Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
62/21.7T8SEI.C1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
OBSCURIDADE
AMBIGUIDADE
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
REQUISITOS
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA
Sumário :
O Acórdão é obscuro / não claro quando alguma passagem seja ininteligível ou difícil de compreender e é ambíguo / não unívoco quando alguma passagem possa ser interpretada em sentidos diferentes e potencialmente conflituantes.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

1. Notificado do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.03.2023, vem AA, réu e recorrente nos autos, “nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC, aplicável por remissão dos artigos 666.º, n.º 1 e 685.º, ambos do mesmo Código, arguir a nulidade do douto Acórdão”.

Alega o reclamante, precisamenre, que:

“1. Compulsadas as alegações de revista, constata-se que a questão levada à cognição do Tribunal se prende, essencialmente, com o preenchimento do pressuposto essencial da (procedência da) impugnação pauliana em torno da impossibilidade do credor obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade.

2. Ora, tal como ali referido, a particularidade do caso vertente prende-se com a circunstância do credor Autor beneficiar de uma garantia real decorrente da penhora,

3. Penhora essa que, conforme decorre dos autos e da factualidade provada, precede as doações efetuadas.

4. Respigado o douto Acórdão, e com todo o devido respeito, o mesmo lucubra – doutamente, é certo –, sobre a utilidade substantiva da impugnação pauliana (mormente num cenário de insolvência do transmitente e/ou do transmissário da propriedade dos bens),

5. Quando, na verdade, e com o devido respeito, o que se discute não é utilidade, para o credor, de tal meio conservatório da garantia patrimonial do devedor,

6. Mas sim a sua admissibilidade, em face do que dispõe a al. b) do artigo610.º do Código Civil (CC).

7. E tendo presente a pré-existência da referida garantia.

8. Com efeito, a situação típica da impugnação pauliana pressupõe a efetiva saída do bem (ou bens) do património do devedor,

9. Procurando-se, com tal meio conservatório da garantia patrimonial do devedor, obter a declaração de ineficácia de tal ato perante o credor.

10. Ora, idêntico efeito decorre de penhora efetuada, quanto a qualquer ulterior transmissão do bem, a qual é inoponível à execução e ao exequente.

11. Isto dito, e regressando ao douto Acórdão de fls., de 2.03.2023, sustenta-se que “A doutrina e a jurisprudência são unânimes no entendimento de que, em conformidade com este preceito, a impossibilidade referida na al. b) do artigo 610.º do CC deve ser interpretada como a situação em que o obrigado não possui bens com valor igual ou superior ao das dívidas.”

12. Concluindo-se que “…não tendo o recorrente logrado provar, como lhe competia, que havia no seu património bens penhoráveis de igual ou maior valor do que o valor das dívidas, é inevitável que se dê por provado (por presunção) o requisito da al. b) do artigo 610.º do CC, sendo absolutamente irrelevantes outras alegações ou circunstâncias”.

13. Concluindo-se, ainda, e assim, pela impossibilidade do credor ver satisfeito o seu crédito.

14. Ora, a verdade é que, com o devido respeito, não se consegue compreender em que medida, nesse caso, em que – e independentemente de putativos cenários de insolvência ou similares –, o credor dispõe de uma garantia real,

15. Se pode considerar, para efeitos da verificação dos pressupostos da impugnação pauliana, aquando da instauração da respetiva ação (e não em cenários hipotéticos ou potenciais…), bem entendido,

16. Que o credor está impossibilitado de obter a satisfação do seu crédito…

17. Com efeito, nesse caso não se pode considerar, verdadeiramente, que o bem saiu da esfera jurídica do devedor,

18. Dado que o mesmo continua a poder ser executado, por meiodo respetivo processo de execução.

19. E nem se diga que o credor fica desprotegido, porquanto, num cenário de insolvência do devedor, poderá sempre, verificados os respetivos pressupostos, recorrer à impugnação pauliana (ver, entre outros, o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11.05.2020, tirado no processo n.º 998/19.5T8LRA.C1, disponível em www.dgsi.pt).

20. Donde, afigura-se que, quanto a esse ponto – o da efetiva verificação do pressuposto essencial da impossibilidade de satisfação do crédito ou agravamento dessa impossibilidade –,

21. O douto acórdão de fls. não é claro, dado que deriva a sua trajetória cognitiva para a utilidade desse meio processual (a impugnação pauliana),

22. Tecendo considerações quanto à “…desrazoabilidade desta solução no plano da repartição do ónus probatório”,

23. Não se compreendendo em que medida é afastada a circunstância de existirem bens que acautelam o pagamento das quantias em dívidas.

24. Aliás, hipótese que foi cogitada no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 10.12.2020, tirado no processo n.º 297/19.2T8FND.C1, disponível em www.dgsi.pt.

25. Donde, e com o devido respeito, afigura-se, nesse ponto, padecer o douto Acórdão de ambiguidade e/ou obscuridade que torna a decisão ininteligível,

26. Pelo que, debalde todo o devido respeito, que muito é, se argui a nulidade do douto Acórdão de fls., de 2.03.2023, ao abrigo do disposto na al. c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, para os devidos efeitos legais”.

2. Responde a recorrida BB o seguinte:

1 – Contrariamente ao invocado, o Acórdão proferido não padece de qualquer ambiguidade ou obscuridade, sendo a decisão proferida inteligível inatacável,

De facto,

2 – O douto aresto contém o itinerário cognoscitivo para a solução de facto e a razão de ser de direito da decisão que encerra, pese a desfavor da pretensão do Recorrente.

3 - Com singeleza, arrima o Recorrente no entendimento que a penhora prévia afasta a impugnação pauliana, por inadmissibilidade face ao preceituado no art 610 do Código Civil:

- defendendo que a penhora registada será oponível a qualquer ulterior transmitente;

- defendendo que aquando da entrada da ação, e face à penhora registada, o bem não terá saído da esfera jurídica do devedor;

- defendendo não ser compreensível “em que medida é afastada a circunstância de existirem bens que acautelam o pagamento das quantias em dívida”

Ora,

4 – Não assiste qualquer razão ao Reclamante/Recorrente, não existindo o pretenso vício na decisão proferida;

5 – O douto acórdão de forma clara e coerente, fundamentadamente aporta como inequívoco sentido decisório:

- A inoponibilidade dos actos de disposição dos prédios e de preferência no pagamento, provenientes de penhora não impede ou limita a possibilidade do recurso à Impugnação Pauliana;

- Mercê da doação, os prédios deixaram de integrar o património do credor e passaram a integrar o património da donatária, tendo a Autora o interesse nesta impugnação, com vista à reposição dos imóveis ao património do devedor, ficando o credor encabeçado nessa restituição e seus efeitos;

- Ademais, a penhora, num dos imóveis, ficou aquém da proporção efetivamente detida pelo Recorrente, não tendo a Autora a proteção da penhora nessa parte

- É gratuita e insubsistente a pretensão do reclamante ao recidivantemente convocar, de jeito impertinente e inatendível a questão já pronunciada quanto à repartição do ónus da prova, em cuja matéria decaiu, resultando um “non liquet” probatório

6 – Assim e sem mais delongas, suprido doutamente o omitido, deverá ser desatendida a impetrada reclamação, como propugnado, e legais efeitos”.


*

Entende o reclamante que o Acórdão de 2.03.2023 enferma de nulidade com fundamento em “ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível” (cfr., sobretudo, ponto 25 da reclamação).

Esta nulidade está prevista / regulada na 2.ª parte do artigo 615.º, n.º 1, al. c), do CPC.

Como afirmam, entre outros, Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Pires de Sousa, “[a] decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes[1].

Sendo a questão decidenda, tal como enunciada, a de saber se o Tribunal da Relação havia aplicado correcta ou incorrectamente o regime da impugnação pauliana aos caso dos autos, veja-se como se estruturou a fundamentação da decisão aqui impugnada.

Depois de se reproduzir a fundamentação do Acórdão da Relação, procedeu-se à análise do regime da impugnação pauliana, dando-se particular atenção ao disposto nas normas dos artigo 610.º e 611.º do CC.

 Tinha esta operação em vista apurar os requisitos do recurso à impugnação pauliana e a distribuição do ónus da prova.  Isto porque, segundo o recorrente, não se verificavam os requisitos do recurso à impugnação pauliana, sendo, consequentemente, o recurso a ela inadmissível.

Concluiu-se, resumidamente, que a o credor cabe provar o valor das dívidas e que ao devedor cabe provar que tem bens penhoráveis de igual ou maior valor do que o valor das dívidas.

Aplicou-se, despois, esta doutrina ao caso dos autos e, verificando-se que o recorrido havia provado o montante das dívidas e o recorrente não havia logrado provar a existência, no seu património, de bens penhoráveis de igual ou maior valor do que o valor das dívidas, era inevitável dar como provado (por presunção) o requisito da al. b) do art. 610.º do CC e admitir o recurso do credor / recorrido à impugnação pauliana.

Esta é a fundamentação essencial ou determinante da decisão – a ratio decidendi –, tendo-se muito bem podido ficar por aqui. A questão ficou decidida no sentido de que o recurso à impugnação pauliana por parte do recorrido era admissível e o Tribunal da Relação não tinha procedido mal ao admiti-la.

De qualquer forma, com o intuito de esclarecer todas as dúvidas do recorrente, de considerar e responder a todos os seus argumentos, acrescentaram-se algumas observações que reforçam ou dão mais sentido àquela decisão, tentando-se demonstrar que, além de admissível, porque respeitador dos respectivos requisitos, o recurso à impugnação pauliana era justificado, porque representava utilidade para o recorrido.

O carácter adicional ou acessório destas considerações, contidas numa espécie de parte secundária da fundamentação, está em explícito nos termos aí utilizados a iniciar várias frases: “O que fica dito permite também refutar outras alegações do réu / recorrente”; “Seja como for, pode esclarecer-se”; “Aproveita-se aquilo que acaba de se dizer para fazer um derradeiro esclarecimento, que, aliás, reforça esta convicção”…

Ainda assim, deve dizer-se que tudo o que aí se expõe (essencialmente, argumentos para mostrar que o recurso à impugnação pauliana era, em concreto, além de admissível, justificado) não é de todo obscuro ou ambíguo mas, ao invés, claro e unívoco.

Explicou-se, em suma, que a penhora não esvazia de interesse ou de utilidade a impugnação pauliana, porque os institutos se distinguem no plano funcional e do alcance. Advertiu-se, além disso, que, no caso dos autos, alguns bens nem sequer estavam cobertos pela protecção da penhora, sendo a utilidade da impugnação pauliana absolutamente incontestável.

Chegados aqui, só pode dizer-se que é compreensível que o recorrente não se conforme com o Acórdão proferido neste Supremo Tribunal. O certo é que a questão está decidida e está decidida através de uma decisão clara e univocamente fundamentada, não se prestando a arguição de nulidades à sua reapreciação.


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DECISÃO

Pelo exposto, indefere-se a presente reclamação.


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Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.


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Lisboa, 11 de Maio de 2023

Catarina Serra (Relatora)

Cura Mariano

Fernando Baptista

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[1] Cfr. Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, volume I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 738.