Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
733/20.5T8EPS-A.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: LEGADO
BENS COMUNS DO CASAL
INTERPRETAÇÃO DO TESTAMENTO
TESTAMENTO DE MÃO COMUM
INVENTÁRIO
RELAÇÃO DE BENS
RECLAMAÇÃO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE APELAÇÃO
PRINCÍPIO DA LEALDADE PROCESSUAL
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I. Os princípios da confiança e da lealdade processual não permitem que, em processo de inventário (cfr. art. 1123.º, n.º 2, al. b), do CPC), o acórdão recorrido recuse conhecer o objecto do recurso de apelação da decisão sobre a reclamação da relação de bens, quando, anteriormente, foi proferido despacho do relator em termos que legitimam a leitura apresentada pela recorrente, segundo a qual aquele recurso seria conhecido, fosse com o recurso de apelação do despacho determinativo da forma à partilha, independentemente de quem o apresentasse, fosse «após o trânsito em julgado» desse despacho, caso dele não fosse interposto recurso.

II. O facto de ambos os cônjuges inventariados terem outorgado testamento em simultâneo, deixando, cada um deles, com a autorização do outro, “metade indivisa” do mesmo bem imóvel a uma das filhas, indicia, na impossibilidade de realizarem um testamento de mão comum (cfr. art. 2181.º do CC), uma concertação de vontades entre eles no sentido de legar o bem, na sua totalidade, à dita filha, e não a vontade de legar apenas metade do bem imóvel.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório

1. Nos autos de inventário por óbito de AA e mulher, BB, tramitados ao abrigo da Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, em que é cabeça-de-casal CC e interessados DD, EE e FF, foi proferido, em 11 de Maio de 2023, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães com a seguinte decisão:

«Por tudo o exposto, acordam os Juízes que constituem esta ...ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em:

- não admitir o recurso interposto em 17-11-2021 pela cabeça de casal da decisão interlocutória datada de 28.10.2021;

- não conhecer do recurso interposto em 17-11-2021 pelos interessados/reclamantes por se considerar a apreciação inútil nos termos do art. 130º do CPC;

- em julgar procedente o recurso interposto em 08-12-2022 pelos interessados e em consequência, determina-se a substituição da decisão datada de 22-11-2022 por outra que declara a ineficácia do testamento da inventariada BB;

- em julgar procedente o recurso interposto pelos interessados e em consequência, revoga-se o despacho determinativo da partilha, substituindo-se o mesmo por outro que imputa a totalidade do imóvel legado na herança do inventariado AA, primeiro na quota disponível e depois na legítima da legatária, nos termos concretizados acima.».

2. Deste acórdão veio a cabeça de casal CC interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«1. Vem o presente recurso interposto pela cabeça de casal CC no sentido de obter a revogação do douto Acórdão proferido pela ....ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em 11/05/2023, na parte em que decidiu: (1) Não admitir o recurso interposto em 17/11/2021 pela cabeça de casal da decisão interlocutória datada de 28/10/2021; (2) Julgar procedente o recurso interposto em 08/12/2022 pelos interessados/reclamantes e em consequência, determinou a substituição da decisão datada de 22-11-2022 por outra que declare a ineficácia do testamento da inventariada BB; (3) Julgar procedente o recurso interposto pelos interessados e em consequência revogou o despacho determinativo da partilha, substituindo-se o mesmo por outro que impute a totalidade do imóvel legado na herança do inventariado AA, primeiro na quota disponível e depois na legitima legatária, nos termos concretizados do dito acórdão;

2. São fundamentos do presente recurso de Revista: (1) Erro na interpretação e aplicação da lei do processo (mormente do art. 1123.º, n.º 2, al. b) e n.º 4 do CPC); (2) Violação do disposto no art. 24.º da CRP; (3) Erro na interpretação e aplicação das regras substantivas respeitantes à interpretação, validade e eficácia de testamentos (mormente dos arts. 2179.º, n.º 1, 2187.º, n.º 1 e n.º 2 e 236.º a 238.º do CC).

3. Por requerimento de 17/11/2021 a cabeça de casal interpôs recurso de apelação, no sentido de obter a revogação da douta decisão de 28/10/2021 pelo Juízo de Competência Genérica de ... (Juiz 2), da Comarca de Braga, na parte em que julgou totalmente improcedente o requerimento da cabeça de casal de 05/08/2021 e em consequência: (1) Ordenou a cabeça de casal a relacionar o PPR no valor de € 15.116,17; (2) Indeferiu a pretensão de que tal verba fosse classificada como doação manual; (3) Condenando a cabeça de casal em 2/3 das custas pelo respetivo decaimento; (4) E, ainda que de forma tácita, indeferiu a produção de prova requerida no requerimento de 05/08/2021, sem que justificasse a razão de tal indeferimento, tanto que a mesma havia sido requerida para efeitos de prova do caracter manual da doação efetuada.

4. Conhecendo desse recurso interposto pela cabeça de casal em 17/11/2021, o Tribunal da Relação decidiu em 17/06/2022 que (SIC): “Compulsados os autos verifica-se que os recursos de apelação interpostos, admitidos na espécie e efeito devidos por despacho de 30/5/2022, não se encontram ainda em momento de subida ao Tribunal da Relação nos termos da disposição legal do nº 4 do artº 1123º do CPC e com referência ao nº 2-al.b), do mesmo preceito legal e na sua conjugação com o artº 1110º-nº 1 e nº 2-al.a), do citado código; apenas subindo ao tribunal superior em conjunto com eventuais recursos de apelação referidos na al. b) do nº 2 do artº 1123º citado, ou, após o trânsito em julgado dessas decisões, caso das mesmas não seja interposto recurso.

5. Entretanto, em 22/11/2022 foi proferido despacho saneador, tendo sido ordenada a notificação das partes para em 20 dias proporem forma à partilha.

6. Pelo que por requerimento deduzido em juízo 14/12/2022 a cabeça de casal deduziu forma a partilha nos autos ressalvando do recurso interposto em 17/11/2021, ainda não decidido porque retido por decisão de 17/06/2022 proferido pela ....ª Secção do TRG).

7. Por despacho proferido em 25/01/2023 foi dada forma à partilha.

8. Não se conformando com o despacho de forma à partilha proferido em 25/01/2023, DD, EE e FF vieram interpor recurso de apelação do referido despacho em 13/02/2023.

9. Entretanto a 03/03/2023 a cabeça de casal CC, veio apresentar as respetivas Contra-Alegações ao recurso de apelação de 13/02/2023 que tinha por objeto a forma à partilha dada pelo despacho de 25/01/2023 pelo tribunal de ..., assim como requerer que juntamente com o recurso de apelação interposto pelos recorrentes subisse o recurso de apelação autónomo interposto pela cabeça de casal CC em 17/11/2021, admitido na espécie e efeito devidos por despacho proferido pelo Tribunal de ... em 10/01/2022, bem como por decisão de 30/05/2022 da ....ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, mas que por decisão de 17/06/2022, desta última, foi devolvido ao tribunal de 1.ª instância, tendo-se determinado que apenas subiria ao tribunal superior em conjunto com eventuais recursos de apelação referidos na al. b) do n.º 2 do art.. 1123, ou, após o transito em julgado dessas decisões, caso das mesmas não seja interposto recurso.

10. Por despacho proferido em 21/03/2023 pelo juiz 2 do Juízo de Competência Genérica de ..., “conforme doutamente determinado pelo Venerando Tribunal da Relação” determinou-se a subida conjunta e em separado dos autos principais:

a) dos recursos da decisão de fls. 203 (28/10/20219, intentado pelos interessados DD, EE, e FF – alegações a fls. 210 (17/11/2021); e pela interessada CC, alegações a fls. 219 (17/11/2021);

b) do recurso da decisão de fls. 262 (22/11/2022), sobre a validade do testamento da inventariada BB - intentado pelos interessados DD, EE, e FF – alegações a fls. 269 (08/12/2022);

c) do despacho determinativo da forma da partilha, de fls. 280 (25/01/2023) - intentado pelos interessados DD, EE, e FF – alegações a fls. 283 (13/02/2023).

11. Tendo os autos subido conjunto e em separado dos autos principais para conhecimento pelo Tribunal da Relação, por despacho proferido em 10/04/2023 ordenou-se a notificação de todos os interessados para os efeitos do disposto no art. 655.º, n.º 1 do CPC quanto à questão da eventual apreciação da não admissibilidade do recurso interposto em 17/11/2021 pela cabeça de casal da decisão interlocutória datada de 28/10/2021 porquanto não foi interposto recurso pela própria cabeça de casal da decisão de forma à partilha, e apenas tendo sido interposto recurso pelos interessados recorrentes, não poderia aquela aproveitar o recurso daqueles.

12. Pelo que por requerimento deduzido em juízo em 19/04/2023 a cabeça de casal CC veio pronunciar-se quanto ao objeto da dita notificação pugnando pela admissão de subida/conhecimento do recurso por si interposto em 17/11/2021, retido por decisão proferida em 17/06/2022.

13. Por despacho proferido em 26/04/2023 pela ....ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães decidiu-se que a apreciação da admissibilidade do recurso interposto em 17/11/2021 pela cabeça de casal da decisão interlocutória datada de 28/10/2021 seria apreciada no acórdão a proferir, o qual veio a ser proferido em 11/05/2023.

14. Conhecendo-se da questão da admissibilidade do recurso interposto em 17/11/2021 no acórdão proferido em 11/05/2023 decidiu que “não tendo sido interposto recurso pela cabeça de casal do despacho de forma à partilha, e apenas tendo sido interposto recurso pelos interessados recorrentes, não pode aquela aproveitar o recurso daqueles. Assim, sendo, a cabeça de casal não interpôs recurso com o qual deveriam ser impugnadas as decisões anteriores, nomeadamente a datada de 28/10/2021 (cuja impugnação por recurso pretendia a cabeça de casal fazer, conforme plasmado em 17/11/2021), não lhe servindo apenas esse requerimento para o efeito e – realçamos – dentro da lógica imprimida nestes autos quanto ao regime dos recursos. E ainda que não se concorde com a mesma, na verdade, transitou em julgado aquela decisão do TRG, pelo que terá de ser imposta tal e qual”.

15. Ora, salvo o devido respeito – e creia-se bastante – não pode a recorrente CC conformar-se com tal segmento decisório, o qual faz uma errada interpretação e aplicação do disposto nos arts. 1123.º, n.º 2, al. b), 1123.º, n.º 4 do CPC, assim como deturpa o sentido do segmento decisório proferido pelo TRG em 17/06/2022

16. Dentro da lógica imprimida pelo despacho de 17/06/2022 e do disposto no art. 1123.º, n.º 2, al. b) e n.º 4 do CPC das duas uma: (1) havendo recurso da decisão de saneamento do processo e de determinação de bens a partilhar e da forma à partilha é com esse recurso que sobem os recursos retidos;(2) não havendo recurso da referida decisão os recursos retidos sobem com o trânsito em julgado da dita decisão não recorrida.

17. Em momento algum se diz no despacho proferido em 17/06/2022, nem tal resulta sequer da lei, que a subida com o recurso interposto das decisões de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar ou da forma à partilha apenas ocorre quando este último haja sido interposto pelo mesmo sujeito processual que interpôs o recurso retido, e «ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus»!

18. Por outras palavras, não resulta da lei (mormente do disposto no art. 1123.º, n.º 2, al. b) e n.º 4 do CPC) ou sequer do referido despacho proferido em 17/06/2022 que o conhecimento do recurso interposto pela interessada CC em 17/11/2021, entretanto retido, estava dependente/condicionado à interposição de recurso por banda desta mesma CC ao despacho de forma à partilha.

19. Com efeito concatenado o disposto no art. 1123.º, n.º 2, al. a) e n.º 4 do CPC e o teor do despacho de 17/06/2022, não se obliterando o uso da forma adjetival utilizada neste despacho (“eventuais”), estabeleceu-se 2 momentos temporais distintos e possíveis para a subida do recurso retido, a saber:

e) No caso de existência de recursos de apelação referidos na al. b) do nº2 do artº 1123º do CPC, independentemente de quem o apresentasse (na medida em que seja na lei seja no despacho de 17/06/2022 não se distingue por quem terá de ser interposto o recurso);

f) Após o trânsito em julgado dessas decisões, isto é, após o trânsito em julgado da forma à partilha, caso da mesma não fosse interposto recurso.

20. E bem se entende, pois, redundaria numa proliferação nos autos da mesma questão, isto é a existência de dois recursos cujo objeto ou questão a decidir fosse a mesma; daí que inexistindo fundamento autónomo para o recurso do despacho de forma à partilha (que não aquele vertido no recurso de 17/11/2021), o recurso retido subiria ou com o eventual recurso que a contraparte interpusesse desse despacho da forma à partilha, ou não existindo, com o transito em julgado da decisão da forma à partilha.

21. Portanto, não resulta do despacho proferido em 17/06/2022 do TRG que para que o recurso de 17/11/2021, subisse e fosse conhecido era necessário à parte interessada interpor recurso do despacho da forma à partilha; tal entendimento que parece ser o sufragado no acórdão proferido em 11/05/2023 e do qual se recorre não tem a menor correspondência com a letra da decisão proferida em 17/06/2022.

22. O entendimento acolhido pelo acórdão proferido em 11/05/2023 quanto à interpretação dada ao despacho do TRG de 17/06/2023, não tem a menor correspondência com o seu elemento literal além de criar uma espécie de “vazio processual”, consubstanciado uma limitação ao direito constitucional e legalmente consagrado, que é o direito ao recurso, na sua vertente mais estrita do direito de acesso à justiça e de um processo equitativo (art. 24.º da CRP) na medida em que não tendo a cabeça de casal recorrido das decisões referidas em 1123.º, n.º 2, al. b), mas tendo a contraparte recorrido, o seu recurso retido nunca poderia ser apreciado.

23. Ora, não pode de modo algum o direito ao recurso da cabeça de casal ficar condicionado ao comportamento processual da contraparte, até porque tal consubstanciaria uma violação ao disposto no art. 1123.º, n.º 2, al. b) e n.º 4 do CPC, pois não tivesse a contraparte recorrido, sempre o seu recurso subiria, ao menos, aquando do trânsito em julgado das referidas decisões!

24. No caso a contraparte recorreu da decisão preceituada no art. 1123.º, n.º 2, al. b) do CPC e não se condicionando no despacho de 17/06/2022 o conhecimento do recurso retido à interposição de recurso do despacho da forma à partilha a efetuar pela recorrente do recurso retido, limitando-se apenas a referir que este subiria com um eventual recurso (independente de quem o interpusesse) a interpor da decisão preceituada no art. 1123.º, n.º 2, al. b) do CPC,

25. Necessariamente ter-se-á de concluir ser de admitir a admissão do recurso interlocutório interposto pela cabeça de casal em 17/11/2021 seja porque foi interposto recurso da decisão preceituada no art. 1123.º, n.º 2, al. b) (ainda que pela contraparte),

26. Seja, subsidiariamente, atento o entendimento sufragado pelo acórdão proferido em 11/05/2023, tendo transitado em julgado pelo menos para a cabeça de casal a decisão da forma à partilha, sempre o recurso interposto em 17/11/2022 seria de subir e ser admitida a referida subida por força da 2.ª parte da decisão de 17/06/2022 em que se preceitua que não havendo recurso da decisão da forma à partilha (entenda-se por parte daquele que tem o recurso interlocutório retido), o recurso interlocutório subiria aquando do trânsito da decisão da forma à partilha.

27. Por decisão proferida em 22/11/2022 proferida pelo Juiz 2 do Juízo de Competência Genérica de ..., quanto à questão de saber-se se é válida ou ineficaz a deixa testamentária feita por BB decidiu-se julgar improcedente a alegada ineficácia do testamento daquela BB e, em consequência, reconheceu-se a validade dos legados efetuados em cada um dos dois testamentos referidos nos factos provados, reconhecendo-se à cabeça de casal o direito de reivindicar, em espécie, o prédio misto, composto de casa com dois pavimentos, logradouro e cultura com videiras e ramada, sito no lugar de ..., na freguesia de ..., inscrito na matriz urbana sob o artigo 100 e rústica sob o artigo 3014, por conta da quota disponível dos inventariados e sem prejuízo do disposto nos arts. 1118.º e sts. Do CPC.

28. Os interessados DD, EE e FF irresignados com tal segmento decisório vieram recorrer da referida decisão em 22/11/2022.

29. Conhecendo do objeto do referido recurso, o TRG por acórdão proferido em 11/05/2023 decidiu declarar a ineficácia do testamento da inventariada BB, com a fundamentação de que cada um dos inventariados legou “metade indivisa do prédio” e já não – como sufragado pelo Juízo Local de ... – que “cada um dos inventariados legou metade da coisa em causa” pelo que “o legado de metade indivisa do prédio em benefício da filha de ambos é ineficaz porquanto esta o adquiriu previamente, com o falecimento do seu pai, o inventariado AA (…) daí concluir-se que o legado feito pelo primeiro falecido consumiu toda a eficácia do legado feito pelo segundo falecido”, mais se acrescentando que “os dois testamentos em causa reportam-se a uma única vontade testatória, que só foi expressa em dois testamentos dada a impossibilidade legal de duas ou mais pessoas testarem no mesmo ato, conforme resulta do disposto no art. 2179.º do C. Civil. Daí se concluir que o testamento da inventariada BB dependia da não consunção dos efeitos pelo testamento do falecido AA, primeiro inventariado falecido.”

30. Como se demonstrará infra a referida decisão e a fundamentação que a sustenta é contrária violando o disposto nos arts. 2179.º, n.º 1, 2187.º, n.º 1 e n.º 2 e 236.º a 238.º do CC.

31. No acórdão agora recorrido declarou-se a ineficácia do testamento da inventariada BB por se entender, erroneamente, que ambos tinham o mesmo objeto, e que, portanto, com o primeiro esgotou-se a vontade dos testadores, o que não corresponde ao sucedido, como infra se demonstrará.

32. O artigo 2179º, nº 1 do Código Civil diz-nos que o testamento é “o ato unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles.

33. Sobre a interpretação do testamento o artigo 2187º, nº 1 estatui que “na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento.”, acrescentando-se no n.º 2 que “É admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa”.

34. Assim, de harmonia com estas normas, em confronto com as dos arts. 236º a 238º, do mesmo Código, consagra-se, quanto à interpretação do testamento, uma orientação subjetivista, mas mitigada, dá-se primazia à vontade real, efetiva e psicológica, do testador, mas, dada a natureza formal do contrato, essa vontade só será juridicamente relevante se tiver no contexto do testamento um mínimo de correspondência ainda que imperfeitamente expressa. Se assim não acontecer não poderá a mesma prevalecer. Neste sentido ver Ac. TRG, de 28-09-2006, proferido no processo nº 1711/06-1, disponível em www.dgsi.pt

35. E a averiguação da vontade do testador deve fazer-se não só com base no “contexto” do testamento, atendendo não só ao texto de cada uma das disposições isoladamente consideradas, mas a todo o conjunto do testamento, acentuando as ligações entre as suas várias partes e referindo-as ao todo que as engloba, mas ainda com recurso a prova complementar, auxiliar ou extrínseca que sobre isso puder reunir-se. Neste sentido João Menezes Leitão, in “A Interpretação do Testamento”, pág. 93 e segs.

36. Todavia, porque no caso dos autos nenhum dos interessados indicou testemunhas nem requereu quaisquer outros meios de prova com vista a determinar o sentido que o testador pretendeu atribuir ao conteúdo do testamento, temos, necessariamente, de atender apenas ao seu contexto.

37. Assim, fazendo apelo aos critérios interpretativos referidos, é manifesto que existe uma vontade concertada dos inventariados de legar o prédio, concertação essa que advém de terem feito os testamentos no mesmo dia, no mesmo local e reciprocamente com autorização de um e outro.

38. Na verdade, estando em causa 2 testamentos autónomos outorgados por pessoas distintas em que cada um legou a (respetiva) metade indivisa de um dado prédio por conta da sua quota disponível e com consentimento do outro cônjuge permitindo dessa forma que a legatária adquirisse a totalidade do bem aqui em causa, não se tendo ressalvado em nenhuma das referidas disposições testamentárias que a vontade real ficava esgotada pelo cumprimento da deixa testamentária do que falecesse em primeiro lugar, necessariamente ter-se-á de concluir pela validade e eficácia de ambos os testamentos.

39. Essa é, aliás, a única interpretação admissível a fazer-se dos referidos testamentos de acordo com o disposto nos arts. 2187.º, n.º 1 e n.º 2 do CC e 236.º a 238.º do CC.

40. Na verdade, a interpretação de que ambos os testadores pretenderam, conjuntamente, só legar metade, melhor dizendo, uma só metade, a mesma metade do prédio não tem arrimo no texto de nenhum dos testamentos; o que decorre dos testamentos é, salvo o devido respeito, que cada um legou uma metade, consubstanciando declarações de vontade autónomas.

41. Embora se trate de testamentos lavrados no mesmo dia, pelo mesmo notário e com encargos semelhantes dizem respeito a dois atos e vontades distintas e autónomas (não se tratando de uma única vontade testatória) em que cada um dos testadores com o consentimento do respetivo cônjuge, por conta da respetiva quota disponível lega à filha CC a metade indivisa que cada um detém no referido prédio, possibilitando, desta forma, à legatária ficar com o bem no seu todo, na sua totalidade.

42. Portanto, não se trata de dois testamentos de igual conteúdo, ou de dois testamentos com uma “única vontade testatória” pois que cada um apenas lega a metade indivisa do prédio comum que lhes compete no património comum do casal: o testador a sua metade indivisa, a testadora a outra e sua metade indivisa.

43. Aduz ainda o acórdão recorrido, na sua fundamentação o doutamente decidido nos acórdãos do Tribunal da Guimarães de 28-09-2006, proferido no processo nº 1711/06-1 e no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16-11-2010, proferido no processo nº 4067/07.2TBVIS.C1; sucede que o aí doutamente decidido não é linearmente transferível para a situação concreta dos presentes autos.

44. Na verdade o entendimento jurisprudencial sufragado no acórdão do TRC de 16/11/2010, processo 4067/07.2TBVIS.C1 e citado na fundamentação do acórdão agora recorrido (bem como no acórdão do TRG de 28/09/2006) não tem aplicabilidade nos presentes autos já que a situação de facto em causa é diferente da que se coloca nos presentes autos, ali a inventariada casada no regime da comunhão geral com o inventariado, falecida primeiramente, em vida de ambos legou à filha (de ambos) pelas forças da sua quota disponível a totalidade de uma dada fração autónoma, fração autónoma essa que constituía bem comum do casal, tendo-se feito constar no dito testamento que o excesso do legado deveria imputar-se na respetiva legítima, tendo o inventariado prestado naquele ato o consentimento à esposa ao legado efetuado por testamento. Já por sua vez o inventariado no mesmo dia outorgou idêntico testamento a favor da filha, legando a dita fração, na sua totalidade, consentindo a esposa nesse legado.

45. Portanto em termos práticos cada um dos inventariados na situação reportada no citado acórdão legaram a coisa toda, com o consentimento do outro; já no caso em discussão nos presentes autos cada um dos inventariados legou a (sua) metade (indivisa) da coisa em causa e que lhe pertencia.

46. Nesses acórdãos cada um dos cônjuges/ inventariados legou por testamento o mesmo bem imóvel, de tal modo que, falecendo o primeiro inventariado, o legatário adquire o bem, sendo ineficaz (legado de coisa alheia) o segundo testamento, uma vez que o bem era já propriedade do legatário. No caso concreto, porém, cada um dos cônjuges inventariado legou metade do bem, de tal modo que, falecendo o primeiro inventariado, a legatária adquiriu apenas e só metade do bem e só com o falecimento da segunda inventariada é que a legatária adquire a restante metade do bem.

47. Sendo errado concluir-se – como se faz no acórdão recorrido –, e violador do disposto nos arts. 2187.º, n.º 1 e n.º 2 e 236.º a 238.º do CC “que o testamento da inventariada BB dependia da não consunção dos efeitos pelo testamento do falecido AA, primeiro inventariado falecido”, pois que por óbito do pai a legatária apenas recebe em legado a metade indivisa que o seu pai tinha no referido prédio e por óbito da mãe recebe a metade indivisa do dito prédio pertencente à mãe, portanto trata-se de duas metades indivisas autónomas e distintas entre si.

48. Assim, tendo por referência os factos dados como provados, impunha-se concluir que nos testamentos aqui em causa, cada um dos inventariados com a autorização do respetivo cônjuge prestado no ato, por conta da respetiva quota disponível, legou à filha CC a respetiva metade indivisa de um prédio misto, composto de casa com dois pavimentos, logradouro e cultura com videiras em ramada, no indicado lugar de ... e freguesia de ..., inscrito na matriz urbana sob o artigo 100 e rustica sob artigo 3014.

49. Portanto cada um dos referidos inventariados legou à sua filha a respetiva metade indivisa que detinham no referido prédio misto, bem comum do casal, e já não – como decidido no acórdão proferido em 11/05/2023 - unicamente uma única metade indivisa do referido prédio, bem comum do casal.

50. Em momento algum foi pretensão dos testadores que a respetiva vontade real ficasse esgotada pelo cumprimento da deixa testamentária do que falecesse em primeiro lugar, aliás se o pretendesse teriam declarado, expressamente, no respetivo testamento o que não o fizeram, pelo que muito mal andou o tribunal da Relação ao decidir em 11/05/2023 pela ineficácia do testamento da inventariada BB, impondo-se, consequentemente a revogação da dita decisão e consequente substituição que reconheça a validade e eficácia do dito testamento.

51. Ademais, o regime especial do legado de coisa certa e determinada do património comum do casal rege-se pelo disposto no artigo 1685.º do CC, que estabelece uma disciplina distinta da estabelecida, no artigo 2252.º do CC, para as outras situações de legado de coisa só em parte pertencente ao testador.

52. Nos termos do artigo 1685.º, n.º 1, do CC, cada um dos cônjuges tem a faculdade de dispor, para depois da morte, dos bens próprios e da sua meação nos bens comuns, sem prejuízo das restrições impostas por lei em favor dos herdeiros legitimários, acrescentando-se no n.º 2 que a disposição que tenha por objeto coisa certa e determinada do património comum apenas dá ao contemplado o direito de exigir o respetivo valor em dinheiro.

53. No entanto, no n.º 3 da mesma norma legal estatui-se que pode ser exigida a coisa em espécie se: a) esta, por qualquer título, se tiver tornado propriedade exclusiva do disponente à data da sua morte; b) a disposição tiver sido previamente autorizada pelo outro cônjuge por forma autêntica ou no próprio testamento; c) a disposição tiver sido feita por um dos cônjuges em benefício do outro.

54. No caso de a disposição ter sido previamente autorizada pelo outro cônjuge, por forma autêntica ou no próprio testamento, o regime legal assenta na ideia de não prejudicar os direitos ou as simples expectativas do outro cônjuge sobre o património comum, sendo perfeitamente compreensível que a lei reconheça a validade da disposição em espécie, no caso de o contitular dos bens comuns ter aprovado a liberalidade, tal como ela foi concebida pelo autor.

55. Assim o regime do artigo 1658.º do CC exceciona a possibilidade de os cônjuges disporem de bens concretos do património comum para depois da morte desde que, entre outras hipóteses, tendo havido autorização do outro cônjuge.

56. No caso em apreço, os inventariados em vida foram casados entre si sob regime da comunhão geral de bens e os legados testamentários efetuados à aqui cabeça de casal pelos seus pais, autores das heranças em partilha, foram em cada caso autorizados pelo cônjuge do testador.

57. O prédio misto, composto de casa com dois pavimentos, logradouro e cultura com videiras e ramada, sito no lugar de ..., na freguesia de ..., inscrito na matriz urbana sob o artigo 100 e rústica sob o artigo 3014 integra o património comum dos cônjuges, situação esta que ainda se mantinha quando as duas disposições testamentárias foram feitas.

58. Pelo que ter-se-á necessariamente de concluir pela plena eficácia e validade das disposições quer do testador AA quer da testadora BB, legitimando a cabeça de casal a reivindicar, em espécie, o prédio misto, composto de casa com dois pavimentos, logradouro e cultura com videiras e ramada, sito no lugar de ..., na freguesia de ..., inscrito na matriz urbana sob o artigo 100 e rustica sob o artigo 3014.

59. Com efeito, “tendo a conversão sistemática da disposição, consagrada na lei, como fundamento principal a ideia de não prejudicar os direitos ou simples expectativas do outro cônjuge sobre o património comum, é perfeitamente compreensível que a lei reconheça a validade da disposição em espécie, no caso de o contitular dos bens comuns ter aprovado a liberalidade, tal como ela foi concebida pelo autor” (P.Lima – A. Varela, código Civil Anotado, Vol. IV, pag. 314).

60. Por tudo quanto se deixa exposto deverá ser revogado o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 11/05/2023 na parte em declarou a ineficácia do testamento da inventariada BB e nos reflexos que essa mesma decisão importou – de acordo com tal acórdão – no despacho da forma à partilha.».

Termina pedindo que o acórdão recorrido seja «revogado na parte em que decidiu:

i. Não admitir o recurso interposto em 17/11/2021 pela cabeça de casal da decisão interlocutória datada de 28/10/2021;

ii. Julgar procedente o recurso interposto em 08/12/2022 pelos interessados /reclamantes e em consequência, determinou a substituição da decisão datada de 22-11-2022 por outra que declare a ineficácia do testamento da inventariada BB;

iii. Julgar procedente o recurso interposto pelos interessados e em consequência revogou o despacho determinativo da partilha, substituindo-se o mesmo por outro que impute a totalidade do imóvel legado na herança do inventariado AA, primeiro na quota disponível e depois na legítima legatária, nos termos concretizados do dito acórdão».

3. Os Recorridos contra-alegaram, concluindo nos termos seguintes:

«A. A decisão recorrida, proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães deverá manter-se, por não ter violado qualquer preceito legal.

B. O recurso interposto pela ora recorrente em 17/11/2021 não poderia ser admitido, porque a recorrente não interpôs recurso da decisão que determinou a forma à partilha, com ela se conformando e transitando em julgado relativamente a si.

C. A decisão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17/06/2022 transitou pacificamente em julgado, tendo determinado que as decisões interlocutórias até aí proferidas deveriam ser impugnadas com o recurso da decisão que determinasse a forma à partilha.

D. A recorrente não podia “aproveitar” o recurso dos ora recorridos para, na resposta, solicitar a apreciação do seu anterior recurso, bem sabendo que se não recorresse do despacho determinativo da forma à partilha os recursos até aí interpostos não seriam apreciados.

Mais,

E. A decisão que julga pela ineficácia do testamento da testadora que faleceu em segundo lugar é, salvo o devido respeito, a única possível face ao nosso quadro legal e a material e formalmente correcta.

F. Os Interessados, ora Recorridos, sempre defenderam (aqui dão por reproduzidos os argumentos já expendidos em anteriores alegações de recurso) a ineficácia do testamento da inventariada BB e sua irrelevância para os presentes autos, porquanto apenas assume relevância para a presente partilha o testamento do primeiro falecido (em ...-...-2011), isto é, o do inventariado AA, uma vez que, tendo cada um dos cônjuges inventariados feito testamento em que legaram, à mesma filha, ½ do mesmo bem comum, com o consentimento do outro cônjuge, por conta da quota disponível, e, por ser assim, tal só deve operar relativamente ao testamento do cônjuge que primeiro falecer, porque a partir daí o segundo testamento fica ineficaz.

G. Na verdade, o que cada um dos inventariados fez, como decorre do respetivo testamento, foi legar ½ do bem, com o consentimento do outro, como a lei permite [art. 1685/2c) e 3b) do Código Civil], com a consequência de que o testamento do cônjuge que faleceu depois, já não poderia ter eficácia, pois que a coisa já tinha sido adquirida pela legatária à morte do primeiro dos testadores falecido [art. 1317/b) do CC].

H. Assim, na circunstância dos autos, dos dois testamentos, face à ordem de decesso dos testadores, só poderia considerar-se o testamento do inventariado, por ser o único que produziu efeito, sendo que o testamento do cônjuge sobrevivo se tornou ineficaz, uma vez que o fim visado por ele se consumou com o testamento do “de cuius”, além de a coisa não pertencer sequer ao disponente na data da sua morte, isto é, ao tempo da abertura da respetiva sucessão [art. 1317/b) do CC].

I. Atenta a real vontade dos testadores contida no contexto dos respetivos testamentos, dali decorre ter sido a intenção de ambos os testadores legarem em substância, à sua filha, ora Cabeça de Casal, ½ do prédio que vem descrito na verba nº2 da inicial relação de bens e, posteriormente, na verba nº3 da “nova relação de bens”.

J. Se os testadores quisessem legar a totalidade do prédio poderiam tê-lo feito, mas não fizeram!

K. Bem andou o Tribunal da Relação ao decidir pela ineficácia do testamento da inventariada BB.

L. Finalmente, face à declarada ineficácia do testamento da inventariada BB, sempre a decisão que determinou a forma à partilha deveria ser revogada – como foi – e substituída por outra, conforma consta do acórdão recorrido.

M. Note-se que, relativamente a esta última decisão a recorrente nada diz, apesar de a incluir no objecto do seu recurso.».

II – Admissibilidade do recurso

Incide o presente recurso sobre duas decisões autónomas do acórdão da Relação, ora recorrido:

i. A decisão de, após prolação do despacho do relator do Tribunal da Relação datado de 17-06-2022, não se conhecer do recurso de apelação interposto pela cabeça de casal da decisão sobre a reclamação à relação de bens proferida em 28-10/2021;

ii. A decisão de julgar procedente o recurso interposto pelos interessados da decisão da 1.ª instância de 22-11-2022, declarando a ineficácia do testamento outorgado pela inventariada BB.

A admissibilidade do recurso desta segunda decisão, ao abrigo do art. 671.º, n.º 1, do CPC, não oferece dúvidas, atendendo a que se verificam os pressupostos gerais de recorribilidade e não existe o obstáculo da dupla conforme prevista no n.º 3 do art. 671.º do CPC.

Quanto à primeira decisão, tendo-se suscitado dúvidas acerca do preenchimento dos requisitos gerais de recorribilidade do art. 629., n.º 1, do CPC, foram as partes notificadas para se pronunciarem sobre a questão.

Em resposta veio a recorrente alegar essencialmente o seguinte:

- «Os presentes autos consubstanciam autos de inventário, e a decisão de 28/10/2021 decidiu das reclamações apresentadas à relação de bens que tiveram como objeto a manutenção/desentranhamento do Testamento, da relacionação e termos de relacionação do valor do PPr e da admissibilidade da alteração requerida pela cabeça de casal (ver despacho de 28/10/2021).

- O valor da ação/causa/processo foi fixado por despacho proferido em 22/11/2022, nos termos do qual se consignou fixar-se ao inventario provisoriamente o valor resultante da soma do valor dos bens relacionados.

- Ora, atenta a relação de bens junta aos autos em 14/05/2019, com a correção do valor do PPR relacionado, determinado por despacho proferido em 22/11/2022, o somatório do valor dos bens relacionados ascende a € 67.719,37 (sessenta e sete mil setecentos e dezanove euros e trinta e sete cêntimos). Cfr. relação de bens e despacho que agora se juntam e cujo conteúdo se dá por integralmente por reproduzido.

- Mas ainda que se aventasse que não seria o valor do inventário mas antes o valor da reclamação à relação de bens a atender, considerando que na reclamação pugna-se para que apenas ½ do prédio misto seja imputado na quota disponível, e se questiona o relacionamento do PPR, então tendo em consideração o valor de tais bens (€ 50.203,13/2 + € 15116,17), o valor seria o de € 40.217,73

- Portanto, no que ao valor da causa respeita terá de atender-se aos indicados € 67.719,37 (valor do inventário) ou aos € 40.217,73 e já não a qualquer outro valor, pois esse é efetivamente o valor da presente causa de inventário ou da reclamação

- Já no que respeita ao 2.º requisito – o da sucumbência -, o valor a ter em consideração será o dos indicados € 15.116,17 por se tratar do decaimento/prejuízo ou desvantagem que a decisão proferida (...) implicou para a cabeça de casal

- Salvo melhor entendimento o valor de € 15.116,17 não é o valor da causa, mas assim e apenas o valor da sucumbência, isto é, constitui sim e apenas o prejuízo ou desvantagem que a decisão implica para a parte.».

Assim:

- «No caso concreto o valor da ação/causa é superior a € 30.000,00 fixando-se em € 67.719,37 (ou € 40.217,16) e a sucumbência da recorrente é também ela superior a € 15.000,00 fixando-se em € 15.116,17.».

Os recorridos pugnaram pela não admissão do recurso, nesta parte.

Compulsados os autos, constata-se a correcção do alegado pela recorrente, verificando-se que, de acordo com a regra para a determinação do valor da acção nos processos de inventário (art. 302.º, n.º 3, do CPC), se encontra preenchido o pressuposto do valor da acção (art. 629.º, n.º 1, primeira parte, do CPC). Estando em causa, no objecto do recurso de que o Tribunal da Relação não conheceu, a inclusão na relação de bens de PPR no valor de €15.116,17, encontra-se também preenchido o pressuposto da sucumbência (art. 629.º, n.º 1, segunda parte, do CPC).

Deste modo, o presente recurso é também admissível, nesta parte.

III – Objecto do recurso

Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Assim, o presente recurso tem como objecto as seguintes questões:

• Erro do acórdão recorrido que, após prolação do despacho do relator do Tribunal da Relação datado 17-06-2022, não conheceu do objecto do recurso de apelação interposto pela cabeça de casal da decisão sobre a reclamação à relação de bens proferida em 28-10-2021;

• Erro do acórdão recorrido ao declarar a ineficácia do testamento da inventariada BB; com as necessárias consequências na revogação da decisão do acórdão recorrido relativa ao despacho determinativo da partilha.

IV – Fundamentação de facto

Vem provado o seguinte (mantêm-se a numeração e a redacção das instâncias):

1) AA e BB foram casados entre si em primeiras e únicas núpcias de ambos, no regime de comunhão geral de bens, conforme declarações de cabeça de casal de fls. 23 e seguintes, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.

2) Por escritura pública, denominada “Testamento”, outorgada a 11 de Março de 1993, no Cartório Notarial de ... e aí exarada a folhas 40v a 41v do Livro T-65 de “Testamentos Públicos… ”, onde intervieram como 1º outorgante AA e como 2ª outorgante BB, declarou AA, na qualidade de 1º outorgante que “… por conta da quota disponível dos seus bens, lega a sua filha CC, casada, com ele residente, metade indivisa de um prédio misto, composto de casa com dois pavimentos, logradouro e cultura com videiras, nos indicados lugar de ... e freguesia de ..., inscrito na matriz urbana sob o artigo 100 e rústica sob o artigo 3014º.

Que a referida legatária fica obrigada a:

a) Fazer-lhe o funeral com meio ofício;

b) Mandar rezar dois trintários de missas por sua alma.

E assim dá por concluído o seu testamento, o primeiro que fez.

Declarou, depois, a segunda outorgante:

Que dá autorização a seu marido para dispor especificadamente do bem atrás mencionado…”, conforme documento junto aos autos a fls. 9 e 10, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.

3) AA faleceu a .../.../2011, conforme certidão de fls. 8, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.

4) Por escritura pública, denominada “Testamento”, outorgada a 11 de Março de 1993, no Cartório Notarial de ... e aí exarada a folhas 39 a 40 do Livro T-65 de “Testamentos Públicos… ”, onde intervieram como 1º outorgante BB e como 2ª outorgante AA, declarou BB, na qualidade de 1º outorgante que “… por conta da quota disponível dos seus bens, lega a sua filha CC, casada, com ele residente, metade indivisa de um prédio misto, composto de casa com dois pavimentos, logradouro e cultura com videiras, nos indicados lugar de ... e freguesia de ..., inscrito na matriz urbana sob o artigo 100 e rústica sob o artigo 3014º.

Que a referida legatária fica obrigada a:

a) Fazer-lhe o funeral com meio ofício;

b) Mandar rezar dois trintários de missas por sua alma.

E assim dá por concluído o seu testamento, o primeiro que fez.

Declarou, depois, o segundo outorgante:

Que dá autorização a sua mulher para dispor especificadamente do bem atrás mencionado…”, conforme documento junto aos autos a fls. 134 e 135, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.

5) BB faleceu a .../.../2016, conforme certidão de fls. 8, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.

V – Fundamentação de direito

1. Primeira questão: erro do acórdão recorrido que, após prolação do despacho do relator do Tribunal da Relação, datado de 17-06-2022, não conheceu do objecto do recurso de apelação interposto pela cabeça de casal da decisão sobre a reclamação à relação de bens proferida em 28-10-2021

Pode ler-se no relatório do acórdão recorrido:

«- Em 17-11-2021, a cabeça de casal CC, igualmente, interpôs recurso da decisão datada de 28-10-2021 e juntou as alegações conclusões, tendo sido apresentadas contra-alegações a este recurso por parte dos interessados DD, EE, e FF.


*


Estes dois recursos, após terem sido admitidos na primeira instância, já não foram conhecidos por decisão da ...ª secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães datada de 17-06-2022 por ali se ter considerado o seguinte: “não se encontram ainda em momento de subida ao Tribunal da Relação nos termos da disposição legal do nº4 do artº 1123º do CPC e com referência ao nº2-al.b), do mesmo preceito legal e na sua conjugação com o artº 1110º-nº1 e nº2-al.a), do citado código; apenas subindo ao tribunal superior em conjunto com eventuais recursos de apelação referidos na al.b) do nº2 do artº 1123º citado, ou, após o trânsito em julgado dessas decisões, caso das mesmas não seja interposto recurso.”.

Vindo o acórdão recorrido a não conhecer do recurso de apelação apresentado pela cabeça de casal pelas seguintes razões:

«A- Coloca-se a questão prévia da não admissibilidade do recurso interposto em 17-11-2021 pela cabeça de casal da decisão interlocutória datada de 28.10.2021, porquanto não foi interposto recurso pela própria cabeça de casal da decisão da forma à partilha, e dentro da lógica imprimida pelo despacho da ...ª secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 17-06-2022, cujo entendimento ali plasmado acerca dos recursos no inventário foi ditado, com trânsito em julgado, dentro da lógica de que com o recurso daquela decisão (da forma à partilha) deveriam ser impugnadas as decisões interlocutórias até aí proferidas.

Ora, não tendo sido interposto recurso pela cabeça de casal do despacho da forma à partilha, e apenas tendo sido interposto recurso pelos interessados recorrentes, não pode aquela aproveitar o recurso daqueles.

Assim sendo, a cabeça de casal não interpôs recurso com o qual deveriam ser impugnadas as decisões anteriores, nomeadamente a datada de 28.10.2021 (cuja impugnação por recurso pretendia a cabeça de casal fazer, conforme plasmado em 17-11-2021), não lhe servindo apenas esse requerimento para o efeito e – realçamos - dentro da lógica imprimida nestes autos quanto ao regime dos recursos.

E ainda que não se concorde com a mesma, na verdade, transitou em julgado aquela decisão do TRG, pelo que terá de ser imposta tal e qual.».

Insurge-se a recorrente contra esta decisão, alegando essencialmente o seguinte:

- «Dentro da lógica imprimida pelo despacho de 17/06/2022 e do disposto no art. 1123.º, n.º 2, al. b) e n.º 4 do CPC das duas uma: (1) havendo recurso da decisão de saneamento do processo e de determinação de bens a partilhar e da forma à partilha é com esse recurso que sobem os recursos retidos;(2) não havendo recurso da referida decisão os recursos retidos sobem com o trânsito em julgado da dita decisão não recorrida.»

- «Em momento algum se diz no despacho proferido em 17/06/2022, nem tal resulta sequer da lei, que a subida com o recurso interposto das decisões de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar ou da forma à partilha apenas ocorre quando este último haja sido interposto pelo mesmo sujeito processual que interpôs o recurso retido, e «ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus»»

- «Por outras palavras, não resulta da lei (mormente do disposto no art. 1123.º, n.º 2, al. b) e n.º 4 do CPC) ou sequer do referido despacho proferido em 17/06/2022 que o conhecimento do recurso interposto pela interessada CC em 17/11/2021, entretanto retido, estava dependente/condicionado à interposição de recurso por banda desta mesma CC ao despacho de forma à partilha.»

- «Com efeito concatenado o disposto no art. 1123.º, n.º 2, al. a) e n.º 4 do CPC e o teor do despacho de 17/06/2022, não se obliterando o uso da forma adjetival utilizada neste despacho (“eventuais”), estabeleceu-se 2 momentos temporais distintos e possíveis para a subida do recurso retido, a saber:

- No caso de existência de recursos de apelação referidos na al. b) do nº2 do artº 1123º do CPC, independentemente de quem o apresentasse (na medida em que seja na lei seja no despacho de 17/06/2022 não se distingue por quem terá de ser interposto o recurso);

- Após o trânsito em julgado dessas decisões, isto é, após o trânsito em julgado da forma à partilha, caso da mesma não fosse interposto recurso.».

Vejamos.

Retomemos o teor do despacho do Tribunal da Relação de 17-06-2022 relativo aos recursos de apelação interpostos pela cabeça de casal e pelos interessados da decisão da 1.ª instância de 28-10-2021:

“[N]ão se encontram ainda em momento de subida ao Tribunal da Relação nos termos da disposição legal do nº4 do artº 1123º do CPC e com referência ao nº2-al.b), do mesmo preceito legal e na sua conjugação com o artº 1110º-nº1 e nº2-al.a), do citado código; apenas subindo ao tribunal superior em conjunto com eventuais recursos de apelação referidos na al.b) do nº2 do artº 1123º citado, ou, após o trânsito em julgado dessas decisões, caso das mesmas não seja interposto recurso.”.

Antes de mais, assinale-se que, perante o regime do art. 1123.º, n.º 2, do CPC («Cabe ainda apelação autónoma: (...) b) Das decisões de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar e da forma da partilha; (...)»), se entende não oferecer dúvidas que os referidos recursos corresponderiam a apelações autónomas (cfr. António Abrantes Geraldes/Miguel Teixeira de Sousa/Carlos Lopes do Rego/Pedro Pinheiro Torres, ob. cit., págs. 138-139). Porém, tendo-se as partes (no que ora releva, tendo-se a apelante cabeça de casal) conformado com tal decisão de não admissão autónoma, consolidou-se a mesma nos presentes autos.

A questão em aberto consiste em saber se, em face do teor do transcrito despacho de 17-06-2022, o conhecimento do recurso de apelação da cabeça de casal estava ou não condicionado pela interposição de recurso despacho da forma à partilha por si interposto.

Ora, não obstante a correcção do referido despacho de 17-06-2022 oferecer fundadas reservas, certo é que os termos em que o mesmo se encontra redigido são de molde a legitimar a leitura apresentada pela recorrente, segundo a qual o recurso de apelação por si interposto seria conhecido fosse com o recurso de apelação interposto ao abrigo do previsto no art. 1123.º, n.º 2, alínea b), do CPC, independentemente de quem o apresentasse, fosse «após o trânsito em julgado» do despacho determinativo da forma à partilha, caso deste não fosse interposto recurso.

Assim, e perante os termos – repita-se, ainda que não rigorosos – do teor do despacho de 17-06-2022, os princípios da confiança e da lealdade processual não permitiam que o Tribunal da Relação, pelo acórdão ora recorrido, se recusasse a conhecer o recurso de apelação interposto pela cabeça de casal. Conforme se decidiu no acórdão deste Supremo Tribunal de 03-03-2004 (proc. n.º 03P4421), disponível em www.dgsi.pt, assim sumariado, «[o] processo justo, a boa-fé, a confiança e a lealdade processual impõem que os interessados devem poder confiar nas condições de exercício de um direito processual estabelecido em despacho do juiz, sem que possa haver posterior e não esperada projecção de efeitos processualmente desfavoráveis para os interessados que confiaram no rigor e na regularidade legal do acto do juiz».

Conclui-se, pois, pela procedência desta pretensão da cabeça de casal, ora recorrente, devendo os autos baixar ao Tribunal da Relação para conhecimento do recurso de apelação pela mesma interposto da decisão da 1.ª instância de 28-10-2021.

2. Segunda questão: erro de julgamento do acórdão recorrido ao ter declarado a ineficácia do testamento da inventariada BB

Importa começar por considerar o enquadramento da questão tal como realizado no acórdão recorrido em termos que merecem a nossa concordância:

«A decisão recorrida entendeu que os dois testamentos são dotados de plena validade e eficácia.

Por sua vez, os interessados, ora recorrentes sustentam que os dois testamentos traduzem uma só vontade e pugnam pela declaração da ineficácia do testamento da inventariada BB.

(...)

A questão no fundo resume-se a saber se cada um de dois cônjuges tiver feito testamento em que legou a metade indivisa do prédio (bem comum do casal) à mesma filha com o consentimento do outro, por conta da quota disponível, tal deve operar relativamente a cada testamento, ou só deve operar relativamente ao testamento do cônjuge que primeiro falecer?

Dito de outro modo: importa saber se cada um dos testadores podia dispor nos termos em que o fez em cada um dos referidos testamentos.

É inolvidável que o bem imóvel mencionado nas deixas testamentárias, à data da feitura dos testamentos (feitos no mesmo dia), integrava o património comum do casal.

Estando em causa uma deixa testamentária referente ao património comum indiviso do aludido casal (que a segunda inventariada formou com aquele seu predefunto marido), importa, desde já, convocar os seguintes normativos que se transcrevem:

Sob a epígrafe “Disposições para depois da morte”, dispõe o artigo 1685º do C. Civil:

“1. Cada um dos cônjuges tem a faculdade de dispor, para depois da morte, dos bens próprios e da sua meação nos bens comuns, sem prejuízo das restrições impostas por lei em favor dos herdeiros legitimários.

2. A disposição que tenha por objeto coisa certa e determinada do património comum apenas dá ao contemplado o direito de exigir o respetivo valor em dinheiro.

3. Pode, porém, ser exigida a coisa em espécie:

a) Se esta, por qualquer título, se tiver tornado propriedade exclusiva do disponente à data da sua morte;

b) Se a disposição tiver sido previamente autorizada pelo outro cônjuge por forma autêntica ou no próprio testamento;

c) Se a disposição tiver sido feita por um dos cônjuges em benefício do outro.” (...)”

Por sua vez, sob a epígrafe “Legado de coisa pertencente só em parte ao testador”, preceitua o artº. 2252º do mesmo diploma que:

“1. Se o testador legar uma coisa que não lhe pertença por inteiro, o legado vale apenas em relação à parte que lhe pertencer, salvo se do testamento resultar que o testador sabia não lhe pertencer a totalidade da coisa, pois, nesse caso, observar-se-á, quanto ao restante, o preceituado no artigo anterior.

2. As regras do número anterior não prejudicam o disposto no artigo 1685º quanto à deixa de coisa certa e determinada no património comum dos cônjuges.” (...)

Ressalta do nº. 2 do último preceito legal que estando em causa um legado de coisa, certa e determinada, que se integre no património comum do casal ao mesmo é aplicável o regime fixado no transcrito artº. 1685º do CC.

Sendo o património comum um património coletivo (também designado por “comunhão de mão comum”), o mesmo pertence a ambos os cônjuges em bloco/em conjunto mas sem que possam afirmar, antes da sua divisão/partilha, dispor de um direito próprio e específico sobre os bens que integram o seu acervo. Devido a essa sua natureza, esse património não “confere a nenhum dos seus titulares, nem direitos sobre coisas certas e determinadas, nem direito a uma quota sobre qualquer dessas coisas. O facto de um prédio pertencer em comum a ambos os cônjuges não significa, por outras palavras, que qualquer deles se possa intitular dono1 do prédio ou sequer titular do direito a metade desse prédio”, que só acontecerá, repete-se, após a sua partilha. (Cfr. os profs. Pires de Lima e A. Varela, in “Código Civil anotado, Vol. IV, 2ª. edição revista e atualizada, Coimbra Editora, págs. 312/313”, o prof. Manuel. Andrade, in “Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. I, pág. 40” e Ac. do STJ de 17/02/1998, in “VJ, 21º- 61”).

E daí que o legislador do atual C. Civil perante tais situações de disposição sobre bens certos e determinados que integrem o património comum indiviso tenha enveredado “pelo caminho menos inconveniente e mais seguro” da solução especial plasmada no citado artº. 1685º, num claro intuito de proteção ou benefício do contemplado com a liberalidade (cfr. os profs. Pires de Lima e A. Varela, in “Ob. cit., pág. 313” e os profs Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in “Curso de Direito de Família, Vol. I, 3ª. ed. Coimbra Editora, pág. 442”).

Assim, à luz do que resulta do disposto no citado artº. 1685º, nº. 2 ex vi artº. 2252º, ambos do CC, a disposição testamentária que incida sobre bens certos e determinados pertencentes à comunhão do património comum (efetuada quer na pendência do matrimónio, quer depois da sua dissolução e enquanto esse património comum se mantiver indiviso) é sempre válida quanto ao valor e, em princípio, nula quanto à substância (transformação ope legis de uma disposição em substância num legado de valor).

Por outro lado, ocorrendo alguma das exceções previstas no nº. 3 do artigo 1685º, tal como ocorre no caso sub judice, confere-se à contemplada o direito de exigir a coisa em substância.

Em suma: no caso sub judicio, o art. 1685º do CC foi cumprido pelos testadores que fizeram questão de prestar o seu consentimento à deixa testamentária, em cada um dos testamentos, permitindo, assim, que o legado valesse em espécie, não obstante recair sobre metade indivisa do bem comum do casal. Nestes termos, a beneficiária tem direito ao mesmo em res, e não em pecunia, não se verificando a conversão ope legis determinada pelo nº1 do art. 1685º.

Assim:

Com o óbito do inventariado AA em 2011, o seu cônjuge BB e os seus filhos foram chamados à sua sucessão como herdeiros e uma das filhas ainda como legatária testamentária do prédio melhor identificado nos autos, legado esse imputado na quota disponível do de cujus.

Considerando a validade do testamento do inventariado marido, o bem em causa teria de ser atribuído, nos termos expostos, em espécie, à legatária, como vimos.

A inventariada BB e também testadora sobreviveu ainda mais 5 anos ao seu marido, tendo falecido em 2016, no estado de viúva. Deixou como sucessíveis legitimários os filhos e deixou o referido testamento.». [negritos nossos]

2.1. A questão em causa - correctamente identificada pela Relação como consistindo em «saber se cada um de dois cônjuges tiver feito testamento em que legou a metade indivisa do prédio (bem comum do casal) à mesma filha com o consentimento do outro, por conta da quota disponível, tal deve operar relativamente a cada testamento, ou só deve operar relativamente ao testamento do cônjuge que primeiro falecer» - foi apreciada e resolvida pelo Tribunal da 1.ª instância, por decisão de 22.11.2022, essencialmente de acordo com as seguintes considerações:

- «Argumentam os interessados que à legatária foi legada metade de um prédio e não o prédio inteiro e que o legado se cumpriu integralmente com o falecimento do primeiro dos testadores.

Salvo o devido respeito, discordamos desta interpretação.

É manifesto que cada um legou metade indivisa do prédio, mas o legado não se cumpre com o falecimento do primeiro dos testadores; com o falecimento do primeiro dos testadores, a cabeça de casal adquire a metade que lhe foi legada pelo inventariado primeiramente falecido e com o falecimento da segunda inventariada adquire o restante.

Contra esta interpretação defendem os interessados que depois do falecimento do primeiro inventariado, a inventariada (segunda a falecer) já não podia legar metade do prédio (porque já não tinha tal metade), nem a legatária podia receber o que já não existia na titularidade da testadora.».

- «(...) atentando nos factos provados resulta que cada um dos inventariados dispuseram [rectius: dispôs], para depois da morte, de um bem concreto do património comum do casal – metade indivisa do prédio identificado -, com autorização recíproca do outro.

Assim, por força do pré-legado instituído pelo testamento de AA, com o falecimento deste, a cabeça de casal adquiriu metade indivisa do prédio em causa nos autos e por força do subsequente falecimento de BB e do pré-legado instituído pela inventariada, a cabeça de casal adquiriu metade indivisa do que lhe foi legada por BB.

A cabeça adquiriu, assim, o prédio na sua globalidade.».

- «No caso dos autos, fazendo apelo aos critérios interpretativos referidos, é manifesto que existe uma vontade concertada dos inventariados de legar o prédio, concertação essa que advém de terem feito os testamentos no mesmo dia, no mesmo local e reciprocamente com autorização de um e outro.

O que, salvo o devido respeito, discordamos, é que se possa concluir que os dois pretenderam, conjuntamente, só legar metade, melhor dizendo, uma só metade, a mesma metade do prédio.

Tal interpretação, salvo o devido respeito, não tem arrimo no texto de nenhum dos testamentos, o que decorre dos testamentos é, salvo o devido respeito, que cada um legou metade, sendo declarações de vontade autónomas.».

- «Aduzem ainda os interessados o doutamente decidido nos acórdãos do Tribunal da Guimarães de 28-09-2006, proferido no processo nº 1711/06-1 e no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16-11-2010, proferido no processo nº 4067/07.2TBVIS.C1, em que se decidiram questões similares a aqui em causa.

O Tribunal atendeu e ponderou a jurisprudência firmada nos acórdãos referidos, todavia, salvo o devido respeito, parece-nos que o aí doutamente decidido não é linearmente transferível para a situação concreta dos presentes autos.

É que nesses acórdãos cada um dos cônjuges/inventariados legou por testamento o mesmo bem imóvel, de tal modo que, falecendo o primeiro inventariado, o legatário adquire o bem, sendo ineficaz (legado de coisa alheia) o segundo testamento, uma vez que o bem era já propriedade do legatário.

No caso concreto, porém, cada um dos cônjuges inventariado legou metade do bem, de tal modo que, falecendo o primeiro inventariado, a legatária adquiriu apenas e só metade do bem e só com o falecimento da segunda inventariada é que a legatária adquire a restante metade do bem.

A questão da ineficácia do testamento, salvo o devido respeito, não se coloca nos presentes autos, nem o primeiro testamento impede a produção de efeitos do segundo.».

2.2. Tendo os interessados apelado, veio a Relação a apreciar a questão da seguinte forma:

«(...) os recorrentes argumentam que o testamento já não se mantinha eficaz à data do seu óbito, uma vez que o cumprimento da vontade do testador marido esgotou a vontade real dos dois testadores, pois no fundo os dois testamentos reportam-se a uma vontade.

Isto seria muito mais claro se, por morte do primeiro inventariado AA, em 2011, se tivesse procedido logo à partilha da sua herança.

O legado seria todo imputado na sua herança, nos termos do testamento: primeiro na quota disponível, depois na legítima da legatária e o excesso sobre a soma destas reduzido por inoficiosidade (arts. 2168 e 2169, ambos do CC).

Por morte de AA já o bem seria da filha e nenhuma razão haveria para o ter em consideração posteriormente.

Tudo isto é também explicado no acórdão do TRG de 28/09/2006 e conforme AC da RC de 16-11-2010 (ambos referidos pelos interessados e na decisão recorrida), secundado por Paulo Sobral Soares do Nascimento, na anotação àquele primeiro acórdão (sob o título de: Legado de bem comum do casal por parte de ambos os cônjuges e ineficácia da disposição testamentária, publicada nos Cadernos de Direito Privado, nº. 30, Abril/Junho 2010, págs. 31 a 40), num caso que tem coincidência parcial com os dos autos, embora lhe acresçam particularidades. A anotação só discorda do acórdão do TRG na questão do momento em que a vontade dos dois testadores adquire relevância, o qual, segundo o anotador, que aqui se segue, é o da eficácia do primeiro testamento.

Na decisão recorrida entendeu-se que o caso analisado naqueles arestos seria diferente simplesmente porque ali o legado era o mesmo bem imóvel e nos presentes autos o legado por cada um dos cônjuges é metade do bem, para concluir que a legatária adquiriu metade do bem com o primeiro falecimento do inventariado e a outra metade com o falecimento da viúva BB.

Daí, repare-se que a partilha operada nos termos do despacho em causa e também ora recorrido, implica, em termos práticos, o entendimento de que cada um dos inventariados legou metade da coisa em causa.

Salvo o devido respeito, não foi isso o que aconteceu.

Conforme supra, analisámos, o que cada um deles fez, como decorre do respetivo testamento, na parte transcrita acima, foi legar “metade indivisa do prédio” (bem comum do casal), com o consentimento do outro, como a lei permite [art. 1685/2c) e 3b) do Código Civil = CC]. Com a consequência de que o testamento do cônjuge que faleceu depois, já não poderia ter eficácia, pois que a coisa já tinha sido adquirida, em espécie, pela morte do primeiro [art. 1317/b) e 1685º,nº3 do CC], e não obstante o legado recair sobre metade indivisa do prédio.

Podemos acrescentar, seguindo de perto o raciocínio plasmado naquela mencionada anotação, que estamos, no testamento da inventariada BB, perante um legado de coisa alheia, porquanto já havia sido adquirida, pela legatária, antes da abertura da sucessão, a título gratuito.

Assim sendo, e analisando o testamento de BB, de per si e olvidando a coincidência temporal com o testamento do inventariado AA, temos o seguinte quadro: legado de metade indivisa do prédio em benefício da filha de ambos é ineficaz porquanto esta o adquiriu previamente, com o falecimento de seu pai, o inventariado AA (sendo que tal aquisição é válida, como legado em espécie, e não obstante o legado recair sobre metade indivisa do prédio, como vimos, cumprindo-se o nº3 do art. 1685º do CC), pelo que ineficazes são as cláusulas de imputação do legado na quota disponível e as demais dos encargos.

Daí concluir-se que o legado feito pelo primeiro falecido consumiu toda a eficácia do legado feito pelo segundo falecido.

Tal como ali, no caso vertente, e fazendo uso dos cânones do art. 2187º do CC, conclui-se que a referência que cada um dos testadores faz ao legado da metade indivisa do mesmo prédio, por conta da quota disponível, não adquire relevância no sentido de poder considerar-se que cada um deles pretendeu dispor da respetiva quota disponível, em benefício da legatária, cabeça de casal, pois que se a real vontade dos testadores fosse a de beneficiar duplamente a legatária, não teriam disposto do mesmo bem, nos mesmos termos e nas mesmas condições.

Quer tudo isto dizer que foi intenção dos testadores legar à sua filha aquele prédio, bem comum do casal, não obstante terem consignado que o legado recairia sobre metade indivisa do prédio, de tal modo que, à morte de cada um dos cônjuges testador, este mesmo bem pudesse ser exigido, em substância, pela legatária, aliás como decorre da lei (cfr. nº3 do art. 1685º do CC).

Isto por ser impossível determinar, à data da celebração dos testamentos em causa, qual dos cônjuges faleceria primeiro, o que, por sua vez, nos leva a concluir no sentido de que os dois testamentos em causa reportam-se a uma única vontade testatória, que só foi expressa em dois testamentos dada a impossibilidade legal de duas ou mais pessoas testarem no mesmo ato, conforme resulta do disposto no art. 2179° do C. Civil.

Daí se concluir que o testamento da inventariada BB dependia da não consunção dos efeitos pelo testamento do falecido AA, primeiro inventariado falecido. Por isso naquele aresto citado se diz que com “aquele cumprimento, ficou esgotada a vontade real dos testadores”.

Nos termos e pelos fundamentos expostos, procede, neste particular o recurso daquela decisão recorrida datada de 22-11-2022 e, em sua substituição, declara-se a ineficácia do testamento da inventariada BB.». [negritos nossos]

2.3. Insurge-se a Recorrente contra a decisão do acórdão recorrido, alegando que a interpretação correcta é antes a interpretação adoptada pela decisão da 1.ª instância.

Vejamos.

De acordo com a regra do n.º 1 do art. 2187.º do Código Civil («Na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento»), a interpretação do testamento segue um critério subjectivista, sendo que, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, «[é] admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa».

No caso dos autos, dispomos apenas dos seguintes elementos:

• A indicação de que ambos os testamentos foram realizados na mesma data, no mesmo Cartório Notarial, e em seguida um ao outro, como se verifica pelas folhas do livro em que constam;

• O teor de cada um dos testamentos, que é igual no que se refere ao enunciado da deixa testamentária (acompanhada da autorização do outro cônjuge): “… por conta da quota disponível dos seus bens, lega a sua filha CC, casada, com ele residente, metade indivisa de um prédio misto, composto de casa com dois pavimentos, logradouro e cultura com videiras, nos indicados lugar de ... e freguesia de ..., inscrito na matriz urbana sob o artigo 100 e rústica sob o artigo 3014º.”.

Perante estes dados, e ainda que reconhecendo a dificuldade inerente à reconstituição da vontade do de cujus, não se pode acompanhar a perspectiva de análise do acórdão recorrido assim enunciada: «analisando o testamento de BB, de per si e olvidando a coincidência temporal com o testamento do inventariado AA». Com efeito, tal como entendeu o tribunal da 1.ª instância, o facto de ambos os cônjuges terem outorgado os testamentos na mesma data e local, deixando, cada um deles, com a autorização do outro, “metade indivisa” do mesmo bem à filha CC, indicia – na impossibilidade de realizarem um testamento de mão comum (cfr. art. 2181.º do CC) – uma concertação de vontades entre eles no sentido de legar o bem, na sua totalidade, à dita filha.

Assim – e sem prejuízo das reservas sobre o rigor da expressão “metade indivisa” quando referida a um bem imóvel que integra o património comum do casal, atendendo a que, nas palavras acima referidas de Pires de Lima/Antunes Varela (ob. cit., pág. 312), esse património não “confere a nenhum dos seus titulares, nem direitos sobre coisas certas e determinadas, nem direito a uma quota sobre qualquer dessas coisas” – afigura-se que a interpretação do texto de ambos os testamentos, no seu contexto, leva a afastar o sentido interpretativo defendido pelos Recorridos e acolhido pelo tribunal a quo, segundo o qual a vontade de ambos os testadores era de legar à cabeça de casal apenas metade do prédio e a mesma metade do prédio.

No que se refere ao invocado paralelismo com o acórdão da Relação de Guimarães de 28-09-2006 (proc. n.º 1711/06-1) e com o acórdão da Relação de Coimbra de 16-11-2010 (proc. n.º 4067/07.2TBVIS.C1), e diversamente do que parece ser o entendimento do acórdão recorrido, ao afirmar que aquele «tem coincidência parcial com os dos autos, embora lhe acresçam particularidades», acompanha-se o juízo da 1ª instância que rejeitou tal paralelismo por nesses casos estarem em causa situações em que cada um dos cônjuges e inventariados legou por testamento o mesmo bem imóvel na sua totalidade.

No caso dos autos no qual, reafirma-se que a circunstância – o contexto do n.º 1 do art. 2187.º do CC – de os testamentos terem sido outorgados em simultâneo, deixando, cada um deles “metade indivisa” do imóvel à filha cabeça de casal, indicia uma concertação de vontades entre eles no sentido de legar o dito imóvel, na sua totalidade, à dita filha. Sendo este o resultado interpretativo que se afigura mais comum, entende-se que, e acompanhando aqui mais uma vez o entendimento da 1ª instância, para o afastar seria necessário que os testadores se tivessem expressado de outra forma.

Esclareça-se que, como se não demonstra que a outra “metade indivisa” do dito imóvel não tenha integrado ou o quinhão hereditário ou a meação nos bens comuns do casal que competiriam à inventariada BB, não há razão para invalidar o dito testamento por não haver prova de o bem por ela legado ter em qualquer momento deixado de ser bem que integrava o seu património, sendo certo que o dito imóvel integra na totalidade o acervo hereditário dos dois inventariados testadores.

Conclui-se, assim, ser de declarar a eficácia do testamento da inventariada BB, devendo, consequentemente, determinar-se a baixa dos autos ao Tribunal da Relação para reformulação do despacho determinativo da forma à partilha em conformidade com tal declaração.

VI – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, decidindo-se:

a. Revogar a decisão do acórdão recorrido de não conhecer do recurso de apelação interposto pela cabeça de casal CC da decisão da 1.ª instância proferida em 28-10-2021;

a. Revogar a decisão do acórdão recorrido de declarar a ineficácia do testamento outorgado pela inventariada BB, declarando-se a eficácia do mesmo testamento;

b. Determinar a baixa dos autos ao Tribunal da Relação para, se possível pelos mesmos Senhores Juízes Desembargadores:

i. Ser conhecido o recurso de apelação indicado em a);

ii. Ser reformulado o despacho determinativo da forma à partilha em conformidade com o decidido em b), e, se necessário, em conformidade também com a decisão que vier a ser proferida acerca do recurso de apelação indicado em a).

Custas do recurso de revista pelos recorridos.

Custas na acção e nos recursos de apelação pelas partes, na proporção do decaimento.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2024

Maria da Graça Trigo

Ana Paula Lobo

Fernando Baptista

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1. No texto do acórdão recorrido a palavra “dono” está omissa; consultada a obra citada no acórdão (Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. IV, 2ª ed., Coimbra Editora, 1992, págs. 312-313) confirmou tratar-se de um lapso manifesto que importa corrigir.