Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9209/19.2T8SNT.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: TIBÉRIO NUNES DA SILVA
Descritores: RECURSO DE REVISTA
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
JUNÇÃO DE PARECER
REQUISITOS
VIOLAÇÃO DE LEI
PODERES DA RELAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
PROVA DOCUMENTAL
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 02/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I. É muito restrita a apresentação de documentos no âmbito do recurso de revista, dado que só o excepcionalmente o Supremo Tribunal de Justiça se pronuncia sobre questões de facto.

II. No que se refere a pareceres, apenas é admissível a junção dos de jurisconsulto e no tempo previsto no art. 651º, nº2, ex vi do art. 680º, nº2, do CPC.

II. Não cabe ao tribunal de revista intrometer-se na apreciação do mérito da análise probatória realizada nem tão-pouco na aferição da sua consistência, mas pode verificar se a Relação, ao usar os poderes previstos no art. 662º do CPC, agiu dentro dos limites traçados pela lei para os exercer, designadamente no que tange às normas de direito adjectivo atinentes à apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto.

IV. Não representa a violação da regra estabelecida no art. 640º, nº2, a), do CPC, a não indicação de passagens destacadas, quando se considera que todo o depoimento é relevante, para mais numa matéria da especialidade da depoente (médica) e tal depoimento se mostra completamente transcrito nas alegações.

V. Se a matéria a que um documento particular se refere foi, antes da sua junção, impugnada na contestação, esse documento valerá como prova livre, como tal devendo ser apreciado pelo tribunal.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




I


AA, com os sinais dos autos, intentou acção declarativa, com processo comum, contra BB, também com os sinais dos autos, pedindo que se condene a Ré a reconhecer a anulação do casamento civil celebrado entre a Ré e o pai do Autor, no dia ... .07.2017, na Conservatória do Registo Civil ..., conforme assento de casamento n.º ...57, do ano de 2017, com as legais consequências, designadamente, ordenando-se o averbamento da anulação do casamento nos respectivos assentos de nascimento, bem como no respectivo assento de casamento.

Alegou, em síntese, que:

É filho de CC e de DD.

O pai faleceu no dia ... .08.2017, com 75 anos de idade.

O Autor e a sua irmã foram surpreendidos com o casamento contraído, alguns dias antes do falecimento,  entre o seu pai e a Ré.

O casamento entre o pai do Autor e a Ré realizou-se no dia ... .07.2017, ou seja, no mês anterior ao decesso do pai do Autor.

Sucede que o casamento aqui em causa foi contraído sob coacção exercida pela Ré sobre o pai do Autor e em violação do disposto no art. 1601.º, alínea b), do Código Civil, já que, na data em se realizou, o pai do Autor sofria da doença de Alzheimer, em estado de demência avançada, o que o incapacitava para a celebração de tal acto.


Contestou a Ré, alegando que, diversamente do invocado pelo Autor, na data da celebração do casamento, CC tinha perfeita capacidade de entender e querer, estando, assim, em condições de entender o sentido do que declarou ser a sua vontade – o casamento, perante oficial público especializado. Não foi conduzido pela Ré sob coacção à Conservatória do Registo Civil, nem foi também coagido à realização do casamento. Aliás, era intenção do pai do Autor, desde há alguns anos, casar com a Ré, com quem viveu durante cerca de 25 anos.

Concluiu pela improcedência da acção.


Foi dispensada a audiência prévia, proferiu-se despacho saneador tabelar, definiu-se o objecto do litígio, selecionaram-se factos assentes e elencaram-se os temas de prova.

Prosseguindo os autos, teve lugar a audiência de discussão e julgamento e foi proferida sentença que julgou a acção improcedente.

Inconformado, o A. interpôs recurso, vindo a Relação de Lisboa a proferir acórdão que rejeitou a impugnação da decisão da matéria de facto e negou provimento à apelação.

Ainda irresignado, o A. interpôs recurso de revista excepcional para este Supremo Tribunal, concluindo as suas alegações pela seguinte forma:

«1. O presente recurso de revista excecional tem por objeto o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que julgou improcedente o recurso de apelação interposto da Sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, que julgou a ação improcedente, dela absolvendo a Ré do pedido de declaração de invalidade do casamento contraído dias antes do falecimento do pai do Autor, com uma doença terminal e com demência de Alzheimer, conforme não subsiste qualquer dúvida pela simples leitura dos elementos clínicos remetidos aos autos pelo Hospital ....

 2. De notar, em jeito de nota prévia, que, em nenhum momento do processo, a Ré impugnou ou colocou em causa os elementos clínicos remetidos pelo Hospital ....

 3. O recurso de apelação abrangeu matéria de facto e de direito, com reapreciação da prova gravada.

 4. O presente recurso visa a reapreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça do julgamento que recaiu sobre as conclusões de recurso relativas ao julgamento da matéria de facto, sobre a fundamentação constante da Sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, e finalmente sobre a interpretação e aplicação aos autos da norma ínsita no artigo 368.º do Código Civil quanto aos elementos clínicos relativos ao pai do Autor remetidos pelo Hospital ..., não impugnados pela Ré.

 5. O recurso de revista encontra-se previsto nos art.(s) 671.º e ss, do CPC

 6. O art. 672.º, n.º 1, do CPC, com a epígrafe “Revista Excecional”, admite a interposição de recurso de revista em casos especiais ou excecionais, sempre que: a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito; b) Estejam em causa interesses de particular relevância social; c) O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme, devendo nestes casos os requerentes, indicar, na sua alegação, sob pena de rejeição: a) As razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito; b) As razões pelas quais os interesses são de particular relevância social; c) Os aspetos de identidade que determinam a contradição alegada, juntando cópia do acórdão-fundamento com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição (n.º 2).

 7. Ora, in casu, o recurso de revista do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, é excecional, sendo interposto ao abrigo das alíneas a) e b), do n.º 1, do art. 672.º.

 8. Nas questões suprarreferidas, o Tribunal “a quo” ao julgar improcedentes a totalidade das conclusões constantes das alegações de recurso de apelação, relativas ao julgamento da matéria de facto, sobre a fundamentação constante da Sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, e finalmente sobre a interpretação e aplicação aos autos da norma ínsita no artigo 368.º do Código Civil quanto aos elementos clínicos relativos ao pai do Autor remetidos pelo Hospital ..., não impugnados pela Ré, podem e devem subsumir-se aos conceitos que preveem a suscetibilidade do recurso de revista excecional, de acordo com o disposto nas alíneas a) e b), do n.º 1, do art. 672.º, do CPC.

 9. Na verdade, desde logo, está em causa uma questão de particular relevância social, a questão da validade ou invalidade de um casamento civil contraído pelo pai do Recorrente, alguns dias antes de falecer, acometido por uma doença grave, em estado terminal, e numa evidente situação de demência, causada pela doença de Alzheimer, conforme elementos relativos à história médica remetidos pelo Hospital ....

 10. Em segundo plano está em causa uma questão relativa à fundamentação do julgamento da matéria de facto, relativa à desconsideração do depoimento das testemunhas EE e FF, os quais visitavam amiúde o avô, são irmãos gémeos, vivem em conjunto, em casa de seus pais, recusando a Sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância conferir-lhes qualquer credibilidade referindo, que os respetivos depoimentos foram praticamente similares, omitindo os factos e circunstâncias referidas, que estamos perante duas testemunhas que são irmãos gémeos, visitavam amiúde o avô, vivem em conjunto, em casa dos pais. A justificação do Tribunal de Primeira Instância, sancionada pelo Tribunal “a quo”, padecendo de suporte pelas regras da lógica e da experiência comum, evidenciando erro notório na apreciação da prova testemunhal, em violação da norma ínsita no n.º 4 do artigo 607.º, do CPC. Ou seja, qual a interpretação e aplicação da referida norma no caso concreto para uma melhor aplicação do direito.

 11. Por outro lado, e ainda no plano consagrado na alínea a), do n.º 1, do art. 672.º, do CPC, relativa ao ónus que recai sobre o recorrente que impugna o julgamento que recaiu sobre a matéria de facto, quando, pela sua essencialidade, reproduz integralmente o depoimento de uma testemunha, in casu, o depoimento da testemunha GG, médica que assistiu o pai do Recorrente, autora dos elementos clínicos juntos aos autos que traduzem a história clínica do pai do Recorrente, nomeadamente na consulta de neurologia, fá-lo de forma a evidenciar a importância deste depoimento conjugado com o teor dos elementos clínicos, cumprindo, desta forma, sem margem para dúvidas, que o Recorrente cumpriu o “triplo ónus de impugnação previsto no art. 640.º, do CPC”. 

 12. Estão, in casu, reunidas as circunstâncias a que aludem as alíneas a) e b), do n.º 1, do art. 672.º, n.º 1, do CPC, i. é, no presente recurso de revista excecional está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é necessária para uma melhor aplicação do direito, dela dependendo interesses de particular relevância social, como seja a certeza na interpretação e aplicação do Direito.

 13. O Acórdão recorrido julgou, como referido, totalmente improcedentes as conclusões constantes do recurso de apelação que o Recorrente deduziu da Sentença proferida pelo Tribunal da Primeira Instância, sancionando, assim, nas diferentes questões de facto e de direito suscitadas pelo Recorrente, o entendimento do Tribunal de Primeira Instância, que aqui se reproduzem:

14. Não obstante a extensa fundamentação ou motivação da decisão sobre a matéria de facto, existem, com o devido respeito, que é muito, evidentes erros de julgamento, que não passam despercebidos.

 15. Quanto aos factos julgados por provados, o Recorrente considera incorretamente julgados os seguintes factos: (…) 4) À data do casamento, o pai do autor estava em condições de exercer livremente a sua vontade, que era casar com a ré; 5) O pai do autor compreendeu o sentido e alcance das declarações prestadas para formalização do casamento; 6) O pai do autor deslocou-se à Conservatória do Registo Civil ... de livre vontade, sabendo que ia e querendo casar.

 16. Quanto à matéria de facto não provada, o Recorrente considera incorretamente julgados: a) Na data em que o casamento foi contraído o pai do autor sofria de doença de Alzheimer, encontrando-se em estado de demência avançada; b) O primeiro registo dos sintomas ou sinais da referida doença surgiram em 29 de Outubro de 2010, na consulta de Medicina III-B do Hospital ..., EPE; c) Na data desse casamento, o pai do autor estava incapaz de se lembrar de situações ocorridas poucos minutos antes; d) Era incapaz de compreender ou utilizar a linguagem; e) Dificilmente reconhecia amigos e família; (…); i) Estava acamado e dependente de uma cadeira de rodas para deslocar-se, apresentando movimentos incontrolados; j) Dependia física e emocionalmente da ré para tudo; k) Aproveitando a incapacidade do pai do autor, a ré conduziu-o, à força e contra a sua vontade, à Conservatória do Registo Civil ... para formalização do casamento; l) Nessa ocasião era notória a demência do pai do autor.

 17. De acordo com o princípio da aquisição processual, ínsito no artigo 413.º, do CPC, o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, i. é, o juiz deve tomar posição sobre a globalidade da prova produzida.

 18. A valoração das provas pelo juiz deve […] ser feita de forma livre e segundo a sua prudente convicção, ou seja, sem estar condicionada por critérios legais preestabelecidos ou uma escala de hierarquização ou vinculação, devendo, contudo, entender-se a decisão judicial como um “raciocínio justificativo mediante o qual o juiz mostra que a decisão se funda em bases racionais idóneas para a tornarem aceitável”.

 19. A convicção do juiz não poderá ter por base critérios arbitrários, irracionais ou ilógicos, exigindo-se precisamente que os mesmos sejam racionais, lógicos, objetivos e assentes nas regras de experiência, de modo a que possam ser explicitáveis e compreensíveis (para o próprio julgador e para terceiros) através da fundamentação da decisão.

 20. [S]e o julgador é, em regra, livre de formar a sua convicção com base em qualquer das provas produzidas (pode basear-se no depoimento de uma testemunha em detrimento de depoimento de outra ou outras ou de um documento e vice-versa), tal liberdade tem como contrapartida o dever de fundamentação, obrigando o julgador a explicitar de forma racional, lógica, objetiva e assente nas regras da experiência, a razão pela qual se baseou em determinado meio de prova e, pelo contrário, considerou outro não credível.

 21. [D]ecidir de forma arbitrária significa fazê-lo sem justificação, não seguindo princípios lógicos, regras ou normas.

 22. [I]nserindo-se a análise crítica da prova no âmbito da fundamentação de facto da decisão e visando a mesma explicitar as razões em que se baseou a decisão judicial, é evidente que esse objetivo nunca seria atingido se tal análise fosse feita de modo completamente injustificado e, consequentemente, impercetível e incompreensível para terceiros e, eventualmente até para o próprio juiz.

 23. Ao contrário dos critérios arbitrários, já os argumentos assentes na racionalidade, lógica, objetividade e regras da experiência serão, à partida, facilmente apreensíveis por qualquer destinatário, na medida em que a razão é algo de comum a todos os seres humanos.

 24. De acordo com HELENA CABRITA, os critérios em que podem assentar os argumentos ou fundamentos sobre a credibilidade das provas são: (i) a razão da ciência: ou seja, o modo ou a fonte de onde adveio o conhecimento sobre os factos atestados (…); (ii) relações familiares, de amizade ou incompatibilidade, de dependência ou inexistentes: é inegável a importância que assumem as referidas relações, pois, como é sabido, um familiar, amigo chegado ou inimigo de uma das partes poderá mais facilmente ser tentado a faltar à verdade no intuito de beneficiar ou desfavorecer esta do que uma testemunha que não conhece nenhuma das partes, mas calhou a estar presente no momento em que os factos ocorreram (…); (iii) o modo de produção da prova ou de articulação da prova produzida entre si: a este propósito, pretendemos significar, como indicador de maior credibilidade, o facto de um depoimento ser prestado de forma coerente, escorreita e espontânea, em que a testemunha apresenta uma postura serena e é capaz de oferecer um depoimento rico em pormenores, com avanços e recuos, localizando-se, movimentando-se facilmente dentro da linha temporal dos acontecimentos (por contraposição a uma testemunha que apresenta evidente e manifesta animosidade para com uma das partes e que se limita a responder às questões colocadas por monossílabos, de forma hesitante ou incoerente). Outro elemento suscetível de relevar maior credibilidade consiste, sem dúvida, no facto de os diversos meios probatórios se articularem ou conjugarem entre si (pense-se, por hipótese, numa ação em que se discutem as consequências de uma ofensa à integridade física e em que a prova testemunhal, no que concerne ao modo de produção das lesões e características das mesmas, pode ou não compatibilizar-se com os documentos – elementos clínicos – junto aos autos); (iv) a conformidade com as regras da experiência e a normalidade do acontecer: aqui está em causa a verosimilhança ou congruência da versão apresentada ou que resulta de determinado meio de prova.

25. Na sentença sub iudicio, uma parte muito importante da prova é documental, correspondendo, designadamente, aos elementos documentais do processo médico do falecido CC, remetidos aos autos pelo Hospital ....

26. Todos os elementos documentais, incluindo, portanto, os elementos médicos, foram notificados ao Recorrente e à Recorrida, não tendo qualquer das partes impugnado ou deduzido qualquer oposição aos mesmos.

 27. Quaisquer reproduções fotográficas ou cinematográficas, registos fonográficos e quaisquer outras reproduções mecânicas de factos ou de coisas quanto aos factos e coisas que representam, se a parte contra quem os documentos são apresentados não impugnar a sua exatidão, fazem prova plena (cf. artigo 368.º, do CC)

 28. A reprodução só adquire o valor legal de prova plena se a parte contra quem o documento é apresentado não impugnar a sua exatidão (parte final do art. 368.º), admitindo implicitamente que os factos ocorreram como representados na reprodução. Tal como no art. 374.º, n.º 1, apela-se aqui a um comportamento integrativo da contraparte, consistente na não impugnação da exatidão. Daqui decorre que incumbe à contraparte o ónus de impugnar a exatidão da reprodução, sendo que a impugnação só é eficaz se expressa de um modo claro, circunstanciado e explícito, com expressa alegação de factos/circunstâncias atinentes àquela concreta reprodução, que apontem no sentido da não correspondência entre a realidade factual e o conteúdo reproduzido.

 29. [N]uma primeira interpretação, o seu sentido útil é o de que – não ocorrendo a impugnação da exatidão – a eficácia do meio de prova fica subtraída à livre apreciação do juiz, sendo vinculante para este. É este o sentido precípuo da prova plena.

 30. Na apreciação dos documentos respeitantes ao processo clínico do falecido CC, entende o Recorrente que o Tribunal “a quo” violou a regra ínsita no artigo 368.º, do CC, considerando que na sequência da notificação dos elementos clínicos à Recorrida, não os impugnou.

 31. Não tendo a Recorrida impugnado a exatidão dos documentos juntos as autos pelo Hospital ..., a prova assim produzida corresponde a prova plena, ficando a sua eficácia subtraída à livre apreciação do juiz, sendo, assim, vinculante para o Tribunal (cf. artigo 368.º, do CC).

 32. Em causa está, assim, as conclusões que podem (devem) retirar do teor do processo médico do pai do Recorrente, do Hospital ..., em especial, e por ordem cronológica: (i) do registo clínico da consulta de Medicina IV, de 29.10.2010, em que o pai do Recorrente foi observado pelo Dr. HH, que, expressamente, refere “quadro demencial há uns meses”; e, (ii) do registo clínico da consulta de neurologia, de ... .01.2017, em que o pai do Recorrente foi observado pela Dra. GG, que expressamente indica que o pai do Recorrente padecia nesta data de uma doença demencial, com vários anos de evolução – possivelmente misto: etilismo + vascular + Alzheimer – moderado/grave – perda de autonomia marcada, e demais registos clínicos que referem, abundante e expressamente, o quadro demencial do pai do Recorrente.

 33. Do depoimento da testemunha, Sra. Dra. GG, médica neurologista, que observou o pai do Autor, em ... .01.2017, portanto algum tempo antes do casamento em causa na presente ação, autora do registo clínico analisado no depoimento, é impossível não dizer, com base no diagnóstico então realizado, que o pai do autor padecia de Alzheimer ou de demência.

 34. As certezas sobre o diagnóstico realizado, em função das informações diretamente recolhidas pela testemunha quanto à doença de Alzheimer ou de demência são bastante evidentes, assim como é bastante evidente o estado avançado da doença, moderado-grave.

 35. De notar, quanto ao quadro dito subjetivo retratado no relatório clínico em apreço, é a Ré que confirma as informações que aí constam, pois, como já foi referido, notificada para se pronunciar não as impugnou ou deduziu qualquer pronúncia quanto às mesmas, aceitando o teor deste relatório médico.

 36. A testemunha Sra. Dra. GG, refere, expressamente, sem margem para qualquer dúvida, que o quadro subjetivo que consta do relatório clínico sub iudicio, correspondendo a informações recolhidas através de família, de outros clínicos ou até do acompanhante, e o quadro objetivo, ou seja, a avaliação direta que realizou mediante observação do pai do Recorrente, não apenas não se contradizem, como um quadro confirma o outro, complementando-se.

 37. Em face do exposto não restam quaisquer dúvidas sobre o diagnóstico da doença de Alzheimer ou de demência do pai do Recorrente, numa evolução de moderado-grave, sete meses antes da celebração do casamento em causa na presente ação, com tendência para piorar, como é comummente reconhecido.

 38. Para além da doença de Alzheimer ou de demência importa também reter uma outra doença do pai do Recorrente, facilmente percetível do depoimento da Sra. Dra. GG e dos elementos clínicos juntos aos autos, que no dia da consulta médica, o pai do Recorrente, para além da doença de Alzheimer ou de demência, padecia também da doença de Parkinson, com constantes tremores dos membros.

 39. A partir do depoimento da testemunha Sra. Dra. II, constata-se que a última consulta que realizou com o falecido CC, ocorreu em ... .12.2013, cinco antes da consulta realizada pela Sra. Dra. GG, em ... .01.2017.

 40. Uma e outra consulta não são comparáveis nem se complementam.

 41. O que foi observado por uma e outra testemunha, médicas, não é comparável, sendo que a doença de Alzheimer ou demência é uma doença progressiva.

 42. O facto da testemunha, Sra. Dra. II, não ter confirmado a doença de Alzheimer ou demência do pai do Recorrente em ... .12.2013 não permite que se conclua que o pai do Recorrente não sofria da doença de Alzheimer ou demência, em ... .01.2017 e por maioria de razão no dia em que foi celebrado o casamento em causa.

 43. Na consulta de ... .12.2013, a médica de família, Sra. Dra. II, na sequência da observação que fez, pediu uma TAC para rastrear um quadro de demência, o que é explicável pela existência de sinais da doença de Alzheimer ou de demência.

44. No que respeita ao surgimento do primeiro sintoma da doença de Alzheimer ou de demência, importa ter em conta o relatório clínico de folhas 20 verso, correspondente à consulta de Medicina III-B, do H..., EPE, no qual surge, expressa e inequivocamente, a referência à doença de Alzheimer, há uns meses, que a Recorrida, notificada do respetivo teor, não impugnou.

 45. Para além das referências à doença de Alzheimer ou demência supra mencionadas, acrescem as abundantes menções às mesmas doenças, as quais se repetem em todos os relatórios clínicos juntos aos autos, que a Recorrida, notificada do respetivo teor, não impugnou.

 46. No depoimento da testemunha Sra Dra. GG, na consulta de neurologia, afirmou que sujeitou CC a um teste de rastreio de demências, denominado MMSE. Para uma pessoa com a escolaridade de CC a pontuação devia ser pelo menos de 22, em 30, mas no caso a pontuação atingida foi de apenas 13, donde concluiu por um deficit cognitivo, ou seja, o paciente já não tinha capacidade para executar tarefas mais complexas. Fez referência a “demência” em estado moderado - grave, e a “alzheimer” no seu relatório porque tais doenças lhe parecem prováveis face aos sinais que observou naquela consulta

47. Tendo em conta toda a prova produzida, documental e testemunhal correspondente ao processo médico e ao depoimento da testemunha, Sra. Dra. GG, respetivamente, de acordo com critérios assentes na racionalidade, lógica, objetividade e regras da experiência, pode e deve concluir-se, sem margem para qualquer dúvida, que ao pai do autor, em ... .01.2017, na consulta de neurologia, foi diagnosticado uma doença demencial, em estado de moderado-grave e que esta doença, pelas caraterísticas que tem, abundantemente conhecidas, se mantinha ou ter-se-ia agravado, quando, em ... .07.2017 celebrou o casamento com a Recorrida.

48. As testemunhas EE e FF, são irmãos gémeos, netos do falecido CC com quem sempre conviveram.

 49. A similitude apontada pelo Tribunal “a quo” na valoração dos dois depoimentos é perfeitamente natural, considerando que as testemunhas são irmãos gémeos, partilham a mesma casa, trabalham juntos, visitavam juntos o avô e assim é perfeitamente natural que tenham utilizado as mesmas expressões.

 50. Foram muitas e diversas as visitas descritas pelas duas testemunhas ao avô (cf. registo áudio dos dois depoimentos na audiência de julgamento de 05.02.2020, estando os depoimentos registados com inicio às 10,44 horas e fim às 10,56 horas e das 10,25 horas e às 11,25 horas, respetivamente).

 51. Além das diversas visitas que fizeram ao avô, em sua casa, descreveram uma outra visita ao avô, no hospital, no período do seu internamento, em 2017. De relevante, sobre esta, também em uníssono, relataram que o avô não comunicou com eles, estava muito doente, não os reconheceu, não tinha um discurso com sentido, apresentava uma cor amarelada e só chorava ao olhar para eles, e que a ré [esteve] presente o tempo todo.

52. A referência feita pelas testemunhas à Ré revela apenas e tão só, que os dois irmãos, quando foram visitar o avô ao hospital, não conseguiram estar sozinhos com o seu avô, por a Ré não o ter permitido.

53. Recorrendo a argumentos assentes na racionalidade, lógica, objetividade e regras da experiência, facilmente apreensíveis por qualquer destinatário, na medida em que a razão é algo de comum a todos os seres humanos, os dois depoimentos confirmam, de forma circunstanciada, relatando diversos momentos das visitas que fizeram ao avô nos últimos anos da sua vida, o quadro da doença de Alzheimer ou demência, de acordo com os elementos médicos nos autos. Este quadro de doença de Alzheimer ou de demência sai reforçado pelo diagnóstico explicado pela da Sra. Dra. GG, que observou o falecido CC na consulta do dia ... .01.2017.

 54. O mesmo raciocínio aplica-se aos depoimentos de JJ e de KK, ainda que tenham visitado o avô em menor numero, nos últimos anos de vida, por comparação às vistas feitas pelos primos, não deixaram de relatar circunstanciadamente as visitas que fizeram, assim como, a partir das conversas que tiveram com o avô, evidentes sinais de demência do avô desde, pelo menos, 2013 e 2015 (cf. depoimentos prestados na audiência de julgamento de 05.02.2020, registados em suporte digital, com inicio às 10,44 horas e fim às 10,56 horas e 10,25 horas às 11,25 horas, respetivamente).

55. A testemunha Sr. LL, cujo depoimento se encontra registado em suporte digital, com início às 12,19 horas e fim às 12,27 horas, da audiência de julgamento de 04.02.2020, relatou que conheceu CC quando ainda era miúdo, com 11 anos de idade, com quem começou a trabalhar (minuto 1:33). Que desde então sempre o visitou, assim como também visitava a Sra. Dona DD (ex-mulher de CC), que insistia falar com ele (referindo-se a CC), mas já não me reconhecia (minuto 3:00). Que visitava o Sr. CC e a Sra. Dona DD com frequência, por serem pessoas que considerava como sua família, seus pais (minuto 6:10).

56. Do depoimento da testemunha Sr. LL, são abundantes e circunstanciadas as referências a evidentes sinais de demência de CC, desde há largos anos, pelo menos desde 2015.

57. Pelas razões acima indicadas, a partir deste depoimento, conjugado com os depoimentos referidos anteriormente, de EE, FF, JJ, KK, conjugados com o depoimento da Sra. Dra. GG, e conjugados, ainda, com os relatórios médicos juntos aos autos, a conclusão racional, lógica, objetiva e de acordo com as regras da experiência, facilmente apreensíveis por qualquer destinatário, na medida em que a razão é algo de comum a todos os seres humanos, só pode ser uma: no momento em que foi celebrado o casamento em causa na presente ação, CC sofria de Alzheimer ou de demência, não reconhecia as pessoas com quem se cruzava, não era capaz de compreender coisas simples do dia-a-dia, necessitava de assistência diária e permanente para se alimentar, vestir, fazer a higiene diária, deslocar-se, etc., em razão da doença de Alzheimer ou demência, agravada pela doença de Parkinson e por fim pela doença cancerígena.

58. Não é verdade que a testemunha MM tenha atestado que recebeu os nubentes e fez-lhes as perguntas normais, sobre se querem casar, se têm filhos e outras, verificou os assentos de nascimento e explicou o regime de bens. Conforme é imperativo da sua profissão, fez a necessária verificação sobre se os nubentes estavam conscientes, conversando com eles e fazendo-lhes várias perguntas. Nessa sequência, nada tendo achado de anormal, elaborou o auto de declarações para casamento

59. A testemunha Sra. MM prestou depoimento na audiência de julgamento de 10.02.2020, estando o seu depoimento registado em suporte digital, com inicio às 12,01 horas às 12,11 horas e 12,33 horas até às 12,50 horas.

 60. A testemunha Sra. MM, perentoriamente afirmou não se lembrar quem atendeu nesse dia (referindo-se ao dia da celebração do casamento) (minuto 2:19), que não se lembra das pessoas (referindo ao pai do Recorrente e à Recorrida) (minuto 2:48) e que não se recorda da situação (minuto 4:10). O que a testemunha Sra. MM relatou ao Tribunal “a quo” limitou-se à descrição do que é comum ou normal nas circunstâncias em causa.

 61. A testemunha disse ainda que faz o processo de casamento em 10 minutos (minuto 6:20).

 62. Cruzando este depoimento com o depoimento prestado pela Sra. NN, que, para além do despacho escrito que proferiu na sequência do auto de declarações, elaborado em 10 minutos, na sala de cerimónias, com base no auto de declarações, só viu os noivos na sala de casamento (minuto 1:54 e 13:00). Que não esteve presente quando os nubentes manifestaram intenção em casar (minuto 1:02). Que no registo civil só verificam a capacidade civil para contrair casamento (minuto 7:20).  

63. Do depoimento da testemunha Sra. NN concluiu-se que a sua intervenção limitou-se à pergunta aos nubentes se desejavam casar, tendo respondido que “sim”.

64. Os relatos das Senhoras testemunhas NN e MM, não permitem concluir que no dia em que CC, pai do Recorrente, celebrou casamento estava em condições de exercer livremente a sua vontade de casar com a Recorrida, tendo compreendido o alcance das declarações prestadas e que se deslocou à Conservatória de livre vontade, sabendo que se ia casar com a Recorrida, querendo fazê-lo.

 65. Como decorre do relato do depoimento da testemunha Sra. Dra. GG, supra transcrito, não obstante o diagnostico de Alzheimer ou demência num estado de moderado-grave, e não obstante a incapacidade de discernir, isto é, de compreender o alcance do ato de casamento, o pai do Recorrente, nas circunstancias relatadas do que terá ocorrido na sala de casamento, poderia responder que sim, não afastando o diagnóstico e doença de Alzheimer ou demência no momento em que o casamento foi celebrado.

 66. Uma mera resposta de “sim” à pergunta se quer casar não é suficiente para que se concluir que no dia em que CC, pai do Recorrente, celebrou casamento estava em condições de exercer livremente a sua vontade de casar com a Recorrida, tendo compreendido o alcance das declarações prestadas e que se deslocou à Conservatória de livre vontade, sabendo que se ia casar com a Recorrida, querendo fazê-lo.

67. Do depoimento da testemunha Sr. OO (na audiência de julgamento de 10.02.2020, estando o seu depoimento registado em suporte digital, com inicio às 10,29 horas até às 11,17 horas), sobressai uma única ideia: um depoimento em absoluta “contra-mão” com as doenças conhecidas de CC, Parkinson, Alzheimer ou demência e cancro. Para a testemunha Sr. OO, nada de grave ou de condicionante se passava com o pai do Autor.

68. O depoimento da testemunha Sr. OO não pode (deve) merecer qualquer credibilidade.

 69. Em face do exposto, recorrendo a argumentos assentes na racionalidade, lógica, objetividade e regras da experiência, facilmente apreensíveis por qualquer destinatário, na medida em que a razão é algo de comum a todos os seres humanos, devem ser considerados provados os seguintes factos:

a. Na data em que o casamento foi contraído o pai do autor sofria de doença de Alzheimer ou demência em estado de demência moderado-grave;

b. O primeiro registo dos sintomas ou sinais da referida doença surgiram em 29 de Outubro de 2010, na consulta de Medicina III-B do Hospital ..., EPE;

 c. Na data desse casamento, o pai do autor estava incapaz de se lembrar de situações ocorridas poucos minutos antes;

d. Compreendia e utilizava linguagem básica;

e. Dificilmente reconhecia amigos e família;

f. Era incapaz de reconhecer objectos que faziam parte do seu quotidiano;

 g. Estava acamado e dependente de uma cadeira de rodas para deslocar-se, apresentando movimentos incontrolados;

 h. Dependia física e emocionalmente da ré para tudo;

i. Aproveitando a incapacidade do pai do autor, a ré conduziu-o, à força e contra a sua vontade, à Conservatória do Registo Civil ... para formalização do casamento;

j. Nessa ocasião era notória a demência do pai do autor.

 70. Devendo ser considerados não provados os seguintes factos:

i. À data do casamento, o pai do autor estava em condições de exercer livremente a sua vontade, que era casar com a ré;

ii. O pai do autor compreendeu o sentido e alcance das declarações prestadas para formalização do casamento;

iii. O pai do autor deslocou-se à Conservatória do Registo Civil ... de livre vontade, sabendo que ia e querendo casar.

 71. Nos termos dos artigos 1638º e 1601º, alínea b) do Código Civil (CC), o casamento celebrado entre o pai do Recorrente e a Recorrida deve ser anulado porque foi celebrado em estado de coação e em estado de demência notória.

 72. O artigo 1601°, alínea b), do CC, expressamente refere que constitui impedimento dirimente, obstando ao casamento da pessoa a que respeita com qualquer outra "A demência notória, mesmo durante os intervalos lúcidos, e a interdição ou habilitação por anomalia psíquica". “Para efeitos desta disposição deve entender-se como "demência" o conjunto de perturbações mentais graves que alteram e estrutura mental da pessoa em causa, com profunda diminuição da sua actividade psíquica (funções intelectuais e afectividade), tornando-a incapaz de reger a sua pessoa e bens. E é "notória", designadamente, quando seja objectivamente reconhecível ou reconhecida no meio.”, cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 01-07-2004, processo nº ...00, acessível in www.dgsi.pt.

 73. O artigo 1638º, nº 1, do CC, preceitua que [é] anulável o casamento celebrado sob coacção moral, contanto que seja grave o mal com que o nubente é ilicitamente ameaçado, e justificado o receio da sua consumação, e o nº 2 que [é] equiparada à ameaça ilícita o facto de alguém, consciente e ilicitamente, extorquir ao nubente a declaração da vontade mediante a promessa de o libertar de um mal fortuito ou causado por outrem.

 74. A citada norma tem que ser completada com a definição de coacção moral que encontramos no artigo 255º, nºs 1 e 2 do CC, segundo os quais [d]iz-se feita sob coacção moral a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração (nº 1) e [a]ameaça tanto pode respeitar à pessoa como à honra ou fazenda do declarante ou de terceiro (nº 2).

 75. O Recorrente provou a demência notória do seu pai CC no momento da celebração do casamento com a ré, bem como o estado de sujeição e de coação, enquanto factos constitutivos da anulação do casamento.

 76. Como consequência da procedência do pedido relativo à invalidade do casamento, nos termos suprarreferidos, deve também proceder o pedido de averbamento de anulação do casamento nos respetivos assentos de nascimento e de casamento.

 77. Pelas conclusões do recurso de apelação, já reproduzidas, o Tribunal “a quo” não tem razão.

 78. De um lado, o Recorrente em relação a cada uma das conclusões relativas à impugnação do julgamento da matéria de facto, não apenas deu cumprimento ao ónus de impugnação previsto no artigo 640.º do CPC, ao indicar o julgamento de facto de que discorda, reproduzindo, pela enorme e intensa relevância que tem o depoimento da testemunha GG, no que diz respeita à doença de Alzheimer do pai do Autor, depoimento que aliado ao elementos clínicos juntos aos autos, remetidos pelo Hospital ..., levam, de acordo com as regras da lógica e da experiência comum a uma decisão de sentido oposto ao do Tribunal “a quo”, demonstrando, sem margem para dúvidas, um erro notório na apreciação da prova.

79. A indicação com exatidão no caso dos autos, quanto à reapreciação do depoimento da médica assistente na especialidade de neurologia, é dispensada no caso dos autos pela reprodução integral escrita do depoimento, a apreciação ou reapreciação de tal depoimento pelo Tribunal superior dispensa  a indicação de certa ou certas passagens, mas antes obriga a que se considere, como fez o Recorrente, o seu teor integral, uma vez que, só assim, se pode proceder a uma correta reapreciação da prova testemunhal, com vista a aferir se, in casu, procedem as conclusões de recurso que a tal respeito foram alegadas pelo Recorrente.

 80. O Tribunal “a quo” ao recusar proceder à reapreciação da prova indica, violou o disposto nos artigos 640.º (a contrário), 641.º (a contrário) e 662.º, n.º 1, do CPC.

 81. A questão sub iudicio é uma questão de Direito, porquanto versa sobre a interpretação e aplicação no caso dos presentes autos de diferentes normas jurídicas, em especial, sobre a questão do cumprimento do triplo ónus de impugnação previsto no artº 640º do CPC, o qual, pelo exposto, impõe ao Tribunal “a quo” que proceda à reapreciação do depoimento da testemunha GG e que se pronuncie no sentido de saber se tal depoimento, conjugado com os referidos elementos clínicos, impunham, como impõe, um julgamento sobre a matéria de facto diferente do realizado pelo Tribunal de Primeira Instância.

82. Por outro lado, ao contrário do sancionado pelo Tribunal “a quo” o fundamento ou justificação oferecida pelo Tribunal de Primeira Instância quando desconsidera ou considera inidóneos os depoimentos das testemunhas EE e do seu irmão gémeo, que visitavam amiúde o seu avô, pai do Recorrente, por terem sido praticamente similares e marcados por alguma falta de espontaneidade, que foi notória quando usaram exatamente as mesmas expressões, por exemplo, que lhes era “barrada a entrada” na casa do avô, que o avô só chorava no hospital, etc., omitido que as testemunhas, como já foi referido são irmãos gémeos, residem em conjunto em casa dos pais, o que torna absolutamente natural que os seus depoimentos tenham sido similares.

83. É natural e decorre das regras de experiência comum que, quando se está perante duas testemunhas, irmãos gémeos, que residem em conjunto em casa dos seus pais e que visitavam, em conjunto, amiúde o seu avô, que os seus depoimentos sejam similares.

84. O Recorrente discorda, por entender que são violadas as regras de objetividade e de experiência comum com a justificação ou fundamentação dos dois depoimentos, que leva a que o Tribunal de Primeira Instância não os considere como idóneos e que o Tribunal “a quo” se recusa a reapreciar.

85. O Recorrente discorda e entende que esta questão, pela relevância que tem, merecerá certamente a atenção do Supremo Tribunal de Justiça, quanto à formulação utilizada na fundamentação do julgamento de facto, existindo uma evidente situação de quebra das regras de objetividade e de experiência comum, tendo assim o Recorrente demonstrado um evidente erro notório na apreciação da prova.

 86. Existe erro notório na apreciação da prova, quer quanto à apreciação do depoimento da testemunha GG, médica neurologista, assistente médica do pai do auto e autora dos elementos clínicos remetidos aos autos pelo Hospital ... relativos á história médica do pai do Recorrente, que evidenciam, de forma abundante que o pai do Recorrente, no momento em que contraiu o casamento em causa nos presentes autos, era doente de Alzheimer, o que, por força da lei, conduz à declaração de invalidade do casamento, nos termos peticionados pelo Recorrente e que aqui se dão integralmente por reproduzidos.

 87. Existe erro notório na apreciação da prova, na fundamentação da decisão de facto, na parte respeitante à apreciação do depoimento dos dois irmãos gémeos, EE e FF, netos do pai do Autor, que residem em conjunto, em casa dos pais e que visitavam amiúde o seu avô paterno.

 88. Por fim, o Tribunal “a quo”, erra quando julga improcedente uma questão tão sensível quanto a interpretação e aplicação do dsiposto no artigo 368.º do CC.

89. Quanto à questão relativa à interpretação e aplicação aos presentes autos da norma ínsita no artigo 368.º, do CC, considerando que os elementos clínicos junto aos autos, não foram impugnados pelas partes, fazem prova plena dos factos relativos à situação clínica do pai do Autor e em especial à doença de Alzheimer que o afetava, desde há largos anos anteriores ao momento em que contraiu casamento com a Recorrida.

 90. O Tribunal “a quo” ao sancionar o entendimento sufragado pelo Tribunal de Primeira Instância, viola a citada norma de direito substantivo, pondo em causa um entendimento de extraordinária relevância, numa questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito e também pela particular relevância social dos interesses sociais em causa.»


 Termina, dizendo dever ser admitido o recurso de revista excepcional e julgado procedente, por provado, e, em consequência, ser revogado o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.

 

 Contra-alegou a Recorrida, pugnando pela rejeição da revista excepcional.

Foi proferido despacho, pelo ora relator, no qual se decidiu receber o recurso a título de revista normal, escrevendo-se, a propósito e entre o mais, o seguinte:

«Neste caso, está em jogo, como já se referiu, a impugnação da decisão da matéria de facto, verificando-se que o recurso assenta no que sobre essa matéria, foi decidido, ex novo, pelo Tribunal da Relação.

Tem-se entendido que, nestas situações – em que está em causa uma apreciação que, por parte da Relação não tem paralelo com decidido pela 1ª Instância, desencadeada pela impugnação da matéria de facto apresentada nas alegações da apelação e questionando-se, no recurso de revista, o modo como a Relação exerceu os poderes que lhe competiam no conhecimento dessa impugnação, abstendo-se, de forma inadequada, segundo o Recorrente, do tratamento de questões relevantes –, não se verifica dupla conforme e, sendo assim, deverá o recurso ser recebido como revista normal.

A título de exemplo, vejam-se, relativamente a casos de rejeição da impugnação da matéria de facto, em que se entendeu estar afastada a dupla conforme, os Acs. do STJ de 17-12-2019, Proc. 363/07.7TVPRT-D.P2.S1, Rel. Maria da Graça Trigo; de 18-01-2020, Proc.701/19.0T8EVR.E1.S1, Rel. Maria João Vaz Tomé, e de 18-01-2022, Proc. 243/18.0T8PFR.P1.S1, Rel. Maria Clara Sotto Mayor, publicados em www.dgsi.pt.

Assim, processar-se-á o recurso como revista normal


Na mesma ocasião, foi proferido despacho, que incidiu sobre um requerimento do Recorrente em que este pretendia a junção de um “parecer” (assim o rotulou), do seguinte teor:

«O Recorrente, estando o processo já neste Supremo Tribunal, veio requerer a junção de um “parecer” elaborado a partir dos elementos clínicos documentais fornecidos pelo Hospital ..., que se encontram juntos aos presentes autos, naquele se concluindo que o pai sofria da doença de Alzheimer, entre outras, no momento da outorga do casamento em causa[1] nos presentes autos.

Explica que esse relatório ou parecer foi realizado no âmbito de uma outra acção que o Autor instaurou contra a Ré, visando a declaração de invalidade de um testamento exibido pela mesma Ré, outorgado alguns dias antes do falecimento do pai do Autor, contemporâneo com o casamento em causa nos presentes autos, tendo, naquela acção, o Autor requerido a realização de perícia média sobre todos os elementos clínicos conhecidos, designadamente os do Hospital ..., para que, com base nos referidos elementos clínicos, os senhores peritos se pronunciassem sobre as doenças de que o Pai do Autor padecia e as consequências daí decorrentes.

A Recorrida opôs-se ao requerimento, referindo que constam dos autos todos os elementos clínicos a que se reporta o relatório pericial em causa, sucedendo que, neste processo, não foi requerida perícia e que a desejada junção viola as normas processuais atinentes ao momento em que poderia ser feita.

Vejamos.

Nos termos do art. 680º, nº2, do CPC, à junção de pareceres é aplicável o disposto no nº 2 do art. 651º.

No nº 2 do art. 651º do CPC, preceitua-se que as partes podem juntar pareceres de jurisconsultos até ao início do prazo para a elaboração do projecto de acórdão.

Como se vê, as partes apenas podem juntar até ao início do prazo para a elaboração do projecto de acórdão pareceres de jurisconsultos.

Conforme refere Abrantes Geraldes, pareceres de jurisconsultos não se podem confundir com outros pareceres técnicos, que são considerados documentos, citando, a propósito, o Ac. do STJ de 06-01-2020, Proc. 700.16.3T8PRT.P1.S1, Rel. Rosa Ribeiro Coelho, https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:700.16.3T8PRT.P1.S1/, no qual, entre o mais, se exarou que:

«I – Referindo-se apenas aos pareceres dos jurisconsultos, a menção a pareceres constante do n.º 2 do art. 651.º do CPC tem exatamente o mesmo sentido e alcance do que a feita constar no subsequente art. 652.º, n.º 1, e).

II – Pareceres médicos, enquanto elementos de prova sobre as “leges artis” a observar nas práticas cirúrgicas, são documentos cuja junção em fase de recurso tem de obedecer ao disposto no n.º 1 daquele art. 651.º.»

O documento que o Recorrente pretende juntar é um relatório de uma perícia médico-legal, com parecer psiquiátrico-forense, não tendo, por isso, a natureza de um parecer de jurisconsulto. Daí que não seja admissível a sua junção.

(…)

Não se admite o documento junto pelo Recorrente, com o requerimento de 20-01-2022, ordenando-se o seu desentranhamento e devolução ao apresentante, com custas, a suportar por este, pelo incidente, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC».


O Recorrente veio reclamar para a conferência, alegando o seguinte:

«1.º

Na verdade, a douta decisão, de que o Recorrente ora reclama, tem razão quanto à natureza do relatório médico aqui em causa.

2.º

Tal relatório não pode ser considerado parecer, tal como, erradamente, o Recorrente, pela mão do subscritor, o qualificou, e que, desde já, se penitencia.

3.º

Contudo, na opinião do Recorrente, salvo, sempre, melhor opinião ou entendimento em sentido contrário, nada impede que o relatório do INML seja admitido na presente fase processual, como documento superveniente.

4.º

Como tem sido comummente reconhecido, no âmbito do recurso de revista a possibilidade de apresentação de documentos é mais restrita quando comparada com o recurso de apelação, uma vez que o Supremo Tribunal de Justiça não não conhece matéria de facto, pelo que não faz sentido a apresentação de prova documental enquadrável no âmbito da sindicância de um juízo de facto.

5.º

A admissão de documentos será então reservada para aqueles que revistam a natureza de supervenientes ou que tenham por objetivo demonstrar a violação de direito probatório material.

6.º

O relatório do INML, aqui em causa, é, de um lado, superveniente, e, de outro lado, tem por objeto demonstrar a violação de direito probatório material, considerando, em especial a decisão que admitiu o presente recurso como de revista normal.

7.º

Assim, e sempre com o douto suprimento, nada impede que V. Exas. corrijam o lapso do Recorrente quanto aos fundamentos do requerimento de junção do relatório do INML, configurando-o como documento superveniente, admissível nos termos do disposto no n.º 1 do art. 680.º, do CPC.

8.º

Acresce que na sequência da reclamação que a Recorrida deduziu contra o relatório do INML, na ação a correr termos sob o número 9688/19...., o INML prestou os esclarecimentos a que respeita a informação ao referido relatório que, pela sua relevância, e ao abrigo das disposições citadas, se requer a sua junção aos autos.

9.º

Da informação complementar, o INML reforça as conclusões quanto à doença e gravidade incapacitante das faculdades cognitivas do pai do Recorrente no momento em que foi celebrado o casamento em causa no presente recurso.

Termos em que requer, com o mui douto suprimento de V. Exas.

Junta: um documento, correspondente a informação complementar ao relatório do INML, que anteriormente se requereu a junção.»


A Recorrida veio pugnar pelo indeferimento da reclamação e ainda pelo desentranhamento da informação complementar junta com essa reclamação.


*


Apreciar-se-á, em primeiro lugar, a reclamação e, seguidamente, nos pronunciaremos sobre o objecto do recurso, que versa sobre a os vícios apontados pelo Recorrente à decisão da Relação sobre a impugnação da matéria de facto, que foi rejeitada.



II


No que tange à reclamação, verifica-se que o Recorrente vem dizer que, afinal, o que pretendeu juntar não tem a natureza de parecer, tratando-se, de qualquer modo, de um documento superveniente, admissível nos termos do art. 680º, nº1, do CPC.

Veio ainda juntar com a reclamação uma informação complementar, consistente em esclarecimentos do Senhor Perito sobre o seu relatório/parecer.


Dispõe o art. 680º, nº1, do CPC:

«1 - Com as alegações podem juntar-se documentos supervenientes, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 674.º e no n.º 2 do artigo 682.º.»


Desde logo se verifica que a admissibilidade de junção de documentos supervenientes é exercida com as alegações.

A pretendida junção verificou-se quando o processo já se encontrava neste Supremo Tribunal.

Por outro lado, importa ter em consideração a natureza dos documentos que podem ser juntos.

Vejamos o que, a propósito, diz Abrantes Geraldes, em anotação ao art. 680º, em Recursos em Processo Civil, 6ª edição, Almedina, Coimbra, 2020, p. 486:


«É mais restrita a possibilidade de apresentação de documentos no âmbito do recurso de revista, em comparação com o regime previsto para a apelação no art. 651.0 para a apelação. Tal encontra justificação no facto de o Supremo ter intervenção privilegiada em questões de direito, só excecionalmente sendo admitido a pronunciar-se sobre questões de facto.

Neste contexto, uma vez que está praticamente vedado ao Supremo alterar a decisão da matéria de facto provada, a aplicabilidade do preceito está reservada para os casos em que as instâncias tenham considerado provado um facto para o qual a lei exigia prova documental (v.g. escritura pública ou certidão de registo), com violação do direito probatório material, sustentando-o apenas em prova testemunhal ou em confissão, situação que pode ser regularizada, sem prejudicar o resultado, mediante a junção de documento que seja superveníente.»


Salvo o devido respeito, aqui não está em jogo alguma dessas situações.

Por outro lado, o documento em causa, sujeito a controvérsia, começando por um relatório, desemboca numa “Avaliação Clínica e Parecer Psiquiátrico-Forense”, importando reiterar que não se trata de um parecer de jurisconsulto (apenas a estes pareceres aludindo o art. 651º, nº2, ex vi do art. 680º, nº2 do CPC).

Pelo exposto, improcede a reclamação e há que desentranhar o documento com ela junto (que está associado àquele cuja rejeição ora se mantém).



III


Nas instâncias, deram-se por provados e não provados os seguintes factos:

A)  Factos provados

«1) O autor é filho de CC e de DD.

2) O pai do autor faleceu aos 75 anos, no dia ... de Agosto de 2017, no estado de casado com a ré BB.

3) A ré e o pai do autor casaram um com o outro em 5 de Julho de 2017, perante a 2a Ajudante de Conservador(a), na Conservatória do Registo Civil ..., tendo ficado consignado no respectivo assento a seguinte declaração: "Os nubentes declaram celebrar de livre vontade o seu casamento, perante a 2a Ajudante. ".

4) A data do casamento, o pai do autor estava em condições de exercer livremente a sua vontade, que era casar com a ré.

5) O pai do autor compreendeu o sentido e alcance das declarações prestadas para formalização do casamento.

6) O pai do autor deslocou-se à Conservatória do Registo Civil ... de livre vontade, sabendo que ia e querendo casar.

7) O pai do autor e a ré viveram um com o outro cerca de 25 anos.

8) O autor e a sua irmã, PP, estavam de relações cortadas com CC, seu pai, e não foram ao funeral do mesmo.

9) Na data em que o casamento foi contraído, o pai do autor precisava de ajuda para comer, tomar banho, arranjar-se e vestir-se.

10) De 11 a 27 de Abril de 2017 o pai do autor esteve internado no Serviço de Medicina IV do Hospital ..., EPE.

11) Após esse período de internamento hospitalar, o pai do autor permaneceu em casa até entrar na Unidade de Cuidados ..., em ..., onde esteve a ser cuidado até ao seu falecimento.


B) Factos não provados

«a)   Na data em que o casamento foi contraído o pai do autor sofria de
doença de Alzheimer, encontrando-se em estado de demência avançada.

b)    O primeiro registo dos sintomas ou sinais da referida doença
surgiram em 29 de Outubro de 2010, na consulta de Medicina III-B do
Hospital ..., EPE.

c) Na data desse casamento, o pai do autor estava incapaz de se lembrar de situações ocorridas poucos minutos antes.

d) Era incapaz de compreender ou utilizar a linguagem.

e) Dificilmente reconhecia amigos e família.

f)  Era incapaz de reconhecer objectos que faziam parte do seu
quotidiano.

g)   Ficava, frequentes vezes, perturbado durante o dia e a noite.
h) Ficava frequentemente inquieto e, por vezes, agressivo.

i) Estava acamado e dependente de uma cadeira de rodas para deslocar-se, apresentando movimentos incontrolados.

j) Dependia física e emocionalmente da ré para tudo, sem prejuízo do facto provado da alínea 9).

k) Aproveitando a incapacidade do pai do autor, a ré conduziu-o, à força e contra a sua vontade, à Conservatória do Registo Civil ... para formalização do casamento.

1) Nessa ocasião era notória a demência do pai do autor.

m) Era intenção e vontade do pai do autor, desde há alguns anos, casar com a ré.".



IV


As primeiras conclusões do recurso interposto revestem-se de um carácter introdutório, para além de se exporem as razões pelas quais, na perspectiva do Recorrente, deveria ser admitida a revista excepcional.

A partir da conclusão 14ª e até à 76ª, o Recorrente reproduziu as conclusões da apelação, nas quais surge a referência a meios de prova documentais e testemunhais.

 Ora, há que ter em conta os poderes do Supremo Tribunal de Justiça no que concerne à matéria de facto.

Dispõe o art. 674º, nº3, do CPC:

«O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.»


E preceitua o art. 682º do CPC:

«1 - Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.

2 - A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º.

3 - O processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo Tribunal de Justiça entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito


Conforme se exarou no Ac. do STJ de 15-12-2022, Rel. Oliveira Abreu, Proc. 524/20.3T8BJA.E1.S1, em www.dgsi.pt:

«O Supremo Tribunal de Justiça não pode sindicar o modo como a Relação decide sobre a impugnação da decisão de facto, quando ancorada em meios de prova, sujeitos à livre apreciação, podendo apenas intervir nos casos em que seja invocado, e reconhecido, erro de direito, por violação de lei adjetiva civil ou a ofensa a disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova, ou que fixe a força de determinado meio de prova, com força probatória plena.»


No Ac. do STJ de 30-11-2021, Rel. Tomé Gomes, Proc. 212/15.2T8BRG-B.G1.S1, publicado em www.dgsi.pt, considerou-se que:

 «I. Em sede de sindicância sobre o uso dos poderes pelo Tribunal da Relação na reapreciação da decisão de facto impugnada, cabe ao tribunal de revista ajuizar se, em tal pronunciamento, foram observadas as diretrizes prescritas no artigo 607.º, n.º 4, 1.ª parte, do CPC, de modo que o tribunal de recurso estribe a formação da sua convicção sobre o invocado erro de julgamento através dos fatores decisivos para tal.

II. Mas já não cabe ao tribunal de revista intrometer-se na apreciação do mérito da análise probatória realizada nem tão pouco na aferição da sua consistência, o que lhe está vedado por virtude do preceituado nos artigos 674.º, n.º 3, a contrario sensu, e 682.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

III. Em suma, ao tribunal de revista compete assegurar a legalidade processual do método apreciativo efetuado pela Relação, mas não sindicar o eventual erro desse julgamento nos domínios da apreciação e valoração da prova livre nem da livre e prudente convicção do julgador.»


Abrantes Geraldes, em anotação ao art. 662º do CPC, na obra Recursos em Processo Civil, 6ª edição, Almedina, Coimbra, 2020, pp. 358-359, explica que:

«(…) é admis­sível recurso de revista quando sejam suscitadas questões relacionadas com o modo como a Relação aplicou as normas de direito adjetivo conexas com a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, maxime quando seja invocado pelo recorrente o incumprimento de deveres previstos no art. 662.°.

Ao Supremo Tribunal de Justiça é ainda legítimo sindicar a decisão da matéria de facto nas circunstâncias referidas no art. 674.°, n.º 3, e apreciar criticamente a suficiência ou insuficiência da matéria de facto provada e não provada em conexão com a matéria de direito aplicável, nos termos do art. 682º, nº3.

Deste modo:

a) Se forem desconsiderados factos que se mostrem necessários para constituir base suficiente para a decisão de direito, o Supremo pode determinar a baixa do processo para o efeito, nos termos do art. 682º, nº3.

b) O Supremo pode intervir quando, na circunscrição dos factos provados ou não provados, as instâncias tenham desatendido disposição expressa da lei que exija certa espécie de_prova (maxime, documento legalmente necessário para a prova de certo facto) ou tenham desconsiderado disposição igualmente expressa que defina a força de determinado meio de prova (art. 674º, nº 3), como ocorre com documentos autênticos, com a confissão ou com o acordo das partes estabelecido no processo e que seja relevante.

c) O Supremo reiteradamente vem assumindo o entendimento de que, embora não possa censurar o uso feito pela Relação dos poderes conferidos pelo art. 662.° n.ºs 1 e 2, já pode verificar se a Relação, ao usar tais poderes, agiu dentro dos limites traçados pela lei para os exercer. Por isso, quando no âmbito da revista em que tal questão seja suscitada, se constate o incum­primento dos deveres legais nessa área, o processo deve ser remetido à Relação, a fim de lhes ser dado cumprimento.»

O Tribunal a quo, na apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, que, como se disse, acabaria por rejeitar, considerou que estão identificados os pontos da matéria de facto tidos por incorrectamente julgados pelo Recorrente, bem como o sentido da decisão que, no seu entender, deverá ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Ou seja, entendeu estar cumprido o art. 640º, nº1, als. a) e c), do CPC.

Recorde-se que o Recorrente pretende que se dê por provado que:

«a. Na data em que o casamento foi contraído o pai do autor sofria de doença de Alzheimer ou demência em estado de demência moderado-grave;

b. O primeiro registo dos sintomas ou sinais da referida doença surgiram em 29 de Outubro de 2010, na consulta de Medicina III-B do Hospital ..., EPE;

 c. Na data desse casamento, o pai do autor estava incapaz de se lembrar de situações ocorridas poucos minutos antes;

d. Compreendia e utilizava linguagem básica;

e. Dificilmente reconhecia amigos e família;

f. Era incapaz de reconhecer objectos que faziam parte do seu quotidiano;

 g. Estava acamado e dependente de uma cadeira de rodas para deslocar-se, apresentando movimentos incontrolados;

 h. Dependia física e emocionalmente da ré para tudo;

i. Aproveitando a incapacidade do pai do autor, a ré conduziu-o, à força e contra a sua vontade, à Conservatória do Registo Civil ... para formalização do casamento;

j. Nessa ocasião era notória a demência do pai do autor.»

E pretende que se dê por não provado que:

«i. À data do casamento, o pai do autor estava em condições de exercer livremente a sua vontade, que era casar com a ré;

ii. O pai do autor compreendeu o sentido e alcance das declarações prestadas para formalização do casamento;

iii. O pai do autor deslocou-se à Conservatória do Registo Civil ... de livre vontade, sabendo que ia e querendo casar.»

No que se refere à indicação dos concretos meios de prova, escreveu-se, no Acórdão recorrido, relativamente à prova testemunhal, que o Recorrente referenciou o "depoimento da Sra. Dra. GG, médica neurologista, que observou o pai do Recorrente na consulta de neurologia, de ... .01.2017”, tendo procedido à transcrição integral, no corpo das suas alegações, do depoimento desta testemunha.

Já no que concerne aos depoimentos das demais testemunhas, registou-se, no mesmo Acórdão, o seguinte:

«(…) os depoimentos das testemunhas EE e FF, netos do falecido CC, referindo: "(cf. registo áudio dos dois depoimentos na audiência de julgamento de 05.02.2020, estando os depoimentos registados com início às 10,44 horas e fim às 10,56 horas e das 10,25 horas e às 11,25 horas, respetivamente)."; os depoimentos das testemunhas JJ e de KK, netos do falecido CC, referindo: "(cf. depoimentos prestados na audiência de julgamento de 05.02.2020, registados em suporte digital, com início às 10,44 horas e fim às 10,56 horas e 10,25 horas às 11,25 horas, respetivamente).''; o depoimento da testemunha LL, referindo: "cujo depoimento se encontra registado em suporte digital, com início às 12,19 horas e fim às 12,27 horas, da audiência de julgamento de 04.02.2020", tendo efectuado um resumo do depoimento desta testemunha; o depoimento da testemunha MM referindo: "prestou depoimento na audiência de julgamento de 10.02.2020, estando o seu depoimento registado em suporte digital, com início às 12,01 horas às 12,11 horas e 12,33 horas até às 12,50 horas."; o depoimento prestado pela testemunha NN, tendo efectuado um resumo do depoimento desta testemunha; depoimento da testemunha OO referindo: "(na audiência de julgamento de 10.02.2020, estando o seu depoimento registado em suporte digital, com inicio às 10,29 horas até às 11,17 horas)".


Chamou-se a atenção para o disposto no nº 2, al. a), do art. 640º, a saber:

«2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes».


Observou-se, subsequentemente (com destaque nosso):

«Na presente impugnação da matéria de facto, quanto aos depoimentos das testemunhas que o recorrente refere, o mesmo não indica com exactidão as passagens da respectiva gravação em que funda o seu recurso, nem procede a qualquer transcrição de excertos de tais depoimentos que, porventura, considera relevantes para a impugnação que apresenta, com excepção da transcrição integral do depoimento da testemunha GG, esta sem qualquer indicação exacta das passagens da gravação áudio em que funda o seu recurso.»


Tecem-se considerandos sobre outros depoimentos, concluindo-se pela inobservância da citada alínea a) do nº 2 do art. 640º, por não se ter feito a indicação exacta e precisa dos segmentos da gravação em que se funda o recurso, dado se impor que se localize «na totalidade do depoimento constante do registo áudio, aquilo que, desse depoimento, o recorrente elege como determinante, para, ainda que em conjugação com outros elementos de prova, alcance a alteração pretendida, no que respeita à decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal a quo.»

Assinala-se, ainda, que não basta transcrever depoimentos, sendo necessário que se explique a razão por que as respostas devem ser num sentido e não noutro.

O Recorrente entende que cumpriu «o ónus de impugnação previsto no artigo 640.º do CPC, ao indicar o julgamento de facto de que discorda, reproduzindo, pela enorme e intensa relevância que tem o depoimento da testemunha GG, no que diz respeita à doença de Alzheimer do pai do Autor, depoimento que aliado ao elementos clínicos juntos aos autos, remetidos pelo Hospital ..., levam, de acordo com as regras da lógica e da experiência comum a uma decisão de sentido oposto ao do Tribunal “a quo”, demonstrando, sem margem para dúvidas, um erro notório na apreciação da prova».

Acrescenta que:

«79. A indicação com exatidão no caso dos autos, quanto à reapreciação do depoimento da médica assistente na especialidade de neurologia, é dispensada no caso dos autos pela reprodução integral escrita do depoimento, a apreciação ou reapreciação de tal depoimento pelo Tribunal superior dispensa  a indicação de certa ou certas passagens, mas antes obriga a que se considere, como fez o Recorrente, o seu teor integral, uma vez que, só assim, se pode proceder a uma correta reapreciação da prova testemunhal, com vista a aferir se, in casu, procedem as conclusões de recurso que a tal respeito foram alegadas pelo Recorrente».

O A., na apelação, para além de reproduzir o depoimento da testemunha GG, fez várias referências a esse depoimento procurando evidenciar o modo como dele se retira que o falecido padecia da doença de Alzheimer. Isso extrai-se, por exemplo, das conclusões 33 a 38 ou 46.

No corpo das alegações da apelação, refere-se, a dado passo:

«Em causa está, assim, a motivação do Tribunal “a quo” sobre as conclusões que podem (devem) retirar do teor do processo médico do pai do Recorrente, do Hospital ..., em especial, e por ordem cronológica: (i) do registo clínico da consulta de Medicina IV, de 29.10.2010, em que o pai do Recorrente foi observado pelo Dr. HH, que, expressamente, refere “quadro demencial há uns meses”; e, (ii) do registo clínico da consulta de neurologia, de ... .01.2017, em que o pai do Recorrente foi observado pela Dra. GG, que expressamente indica que o pai do Recorrente padecia nesta data de uma doença demencial, com vários anos de evolução – possivelmente misto: etilismo + vascular + Alzheimer – moderado/grave – perda de autonomia marcada, e demais registos clínicos que referem, abundante e expressamente, o quadro demencial do pai do Recorrente.

Em causa no presente recurso está também a motivação do Tribunal “a quo” relativa ao depoimento da Sra. Dra. GG, médica neurologista, que observou o pai do Recorrente na consulta de neurologia, de ... .01.2017, já identificada.

Pela importância que tem, transcreve-se, na íntegra, o depoimento da Sra. Dra. GG, médica neurologista».

Passou, então, a transcrever-se o depoimento da testemunha.

Apos a transcrição, referiu o Recorrente o seguinte:

«Do depoimento da testemunha, Sra. Dra. GG, médica neurologista, que observou o pai do Autor, em ... .01.2017, portanto algum tempo antes do casamento em causa na presente ação, autora do registo clínico analisado no depoimento, é impossível não dizer, com base no diagnóstico então realizado, que o pai do autor padecia de Alzheimer ou de demência.

As certezas sobre o diagnóstico realizado, em função das informações diretamente recolhidas pela testemunha quanto à doença de Alzheimer ou de demência são bastante evidentes, assim como é bastante evidente o estado avançado da doença, moderado-grave.

De notar, quanto ao quadro dito subjetivo retratado no relatório clínico em apreço, é a Ré que confirma as informações que aí constam, pois, como já foi referido, notificada para se pronunciar não as impugnou ou deduziu qualquer pronúncia quanto às mesmas, aceitando o teor deste relatório médico.

Ademais, não deixa de ser relevante que a Sra. Dra. GG, quando questionada pelo mandatário do Recorrente, refere, expressamente, sem margem para qualquer dúvida, que o quadro subjetivo que consta do relatório clínico sub iudicio, correspondendo a informações recolhidas através de família, de outros clínicos ou até do acompanhante, e o quadro objetivo, ou seja, a avaliação direta que realizou mediante observação do pai do Recorrente, não apenas não se contradizem, como um quadro confirma o outro, complementando-se.

Em face do exposto não restam quaisquer dúvidas sobre o diagnóstico da doença de Alzheimer ou de demência do pai do Recorrente, numa evolução de moderado-grave, sete meses antes da celebração do casamento em causa na presente ação, com tendência para piorar, como é comummente reconhecido.

Para além da doença de Alzheimer ou de demência importa também reter uma outra doença do pai do Recorrente, facilmente percetível do depoimento da Sra. Dra. GG e dos elementos clínicos juntos aos autos, que no dia da consulta médica, o pai do Recorrente, para além da doença de Alzheimer ou de demência, padecia também da doença de Parkinson, com constantes tremores dos membros.»


Refere Abrantes Geraldes a propósito da indicação das passagens relevantes dos depoimentos:

«(…) se, em lugar de uma sincopada e por vezes estéríl localização temporal dos segmentos dos depoimentos gravados, o recorrente optar por transcrever esses trechos, ilustrando de forma mais completa e inteligível os motivos das pretendidas modificações da decisão da matéria de facto, deve considerar-se razoavelmente cumprido o ónus de alegação neste campo. A indicação exata das passagens das gravações não passa necessariamente pela sua localização temporal, sendo a exigência legal compatível com a transcrição das partes  relevantes dos depoimentos.»

(Op. cit., nota de rodapé 317, p. 200).


Se todo o depoimento for relevante, como é apontado pelo Recorrente, não se vê por que não se possa transcrevê-lo na totalidade, para mais quando se trata de uma matéria marcada pela tecnicidade, um depoimento de uma especialista, que não é fácil cindir, sob pena até de se perturbar a sua completa compreensão.

Considera-se, assim, que, nesta particular situação, ao transcrever todo o depoimento da testemunha, o Recorrente não deixou de cumprir os ditames do art. 640º, nº 2, al. a), do CPC.

Entende-se, por isso, que o Tribunal recorrido devia ter apreciado o depoimento da testemunha, para aferir da possibilidade de alteração da matéria de facto relativamente aos pontos impugnados.


Alega o Recorrente que ao contrário do sancionado pelo Tribunal “a quo” o fundamento ou justificação oferecida pelo Tribunal de Primeira Instância quando desconsidera ou considera inidóneos os depoimentos das testemunhas EE e do seu irmão gémeo, que visitavam amiúde o seu avô, pai do Recorrente, por terem sido praticamente similares e marcados por alguma falta de espontaneidade, que foi notória quando usaram exatamente as mesmas expressões, por exemplo, que lhes era “barrada a entrada” na casa do avô, que o avô só chorava no hospital, etc., omitido que as testemunhas, como já foi referido são irmãos gémeos, residem em conjunto em casa dos pais, o que torna absolutamente natural que os seus depoimentos tenham sido similares.

Acrescenta que é natural e decorre das regras de experiência comum que, quando se está perante duas testemunhas, irmãos gémeos, que residem em conjunto em casa dos seus pais e que visitavam, em conjunto, amiúde o seu avô, que os seus depoimentos sejam similares.

Neste aspecto, estamos perante a avaliação da consistência de depoimentos prestados. Ora, «não cabe ao tribunal de revista intrometer-se na apreciação do mérito da análise probatória realizada nem tão pouco na aferição da sua consistência» (citado Ac. do STJ de 30-11-2021). Assim, tratando-se de matéria que está fora das atribuições do STJ, dela não se conhecerá.


Refere, ainda, o Recorrente que o Tribunal “a quo”, erra quando julga improcedente uma questão tão sensível quanto a interpretação e aplicação do disposto no artigo 368.º do CC, já que «os elementos clínicos junto aos autos, não foram impugnados pelas partes, fazem prova plena dos factos relativos à situação clínica do pai do Autor e em especial à doença de Alzheimer que o afetava, desde há largos anos anteriores ao momento em que contraiu casamento com a Recorrida».


No acórdão recorrido, ponderou-se, a esse propósito, o seguinte:

«Relativamente à prova documental constante dos autos, o recorrente alega que "a apreciação do Tribunal "a quo" sobre o processo médico junto aos autos, desvalorizando-o, constitui uma violação do artigo 368. ° do CC.

Põe em causa a motivação do tribunal a quo sobre as conclusões que, no seu entender, se devem retirar do teor do processo médico do pai do recorrente, do Hospital ..., do registo clínico da consulta de Medicina IV, de 29.10.2010 e do registo clínico da consulta de neurologia, de ... .01.2017.

Tais documentos encontram-se a fls. 21 verso, 23 a 26 frente e verso, dos autos físicos e são cópias de documentos electrónicos não assinados electronicamente.

Pelo art° 6o do DL 88/2009, de 09.04, foi efectuada a republicação do DL 290 -D/99, de 02.08, com a redacção actual, que estabelece o regime jurídico dos documentos electrónicos e da assinatura digital.

Dispõe o art° 1o do DL 290-D/99, de 02.08, republicado, quanto ao seu Objecto: "O presente diploma regula a validade, eficácia e valor probatório dos documentos electrónicos, a assinatura electrónica e a actividade de certificação de entidades certificadoras estabelecidas em Portugal.""

No seu art° 2o, sob a epígrafe Definições, estipula-se: "Para os fins do presente diploma, entende-se por: a) «Documento electrónico» o documento elaborado mediante processamento electrónico de dados; (...). ".

Temos assim que, que a lei define como documento electrónico o documento elaborado mediante processamento electrónico de dados.

O valor probatório destes documentos electrónicos está fixado de
acordo com o disposto no art° 3
o do DLei 290-D/99, de 02.08:

"Artigo 3. ° Forma e força probatória

1   - O documento electrónico satisfaz o requisito legal de forma
escrita quando o seu conteúdo seja susceptível de representação como
declaração escrita.

2 - Quando lhe seja aposta uma assinatura electrónica qualificada certificada por uma entidade certificadora credenciada, o documento electrónico com o conteúdo referido no número anterior tem a força probatória de documento particular assinado, nos termos do artigo 376° do Código Civil.

 3 - Quando lhe seja aposta uma assinatura electrónica qualificada certificada por uma entidade certificadora credenciada, o documento electrónico cujo conteúdo não seja susceptível de representação como declaração escrita tem a força probatória prevista nos artigos 368. ° do Código Civil e 167° do Código de Processo Penal.

4 - O disposto nos números anteriores não obsta à utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos electrónicos, incluindo outras modalidades de assinatura electrónica, desde que tal meio seja adoptado pelas partes ao abrigo de válida convenção sobre prova ou seja aceite pela pessoa a quem for oposto o documento.

5 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, o valor probatório dos documentos electrónicos aos quais não seja aposta uma assinatura electrónica qualificada certificada por entidade certificadora credenciada é apreciado nos termos gerais de direito. "

Deste modo, quanto aos documentos em causa, estamos perante documentos electrónicos sem assinatura electrónica qualificada certificada e elaborados por terceiro - cfr. disposições legais supra citadas e art° 363°, n°2 do CC - sujeitos às regras gerais de direito quanto ao valor probatório dos documentos particulares a que falte algum dos requisitos exigidos por lei, ou seja, a sua força probatória é apreciada livremente pelo tribunal — cfr. art° 366° do CC.

Por outro lado, a força ou eficácia probatória plena atribuída pelo n° 1 do art° 376° do CC às declarações documentadas limita-se à sua materialidade, isto é, à existência dessas declarações, não abrangendo a exactidão das mesmas. E, mesmo que um documento particular goze de força probatória plena, por não ter sido, v.g., impugnado, reportando-se tal valor tão só às declarações documentadas, ficando por demonstrar que tais declarações correspondam à realidade dos respectivos factos materiais, tendo o seu conteúdo sido antecipadamente impugnado na contestação, o que se verifica nos presentes autos, na qual se negou o estado de demência notória do pai autor, invocado por este na petição inicial, valerá tal documento como prova livre e como tal devendo ser apreciada pelo tribunal - neste sentido cfr. Ac. STJ datado de 25.10.2001, proc. 02B717, disponível in www.dgsi.pt.

Carecem de fundamento, deste modo, as alegações de recurso quanto à violação do disposto no art° 368° do CC, cuja previsão legal não tem aplicação ao caso concreto em apreciação, não tendo tais documentos a força probatória plena que o recorrente invoca.»

O Recorrente baseia-se apenas no que alegara na apelação, não se debruçando sobre o que foi decidido, neste segmento, pelo Tribunal da Relação e com o que, diga-se, estamos de acordo.

No invocado art. 368º do C. Civil, dispõe-se o seguinte:

«As reproduções fotográficas ou cinematográficas, os registos fonográficos e, de um modo geral, quaisquer outras reproduções mecânicas de factos ou de coisas fazem prova plena dos factos e das coisas que representam, se a parte contra quem os documentos são apresentados não impugnar a sua exactidão.»

Lebre de Freitas, em anotação a este artigo, no Código Civil Anotado, de Ana Prata (Coord.) e Outros, vol. I, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, p. 491, explica que:

«Constituem documentos não escritos as reproduções fotográficas ou cinematográficas, os registos fonográficos e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas de factos ou coisas, assim como os documentos eletrónicos não suscetíveis de representação como declaração escrita (art. 3.°, n.º 3, do DL n.º 290-D/99, de  2 de agosto).

Os primeiros fazem prova plena dos factos e das coisas que representam, se a parte contra quem forem apresentados não os impugnar. A lei prescinde, quanto a estes documentos, da determinação do autor para a sua utilização como meio de prova: uma vez apresentados, a impugnação perante eles possível é, não uma impugnação de autoria, mas uma impugnação da sua exatidão. À lei não interessa a autoria do documento, mas apenas a correspondência da representação nele contida à realidade.»

Estão neste artigo em causa reproduções mecânicas, documentos não escritos. Quando aqui se fala de exactidão tem-se em vista a reprodução ou representação material de uma realidade.

Como se escreveu no acórdão, o preceito citado não quadra à presente situação e, conforme também se refere no acórdão impugnado, com referência ao art. 376º do C. Civil, mesmo que um documento particular goze de força probatória plena, por não ter sido impugnado, esse valor diz respeito tão-só às declarações documentadas, ficando por demonstrar que tais declarações correspondam à realidade dos respectivos factos materiais. E, ainda, como também se aduz, tendo o seu conteúdo sido antecipadamente impugnado na contestação, o que se verifica nos presentes autos, na qual se negou o estado de demência notória do pai do Autor, invocado por este na petição inicial, valerá o documento (in casu, os documentos) como prova livre e como tal devendo ser apreciada pelo Tribunal.

Citou-se o Ac. STJ datado de 18-04-2002 (e não de 25.10.2001, como, por lapso, se indicou, pois esta é a data do acórdão aí recorrido), Rel. Ferreira de Almeida, Proc. 02B717, em www.dgsi.pt, no qual se exarou, entre o mais, o seguinte:

«I - Se um dado documento particular junto em audiência não foi objecto de impugnação, mas se o respectivo conteúdo fora já antecipadamente impugnado na contestação, surgindo assim a pretensa declaração confessória no mesmo inserta como incompatível com a defesa no seu conjunto - satisfação oportuna do ónus da impugnação especificada - valerá tal documento como prova livre, como tal devendo ser apreciada pelo tribunal.

II - A eficácia / força probatória de um documento particular diz apenas respeito à materialidade ou realidade das declarações no mesmo exaradas, que não à exactidão ou à verosimilhança das mesmas.»


Não assiste, pois, razão ao Recorrente quanto a esta questão.


*


Tudo visto, anular-se-á o Acórdão recorrido para que, no âmbito da impugnação da decisão da matéria de facto, se proceda à apreciação do depoimento da testemunha GG,  a fim de, em conjugação com a prova documental constante dos autos (com o definido alcance probatório), se aferir do respectivo reflexo na matéria de facto impugnada – que, essencialmente, se centra na doença de Alzheimer do pai do Autor e respectivos efeitos, na altura do casamento –, com as eventuais alterações que daí possam resultar, decidindo-se, depois, em conformidade com o que emanar desse labor.

*

Sumário (da responsabilidade do relator)



1. É muito restrita a apresentação de documentos no âmbito do recurso de revista, dado que só o excepcionalmente o Supremo Tribunal de Justiça se pronuncia sobre questões de facto.

2. No que se refere a pareceres, apenas é admissível a junção dos de jurisconsulto e no tempo previsto no art. 651º, nº2, ex vi do art. 680º, nº2, do CPC.

3. Não cabe ao tribunal de revista intrometer-se na apreciação do mérito da análise probatória realizada nem tão-pouco na aferição da sua consistência, mas pode verificar se a Relação, ao usar os poderes previstos no art. 662º do CPC, agiu dentro dos limites traçados pela lei para os exercer, designadamente no que tange às normas de direito adjectivo atinentes à apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto.

4. Não representa a violação da regra estabelecida no art. 640º, nº2, a), do CPC, a não indicação de passagens destacadas, quando se considera que todo o depoimento é relevante, para mais numa matéria da especialidade da depoente (médica) e tal depoimento se mostra completamente transcrito nas alegações.

5. Se a matéria a que um documento particular se refere foi, antes da sua junção, impugnada na contestação, esse documento valerá como prova livre, como tal devendo ser apreciado pelo tribunal.



V


Pelo exposto:

- Julga-se improcedente a reclamação, com o consequente desentranhamento do documento que com ela se pretendeu juntar e também do que se trouxe ao processo com essa reclamação;

- Anula-se o acórdão recorrido para que se proceda à apreciação do depoimento da testemunha GG, com vista a que, em conjugação com a prova documental constante dos autos (com o definido alcance probatório), se avalie do respectivo reflexo na matéria de facto impugnada, nos termos sobreditos, decidindo-se, depois, em conformidade com o resultado desse labor.

- Custas relativas à reclamação pelo Recorrente, com 2 UC de taxa de justiça.

- No mais: custas conforme se vier a fixar a final.


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Lisboa, 02-02-2023


Tibério Nunes da Silva (relator)

Nuno Ataíde das Neves

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

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[1] Corrigiu-se aqui um lapso material (de “casa” para “causa”).