Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
11481/20.6T8LSB.L2.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: OFENSA DO CASO JULGADO
CASO JULGADO FORMAL
ERRO NA FORMA DO PROCESSO
DESPACHO DE PROSSEGUIMENTO
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
PEDIDO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
DECISÃO SURPRESA
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - Nos termos do art. 629º, nº2, alínea a), do CPC, “independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso das decisões que ofendam o caso julgado.”

II- Ocorre a ofensa do caso julgado formal quando uma decisão contraria uma outra, no mesmo processo, transitada em julgado.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA, instaurou acção de processo comum contra BB, pedindo,

a. Que venha a ser declarada como única herdeira da herança de CC.

b. Que venha a ser declarado, em benefício da A., a perda do direito que o R., como herdeiro de CC pudesse ter em relação à herança desta.

c. Que o R. venha a ser condenado a pagar à A. com os fundamentos expedidos na presente acção a quantia de:

a. €174.579,26 referentes à quota da falecida CC na fracção autónoma designada pela letra “T”, acrescidos de juros de mora, à taxa legal desde a data da venda do imóvel pelo R., o que perfaz à presente data, o valor de €215.144,16.

b. O saldo e respectivos juros bancários das contas da falecida CC, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a data do óbito, a liquidar em execução de sentença; O valor do relógio rolex que era propriedade da falecida CC, a liquidar em sede de sentença.

c. €50.000,00 a título de danos não patrimoniais;

d. 251.885,74 a título de enriquecimento sem causa;

Subsidiariamente, em relação à sonegação da quota legítima da A. na fracção autónoma designada pela letra “T”, com os efeitos jurídicos daí advenientes e acima peticionados:

e. Que venha a ser considerado inexistente ou nulo, ou caso assim não se entenda, que venha a ser anulado o contrato de compra e venda da fracção autónoma designada pela letra “t” correspondente ao 12º andar esquerdo, respectiva garagem e arrecadação, do prédio urbano sito na Rua ... lote 1597, em ..., descrito na 3ª Conservatória do registo Predial de ..., sob o n.º 28450 e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o art.º 766-T.

Alega para tanto e em síntese que:

Em .../.../1995 faleceu a mãe da A., CC, que era casada com o pai da A., ora R., sob o regime de comunhão de adquiridos;

A Autora tinha à data 3 anos de idade;

A falecida residia com o R. na fracção autónoma designada pela letra “t” correspondente ao 12º andar esquerdo, respectiva garagem e arrecadação, do prédio urbano sito na Rua ... lote 1597, em ..., que o R. vendeu já após o falecimento da mãe da A., apresentando uma procuração irrevogável, que a falecida nunca outorgara;

O Réu vendeu o imóvel cuja meação integrava a herança indivisa da falecida, ocultando-lhe até à presente data a existência de quaisquer bens da herança com excepção de um plano reforma subscrito pela falecida;

A Autora solicitou ao banco de Portugal informação acerca de contas da falecida verificando que subsistem duas contas activas em nome daquela que o R. continuou a utilizar;

À data do falecimento a sua mãe era proprietária de um relógio rolex cujo modelo desconhece;

Era parte integrante do recheio da habitação da falecida o discriminado no doc. 18 que junta;

Citado, o Réu contestou invocando a caducidade do direito da A. e impugnando os factos alegados.

Por decisão de 27.09.2021 foi o Réu absolvido da instância, por erro na forma de processo (art. 193º do CPC), por se ter considerado ser o processo de inventário e não a acção declarativa o meio processual adequado à pretensão da Autora.

A Autora interpôs recurso de tal decisão e com sucesso, pois que a Relação de Lisboa, por acórdão de 22.03.2022, julgou a apelação procedente e revogou decisão recorrida.

Para assim decidir, ponderou a Relação:

“Tendo em conta os concretos pedidos formulados na acção – de petição de herança, nos termos do art.º2075º, n.º 1 do Código Civil, de sonegação de bens, nos termos do 2096º, n.º 1 do Código Civil, de indemnização por danos morais e, subsidiariamente, de enriquecimento sem causa com a sonegação do bem imóvel e de anulação do contrato de compra e venda do mesmo imóvel, nos termos do art.º 1893º, n.º 2 do Código Civil (de acordo com o referido nos art.º63º e 64º da Pi) - parece evidente que a forma de processo adequada era, como foi, a declarativa comum e não o processo de inventário.

Questão distinta será a da análise sobre a viabilidade e/ou procedência de cada um dos pedidos em concretos e, antes disso, da oportunidade dessa ponderação no despacho saneador (por o estado do processo o permitir, sem necessidade de mais provas – art.º 595º, n.º 1 al. a) do Código de Processo Civil.

Tal respeita, todavia, ao mérito, total ou parcial, da causa, transcendendo a apreciação da nulidade a que alude o art.º 193º do Código de Processo Civil e, por conseguinte, o objecto do presente recurso.

Diga-se, ainda, que outras possíveis questões relativas aos pedidos da A. (aparente discrepância entre o teor dos art.º 63º e 64º da Pi e o petitório final no tocante ao pedido subsidiário) e/ou respeitantes a qualquer insuficiência ou imprecisão na exposição dos factos por parte desta, deverão porventura justificar o convite ao aperfeiçoamento, nos termos do art.º 590º, n.º 3 e 4 do Código de Processo Civil, não cabendo, a sua apreciação nesta sede.”

Baixados os autos à 1ª instância, e na sequência de convite ao aperfeiçoamento, a Autora apresentou novo articulado.


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Realizada a audiência prévia, foi proferida decisão que absolveu o Réu da totalidade dos pedidos por se ter considerado serem os pedidos e os seus fundamentos de facto e direito manifestamente improcedentes.

Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação.

Por acórdão da Relação de Lisboa de 14 de Setembro de 2023, foi o recurso julgado procedente e revogada a decisão recorrida, para que os autos prossigam a sua normal tramitação.

É a vez do Réu interpor recurso de revista, cujas alegações conclui do seguinte modo:

A - Não se conforma o Recorrente com douto Acórdão recorrido que julgou “O tribunal recorrido não ponderou a possibilidade do erro na qualificação jurídica do efeito prático que o autor pretende obter com a ação poder ser corrigido pelo juiz, possibilidade que a jurisprudência tem vindo a admitir (cf. www.dgsi.pt Acórdão de Uniformização de Jurisprudência proferido pelo STJ a 23 de janeiro de 2001, no processo 98B994). Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida, devendo o tribunal recorrido, considerando que a ação não é manifestamente improcedente, fazer os autos prosseguir a sua normal tramitação.”.

B - Por um lado, foi proferido nos presentes autos o douto Acórdão da Relação de Lisboa de 22.03.2022, que não tendo sido objeto de recurso transitou em julgado (art.º 620º, nº 1, do Cód. Proc. Civil), no qual se julgou que inexistia erro na forma deprocesso “tendo em conta os concretos pedidos formulados na ação - de petição da herança, nos termos do art. 2075. 1. do C.C., de sonegação de bens, nos termos do art. 2096. 1. do C.C.. de indemnização por danos morais e, subsidiariamente, de enriquecimento sem causa” e que “outras possíveis questões relativas aos pedidos da A, (aparente discrepância entre o teor dos arts. 63º e 64º da p.i. e o petitório final no tocante ao pedido subsidiário) e/ou respeitantes a qualquer insuficiência ou imprecisão na exposição dos factos por parte desta, deverão porventura justificar o convite ao aperfeiçoamento, nos termos do art. 590, nos 3 e 4, do C.P.C., não cabendo a sua apreciação nesta sede” (sic.).

C - Por outro lado, como também resulta do citado, no douto Acórdão recorrido, foi julgado que “O tribunal recorrido não ponderou a possibilidade do erro na qualificação jurídica do efeito prático que o autor pretende obter com a ação poder ser corrigido pelo juiz, possibilidade que a jurisprudência tem vindo a admitir (cf. www.dgsi.pt Acórdão de Uniformização de Jurisprudência proferido pelo STJ a 23 de janeiro de 2001, no processo 98B994).

D - Ou seja, por um lado, no primeiro dos doutos arestos proferidos nos presentes autos, transitado em julgado, julgou-se considerando os concretos pedidos formulados, decidindo-se que atenta a causa de pedir e os concretos pedidos formulados, aquela - a causa de pedir, os factos alegados para pretensamente sustentar os pedidos deduzidos – e estes poderiampadecer deinsuficiência suprível por convite ao aperfeiçoamento, o qual veio efetivamente a ser formulado e foi considerado pela Recorrida nos termos que entendeu.

E - Diversamente - rectius, em oposição ao julgado no Acórdão de 22.03.2022 - julgou-se no Acórdão recorrido que outros, que não os formulados pela Recorrida, podiam ser os pedidos a considerar pelo Tribunal na decisão da causa.

F Salvo o devido respeito, que é muito, o douto Acórdão recorrido ao julgar que outros pedidos, que não os formulados pela Recorrida, podiam ser considerados pelo Tribunal na decisão da causa e que foram aqueles que aquele outro Acórdão impôs ao Tribunal de primeira instância que considerasse - até mesmo tendo em conta eventual insuficiência na alegação de factos pela Recorrida, a sanar em sede de acolhimento ao convite ao aperfeiçoamento, que, de resto, lhe foi dirigido e acolhido nos termos que a mesma entendeu - está em oposição ao julgado no Acórdão de 22.03.2022 relativamente ao qual decide de modo antagónico, ofendendo o caso julgado formal, devendo, por isso, ser revogado, e, consequentemente, mantendo-se o douto Saneador-Sentença.

G Aliás, atento o exposto não se vê, e respeitosamente não se aceita que juridicamente exista, “a possibilidade do erro na qualificação jurídica do efeito prático que o autor pretende obter com a ação poder ser corrigido pelo juiz” (sic.), considerando o estabelecido no art.º 615º, nº 1, al. d) in fine, do Cód. Proc. Civil, a douta jurisprudência supra citada (maxime os Acórdãos da Rel. de Lisboa de 30.05.2023, proc. nº 14358/21.4T8SNT-B.L1-1, e deste Supremo Tribunal de Justiça de 21.03.219, proc. nº 2827/14.7T8LSB.L1.S1, ambos in www.dgsi.pt), mesmo a proibição de decisões-surpresa e a persistência da Recorrida na alegação da causa de pedir e nos pedidos que deduziu, uma vez que foi convidada a aperfeiçoar a sua petição inicial e fê-lo nos termos que entendeu, não suprindo as insuficiências.

H - Assim, sempre com o devido respeito que é muito, conclui-se nos referidos termos pela ofensa do caso julgado formal (art.º 620º, nº 1, do Cód. Proc. Civil, que foi violado), no douto Acórdão recorrido e, bem assim, pela manifesta improcedência da pretensão da Recorrida, como bem se decidiu em primeira instância, devendo, por isso, ser revogando o douto Acórdão recorrido, confirmando-se o julgado no douto Saneador-Sentença.

Não foram apresentadas contra alegações.


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Com dispensa de vistos, cumpre decidir.

A factualidade relevante consta do relatório procedente.

O direito.

Fundamenta-se o recurso na alegada violação do caso julgado formal, o que constitui o fundamento de recorribilidade previsto no art. 629º, nº2, alínea a), do CPC, nos termos do qual “independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso das decisões que violem as regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia, ou que ofendam o caso julgado.”

A admissibilidade excepcional do recurso por alegada ofensa ao caso julgado formal ou material abarca apenas as decisões de que alegadamente resulte a ofensa do caso julgado já constituído. (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos (…), 5ª edição, p. 50, e acórdão do STJ de 18.10.2018 e de 28.02.2023, www.dgsi.pt).

No caso, imputa-se à decisão recorrida a ofensa do caso julgado formado por uma decisão anterior proferida no processo e transitada em julgado, o acórdão da Relação de Lisboa de 22.03.2022, que considerou não se verificar erro na forma de processo e determinou o prosseguimento da acção.

Estamos, pois, perante o caso julgado formal previsto no nº1 do art. 620º do CPC, segundo o qual “as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre relação processual têm força obrigatória dentro do processo.”

Traduz-se o caso julgado formal na insusceptibilidade de impugnação de uma decisão, que pode ser um despacho, uma sentença ou acórdão, decorrente do seu trânsito em julgado. O caso julgado formado através do trânsito em julgado da decisão proferida significa que essa decisão passa a ter força obrigatória dentro do processo, não podendo ser revertida ou modificada (pelo tribunal que a proferiu ou qualquer outro), nem podendo, nesse processo, admitir-se a prática de qualquer acto que seja contraditório com o seu conteúdo decisório.

Dito isto, vejamos se a decisão recorrida violou o caso julgado formal.

O acórdão recorrido revogou a decisão da 1ª instância que conhecera do mérito da causa findos os articulados tendo ponderado para o efeito:

“O tribunal recorrido não ponderou a possibilidade do erro na qualificação jurídica do efeito prático que o autor pretende obter com a ação poder ser corrigido pelo juiz, possibilidade que a jurisprudência tem vindo a admitir (cf. www.dgsi.pt Acórdão de Uniformização de Jurisprudência proferido pelo STJ a 23 de janeiro de 2001, no processo 98B994).

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida, devendo o tribunal recorrido, considerando que a ação não é manifestamente improcedente, fazer os autos prosseguir a sua normal tramitação.”

Diz o Recorrente que “o Acórdão recorrido ao julgar que outros pedidos, que não os formulados pela Recorrida, podiam ser considerados pelo Tribunal na decisão da causa (…) está em oposição ao julgado no Acórdão de 22.03.2022.”

Não tem qualquer razão, com o devido respeito.

O acórdão não disse que outros pedidos, que não os formulados pela Autora, poderiam vir a ser considerados pelo tribunal.

O que disse foi que um eventual erro na qualificação jurídica do efeito jurídico pretendido pela autora pode ser corrigido oficiosamente, na esteira da jurisprudência uniformizada pelo AUJ nº 3/2001 de 23.01.2001, publicado no DR, nº34, Série I -A de 09.02.2002 que fixou a seguinte jurisprudência no sentido que – “tendo o autor, na acção de impugnação pauliana pedido a declaração de nulidade ou anulação na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (nº1 do art. 616º do Código Civil), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar a ineficácia, como permitido pelo art. 664º do Código de Processo Civil.

A decisão recorrida em nada contraria a decisão anterior que considerou a acção declarativa adequada aos pedidos formulados pela Autora na acção.

É absolutamente prematuro invocar a nulidade por excesso de pronúncia (art. 615º, nº1, alínea d) do CPC), ou a violação do princípio da proibição da decisão-surpresa, como o faz o Recorrente na conclusão G), questões que apenas se colocarão se o tribunal vier a proferir decisão que conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, ou a proferir uma condenação ultra petitum, contra o disposto no nº1 do art. 609º do CPC que estabelece os limites da condenação: “a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir.

A alegação de ter o acórdão violado o caso julgado formal formado pelo acórdão da Relação de Lisboa 22.03.2022 proferido nos autos, carece, assim, de fundamento o que conduz à inevitável improcedência da revista.”

Decisão.

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 08.02.2024

José Maria Ferreira Lopes (relator)

Nuno Pinto Oliveira (1º adjunto)

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (2ª adjunta).