Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
423/20.9T8BRR.L1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: DOMINGOS JOSÉ DE MORAIS
Descritores: TRABALHADOR COM RESPONSABILIDADES FAMILIARES
ATRIBUIÇÃO DE HORÁRIO FLEXÍVEL
DESCANSO SEMANAL
Data do Acordão: 10/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
O texto dos artigos 56.º e 57.º do Código do Trabalho não exclui a inclusão do descanso semanal, incluindo o sábado e o domingo, no regime de flexibilidade do horário de trabalho, a pedido do trabalhador com responsabilidades familiares.
Decisão Texto Integral:






SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
4.ª Secção Social


Processo n.º 423/20.9T8BRR.L1.S1
Origem: Tribunal da Relação de Lisboa
Recurso de revista excepcional
Relator: Conselheiro Domingos Morais
Adjuntos: Conselheiro Mário Belo Morgado
Conselheiro Júlio Gomes

Acordam os Juízes na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

I.Relatório
1. - Lojas Primark Portugal – Exploração, Gestão e Administração de Espaços Comerciais, S.A. intentou acção com processo comum contra
AA, alegando, em síntese que contrariamente àquela que é a posição da CITE e aparentemente da Ré, a prestação de trabalho em regime de horário flexível prevista nos artigos 56.º e 57.º do CT apenas diz respeito aos limites diários, não abrangendo o descanso semanal.
Terminou, pedindo que seja “declarado que a Autora aceitou o pedido de trabalho em regime de flexibilidade de horário apresentado pela Ré e que, consequentemente, não tem esta direito a escolher os dias de descanso semanais devendo por isso trabalhar em qualquer dia da semana que a Autora indique”.
2. - A Ré contestou, concluindo: “deve a presente acção ser julgada totalmente improcedente por não provada e, em consequência, ser elaborado pela autora, nos termos requeridos, o horário flexível à ré, de acordo com o previsto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 56° do Código do Trabalho, de modo a permitir o exercício do direito à conciliação da atividade profissional com a vida familiar consagrado na alínea b) do n.º 1 do artigo 59° da Constituição da República Portuguesa, e a promoção da conciliação da atividade profissional com a vida familiar e pessoal dos/as trabalhadores/as, nos termos previstos no n.“ 3 do artigo 127.° e da alínea b) do n.° 2 do artigo 212.º, ambos do Código do Trabalho.”.
3. - Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “julga-se a presente acção procedente não tendo a Ré o direito a escolher os dias de descanso semanais devendo trabalhar em qualquer dia da semana que a Autora indique.”.
4. - A Ré interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa decidido por acórdão de 30.06.2021: “negar provimento à apelação e confirmar a sentença apelada.”.
5. - A Ré interpôs recurso de revista excecional, concluindo, em resumo:
entende a recorrente que, face à aplicação do regime de flexibilidade de horário e às circunstâncias de facto dadas como provadas, o descanso semanal estará incluído, nesse conceito normativo, até porque o pedido formulado pela recorrente, continua a deixar a determinação do concreto horário de trabalho a cumprir, na esfera da recorrida, permitindo, o específico horário requerido, observar os limites consagrados nos n.ºs 3 e 4 do artigo 56.º do Código do Trabalho e, assim, apesar do horário solicitado ter horas fixas de início e termo do período diário de trabalho e abranger os dias de folga, o mesmo não deixa de ser um horário de trabalho flexível de acordo com a definição legal, pois, trata-se de um horário que visa adequar os tempos laborais às exigências familiares da recorrente, em função dos seus filhos menores, um com onze anos e outra com um ano.”.
6. - A Autora não contra-alegou.
7. - Por Acórdão de 21.04.2022 na Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3 do CPC, foi admitida a revista excepcional, por considerados verificados os requisitos do artigo 672.º, n.º 1, alíneas b) e c).
8. - O Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser concedida revista.
9. - Cumprido o disposto no artigo 657.º, n.º 2, ex vi do artigo 679.º, ambos do CPC, cumpre apreciar e decidir.
II. - Fundamentação
1. - De facto
1.1. – As instâncias consideram provados e não provados os seguintes factos:
A) Factos provados:
Por acordo:
1. A Autora é uma sociedade comercial cujo objecto abrange a exploração, administração, gestão e desenvolvimento de espaços comerciais, bem como de todas as actividades com estes estabelecimentos relacionadas, nomeadamente o comércio, importação, distribuição e armazenagem de artigos não especificados, nomeadamente artigos para o lar, decoração, vestuário, calçado, artigos de uso e consumo pessoal e doméstico, produtos têxteis, electrodomésticos, equipamentos electrónicos, produtos alimentares, bebidas e tabaco, joalharia, ourivesaria, mobiliário, livros, papelaria, tabacaria, perfumes, produtos químicos e farmacêuticos, instrumentos musicais, bicicletas, veículos mecânicos de propulsão e actividades de restauração, hotelaria, decoração e cultura e lazer, transporte, exploração de teatros e cinemas, compra e venda, investimento e revenda de móveis e imóveis adquiridos para esse fim, consultoria para negócios e gestão, prestação de serviços, participação em outras sociedades com objecto análogo como forma do exercício de actividades económicas e tudo o mais que esteja relacionado ou seja conveniente para o desenvolvimento do objecto social aqui referido.
2. Os estabelecimentos são caracterizados por terem uma área comercial ampla e situarem-se em centros comerciais, os quais estão em funcionamento durante os sete (7) dias de semana e com horário de abertura às 10:00 horas e encerramento entre as 23:00 e as 24:00 horas, todos os dias.
3. Estando a Autora obrigada a manter as lojas abertas todos os dias e durante o horário de funcionamento dos respectivos centro comerciais, sob pena de lhe serem aplicadas penalizações comerciais em caso de incumprimento.
4. Deste modo, a empresa realiza o seu objecto através da exploração de dez (10) lojas espalhadas por Portugal, a saber: A... (A...), ... (...), ... (...), ... (...), ... (...), ... (...), ... (...), ... (...), ... (...) e ... (...).
5. A Autora e a Ré celebraram um contrato que apodaram de contrato de trabalho em 14 de junho de 2017, no qual a última se obrigou a prestar trabalho à primeira sob as suas ordens e direcção, contra o pagamento de uma retribuição mensal.
6. No início do contrato a Ré foi contratada para exercer as funções de operadora de .... Funções que mantém actualmente.
8. A descrição das funções desempenhadas pela Ré, consistem em fazer atendimento ao cliente, caixa e reposição.
9. A Ré exerce actualmente funções na loja Primark sito no Centro Comercial ... com morada em Rua ..., A....
10. No passado dia 11/11/2019 a Ré remeteu à Autora uma carta com o seguinte teor:
Eu, AA, portadora do cartão de cidadão n.º ..., colaboradora da empresa Primark situada no Centro Comercial ..., venho por este meio expor a minha situação actual a qual peço a vossa atenção. Acerca de 1 mês dirigi-me aos Recursos Humanos do meu local de trabalho a expor as minhas dificuldades e impossibilidades de conseguir conciliar a minha vida familiar com a profissional, fiz o pedido para puder ter as minhas folgas aos fins de semana, mas, foi recusado.
Tenho 2 filhos menores de 12 anos, o mais crescido com 10 anos e a mais nova com apenas 6 meses. O meu marido trabalha por turnos em semanas alternadas e fins de semana. A creche da minha filha funciona de 2.ª F a 6.ª F das 7horas às 18h30.
Por estes motivos que dou a conhecer venho solicitar a V. Exa a fixação das minhas folgas semanais rotativas para o sábado e domingo.
Agradeço a atenção dispensada para o me caso,
”.
11. Com a missiva supra indicada, juntou ainda dois atestados da junta de freguesia ... e ..., uma declaração da Cresce e Jardim de Infância ... e uma declaração numerada como 22/2019 da Câmara Municipal ....
12. A carta foi recepcionada no próprio dia.
13. A Autora respondeu à Ré por carta entregue em mão em 18 de novembro de 2019.
14. A resposta apresentava o seu seguinte teor:
Exma. Senhora,
Em resposta à V/carta em epígrafe, recepcionada nos nossos serviços a 11.11.2019, informamos que a decisão tomada pela PRIMARK foi a seguinte:
Do seu pedido não resulta uma solicitação de horário flexível embora seja esse o regime jurídico aplicável. Assim, e à luz do dito regime de protecção da parentalidade, informamos que o regime de horário flexível não compreende a escolha dos dias de descanso, pelo que V. Exa., a não manter a rotatividade dos mesmos, será apenas porque a Primark entende que pode, algumas vezes, aceitar o seu pedido à luz do princípio da conciliação da vida privada com a Profissional.
Contudo, esta cedência a existir será meramente temporária e durará pelo período que seja possível manter essa regalia.
Ou seja: não estará sujeita aos limites, mas sim sempre que for possível atender ao seu pedido.
Não existindo na Primark aceitação de fixação de dias de descanso.
Ficamos a aguardar que nos confirme se a solução acima indicada é satisfatória nos termos descritos, de modo que possamos organizar os meios.
Com os melhores cumprimentos

15. Por carta entregue em novembro Ré apresentou resposta à anterior missiva com o seguinte teor:
Eu, AA, portadora do CC n.º ..., colaboradora com o num. ...70 da Empresa Primark do A... venho por este meio, mais uma vez solicitar a V. Exa. a fixação das minhas folgas semanais rotativas para os fins de semana, pelo motivo de ter 2 filhos menores, um com 10 anos e uma bebé de 6 meses os quais vivem em comunhão de mesa e habitação comigo. O meu esposo trabalha por turnos incluindo fins de semana como dito na carta anterior, logo não é possível estarmos os dois ausentes ao fim de semana tendo uma bebé. Não havendo creche ao fim de semana e não tendo familiares com quem deixar (3 avós falecidos) e uma avó que mora em ..., não tenho como conciliar a vida familiar e profissional com as folgas rotativas.
Peço por favor a vossa compreensão para a minha necessidade, se não fosse assim não pediria. Sei que ao fim de semana as vendas são muito superiores em relação aos dias de semana sendo principalmente um Centro Comercial, mas sendo a Primark uma empresa grande com um número alto de colaboradores (cerca de +- 100 julgo eu!) e com bastante organização diária, no meu ver não iria prejudicar o funcionamento da loja, nem é essa a minha intenção.
Mais uma vez agradeço a atenção dispensada,

16. Recebida a resposta da Ré, a Autora enviou uma carta à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) datada de 21 de novembro de 2019 (registo ...) e recebida a 25 de Novembro de 2019 com o seguinte teor:
Assunto: Intenção de recusa da prestação de trabalho com flexibilidade de horário – descansos semanais fixos
Exmos. Senhores,
Vimos, em cumprimento do disposto no artigo 57.º, n.º 5, do Código do Trabalho, remeter o processo relativo à trabalhadora AA.
Na sequência da missiva da mencionada trabalhadora, através da qual solicita a prestação de trabalho em regime de flexibilidade de horário vimos, pela presente, expor o seguinte:
A trabalhadora solicitou a prestação do trabalho em regime de flexibilidade de horário e concretamente que os dias de descanso semanal obrigatório e complementar coincidissem com o sábado e domingo.
A Primark apreciou de imediato e devidamente o pedido da trabalhadora e, em resposta, comunicou à trabalhadora que não entra no conceito de flexibilidade a escolha dos dias de descanso semanal.
Nos termos do artigo 56.º do Código do Trabalho (doravante designado por CT), o horário flexível, a elaborar pelo empregador, deve:
a) Conter um ou dois períodos de presença obrigatória, com duração igual a metade do período normal de trabalho diário;
b) Indicar os períodos para o início e termo do trabalho normal diário, cada um com duração não inferior a um terço do período normal de trabalho diário, podendo esta duração ser reduzida na medida do necessário para que o horário se contenha dentro do período de funcionamento do estabelecimento;
c) Estabelecer um período para o intervalo de descanso não superior a duas horas.
Entende-se por horário flexível, aquele em que o trabalhador pode escolher, dentro de certos limites, as horas de início e termo do período normal de trabalho diário.
Assim, é ao empregador a quem lhe corresponde nos termos do artigo n.º 56 do CT estabelecer esses limites dentro dos quais este direito deve ser exercido. Em outros termos, é o empregador quem deve fixar o horário de trabalho, não sendo permitido que o trabalhador determine os dias em que pretende trabalhar.
A título de exemplo, vejam-se os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto n.º 2608/16.3T8MTS.P1 de 2 de março de 2017 e do Tribunal da Relação de Lisboa n.º 1080/14.7T8BRR.L1-4 de 18 de maio de 2016.
Com efeito, resulta do referido acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que o pedido de horário flexível com folgas fixas/descansos semanais fixos não se enquadra dentro da noção legal de trabalho flexível nos termos do artigo 56.º do CT.
Consequentemente, se é ao empregador a quem lhe corresponde fixar os limites dos quais o trabalhador pode praticar o seu direito de flexibilidade horária, em nenhum caso pode ser aceite, que seja o trabalhador que determine os dias em que pretende trabalhar (e a sensu contrário, folgar).
…”.
17. Onde juntou: i) a carta da Ré (e anexos); ii) a resposta da Autora (e anexos) e; iii) a pronúncia da Ré à carta anterior enviada pela Autora.
18. Através de missiva datada de 18 de dezembro de 2019 a CITE emitiu parecer desfavorável à intenção de recusa da Autora relativamente ao pedido de trabalho em regime de horário flexível, apresentado pela Ré.
19. Após receber o parecer desfavorável por parte da CITE aos 23 de dezembro de 2019, a Autora entregou em mão à Ré aos 27 de dezembro de 2019 uma missiva, dando-lhe conhecimento do mesmo.
Face à prova produzida em audiência de julgamento:
A. A Ré tem dois filhos menores, um menino com onze anos e uma menina, com um ano.
B. A menor mais nova frequenta uma creche que funciona de segunda a sexta-feira das 07.00 às 18.30.
C. Provado apenas que ocasionalmente a Ré e o marido trabalham aos fins de semana.
D. Provado apenas que a Ré e o marido não têm com quem deixar os menores nos fins de semana em que trabalham.
E. A Ré tentou encontrar uma ama para os menores, mas, tendo em conta o valor da sua retribuição, tal solução revelou-se incomportável.
F. Os menores residem consigo.
G. A Ré, não tem qualquer suporte familiar para deixar os seus filhos.
B) Factos não provados:
Provaram-se todos os factos constantes da petição inicial e contestação junta aos autos.
2. - Do direito.
2.1. - Do objeto do recurso de revista excepcional.
- A inclusão do descanso semanal, incluindo sábado e domingo, no regime de flexibilidade do horário de trabalho previsto nos artigos 56.º e 57.º do Código do Trabalho (CT).
2.2. – Na sentença foi consignado:
“(..), há uma definição normativa do que é um “horário de trabalho” e uma definição normativa do que é um “horário flexível” sendo este mais restritivo do que aquele uma vez que não inclui o “descanso semanal”.
Assumindo como certo que na fixação do sentido e alcance da lei o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (cfr. art. 9.º n.º 3 do Código Civil), haverá então que assumir que o mesmo excluiu da definição de horário flexível o descanso semanal porque assim entendeu que se encontrava um equilíbrio entre a vida familiar e a protecção da parentalidade consagrada no art. 68.º da Lei Fundamental e a estabilidade (relativa) do estipulado nos contratos de trabalho quanto ao horário de trabalho dos trabalhadores mediante a regulação contida nos arts. 33.º e ss do Código do Trabalho.”.
2.3. – O Acórdão recorrido, invocando os acórdãos da mesma Relação Lisboa de 18-05-2016, no processo n.º 1080/14.7T8BRR.L1-4; de 25-11-2020, no processo n.º 2748/19.7T8BRR.L1-4 e de 29-01-2020, no processo n.º 3582/19.0T8LRS.L1-4, concluiu:
“O acento da solução propugnada nos arestos citados, com a qual concordamos, está na circunstância de não ser admissível que o trabalhador delimite o cumprimento da sua prestação a alguns dos dias do período de funcionamento do empregador uma vez que é a este que a lei confere a faculdade de fixar não só o horário como o próprio horário flexível (art.os 212.º, n.º 1, 56.º, n.º 3 e 58.º, n.º 2 do Código do Trabalho); no pressuposto, naturalmente, de que nisso não exceda manifestamente os limites económicos e sociais desse direito (art.º 334.º do Código Civil).
Baixando ao caso concreto, vimos que se provou que a apelante tem dois filhos menores que com ela vivem em comunhão de mesa e habitação (um menino com 11 anos e uma menina com 1 ano), que o seu cônjuge trabalha por turnos em semanas alternadas e fins-de-semana, que a creche da filha funciona apenas durante os dias úteis da semana entre as 07:00 horas e as 18:30 horas e que a família não tem estrutura alternativa para nos períodos coincidentes de trabalho dos pais confiar a custódia dos menores.
Assim sendo, não custa concluir que cumpriu a parte que a lei lhe reservou do ónus da prova e que lhe assiste, em tese, o direito a que a apelada lhe fixe um horário flexível, mas não a delimitá-lo a certos dias do tempo de trabalho acordado.”.
2.4. - A questão da abrangência do conceito de horário flexível de trabalhador com responsabilidades familiares não é nova, pois, tem sido colocada, por diversas vezes, aos Tribunais que se têm pronunciado de modo não coincidente, o que motivou, de resto, a admissão na Formação do presente recurso de revista excepcional.
[cf., no sentido restrito, por exemplo, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 18.05.2016, no processo n.º 1080/14.7T8BRR.L1-4; de 25.11.2020, no processo n.º 2748/19.7T8BRR.L1-4 e de 29.01.2020, no processo n.º 3582/19.0T8LRS.L1-4.
No sentido amplo, por exemplo, os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 15.11.2021, proc. n.º 2731/20.0T8MAI.P1; de 15.12.2021, proc. n.º 3425/19.4T8VLG.P1; e o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 11.07.2019, proc. 3824/18. 9T8STB.E1].
2.5. - O artigo 59.º - Direitos dos trabalhadores - da Constituição da República Portuguesa (CRP), estatui:
1. Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito:
a) (…);
b) A organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal e a permitir a conciliação da actividade profissional com a vida familiar;”.
E o artigo 67.º - Família - consagra:
“1. A família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros.
2. Incumbe, designadamente, ao Estado para protecção da família:
a) a g) (…);
h) Promover, através da concertação das várias políticas sectoriais, a conciliação da actividade profissional com a vida familiar.”.
Por sua vez, o artigo 68.º - Paternidade e maternidade – prescreve:
1. Os pais e as mães têm direito à proteção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível ação em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação, com garantia de realização profissional e de participação na vida cívica do país.
2. A maternidade e a paternidade constituem valores sociais eminentes.
3. (…).
4. (…).” (negrito nossos)
Como escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CRP Anotada Vol. I, pág. 773, “O direito à organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, tem por destinatários, simultaneamente, os empregadores e o Estado, que deve tomar medidas no sentido apontado e de forma a facultar a realização pessoal (nº 1/b), pressupõe a ideia de que o tra­balho pode ser pessoalmente gratificante, não podendo ser, de qualquer forma, prestado em condições socialmente degradantes ou contrárias à dignidade humana ou impeditivas da conciliação da actividade profissional com a vida familiar. Trata-se aqui também de um modo de protecção da família.” (negritos nossos)
E a págs. 860-861 acrescentam: “A conciliação da actividade profissional com a vida familiar impõe a concertação de várias políticas sectoriais e a possibilidade, se não mesmo a obrigação, de discriminações positivas a favor da família (justificando derrogações do princípio da igualdade em abstracto): política do trabalho, desde logo contra despedimentos por motivos ligados a maternidade; licença por maternidade e licença parental pelo nascimento ou adopção de um filho; promoção e segurança da saúde de trabalhadoras grávidas; direito a férias em consonância com os interesses da família; institucionalização de horários de trabalho flexíveis, declinação familiar do regime de trabalho em tempo parcial, do trabalho domiciliário, e do acesso à rede de creches, preferências de colocação profissional na proximidade do outro cônjuge ou parceiro, etc.”. (negritos e sublinhados nossos).
O artigo 33.º, n.º 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia prevê, igualmente, a proteção da família “nos planos jurídico, económico e social”.
Na lei ordinária, o artigo 56.º - Horário flexível de trabalhador com responsabilidades familiares – do CT dispõe:
1 - O trabalhador com filho menor de 12 anos ou, independentemente da idade, filho com deficiência ou doença crónica que com ele viva em comunhão de mesa e habitação tem direito a trabalhar em regime de horário de trabalho flexível, podendo o direito ser exercido por qualquer dos progenitores ou por ambos.
2 - Entende-se por horário flexível aquele em que o trabalhador pode escolher, dentro de certos limites, as horas de início e termo do período normal de trabalho diário.
3 - O horário flexível, a elaborar pelo empregador, deve:
a) Conter um ou dois períodos de presença obrigatória, com duração igual a metade do período normal de trabalho diário;
b) Indicar os períodos para início e termo do trabalho normal diário, cada um com duração não inferior a um terço do período normal de trabalho diário, podendo esta duração ser reduzida na medida do necessário para que o horário se contenha dentro do período de funcionamento do estabelecimento;
c) Estabelecer um período para intervalo de descanso não superior a duas horas.
4 - O trabalhador que trabalhe em regime de horário flexível pode efectuar até seis horas consecutivas de trabalho e até dez horas de trabalho em cada dia e deve cumprir o correspondente período normal de trabalho semanal, em média de cada período de quatro semanas.
5 - O trabalhador que opte pelo trabalho em regime de horário flexível, nos termos do presente artigo, não pode ser penalizado em matéria de avaliação e de progressão na carreira.”
E o artigo 57.º - Autorização de trabalho a tempo parcial ou em regime de horário flexível – acrescenta:
1 - O trabalhador que pretenda trabalhar a tempo parcial ou em regime de horário de trabalho flexível deve solicitá-lo ao empregador, por escrito, com a antecedência de 30 dias, com os seguintes elementos:
a) Indicação do prazo previsto, dentro do limite aplicável;
b) Declaração da qual conste:
i) Que o menor vive com ele em comunhão de mesa e habitação;
ii) No regime de trabalho a tempo parcial, que não está esgotado o período máximo de duração;
iii) No regime de trabalho a tempo parcial, que o outro progenitor tem actividade profissional e não se encontra ao mesmo tempo em situação de trabalho a tempo parcial ou que está impedido ou inibido totalmente de exercer o poder paternal;
c) A modalidade pretendida de organização do trabalho a tempo parcial.
2 - O empregador apenas pode recusar o pedido com fundamento em exigências imperiosas do funcionamento da empresa, ou na impossibilidade de substituir o trabalhador se este for indispensável.”.
Por sua vez, o artigo 127.º - Deveres do empregador - prescreve:
3 - O empregador deve proporcionar ao trabalhador condições de trabalho que favoreçam a conciliação da actividade profissional com a vida familiar e pessoal.”.
Sobre o horário de trabalho, o artigo 200.º, n.º 1, prescreve:
1 - Entende-se por horário de trabalho a determinação das horas de início e termo do período normal de trabalho diário e do intervalo de descanso, bem como do descanso semanal.”.
E o artigo 212.º - Elaboração de horário de trabalho - estatui:
“1 - Compete ao empregador determinar o horário de trabalho do trabalhador, dentro dos limites da lei, designadamente do regime de período de funcionamento aplicável.
2 - Na elaboração do horário de trabalho, o empregador deve:
a) (…);
b) Facilitar ao trabalhador a conciliação da actividade profissional com a vida familiar;”. (negritos nossos)
Este é o quadro legislativo que cabe ao intérprete aplicar.
2.6. - No dizer de Maria do Rosário Palma Ramalho, in Tratado de Direito do Trabalho. Parte I, 5.ª ed., págs.328 e segs., “Especificamente no que toca a interpretação das normas laborais, são de aplicar as regras gerais do art.º 9.º do Código Civil, mas levanta-se a questão da admissibilidade do princípio do tratamento mais favorável como recurso genérico e de interpretação dessas normas. A admitir-se como regra geral, este princípio teria duas aplicações:
- uma aplicação interpretativa pura, que permitisse que, em caso de dúvida sobre o sentido a atribuir à norma, prevalecesse o sentido mais favo­rável ao trabalhador;
- uma aplicação interpretativo-aplicativa (portanto, ao nível de um con­flito de fontes ou da relação entre as fontes e o contrato de trabalho), na qual o princípio do favor laboratoris teria a função de criar no intér­prete a presunção de que as normas laborais seriam imperativas ape­nas quanto às condições mínimas que estabelecessem, podendo, por isso, ser afastadas, desde que em sentido mais favorável ao trabalhador e tanto pelas fontes inferiores como pelo contrato de trabalho.
(N)a operação de pura interpretação das normas laborais, entendemos que, perante o actual grau de maturidade do Direito do Trabalho e designadamente, perante o reconhecimento do seu carácter com­promissório (que faz prevalecer ora os interesses dos trabalhadores ora os inte­resses de gestão dos empregadores nas normas e nos regimes que estabelece), não faz sentido reconhecer a existência de um prius geral de interpretação das fontes laborais em favor do trabalhador. Assim, em caso de dúvida sobre o sentido a atribuir à norma, apenas será de adaptar o sentido que mais favoreça o trabalhador se, no caso concreto, se observar a necessidade de protecção do trabalhador como parte mais fraca.”.
Neste particular, Joana Nunes Vicente escreve, in Breves Notas sobre Fixação e Modificação do horário de trabalho, in Para Jorge Leite, Escritos Jurídico-Laborais, I, págs. 1051 e segs., “o problema delicado que se coloca é o de saber se o exercício desta faculdade está ou não vinculado à observância de certos limites materiais, se o ordenamento jurídico português faz depender a licitude do exercício do comando patronal do cumprimento de certas exigências substanciais, designadamente a necessidade de alicerçar a referida alteração [do HT] num fundamento objectivo da empresa, mas e sobretudo, a necessidade de atender à/ponderar a esfera de interesses do trabalhador”....
E quanto à necessidade de o empregador dever “facilitar ao trabalhador a conciliação da actividade profissional e a vida familiar”, afirma: “é difícil reconhecer a esta indicação normativa um preciso e intencional valor significante”.
Com todo o respeito, o intérprete não pode, não deve ignorar que a prescrição constitucional “permitir e promover a conciliação da actividade profissional com a vida familiar” consta em dois normativos da CRP: o artigo 59.º, n.º 1, alínea b) e o artigo 67.º, n.º 2, alínea h), ao ponto de Gomes Canotilho e Vital Moreira, in obra citada, afirmarem: “A conciliação da actividade profissional com a vida familiar impõe a concertação de várias políticas sectoriais e a possibilidade, se não mesmo a obrigação, de discriminações positivas a favor da família, (…), com a institucionalização de horários de trabalho flexíveis”.
E, nesse sentido, o texto dos artigos 56.º e 57.º do CT não exclui a inclusão do descanso semanal no regime de flexibilidade do horário de trabalho.
No entanto, importa afirmar que as supracitadas normas constitucionais, sendo programáticas, podem ser reguladas pela lei ordinária no sentido de limitar ou excepcionar o exercício daqueles direitos, como ocorre com o citado n.º 2 do artigo 57.º.
O que permite concluir que a sobreposição dos supra referenciados direitos de ordem e interesse públicos não tem natureza absoluta, dado que o empregador pode justificar porque é que a empresa não tem condições de aceitar o pedido de um determinado trabalhador, inclusive com certos dias de descanso semanal.
No caso sub judice, para a recusa do pedido da Ré, a Autora não invocou qualquer facto que impossibilitasse o normal funcionamento da “loja ...” (cf. ponto 6 dos factos provados), nem invocou a impossibilidade de substituir a Ré, por ser “indispensável”.
Na carta de resposta à Ré, transcrita no ponto 14.º dos factos provados, a Autora escreveu:
“(…).
Do seu pedido não resulta uma solicitação de horário flexível embora seja esse o regime jurídico aplicável. Assim, e à luz do dito regime de protecção da parentalidade, informamos que o regime de horário flexível não compreende a escolha dos dias de descanso, pelo que V. Exa., a não manter a rotatividade dos mesmos, será apenas porque a Primark entende que pode, algumas vezes, aceitar o seu pedido à luz do princípio da conciliação da vida privada com a Profissional.
Contudo, esta cedência a existir será meramente temporária e durará pelo período que seja possível manter essa regalia.
Ou seja: não estará sujeita aos limites, mas sim sempre que for possível atender ao seu pedido.
Não existindo na Primark aceitação de fixação de dias de descanso.
Ficamos a aguardar que nos confirme se a solução acima indicada é satisfatória nos termos descritos, de modo que possamos organizar os meios”.
Daqui decorre que a Autora se limitou a “interpretar” o artigo 56.º do CT, não invocando qualquer facto que pudesse ser enquadrável na previsão do n.º 2 do artigo 57.º, sendo certo que a interpretação legal do quadro legislativo supra citado, no qual se incluem os artigos 56.º, 57.º e 200.º, n.º 1, todos do CT, bem como a apreciação e decisão, caso a caso, sobre o conceito das exigências imperiosas do funcionamento da empresa ou do trabalhador indispensável cabe, em exclusivo, aos Tribunais, após a emissão do parecer da entidade competente na área da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres - Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego -, nos termos previstos nos n.ºs 5, 6 e 7 do artigo 57.º do CT.
2.7. - A inclusão do descanso semanal, incluindo sábado e domingo, no regime de flexibilidade do horário de trabalho, previsto nos artigos 56.º e 57.º do CT, foi recentemente apreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 17.03.2022 (relator Júlio Vieira Gomes), processo n.º 17071/19.9T8SNT.L1.S1, e no acórdão de 22.06.2022 (relator Ramalho Pinto), ambos in www.dgsi.pt, em termos que aqui acompanhamos:
Importa, contudo, ter presente que a montante da definição de horário flexível está a definição do que seja um horário de trabalho. Ora, nos termos do artigo 200.º n.º 1 do CT “entende-se por horário de trabalho a determinação das horas de início e termo do período normal de trabalho diário e do intervalo de descanso, bem como do descanso semanal”, sendo que, como esclarece o n.º 2 do artigo 200.º do CT, “o horário de trabalho delimita o período normal de trabalho diário e semanal”. O horário flexível é um horário de trabalho pelo que bem pode a trabalhadora, no seu pedido, precisar que pretende que os seus dias de descanso sejam, como aliás afirma que vinham sendo há três anos, o sábado e o domingo. As questões estão evidentemente imbrincadas e conexas, ao contrário do que sucederia no exemplo proposto pelo Recorrente de um pedido de aumento salarial (Conclusão D) que nada tem a ver com o tempo de trabalho. Acresce que também uma interpretação teleológica do regime de horário flexível aponta no mesmo sentido, porquanto só assim se consegue o desiderato da conciliação entre atividade profissional e vida familiar. Como a trabalhadora referiu no seu pedido a alteração dos seus dias de descanso acabava por lhe acarretar um grave prejuízo económico, que em grande medida comprometeria o escopo legal do regime de horário flexível.”. (negritos nossos).
Procede, pois, a revista excepcional.
III. - Decisão
Atento o exposto, acórdão os Juízes que compõem a Secção Social:
1. - Julgar a revista excepcional procedente e revogar o acórdão recorrido, o qual é substituído pelo presente acórdão que julga a acção improcedente.
Custas a cargo da Autora.

Lisboa 2022.10.12


Domingos José de Morais (Relator)
Mário Belo Morgado
Júlio Teixeira Gomes