Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2419/20.1T8LRA.C1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: REAPRECIAÇÃO DA PROVA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PRIVAÇÃO DO USO DE VEICULO
PERDA DE VEÍCULO
REPARAÇÃO DO DANO
SEGURADORA
VALOR DE MERCADO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 02/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
I. O STJ não conhece da matéria de facto senão nas situações legalmente previstas nos art.ºs 674.º, n.º3 e 682.º, n.º2 do CPC.

II. Não havendo acordo entre lesado e seguradora responsável pelo dano de reparação de veículo, deve esta ser responsável pelo valor que o bem tinha no património do lesado, à data da ocorrência do sinistro, nos autos reportado ao valor da reparação do veículo.

III. A indemnização pela privação de uso não deve considerar-se causalmente justificada por todo o período invocado (mais de 800 dias) se o acidente ocorreu em .../05/2018, a ré propôs uma indemnização em Agosto de 2018, que não foi aceite pelo A., e o recorrido só intentou a presente acção judicial para exigir a integral reparação do dano em 03/08/2020, impendendo sobre o A. um dever de evitar o agravamento do dano através de uma atitude proactiva em tempo razoável, como também deve ser razoável a proposta da seguradora (em montante e oportunidade temporal).

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. O Autor intentou a presente acção contra a Ré, alegando, em síntese:

No dia .../05/2018, o veículo ligeiro de passageiro identificado nos autos (“DA-...-TK”) de que é proprietário, era à data dos factos conduzido pelo seu proprietário indicado nos autos, na zona da ..., na Estrada Nacional n.º 242, que liga Leiria à Marinha Grande, tendo sido embatido na sua traseira pelo veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-AX-.., seguro na ré, tendo resultado desse sinistro danos ao nível da carroçaria, nomeadamente, mala, painel de faróis de nevoeiro, para-choques traseiro, para choques frontal, guarda lamas, portas, vidros, rodas e jantes da lateral direita, conclui pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia global €33.995,59, sendo a quantia de €17.100,59, relativa à reparação dos danos do veículo ..., €16.740,00 (€20,00 por cada dia) correspondentes ao período de paralisação do veículo desde a data do sinistro até 03/08/2020, a que acresce a quantia de €95,00 com a obtenção de certidão do acidente junto da PSP e de €60,00 relativo ao custo da elaboração do orçamento, acrescida de €20,00 de indemnização diária até efetiva reparação do veículo e de juros de mora, à taxa legal de 4% até efetivo e integral pagamento.

2. A ré deduziu contestação alegando, em síntese, que o veículo “DA” foi considerado de “perda total/perda parcial”, sendo valor venal da viatura de €12.900,00, tendo sido atribuído à viatura com danos – salvados – o valor de €4.130,00, tendo-se apurado como valor da indemnização €8.770,00, sendo que o valor venal da viatura “DA” que tinha sido apurado por meio do mercado de usados em Portugal é inferior aos preços praticados em França, local do seu registo; propondo-se a pagar ao autor €9.389,00, ficando os salvados na posse do autor no valor de €3.511,00; no que respeita ao período da paralisação do veículo “DA”, tendo a ré colocado à disposição do autor a indemnização em 24/08/2018, a partir dessa data alega não estar obrigada a pagar valores de paralisação, sendo que no que concerne ao valor diário o mesmo varia entre 5/8 a €10,00. Mais alega um agravamento dos danos no que tange á paralisação do veículo “DA” uma vez que o acidente ocorreu a 20/05/2018, e a assunção da responsabilidade da ré foi assumida em 24/08/2018, tendo sido colocado à disposição do autor o valor final a indemnizar em 05/12/2018, tendo demorado o autor desde essa data até 03/08/2020 a propor ação judicial; concluindo pela sua absolvição do pedido em tudo o que exceder o valor de €9.389,00.

3. Foi proferida sentença que julgou a acção pela seguinte forma:

Atento o exposto, decide-se:

I. condenar a ré SEGURADORAS UNIDAS, S.A., atualmente, designada por GENERALI SEGUROS, S. A., a pagar ao autor AA, o valor global de €12.944,00, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, calculados sobre aquela quantia, desde a data da citação ocorrida a 05/08/2020, até efetivo e integral pagamento.

II. Absolver a ré do demais peticionado.

4. O Autor interpôs recurso de apelação da sentença, com contra-alegação da Ré.

5. O Tribunal da Relação admitiu o recurso e identificou as questões a decidir (- impugnação da matéria de facto; - valor das indemnizações devidas pela Ré ao Autor), após o que proferiu acórdão onde consta o seguinte dispositivo:

“Nos termos expostos, julga-se parcialmente procedente o recurso e em consequência altera-se a decisão recorrida e, em sua substituição, julgando-se a ação parcialmente procedente, condena-se a Ré a pagar ao Autor:

- a título de danos patrimoniais causados pela privação do veículo desde a data do acidente até à data da sua reparação, o valor diário de € 17,00, que perfaz na data da propositura da ação a (quantia)de € 13.719,00,

- a quantia de € 17.100,59 relativa ao custo da reparação do veículo.

- juros de mora à taxa legal - relativos às quantias referidas – devidos desde a data da citação até integral pagamento

- Mantém-se, a condenação da Ré pagar ao Autor o valor de € 155,00 referente ao custo da certidão e do orçamento.”

6. Não se conformando com o acórdão dele recorreu a Ré.

Nas conclusões consta (transcrição):

a) Sobe a presente revista do douto Acórdão da Relação de Coimbra que julgou a apelação do recorrente AA procedente, revogando a sentença da primeira instância condenando o ora recorrente a pagar a quantia de

- a título de danos patrimoniais causados pela privação do veículo desde a data do acidente até à data da sua reparação, o valor diário de € 17,00, que perfaz na data da propositura da ação a de € 13.719,00,

- a quantia de € 17.100,59 relativa ao custo da reparação do veículo. - juros de mora à taxa legal - relativos às quantias referidas – devidos desde a data da citação até integral pagamento

b) Porém, o ora recorrente não se pode conformar com o mesmo, daí o presente recurso de revista, em que a questão que se coloca à apreciação de V. Exas. passa, no seu entendimento, pela interpretação e aplicação do direito em relação ao sinistro dos presentes autos.

c) Na primeira instância foi proferida sentença que julgou a acção que julgou a acção parcialmente procedente, a pagar ao autor AA, o valor global de €12.944,00, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, calculados sobre aquela quantia, desde a data da citação ocorrida a 05/08/2020, até efetivo e integral pagamento.

d) Em sede de julgamento, foram provados, entre outros, os seguintes factos

1. No dia .../05/2018, pelas 22,30horas, na zona da ..., na Estrada Nacional n.º 242, que liga Leiria à Marinha Grande, em que foi interveniente o veículo do recorrido.

e) Sendo que em relação aos danos sofridos pelo seu veículo do recorrido, foi provado o seguinte,

(…)

7. A ré assumiu a responsabilidade pelos danos resultantes do evento descrito em 2) a 6).

8. Face ao acidente descrito em 3) e 4), a ré efetuou peritagem do “DA” na oficina escolhida pelo A., cujo valor estimativo, sem desmontagem e valor de mão de obra era de €15.219,53.

9. O veículo “DA” foi considerado “perda total/perda parcial”.

10. O valor venal do “DA” é de €12.900,00.

11. Foi atribuído à viatura “DA” com danos – salvados – a quantia de €4.130,00.

12. A ré em 05/12/2018, propôs pagar ao autor a quantia indemnizatória de €9.389,00.

f) Por outro lado, foi considerado como não provado que

a) O valor de mercado de um veículo idêntico ao “DA” é de €29.990,00.

g) Da fundamentação da douta sentença do Mmo. Juiz “A quo”, no que a esta matéria diz respeito, resulta o douto tribunal de primeira instância baseou a sua convicção quanto à matéria de facto provada e não provada no teor dos elementos documentais juntos aos autos, conjugada com a prova testemunhal, conforme descrito nestas alegações, em articulação com as regras legais de repartição do ónus de prova e com as regras da experiência comum.

h) Entretanto, no douto Acórdão ora em crise, os Venerando Juízes Desembargadores decidiram que pelo valor de 17.100,59 € pela reparação do veículo do recorrido.

i) Sucede, porém, que da matéria dada como provada, nada resulta que a viatura tenha sido reparada, e que o recorrido, por via disso, tenha despendido a quantia de 17.100,59 €.

j) A este propósito, é o próprio A. que no artº 11º da douta p.i. que alega que “cuja reparação em materiais e mão de obra importa em quantia nunca inferior a 17.100,59€.

k) É entendimento da recorrente que no douto Acórdão em discussão, os Venerandos Desembargadores, salvo melhor opinião, laboram em vários erros, como fixar o valor da reparação em 17.110,59 €.

l) Ora, ficou provado, quer documentalmente, quer testemunhalmente, que os valores indicados, tanto pelo recorrido, como pela recorrente, eram sem desmontagem e sujeitos a serem inflacionados, ou seja, agravamento dos danos.

m)Acrescido do facto de o recorrido nem sequer ter feito prova de ter efectuado a reparação e, acima de tudo, que tenha feito o pagamento, da quantia de 17.110,59 €.

n) Sendo também, muito importante assinalar, e nós como contribuintes bem o sabemos, pretende-se pagar ao recorrido, uma quantia da qual o valor de 3.197.67 €, correspondente ao IVA, é devido ao Estado!

o) Por outro lado, o orçamento no qual assentou o Acórdão ora em crise, como se pode verificar poderão verificar, os valores oscilam entre os valores acima referidos e 12.373,60 € e 2.845,93 € (respectivamente), num total de 15.219,53 €.

p) Sendo importante assinalar, também, tendo no douto Acórdão da Relação concluído que não ficou provado o valor da viatura sinistrada, ao arrepio da prova efectuada pela recorrente – tanto testemunhal, como documental -, e dada como provada na douta sentença da primeira instância e, com o devido respeito, mais se acentuam as razões da recorrente em defender a boa interpretação e aplicação da lei do Mmo. Juiz da primeira instância.

q) Isto porque, estamos perante uma douta decisão “contra legem”, ou seja, em clara violação do disposto no artº 41º do DL 291/2007 de 21.8, legislação criada para uma rápida resolução da regularização dos danos resultantes de acidentes de viação, e não para o seu enriquecimento ilícito por parte do lesado.

r) Na douta decisão do Acórdão da Relação foi arbitrada a quantia de 13.719,00 €, no que à privação do uso diz respeito.

s) Desde a data do acidente até à entrada da acção judicial, o que perfaz 807 dias.

t) E, mais uma vez, em clara violação do Decreto-Lei nº.- 291/2007, de 21/8, sendo que neste caso, o preceituado no nº.-2, do seu artº 42º.

u) Sendo que neste caso, uma vez a ora recorrente colocou à disposição da recorrido o valor da indemnização, em 05/08/2018, bem andou o Mmo Juiz da primeira instância em condenar a recorrente na quantia de 3.400,00 €, por 200 dias.

v) É também, importante referir que os Venerandos Desembargadores ao concluírem pelos 807 dias de privação do uso, com o devido respeito, dão cobertura ao agravamento dos danos nesta matéria.

w) Isto porque, tendo o acidente ocorrido em .../05/2018, o recorrido só intentou a acção em 03/08/2020.

x) Termos em que, contando com o douto suprimento de V. Exas., se deve conceder provimento ao recurso da ora recorrente, revogando a douto Acórdão recorrido, e concluir-se de acordo com a sentença proferida na primeira instância, com as consequências legais, tal como é de JUSTIÇA!


7. Não foram apresentadas contra-alegações.


8. No tribunal recorrido o recurso foi recebido com o seguinte despacho:

“Admito o recurso interposto que é de revista, a subir imediatamente nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo. Notifique.”

II. Fundamentação

De facto

9. Os factos provados apurados pelas instâncias são os seguintes (alterados pelo Tribunal recorrido):

1. No dia .../05/2018, pelas 22,30horas, na zona da ..., na Estrada Nacional n.º 242, que liga Leiria à Marinha Grande, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes:

- o veículo automóvel ligeiro de passageiros, Mercedes Benz, matrícula francesa DA-...-TK, conduzido na altura pelo autor, seu proprietário.

- o veículo automóvel ligeiro de passageiros, Volvo RS 60, matrícula ..- AX-.., conduzido na altura por BB, seu proprietário e seguro na ré.

2. No circunstancialismo espácio-temporal descrito em 1), o autor circulava dentro da sua meia faixa de rodagem no sentido Leiria-Marinha Grande.

3. Quando após abrandar a sua marcha devido à proximidade de uma rotunda existente próxima do local do acidente foi inesperada e subitamente embatido na sua traseira pelo veículo denominado por “AX”, seguro na ré.

4. Em consequência do descrito em 3) o veículo do autor foi projetado contra os railes existentes junto à berma da direita da estrada onde ambos os veículos circulavam.

5. O acidente descrito em 3) e 4) ficou a dever-se única e exclusivamente ao facto do condutor do veículo seguro na ré, circular distraído e desatento ao trânsito.

6. Do acidente descrito em 3) e 4) resultaram danos ao nível da carroçaria, designadamente, mala, painel faróis de nevoeiro e para-choques traseiro, para choques frontal, guarda lamas, portas, vidros, rodas e janelas da lateral direita.

7. A ré assumiu a responsabilidade pelos danos resultantes do evento descrito em 2) a 6).

8. O custo da reparação do veículo do Autor é de €17.110,59.

9. O veículo “DA” foi considerado pela Ré “perda total/perda parcial”.

10. (eliminado)

11. A Ré atribuiu aos salvados da viatura do Autor o valor de €4.130, 00.

 12. A ré em 05/12/2018, propôs pagar ao autor a quantia indemnizatória de €9.389,00.

13. Em consequência dos danos sofridos, o veículo do Autor encontra-se imobilizado desde a data do acidente.

14. O veículo do autor era por si diariamente utilizado quer em trabalho, quer em passeios e viagens.

15. O autor é emigrante e utilizava o veículo “DA” em viagens entre ... e Portugal.

16. O autor não dispõe de capacidade económica financeira para suportar os custos da reparação do veículo “DA”.

17. O autor despendeu €95,00 com a obtenção junto da PSP de certidão do acidente.

18. O autor despendeu €60,00 respeitante ao custo do orçamento elaborado pela Mercedes Benz.

19. À data supra referida em 1), a responsabilidade civil pela circulação do veículo de matrícula ..-AX-.. encontrava-se transferida para a ré através da apólice de seguro n.º ...87.

10.  O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

No presente recurso as questões suscitadas prendem-se com o valor das indemnizações devidas pela reparação do veículo e da sua imobilização.


11. Para justificar o valor da condenação na quantia de 17.100,59 a título de custo de reparação do veículo, o Tribunal recorrido socorreu-se dos factos provados e da lei – aludindo ao art.º 41.º do DL 291/2007 de 21.8 para dizer que este apenas teria aplicação se a indemnização fosse acordada no âmbito do regime da proposta razoável – que não é o caso, pelo que os critérios aí indicados não devem ser aplicados quando está em causa a apreciação judicial do dano. Em alternativa, o seu raciocínio foi assim explicado:

“As regras definidas no art.º 41º do DL 291/2007 de 21.8, para a definição da indemnização por perda total só são aplicáveis no âmbito do Procedimento de Proposta Razoável previsto no Capítulo III e não quando há recurso à via judicial, como é o caso.

Não se tendo provado que o lesante ou outros responsáveis pela indemnização daquele dano se tenham oferecido para proceder à sua reparação in natura, tinham o Autor direito a promover a sua realização, cobrando daqueles o seu custo.

A circunstância do valor comercial do veículo na data do acidente não ter sido concretamente apurado, não obsta ao reconhecimento do direito do Autor de exigir o pagamento do custo da reparação efetuada, uma vez que a indemnização pelo pagamento do equivalente em dinheiro só pode ocorrer quando a reconstituição natural é impossível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor (art.º 566º, n.º 1, do C. Civil).

No presente caso a reconstituição não era impossível e cobria todo o dano em causa.

A excessiva onerosidade só é de considerar e, por isso, de afastar a reconstituição in natura, quando a reconstituição natural se apresenta como um sacrifício manifestamente desproporcionado para o lesante e se deva considerar abusiva por contrária à boa fé a sua exigência do lesado.

Para se afirmar a excessiva onerosidade não basta demonstrar que o valor da reparação é superior ao valor venal do veículo, pois que se um dos pólos da determinação da excessiva onerosidade é o preço da reparação, o outro não é o valor venal do veículo mas o seu valor patrimonial, o valor que o veículo representa dentro do património do lesado.

Para tanto a Ré teria que demonstrar que com a quantia que se dispôs a pagar poderia o Autor satisfazer as mesmas necessidades que satisfazia com o veículo acidentado, nomeadamente que poderia adquirir um outro veículo, com as mesmas características e qualidades, apto a satisfazer essas necessidades, de igual modo, em termos de comodidade e segurança.

O veículo, pela sua antiguidade, pode ter um valor comercial reduzido ou diminuto, mas mesmo assim ser apto a satisfazer as necessidades do seu proprietário que, de forma nenhuma poderá satisfazer com uma quantia correspondente a esse valor comercial, o que significa que, sem ele, poderá ver-se privado das comodidades que um veículo, ainda que “velho”, proporcionava. Esse valor, que integra o património do lesado, não pode ser desprezado no momento em que se pondere pela (in)adequação da reconstituição natural como forma de reparação do lesado.

Na situação concreta, pelo que se acaba de expor, não obstante não se ter apurado concretamente o valor comercial do veículo acidentado, não vêm demonstrados factos que determinem a conclusão que a sua reparação pela quantia de €17.110,59 seja excessivamente onerosa, sendo certo que cabia à Recorrida fazer essa prova.

Deste modo, mostra-se desadequada a decisão proferida quanto a este aspeto, procedendo este fundamento do recurso, devendo a Ré ser condenada a pagar ao Autor o valor da reparação no montante de €17.110,59.”

11.1. A recorrente insurge-se contra este entendimento, por considerar que:

- da matéria dada como provada nada resulta que a viatura tenha sido reparada, e que o recorrido, por via disso, tenha despendido a quantia de 17.100,59 €;

- a recorrida não deve pagar o IVA incorporado nesse valor porque é devido ao Estado e não à recorrente;

- o valor da reparação não excederia 15.219,53 €, pelos orçamentos juntos aos autos.

11.2. Ao assim fundamentar a sua pretensão a recorrente pretende que o STJ altere a matéria de facto, com base na qual o tribunal recorrido decidiu, no que respeita ao valor da reparação do veículo, mas tal pretensão não pode ser acolhida neste tribunal por a lei limitar a intervenção do STJ à aplicação da lei, com as excepções previstas nos art.º 674.º, n.º3 e 682.º, n.º2 do CPC, cuja invocação não veio realizada no recurso.

Isso significa que, não questionando que a indemnização deva balizar-se pelo valor da reparação, a alegação deve improceder.

E também improcede na parte em que pretende ver descontado o IVA ao valor da reparação, por este ser devido ao Estado – o que é verdade, mas não escamoteia o facto de o A. ter de o pagar para a reparação do veículo, que é o sentido do seu pedido – obter o valor necessário para reparar o carro que tinha e deixou de poder usar – estando as empresas de reparação obrigadas a cobrar o mesmo, em conjunto com o valor da reparação, para depois o entregarem ao Estado.

Improcede igualmente a alegação no sentido o A. não ter demonstrado que reparou o veículo, pois é de admitir que careça do valor devido pela Ré para proceder à reparação, não sendo suposto que a ordene antes de saber se tem condições para honrar o compromisso que envolve a ordem de reparação.

 Pelo exposto, improcede o recurso na primeira questão suscitada.

12. No que se reporta à indemnização por privação de uso.

Nesta questão o tribunal entendeu que a indemnização devia cobrir todo o período em que o veículo esteve imobilizado, sem reparação, e sem a devida indemnização pela Ré. E esse período – longo – representaria um custo diário a suportar pelo A., por dele estar privado, na ordem dos € 17,00 diários, valor que havia sido fixado pela sentença e que o Tribunal da Relação considerou adequado.


12.1. A ré contesta a razoabilidade do valor obtido nomeadamente pelo período que abarca, quando o acidente ocorreu em .../05/2018, a ré propôs uma indemnização em Agosto de 2018 e o recorrido só intentou a presente acção judicial em 03/08/2020.

Não está em causa o valor diário – visto que a sentença já o havia fixado – e a Ré não recorreu.

A Ré também não recorreu da condenação fixada na sentença pelo período entre a data do acidente e Agosto de 2018 – 200 dias.


12.2. Que dizer?

Cremos ser seguro pode afirmar-se que o A. tem direito à indemnização pela paralisação do veículo uma vez que o valor proposto pela Ré para a indemnização dos danos causados não reparava na íntegra o dano sofrido e não houve pagamento do valor devido nem reparação da viatura, estando o A. privado da mesma e do uso que dela fazia.

Mas já a opção de o A. esperar dois anos entre a confirmação de que não chegou a acordo com a Ré e a data da propositura da acção onde pede a reparação do dano, mantendo o veículo imobilizado por tão longo espaço de tempo, permite que se questione a razoabilidade do seu pedido, à luz da justa composição do litígio, porquanto se afigura pensável poder existir aqui uma situação de aproveitamento do decurso do prazo e da inação, que se considera exceder manifestamente os limites do direito que a lei lhe confere – e que na lógica do sistema jurídico nacional permite convocar o regime do art.º 334.º do CC – para limitar o resultado atingido, numa procura de solução menos chocante (em que valor da indemnização pela paralisação é quase igual ao valor da reparação), em contraciclo com o regime imposto às seguradoras de reparar os danos que sejam da sua responsabilidade pagando as indemnizações num prazo razoável (como decorre do regime da proposta razoável).

 Estas normas, na sua conjugação, devem levar a considerar que o dano invocado não se teria prolongado por um prazo tão longo na sua existência – e assim no seu montante – se o A. tivesse procedido com maior diligência na sua exigência à Ré, mesmo que pela via judicial – e que o facto de ter esperado tanto tempo é motivo que só a si (autor) é imputável, não sendo a causa do dano por todo o período de paralisação invocado, muito embora se deva também ter em consideração que não há nenhuma presunção de culpa do A. por ter demorado tanto tempo a exercer este seu direito à reparação do dano.

A solução aventada tem tido eco na jurisprudência, cumprindo aqui referir, por clareza da apresentação a parte do Ac do TRL de 03/12/2020, relativo ao processo 500/19.9T8AMD.L1-2:

Com efeito, não é exigível ao lesado que disponha de liquidez para efetuar a reparação à sua custa e fique à espera de ser ressarcido monetariamente pelo responsável pela indemnização.

Não tendo dinheiro suficiente para proceder à reparação de imediato, ficando sem a disponibilidade do veículo enquanto espera pela resolução do litígio, não lhe resta outra alternativa senão aguardar pela decisão com o veículo por reparar.

Não obstante não obrigada a reparar o veículo, impunha-se, no mínimo, à Autora que atuasse com a diligência adequada a ver decidida a questão litigiosa que mantinha com a seguradora, de forma a conseguir que, no mais curto espaço de tempo, se definisse se esta estaria ou não legalmente obrigada a indemnizá-lo, em especial através da reparação do veículo sinistrado.

Ora, emerge dos autos que, entre a data em que a Ré comunicou à Autora que não assumia a responsabilidade pelo sinistro, em 25 de janeiro de 2018, e a data da propositura da ação, no dia 20 de março de 2019, decorreu mais de um ano.
Em tal contexto não pode deixar de se ter em conta que a Autora contribuiu, também, em certa medida, para o agravamento dos danos que da paralisação advieram.

Como se escreveu no acórdão do STJ de 17.1.2013 (p. 2395/06.3TJVNF.P1.S1, in www.dgsi.pt), a posição da responsável não legitima a inércia e total passividade do lesada perante os danos, sobretudo nos casos de estes estarem sujeitos a evolução expansiva, como é o do dano da privação de uso de veículo danificado ou inutilizado, que vai aumentando com o tempo até à entrega do veículo reparado ou de veículo de substituição ou de disponibilidades monetárias adequadas para a aquisição de outro equivalente. Temos dificuldade em enquadrar este comportamento da Autora no âmbito do artigo 570.º, n.º 1, do Código Civil, fundamento esgrimido na sentença recorrida para a redução da quantia da indemnização que considera dever ser atribuída, e que encontra eco nalguma jurisprudência. No sentido da decisão recorrida, podem consultar-se os acórdãos do STJ de 29.11.2005, p. 3122/05, in CJ, 187, Tomo III/2005, e de 22.6.2004, p. 2133/2004, citado no primeiro aresto, e o acórdão do STJ de 16.4.2013, p. 7002/08.7TBVNG.P1.S1, in www.dgsi.pt).

Parece-nos que o facto objetivo de o lesado pedir indemnização pela privação do uso de veículo sinistrado algum tempo depois do sinistro não é suficiente para se considerar que tal atuação constitui um facto culposo que concorre para o agravamento dos danos traduzidos nos custos decorrentes da privação do uso (artigo 570.º do Código Civil).

Mas saindo da órbitra da culpa, não se pode perder de vista que a indemnização tem por finalidade ressarcir o lesado dos prejuízos que, na realidade, sofreu, não podendo conduzir a um gritante desequilíbrio da prestação relativamente ao dano, designadamente não podendo servir para um enriquecimento injusto do lesado à custa do lesante, com a indemnização a funcionar como um mero «taxímetro».

Há, assim, pelos princípios que enformam o julgamento equitativo e bem assim atendendo à cláusula geral da boa-fé que impera no nosso sistema jurídico, que encontrar um ponto intermédio situado entre o período de paralisação que se verificaria se o veículo fosse de imediato reparado e o largo período em que o automóvel esteve, também com a contribuição do lesado, imobilizado até hoje.
E o Tribunal a quo encontrou-o, e bem, no recurso à equidade nos termos estabelecidos no artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, quando desconsiderou o período de tempo decorrido entre 25.3.2018 (60 dias após o conhecimento pela Autora da posição da Ré) e 20.3.2019 (data da propositura da ação).
Para equacionar os 60 dias, o Tribunal recorrido conclui ainda que não seria razoável pretender que a Autora intentasse a presente ação no dia seguinte ao do conhecimento da posição da seguradora, considerando razoável ponderar o prazo de 30 dias para a preparação da mesma, acrescido de 30 dias, correspondentes ao prazo para decisão da entidade administrativa sobre o seu requerimento de apoio judiciário.

E no STJ

Ac. STJ de 08/09/2021, relativo ao processo 10192/15.9T8STB.E1.S1

I – O que está em causa na indemnização do dano da privação do uso é o pagamento do valor necessário à aquisição de um veículo com características idênticas às do veículo destruído, pagamento que tanto é “necessário” antes, como após a venda do “salvado”, venda essa que apenas poderá minorar o dano da perda.

II - Não reposta a situação anterior ao evento lesivo, as consequências da privação do uso serão tanto maiores quanto maior for o período em que o lesado se mostre impedido de utilizar um veículo de características idênticas ao acidentado – reposta a situação anterior, cessa o dano da privação do uso.

III – Se o lesado interpõe a acção, inexplicavelmente, apenas cerca de 2 anos depois de conhecer a resposta definitiva da 1ª Ré, no sentido de esta considerar o acidente simulado e se recusar a pagar qualquer indemnização, o específico dano ressarcido (a privação do uso) é passível de revelar indiferença perante esse seu próprio e referido prejuízo, indiferença contrária ao “padrão de uma normalidade interventora na zona dos danos patrimoniais”.

IV – Todavia, a redução da indemnização, considerando apenas o tempo decorrido desde o acidente até à propositura da acção, deve ser desconsiderada, caso o tempo decorrido na pendência da acção venha a acrescer à referida indemnização (reduzida até à propositura da acção), em função do pedido formulado pela Autora.


E no STJ, com a determinação de recurso à equidade para se fixar o montante do dano:

Ac. STJ de 17/11/2021, relativo ao processo 6686/18.2T8GMR.G1.S1

I - A ilícita privação do uso de um prédio rústico (um campo de cultura arvense e de regadio) configura, só por si, enquanto prejuízo resultante da impossibilidade temporária de usar tal bem, um dano autónomo.

II - Dano este que é indemnizável ainda que não se tenha provado que utilidade ou vantagem concreta o proprietário teria retirado do bem durante o período de privação.

III - Indemnização que, em tal hipótese, face às dificuldades de prova que existem em matéria de quantificação da indemnização por equivalente, deve ser fixada equitativamente (cfr. art. 566.º, n.º 3, do CC).


Na linha do exposto, do regime da responsabilidade civil, nomeadamente quanto ao nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano,  do art.º 556.º (n.º3)  e do art.º 334.º do CC – excepção de conhecimento oficioso, mas que acaba por estar implícita na alegação da revista (com oportunidade de contra-alegação, mas sem que o A. se tenha manifestado, tendo podido fazê-lo) – não deixa de se considerar que o valor da indemnização por privação do uso arbitrada é excessiva e não justificada causalmente pelo comportamento da Ré, pelo que o valor do dano deve ser reduzido e fixado em cerca de metade do valor apurado no acórdão recorrido, o que levará o seu valor a cingir-se a 8.000 euros – reduzindo-se assim o prazo da imobilização atendível para o efeito e apenas na respectiva proporção – metade – considerando-se que está justificado pelo comportamento da Ré, sendo a responsabilidade da A. o período não considerado por não ter procurado evitar o agravamento do montante do dano com uma reacção mais enérgica antes do decurso dos dois anos contados da data do acidente.

Procede assim o recurso nesta parte, fixando-se o valor da indemnização por privação de uso em 8.000 euros.

III. Decisão

Pelos fundamentos indicados, concede-se parcialmente a revista, alterando o acórdão recorrido na parte em que condenada a Ré a pagar ao A., a título de indemnização por privação de uso a quantia de 13.719,00, para aí figurar a condenação no pagamento de 8.000 euros.

Improcede o recurso no demais.


Custas da revista (60% para a recorrente e 40% para o A).


Lisboa, 2 de Fevereiro de 2023


Fátima Gomes (Relatora)

Oliveira Abreu

Nuno Pinto oliveira