantias

Cobertura principal – Capital: € 115 000,00; Invalidez abs. Permanente – Capital: € 115 000,00 (…)

Outras cláusulas (…) CE008

Invalidez absoluta e permanente (CE 03)

Considera-se contratada a cobertura complementar de invalidez absoluta e permanente, conforme na Condição Especial 03, garantindo, em caso de invalidez absoluta e permanente de uma das Pessoas Seguras, o capital indicado nas Condições Particulares”, tudo cf. documento 1 apresentado com o requerimento com a ref. ......47, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.

21. Em 25 de outubro de 2006, o Autor trabalhava como empresário de restauração e a Autora como ....

22. O Autor sofria de ansiedade, com períodos de depressão, pelo menos desde 2003, o que era do seu conhecimento.

23. Era acompanhado por médico particular, que lhe prescreveu Xanax 0,5 mg e Triticum 100 mg.

24. Tanto em 25 de outubro de 2006 como em 8 de janeiro de 2007, o Autor mantinha esse acompanhamento e a toma regular da referida medicação.

25. Nas referidas datas, quando respondeu aos questionários sobre o seu estado de saúde, o Autor não relatou os factos que antecedem aos seus interlocutores.

26. Se a Ré tivesse tomado conhecimento desses factos, teria exigido exames complementares, ao nível da psiquiatria, para fundar a sua decisão de aceitar ou rejeitar a proposta de seguro e, caso a aceitasse, calcular o prémio a pagar pelo Autor.

27. No início do ano de 2015, o Autor começou a evidenciar deterioração cognitiva e funcional, com repercussões importantes a nível profissional, manifestando algum descontrolo comportamental com os clientes do seu restaurante.

28. Em virtude destes factos, esteve de baixa médica de janeiro 2015 até de dezembro 2017.

29. Desde então não voltou a exercer a sua atividade profissional.

30. Ficou reformado por invalidez relativa pela Segurança Social em 29/01/2018, tudo cf. documento 6 com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.

31. Atualmente, são evidentes as dificuldades causadas pela deterioração cognitiva, encontrando-se o Autor incapaz de conduzir, desorientado no tempo e espaço, não conseguindo fazer compras nem gerir o dinheiro.

32. Necessita de supervisão para algumas atividades de vida diária, nomeadamente na toma da medicação.

33. O seu estado de saúde tem vindo a agravar-se progressivamente desde 2015, com tendência ao isolamento e anedonia, intolerância ao ruído, não vê televisão, preferindo ficar sozinho e sem qualquer atividade/ocupação.

34. Encaminhado pelo Médico de Família, para o Centro Hospitalar ..., E.P.E., em ..., o Autor passou a ser seguido em consulta de Especialidade de Psiquiatra desde janeiro de 2017, tendo-lhe sido diagnosticado síndrome demencial, bem como na Especialidade de Neurologista, onde lhe foi diagnosticado síndrome demencial (D. Alzheimer).

35. O Autor, em 02/05/2018, foi submetido a uma junta medica para efeitos de Atestado Medico de Incapacidade Multiuso, a qual, de acordo com a TNI, aprovada pelo Dec. Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, atestou que o Autor é portador de forma grave, irreversível e em definitivo de uma deficiência que nessa data lhe conferiu uma incapacidade permanente global de 80% em virtude de ser considerado uma pessoa com 78% de deficiência intelectual ou perturbação do espetro do autismo, que o incapacita de forma permanente e definitiva para o exercício a sua profissão, cf. documento 5 apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.

36. Na data de 13 de Julho de 2018, por força dos três contratos de mútuo supra referidos, os Autores tinham um capital em divida para com o BCP no montante de € 36 403,18, discriminado da seguinte forma: 1. € 6 018,96 relativo ao empréstimo destinado á transferência da habitação própria e permanente com o n.º 14394993; 2. € 11 331,40 destinado ao empréstimo para crédito hipotecário com o n.º ......93; 3. € 19 266,40, ao empréstimo destinado a transferência da habitação própria e permanente com o n.º ......03.

37. Em data anterior a 18 de setembro de 2018, os Autores reclamaram da Ré o pagamento do capital seguro.

38. A Ré respondeu, por carta de 18 de setembro de 2018, a declinar a sua responsabilidade com o seguinte fundamento: “(…) após análise de toda a documentação clínica que nos foi facultada, foi possível concluir que a Pessoa Segura possuía patologia prévia à data da apólice, omitida no momento da contratação do seguro. / Face ao exposto, (…) declinamos o sinistro participado, não havendo lugar ao pagamento de qualquer indemnização, considerando-se o contrato de seguro em causa anulável por omissão do dever inicial do risco, tanto mais que se a Mapfre tivesse conhecido o facto omitido, a apólice assumiria outro enquadramento de contrato de seguro”, cf. documento apresentado com o requerimento com a ref. ......47, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.

39. Em 25 de setembro de 2018, os Autores insistiram com a Ré, através de carta enviada para a sede, em ..., que o capital fosse pago nos termos acordados e atrás descritos, cf. documento 10 com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.

40. Os prémios do seguro continuaram a ser debitados na conta bancária indicada pelos Autores e entregues à Ré.

41. Os Autores continuaram a pagar as prestações devidas ao BCP para amortização dos capitais mutuados.

42. Em 12/09/2019, o “Banco de Investimento Imobiliário, S.A.”, NIPC .......47, foi incorporado, por fusão, no “Banco Comercial Português S.A.” NIPC .......82, adquirindo este último, todos os direitos e obrigações daquele, cf. documento 4 com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.

E como não provado os seguintes factos:

43. Os Autores, aquando do preenchimento, pelo comercial da Ré DD, referiram expressamente ao mesmo, por diversas vezes, que o Autor tomava medicação, por sofrer se ansiedade, com períodos de depressão.

44. Inclusive, a Autora foi buscar todas as caixas de medicamentos que o Autor tomava, mais concretamente as caixas de Xanax 0,5mg e Triticum 100mg, as quais exibiu ao referido DD, ficando estas em cima da mesa o tempo todo e perfeitamente visíveis.

45. Foi dito ao referido DD que o Autor sofria de ansiedade, com alguns períodos de depressão, tendo aquele retorquido que não havia qualquer problema pois que os medicamentos Triticum e Xanax eram medicamentos apenas para dormir.

46. O referido DD preencheu o denominado “Questionário – Proposta de Seguro de Vida” sem o ler aos Autores.

47. Os Autores limitaram-se a assinar esse formulário já preenchido, quando este foi colocada à sua frente.

48. Não foi facultada aos Autores uma cópia do denominado “Questionário – Proposta de Seguro de Vida” nem das Condições Gerais, Especiais e Particulares da apólice.

49. A Ré, se tivesse tomado conhecimento dos factos dos pontos 23 a 24 teria rejeitado a proposta de seguro ou, no mínimo, agravado o prémio.

III – DA SUBSUNÇÃO – APRECIAÇÃO

Verificados que estão os pressupostos de actuação deste tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir.

A) O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do Recorrente, artigo 635 do Código de Processo Civil.

Como se afirma no Acórdão da Formação supra referido a questão fundamental a decidir incide sobre a «questão da interpretação do artigo 429.º do Código Comercial, que prevê os requisitos para ser inválido o contrato de seguro celebrado com declarações inexatas do segurado».

A única questão concreta é, pois, a de se saber se o contrato de seguro celebrado pelo segurado, ora recorrente, deve ser considerado anulável (ou não) face às declarações inexactas que foram prestadas?

B) A sentença de primeira instância, após enunciar vária doutrina e enquadramento legal sobre a questão entendeu o seguinte:

«14. Feitas estas notas, cumpre agora lembrar o teor do art. 429 do Código Comercial:

“Toda a declaração inexata, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tomam o seguro nulo».

§ único. Se da parte de quem fez as declarações tiver havido má fé o segurador terá direito ao prémio.”

Como é sabido, o legislador faz recair sobre o tomador do seguro ou o segurado informações pré-contratuais, consubstanciadas naquilo a que, atualmente, o RCS denomina “declaração inicial de risco” (art. 24 do RCS).

……

Por outro lado, embora a letra deste preceito possa inculcar que se trata de uma nulidade, estamos apenas perante uma anulabilidade do contrato, como vem sendo entendido pela doutrina e pela jurisprudência. ……

Para que a previsão da norma fique preenchida não se exige a má-fé do segurado. …..

Finalmente, não é exigido o nexo de causalidade entre a patologia que afetava a pessoa segura no momento da celebração do contrato e a quem que vem, mais tarde, a substanciar o risco.

….. o art. 429º fulmina com o valor negativo, correspondente `a anulabilidade do negócio, a prestação culposa de declarações inexatas ou reticentes que tenham viciado a vontade de contratar da seguradora ( cf., por ex., o Ac. de 21/9/10, proferido pelo STJ no P. 08A1373); ou seja: provado, como efetivamente está: - que o segurado omitiu no preenchimento do questionário clínico que lhe foi apresentado determinada patologia atual e consumada, explicitamente mencionada naquele questionário clínico; - que essa patologia era por ele perfeitamente conhecida, não podendo razoavelmente desconhecer que, pela sua gravidade e relevância, era – segundo as regras da experiência comum – significativa para a aferição do risco pela seguradora; - que tal omissão influenciou causalmente a celebração do concreto contrato de seguro, nos termos clausulados, goza a seguradora do direito potestativo de anular o contrato, o que naturalmente obsta logicamente a que – sendo este direito potestativo exercitado – o contrato em causa possa ainda subsistir com as modificações decorrentes, nomeadamente, de uma redução proporcional da responsabilidade da seguradora, em função dos riscos acrescidos ou da exclusão dos riscos associados às específicas patologias omitidas.»

E concluiu decidindo:

«Julgar procedente a exceção perentória invocada pela Ré e, em consequência, decretar a anulabilidade do contrato de seguro do Ramo Vida celebrado entre a Ré, Mapfre – Seguros de Vida, SA, e os Autores, AA e BB, titulado pela apólice n.º VI ....54/11;

Em consequência, julgar improcedente a ação, absolvendo a Ré, Mapfre – Seguros de Vida, SA, do pedido formulado pelos Autores, AA e BB.».

C) Por sua vez o Acórdão recorrido, ao apreciar o mérito da acção, entendeu:

«Não suscitam reparos as considerações feitas na sentença recorrida sobre a qualificação do contrato de seguro objeto dos autos.

….

A questão debatida no presente recurso tem, pois, a ver com a definição do âmbito do dever de declaração inicial do risco por parte dos segurados, bem como o seu regime e as consequências em caso de incumprimento do mesmo.

…...

Também não merece controvérsia a determinação do regime jurídico aplicável.

Como se decidiu, …, é de concluir que o regime jurídico a considerar, ….., é o anterior à entrada em vigor do novo Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS)16, aprovado pelo Dec. Lei n.º 72/2008, de 16/04.

…..

Por conseguinte, relativamente ao contrato de seguro objeto dos autos, tal como se decidiu na sentença recorrida, ……, é aplicável o regime constante do art. 429º do Código Comercial (CCom), por ser a lei em vigor à data da sua celebração.

…..

…..

O art. 429º do CCom tem, portanto, como objetivo dar concretização à referida necessidade de determinar com exactidão o risco do contrato de seguro, sendo a consequência do incumprimento do dever de declaração exacta a invalidade do contrato, configurada como um caso de erro vício de vontade que incide sobre a própria formação do contrato28.

……

Por sua vez, a jurisprudência maioritária propendia a considerar que, para se aferir da inexatidão ou reticência da declaração do segurado, o citado art. 429º do CCom não exige qualquer nexo de causalidade entre o facto ou circunstância omitido ou inexactamente declarado e o facto ou circunstância que determinou o sinistro.

…….

……..

Conclui-se, pois, que a ré logrou cumprir o ónus que sobre si recaía de demonstrar a omissão e/ou a inexatidão das declarações do segurado, assim como de que as mesmas eram susceptíveis de influenciar a seguradora na decisão de contratar, irrelevando que exista ou não nexo causal entre a doença ou situação clínica omitida nas declarações prestadas na proposta e no exame médico e a que efectivamente se veio a revelar.

Portanto, o contrato de seguro é anulável nos termos do art. 429º do CCom. Consequentemente, mercê da confirmação da apreciada excepção peremptória, …

O Tribunal da Relação decidiu «julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando a sentença recorrida».

D) Feita esta breve resenha das decisões proferidas nestes autos – sentença da 1ª instância e Acórdão recorrido – vemos que à questão concreta que nos é colocada - saber se o contrato de seguro celebrado pelo segurado deve ser considerado nulo (ou não) face às declarações inexactas que foram prestadas – ambas as decisões responderam do mesmo modo, sendo claras e unânimes em considerar que o contrato devia ser anulado, tal como peticionado pela Ré/seguradora.

Não vemos razões válidas para alterar o decidido.

D) Para uma correcta compreensão e decisão da questão (e do caso) em apreço impõe-se a análise da natureza do contrato de seguro celebrado pelo falecido marido da Autora e Autora.

Mas relembremos os factos essenciais.

. No dia 29 de dezembro de 1999, ambos os Autores celebraram com o Banco de Investimento Imobiliário, S.A., por escritura pública, três contratos de mútuo garantidos por hipoteca, outorgados no 2.º cartório Notarial de ...;

. Para garantia dos referidos três contratos de mútuo, além da constituição de hipoteca sobre um prédio urbano, os Autores celebraram um contrato de seguro de vida com a seguradora “Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A.”, com efeitos a partir do dia 29/12/1999, pelo prazo de um ano, renovável, cobrindo o risco de morte ou invalidez profissional permanente de qualquer um dos Autores, com o capital de € 166 786,42;

. Em 25/10/2006, deslocou-se à residência dos Autores um comercial da Ré, em representação desta, de nome DD, que lhes propôs a celebração de um outro contrato de seguro de vida, que substituísse aquele, oferecendo-lhes melhores condições, sendo que foi devido às melhores condições contratuais apresentadas pelo referido comercial da Ré, e por não ter qualquer período de carência, que os Autores aceitaram e concordaram em mudar o seguro para a ora Ré;

. Nessa ocasião, aquele comercial preencheu, pelo seu punho, o formulário denominado “Questionário – Proposta de Seguro de Vida”, a que foi atribuído o n.º ......04, identificando o Autor como tomador e ambos os Autores como pessoas seguras, com as seguintes profissões: Autor – Empresário de restauração; Autora – ...;

. No questionário, escreveu “Não” nas seguintes questões: “1. Esteve de baixa alguma vez, ou interrompeu a sua atividade habitual, por um período superior a 15 dias devido a doença ou acidente?; 2. Encontra-se atualmente submetido a tratamento ou controle médico? 3. Encontra-se atualmente de baixa por doença ou acidente? 4. Nos últimos dez anos, esteve alguma vez internado num hospital, clínica ou sanatório? 5. Vai submeter-se proximamente a alguma intervenção cirúrgica? 7. Padece de alguma limitação física, como consequência de alguma doença ou acidente (surdez, coxear, mudez, perda de membros, etc.)? 8. Utiliza ou utilizou alguma vez estupefaciente (drogas)? 9. No último ano, o seu peso diminuiu 10 kg ou mais? 12. Nos últimos dez anos, foi-lhe diagnosticada alguma doença?”;

. Escreveu “Sim” nas seguintes questões: “6. Já fez alguma vez alguma análise ou exame médico especial, tal como eletrocardiograma, TAC, radiografias a algum órgão concreto, curva de glicose, provas à função renal ou hepática, teste da SIDA ou outros?; 10. Nos últimos dez anos foi visto ou tratado por algum médico?; 13. Tem algum tipo de defeito ou limitação visual, como miopia hipermetropia, presbitia, astigmatismo, etc.)?”

. Nada escreveu na seguinte questão: “11. Consultou alguma vez um cardiologista ou oncologista?”;

. De seguida aos dizeres “Se respondeu afirmativamente a alguma questão, detalhe por favor, para cada caso, o tipo de doença, a data de início, o tipo de tratamento ou intervenção e o estado atual (…)”, escreveu: “6. Em Abril/2005 fez ecografia vesico-prostática com resultados normais conforme relatório anexo e em Outubro/2015 fez exame aos intestinos com resultados normais conforme relatório anexo. 10. Idem pergunta n.º 6. 13. Miopia (…)”;

. O preenchimento do questionário nos termos indicados foi feito de acordo com as indicações dadas pelo Autor ao referido DD;

. No final do preenchimento, o Autor assinou o formulário;

. No dia 8 de janeiro de 2007, o Autor foi submetido a um exame médico, por clínico indicado pela Ré, tendo respondido a questionário;

. As respostas do Autor foram negativas às seguintes questões: “1. Tem alguma doença atualmente? 2. Está atualmente submetido a algum tratamento ? Toma algum medicamento? (…) 9. Esteve submetido a algum tratamento médico prolongado (mais de 15 dias)? (…) 42. Necessitou recorrer a um médico ou tomar algum medicamento por problemas emocionais? (Quando? Motivo?).”

. No final, com as suas respostas assinaladas, o Autor assinou o questionário;

. Após análise dos referidos questionários e exame médico, a Ré aceitou a proposta de seguro, emitindo a respetiva apólice, com início no dia 31 de janeiro de 2007;

. Nos termos da Condição Especial 2.2., “(…) a Mapfre Vida, SA, obriga-se caso a Pessoa Segura fique inválida de forma absoluta e permanente para todo o trabalho, a pagar a quantia que se especifica nas Condições Particulares, ficando a apólice automaticamente anulada. / Entende-se por invalidez absoluta e permanente para todo o trabalho, a situação física ou mental irreversível que impossibilita por completo a Pessoa Segura para a manutenção de qualquer relação laboral ou atividade profissional. / Faz-se constar expressamente que se considera invalidez absoluta e permanente a paralisia permanente de todo o corpo ou metade do corpo, a perda anatómica ou funcional dos dois membros superiores ou inferiores ou de um superior e outro inferior ou das duas mãos completas ou dos dois pés completos, a alienação mental absoluta e incurável, a cegueira incompleta e incurável e as doenças crónicas que provoquem um estado geral de fraqueza do organismo (caquexia) em consequência do qual o doente fique definitivamente condenado à imobilidade”;

. O Autor sofria de ansiedade, com períodos de depressão, pelo menos desde 2003, o que era do seu conhecimento;

Era acompanhado por médico particular, que lhe prescreveu Xanax 0,5 mg e Triticum 100 mg.;

. Tanto em 25 de outubro de 2006 como em 8 de janeiro de 2007, o Autor mantinha esse acompanhamento e a toma regular da referida medicação;

. Nas referidas datas, quando respondeu aos questionários sobre o seu estado de saúde, o Autor não relatou os factos que antecedem aos seus interlocutores;

. Se a Ré tivesse tomado conhecimento desses factos, teria exigido exames complementares, ao nível da psiquiatria, para fundar a sua decisão de aceitar ou rejeitar a proposta de seguro e, caso a aceitasse, calcular o prémio a pagar pelo Autor;

. No início do ano de 2015, o Autor começou a evidenciar deterioração cognitiva e funcional, com repercussões importantes a nível profissional, manifestando algum descontrolo comportamental com os clientes do seu restaurante e, em virtude destes factos, esteve de baixa médica de janeiro 2015 até de dezembro 2017;

. Desde então não voltou a exercer a sua atividade profissional, ficando reformado por invalidez relativa pela Segurança Social em 29/01/2018;

D) Temos, assim que entre o segurado por um lado e a seguradora foi celebrado um contrato de seguro.

Para uma análise da natureza do contrato de seguro, para além das considerações jurídicas feitas quer na sentença da 1ª instância quer no Acórdão recorrido, veja-se o nosso Acórdão da Relação do Porto de 12-04-2010, Apelação 1443/04.6TBGDM.P1, in CJ, Tomo II, Pág. 202 e ss bem como in www.dgsi.pt.

Não vamos repetir, por desnecessário o que aí se escreveu sobre a evolução do contrato de seguro bem como a sua natureza, para aí remetendo.

No caso dir-se-á apenas que o contrato de seguro de vida « é o seguro efectuado sobre a vida de uma ou várias pessoas seguras, que permite garantir, como cobertura principal, o risco de morte ou de sobrevivência ou ambos ».

São muitas as classificações possíveis dos seguros de vida, resultantes dos vários pontos de vista sob que podem ser observados.

A classificação que atende ao risco é a que melhor faz salientar a diversidade do regime jurídico aplicável e a mais idónea a fornecer uma ideia de conjunto da prática seguradora.

Dúvidas não existem em como ao caso em análise não é aplicável a actual LCS – aprovada pelo DL 72/2008, de 16.04, a qual entrou em vigor em 01/01/2009 – pois que a resolução é de 2008, mas sim a lei anterior.

De igual forma também é indiscutível que o segurado prestou informações incorrectas à Seguradora aquando da celebração do contrato, concretamente no momento do preenchimento do questionário.

O litígio do caso concreto está apenas em saber se existe matéria de facto provada que permita à Ré Seguradora invocar a anulação do contrato.

A resposta terá necessariamente que ser afirmativa, tal como, aliás, já o tinha sido a conclusão das instâncias.

Atenta a redacção do artigo 429 do Código Comercial, supra referida e como já vimos aplicável ao caso concreto, «as declarações inexactas ou incompletas e que alterem a apreciação do risco tornam o contrato nulo», o que perante a factualidade atrás descrita nos leva a concluir sem margem para dúvida, que tendo o segurado omitido factos essenciais no preenchimento do questionário, assistia à Seguradora o direito de peticionar a anulação do contrato de seguro que havia sido celebrado.

Seguimos de perto o Ac. do STJ de 27-03-2014, in www.dgsi.pt, em cujo sumário podemos ler:

«4. A seguradora goza do direito de anulação do contrato, celebrado com erro-vício da vontade, nos termos previstos no art. 429º do CCom., quando o segurado:

- omitiu, no preenchimento do questionário clínico que lhe foi apresentado, determinada patologia actual e consumada, explicitamente mencionada naquele questionário clínico;

- sendo essa patologia por ele perfeitamente conhecida, não podendo razoavelmente desconhecer que, pela sua gravidade e relevância, era – segundo as regras da experiência comum - significativa para a aferição do risco pela seguradora;

- e tal omissão influenciou causalmente a celebração do concreto contrato de seguro, nos termos clausulados.

5. No âmbito do regime definido pelo citado art. 429º, não impede o efeito anulatório a circunstância de o sinistro – morte do segurado – ter decorrido causalmente de uma patologia diversa e autónoma da que foi omitida à seguradora».

Resulta claramente dos factos provados que as declarações do proponente/segurado AA sobre o seu estado de saúde e historial clínico são inexactas omitindo factos essenciais para a determinação do risco.

Basta ler a factualidade provada para se verificar esta realidade.

Acresce que ele tinha consciência dessas inexactidões uma vez que se tratava de factos pessoais que ele não podia deixar de conhecer, sabendo igualmente da sua importância para a seguradora que se conhecesse a realidade pelo menos teria exigido exames complementares, ao nível da psiquiatria, para fundar a sua decisão de aceitar ou rejeitar a proposta de seguro e, caso a aceitasse, calcular o prémio a pagar pelo Autor.

Deste modo as declarações prestadas pelo segurado sendo inexactas conduzem inexoravelmente a que a Seguradora possa invocar, com base no artigo 429.º do CCom, a anulabilidade do contrato de seguro em apreço.

Daí que como bem se refere no Acórdão recorrido «seja irrelevante saber do nexo causal entre as declarações inexactas e o sinistro: independentemente de se saber se tal nexo se verifica ou não, o que pesa na apreciação da seguradora é a base circunstancial necessária e decisiva à celebração do contrato nas condições pactuadas».

Relembre-se o Ac. do STJ de 27.03.2014 nos termos do qual «No âmbito do regime definido pelo citado art. 429º, não impede o efeito anulatório a circunstância de o sinistro – morte do segurado – ter decorrido causalmente de uma patologia diversa e autónoma da que foi omitida à seguradora».

Em conclusão, a resposta à questão concreta de se saber se o contrato de seguro celebrado pelo segurado, ora recorrente, deve ser considerado nulo (ou não) face às declarações inexactas que foram prestadas, terá necessariamente que ser afirmativa, pois que á Ré Seguradora assistia o direito de anular tal contrato

Nenhuma censura merece o Acórdão recorrido, pelo que se impõe a improcedência das conclusões dos Recorrentes e, consequentemente da presente Revista.

III - Decisão

Nos termos expostos acordam os juízes que compõem este Tribunal em julgar improcedente a presente revista e, em consequência, confirma-se o Acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, de de 2024

José Sousa Lameira (relator)

A. Barateiro Martins

Fátima Gomes