Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
576/23.4T9VLG.P1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: RECURSO EXTRAORDINÁRIO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
NULIDADE DE DECISÃO
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 02/28/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Verifica-se que no acórdão fundamento, para além de nem sequer se colocar a questão da atipicidade da conduta, como sucedeu no acórdão recorrido, o fundamento da nulidade declarada da decisão administrativa, baseou-se não no art. 283.º do CPP (que no caso até afastou), mas antes no art. 379.º, n.º 2, do CPP, considerando-a sanável e, portanto, antes pressupondo que a conduta seria típica (pois só assim se compreenderia a possibilidade de remessa do processo para a entidade administrativa para suprir a nulidade, incluindo na decisão os concretos factos integradores dos elementos objetivos e subjetivos da contraordenação imputada à arguida).

 II. Ou seja, são diferentes as condutas analisadas e é diversa a fundamentação entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, apoiando-se cada um deles em normas distintas, para além de no acórdão recorrido se ter mesmo concluído pela conduta ser atípica, o que nessa perspetiva sempre impedia a devolução dos autos à entidade administrativa (por não se poder transformar uma conduta atípica em conduta típica).

III. É, assim, manifesto que não se podem considerar os dois acórdãos em oposição, tanto mais que os pressupostos para cada uma das soluções encontradas num caso e noutro são diferentes (o acórdão recorrido tratou de um caso em que se verificava uma conduta atípica e, daí não fazia sentido ordenar a remessa do processo à entidade administrativa e, o acórdão fundamento tratou de caso em que se considerou que a conduta seria típica e, por isso, ordenou a remessa do processo à entidade administrativa para suprir a nulidade detetada, ao abrigo do art. 379.º, n.º 2, do CPP).

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1.1. O Ministério Público interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos do artigo 437.º e ss. do CPP, por haver oposição entre o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27.09.2023 proferido nestes autos e o acórdão do TRC de 30.03.2022, proferido no processo n.º 173/21.9T8TND.C1.

1.2. Para o efeito, apresentou os seguintes fundamentos (transcrição1):

1. Do Acórdão recorrido

No acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 27/09/2023, já transitado em julgado, decidiu-se que

- A decisão de autoridade administrativa proferida em processo de contraordenação que não contém a narração de factos determinantes do preenchimento do elemento subjetivo, com a caracterização das circunstâncias que permitem estabelecer um nexo psicológico de ligação dos factos objetivos ao agente e a sua imputação a título de negligência, é nula, nos termos conjugados do art. 58.º, n.º 1, als. c) e d), e 64.º, do RGCO e dos arts. 283.º, n.º 1, al. b) e 338.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, ex vi art. 41.º, n.º 1 do RGCO, o que em consequência, determina o arquivamento dos autos, nos termos do art. 64.º, n.º 3 do RGCO.

Constituindo a decisão administrativa uma “decisão-acusação” (art. 62.º, n.º 1, do RGCO), como não pode deixar de ser, os invocados vícios da decisão administrativa enquadram-se na nulidade prevista no art. 283.º, n.º 3, alínea b), do CPP, e, consequente, arquivamento dos autos, por omissão insuscetível de ser integrada em julgamento ou vício que possa ser sanável nomeadamente mediante reformulação da decisão pela entidade administrativa que a proferiu.

… a decisão administrativa, quando impugnada, corresponde a uma acusação em processo penal, e sendo esta omissa quanto à narração de factos determinantes do preenchimento de elementos típicos da infração, tal só pode ter esse resultado, por ausência de tipicidade da conduta…, atentos os termos conjugados do art. 58.º, n.º 1, als. c) e d), e 64.º, do RGCO e dos arts. 283.º, n.º 1, al. b) e 338.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, ex vi art. 41.º, n.º 1 do RGCO, e art. 64.º, n.º 3 do mesmo diploma legal.

Este acórdão transitou em julgado em 12/10/2023.

2. Do Acórdão fundamento

O acórdão recorrido está em oposição com o decidido no acórdão [fundamento] do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 30/03/2022, no Processo n.º 173/21.9T8TND.C1, publicado no sítio electrónico www.dgsi.pt/jtrg, no qual se decidiu que «… embora nos termos do artigo 62º, n.º 1, do RGCO, a apresentação pelo Ministério Público dos autos ao juiz (e não propriamente apenas a decisão administrativa), valha como acusação, isso não significa que à decisão administrativa seja aplicável o regime estrito das nulidades da acusação, por referência ao artigo 283º do CPP, consagrado nos artigos 119º e 120º do mesmo diploma.

Afigura-se, assim, que a decisão, apesar de toda a sua especificidade e com vista à finalidade que prossegue, terá de cumprir as formalidades descritas no artigo 58º do RGCO e que, caso não as cumpra, por via do art. 41º do RGCO - por aplicação subsidiária, com a necessária harmonização, atentando em que as autoridades administrativas estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal, também com as necessárias adaptações -, incorrerá em nulidade, com a disciplina do artigo 379º do CPP, com as consequências previstas no artigo 122º do mesmo Código - tornando inválido o acto em que se verificarem, bem como todos os actos que dele dependerem e que possam por eles ser afectados -.” cfr. Ac. RE de 3-12-2009, proc. n.º 2768/08.7TBSTR.E1, in www.dgsi.pt.

Acresce que as nulidades de sentença são sanáveis, nos termos do n.º 2 do artigo 379º, não constando, por isso, do elenco taxativo das nulidades insanáveis do artigo 119º do CPP.

Por isso, existindo nulidade por não se mostrarem cumpridas as formalidades descritas no artigo 58º do RGCO, esta não está sanada, o que não significa que não deva ser suprida pela autoridade administrativa que inicialmente tramitou o processo, por referência ao n.º 2 do artigo 374º do CPP – v. entre outros, o acórdão do STJ de 21-12-2006, proferido no proc. nº. 06P3201, acessível em www.dgsi.pt -, aliás de harmonia, com o princípio do máximo aproveitamento dos actos processuais, em homenagem ao princípio da economia processual, dando-se oportunidade (…) de suprir nulidades, restringindo-se, até onde for possível, as consequências da declaração de nulidade do acto. Tal decorre da circunstância de o processo (…) ser uma sequência de actos, os quais nem sempre estarão entre si numa relação causal ou de dependência.

O incumprimento dos requisitos descritos no n.º 1 do artigo 58.º do RGCO implica a verificação da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. a) do CPP, aplicável ao processo contra-ordenacional ex vi do artigo 41.º do primeiro dos referidos diplomas, que deve ser suprida pela autoridade administrativa competente.»

Este acórdão também já transitou em julgado.

3. Da oposição entre julgados

i. Os dois referidos arestos, ambos já transitados em julgado e sem que, portanto, seja admissível a interposição de recurso ordinário, interpretam e aplicam, de forma divergente e incompatível, as normas dos artigos 58.º e 64.º, do Dec-Lei nº 433/82, de 27 de outubro.

ii. No acórdão recorrido decidiu-se que constituindo a decisão administrativa uma “decisão-acusação” (art. 62.º, n.º 1, do RGCO), a decisão administrativa omissa quanto a elementos objetivos ou subjetivos da infração integra a nulidade prevista no art. 283.º, n.º 3, alínea b), do CPP, o que impõe o arquivamento dos autos, por omissão insuscetível de ser integrada em julgamento ou vício que possa ser sanável nomeadamente mediante reformulação da decisão pela entidade administrativa que a proferiu. A decisão administrativa, quando impugnada, corresponde a uma acusação em processo penal e sendo esta omissa quanto à narração de factos determinantes do preenchimento de elementos típicos da infração, impõe-se o arquivamento por ausência de tipicidade da conduta, nos termos conjugados dos arts. 58.º, n.º 1, als. c) e d) e 64.º do RGCO e dos arts. 283.º, n.º 1, al. b) e 338.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, ex vi art. 41.º, n.º 1 do RGCO, e art. 64.º, n.º 3 do mesmo diploma legal.

iii. No acórdão fundamento decidiu-se que o incumprimento dos requisitos descritos no n.º 1 do artigo 58.º do RGCO constitui nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. a) do CPP, aplicável ao processo contra-ordenacional, ex vi do artigo 41.º do primeiro dos referidos diplomas, a qual deve ser suprida pela autoridade administrativa competente.

iv. Ambos os acórdãos foram proferidos no domínio da mesma redação do Dec-Lei nº 433/82, de 27 de outubro e do Código de Processo Penal.

Impõe-se, pelo exposto, que, relativamente à oposição de julgados, assim verificada, seja proferida decisão de fixação de jurisprudência pelo Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça.

Conclusões

1. No acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 27/09/2023 decidiu-se que a decisão administrativa, quando impugnada, corresponde a uma acusação em processo penal e sendo esta omissa quanto à narração de factos determinantes do preenchimento de elementos típicos da infração, impõe-se o arquivamento por ausência de tipicidade da conduta, nos termos conjugados dos arts. 58.º, n.º 1, als. c) e d) e 64.º do RGCO e dos arts. 283.º, n.º 1, al. b) e 338.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, ex vi art. 41.º, n.º 1 do RGCO, e art. 64.º, n.º 3 do mesmo diploma legal.

2. No acórdão fundamento, proferido em 30/03/2022, no Processo n.º 173/21.9T8TND.C, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, publicado no sítio eletrónico www.dgsi.pt/jtrc, decidiu-se que o incumprimento dos requisitos descritos no n.º 1 do artigo 58.º do RGCO constitui nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. a) do CPP, aplicável ao processo contra-ordenacional, ex vi do artigo 41.º do primeiro dos referidos diplomas, a qual deve ser suprida pela autoridade administrativa competente.

3. Dos acórdãos recorrido e fundamento não é admissível recurso ordinário, tendo ambos já transitado em julgado.

4. Ambos os acórdãos foram proferidos no domínio da mesma legislação.

5. Termos em que se impõe a resolução da questão de direito controvertida e que é a de saber se

O incumprimento dos requisitos descritos no n.º 1 do artigo 58.º do RGCO integra a nulidade prevista no art. 283.º, n.º 3, alínea b), do CPP, o que impõe o arquivamento dos autos, nos termos conjugados do art. 58.º, n.º 1, als. c) e d), e 64.º, do RGCO e dos arts. 283.º, n.º 1, al. b) e 338.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, ex vi art. 41.º, n.º 1 do RGCO, e art. 64.º, n.º 3 do mesmo diploma legal, ou antes a nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. a) do CPP, aplicável ao processo contra-ordenacional, ex vi do artigo 41.º do RGCO, a qual deve ser suprida pela autoridade administrativa competente.

6. Requer-se, assim, se reconheça a existência de oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 30/03/2022, no Processo n.º 173/21.9T8TND.C, publicado no sítio eletrónico www.dgsi.pt/jtrc.

7. Propondo-se que a questão controvertida seja decidida de acordo com o decidido no acórdão fundamento.

8. E determinando-se, em consequência, a revogação do acórdão recorrido e sua substituição por outro em conformidade com o que vier a ser decidido.

Termina pedindo que o presente recurso seja julgado procedente e fixada jurisprudência no sentido do acórdão fundamento, mais se revogando a decisão recorrida, substituindo-se por outra conforme a jurisprudência a fixar.

1.3. Respondeu a arguida/recorrida, apresentando as seguintes conclusões (transcrição2):

A. Vem o Ministério Público interpor recurso extraordinário de fixação de jurisprudência sobre o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 27.09.2023 (o acórdão recorrido), entendendo que se encontra em oposição com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 30.03.2022, referente ao processo n.º 173/21.9T8TND.C1 (o acórdão fundamento).

B. No acórdão recorrido, o Tribunal da Relação do Porto confirmou a decisão proferida em 1.ª Instância que julgou como totalmente procedente a impugnação judicial apresentada pela ora Recorrida, determinando, em consequência, o arquivamento dos autos.

C. O Ministério Público sustenta que os referidos arestos “interpretam e aplicam, de forma divergente e incompatível, as normas dos artigos 58.º e 64.º, do Dec-Lei nº 433/82, de 27 de outubro”, entendendo que existe oposição de acórdãos, mais propondo que a controvérsia seja decidida de acordo com entendimento do acórdão fundamento.

D. A ora Recorrida é Arguida/Recorrente no âmbito dos presentes autos, onde foi proferido o acórdão recorrido, e será necessariamente afetada caso o presente recurso venha a ser julgado procedente, pelo que vem agora apresentar a presente resposta, ao abrigo do disposto no artigo 439.º, n.º 1, do CPP.

E. Sucede que não estão preenchidas as condições de que depende a admissibilidade do presente recurso extraordinário, porquanto, desde logo, não se verifica uma situação de “oposição de acórdãos”, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 437.º do CPP.

F. De facto, subsistem várias diferenças nas situações subjacentes que obstam à verificação de uma oposição de julgados – diferenças que foram determinantes para as soluções jurídicas adotadas em cada caso.

G. No caso do acórdão fundamento, chegou-se à conclusão de que se verificava a nulidade da decisão administrativa por falta de descrição dos factos indicativos do preenchimento da infração, sendo certo que, nesse caso, o auto de notícia tais indicações, as quais aparentemente não foram transcritas para a decisão administrativa.

H. Essa falha da decisão administrativa foi enquadrada na nulidade prevista nos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, tendo o Tribunal da Relação de Coimbra considerado que tal nulidade seria suscetível de suprimento, mediante a respetiva remessa para a autoridade administrativa.

I. Diversamente, no acórdão recorrido está em causa, acima de tudo, uma situação de autêntica atipicidade da conduta – o que não é considerado ou mencionado, em passagem alguma, do acórdão fundamento.

J. Diferentemente do que ocorre no caso do acórdão fundamento, o caso sob apreciação no acórdão recorrido trata da absoluta ausência, nos autos, de factos determinantes da infração, o que consubstancia - como bem decidida pela 1.ª Instância e apoiado pelo Tribunal da Relação do Porto – uma autêntica atipicidade da conduta, cuja consequência só poderia ser uma: o necessário o arquivamento dos autos por não se verificar qualquer infração.

K. O Tribunal da Relação do Porto foi claro em afirmar, no acórdão recorrido, que estamos aqui perante um caso de “ausência de tipicidade da conduta”, motivo pelo qual considera ser inadmissível a remessa dos autos à autoridade administrativa, porquanto tal equivaleria à “integração de factualidade que não constava da decisão administrativa, corresponderia a uma alteração fundamental de tal decisão, mediante a conversão de uma conduta atípica numa conduta típica.”

L. É incontroverso que o não preenchimento de um tipo de infração tem como consequência a absolvição do arguido – é justamente disso que trata o caso objeto do acórdão recorrido, donde a consequência lógica só poderia ter sido o arquivamento dos autos e absolvição da ora Recorrida.

M. Não se trata aqui de um mero vício derivado, por exemplo, da insuficiência da fundamentação para a decisão, ou da falta de transcrição de certos elementos do auto de notícia para a decisão final, mas antes da ausência de tipicidade da conduta, situação a que tem de corresponder uma consequência mais definitiva: o arquivamento e a absolvição.

N. Por conseguinte, não há dúvidas de que a situação subjacente ao acórdão recorrido não é idêntica àquela que esteve em apreciação no acórdão fundamento, pois que aqui estava em causa, acima de tudo, uma conduta insuscetível de preenchimento do tipo de infração – questão que nunca se colocou na situação em apreço no acórdão fundamento, onde antes se equacionou a nulidade prevista nos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP.

O. Nessa medida, não pode considerar-se que o acórdão recorrido contenha uma solução jurídica conflituante com o acórdão fundamento e, por isso, não pode concluir-se pela existência de oposição de julgados (ver acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.07.2020, referente ao processo n.º 490/19.8GAVNF.G1-A.S1; e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.09.2018, referente ao processo n.º 833/03.6TAVFR.P4.S1-B).

P. Em consequência, o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência interposto pelo Ministério Público sobre o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 27.09.2023 (o acórdão recorrido) deve ser rejeitado, uma vez que não se encontram preenchidos os respetivos pressupostos de admissibilidade, designadamente a oposição de julgados, o que se requer.

Q. Caso assim não se entenda e se considere que existe oposição de julgados – o que aqui apenas se equaciona a benefício de patrocínio –, não pode prevalecer a solução proposta pelo Ministério Público, de que a suposta controvérsia deve ser solucionada de acordo com a solução encontrada no acórdão fundamento.

R. É que mesmo que não estivéssemos perante um caso de autêntica atipicidade, nem por isso a solução poderia ser diferente daquela tomada pelo Tribunal da Relação do Porto no acórdão recorrido.

S. À luz da jurisprudência superior – de que são exemplos o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015; o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31.10.2019 (referente ao processo n.º 344/19.8T9MFR.L1-9); o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.11.2020 (referente ao processo n.º 351/19.0T8MBR.C1); ou o acórdão do Tribunal da Relação do Porto no recente acórdão de 11.09.2022 (referente ao processo n.º 1004/22.8T9AVR.P1) – não é admissível a sanação da nulidade da decisão administrativa por omissão da indicação de factos determinantes do preenchimento do elemento subjetivo do tipo, através da remessa dos autos para a autoridade administrativa para respetiva reformulação da decisão proferida.

T. Entendimento apoiado também pelo (não) previsto no artigo 64.º, n.º 3, do RGCO.

U. A eventual remessa dos autos para a entidade competente, para eventual “sanação”, com correspondente prolação de nova decisão condenatória, pelos mesmos factos, corresponderia a uma violação do princípio “ne bis in idem” (com assento no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, doravante “CRP”) e abriria a porta a uma possível violação da proibição da “reformatio in pejus” (art. 72.º-A do RGCO).

V. Tal situação equivaleria a que a ora Recorrida fosse alvo de processo contraordenacional duplamente pelos mesmos factos, isto é, que fosse duplamente perseguida pela autoridade administrativa pela mesma conduta, o que é vedado pelo artigo 29.º, n.º 5, da CRP (ver acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27.09.2017, referente ao processo n.º 1873/16.0T8TVD.L1-3).

W. Mas essa eventualidade abriria a porta também à violação da proibição da “reformatio in pejus”, na medida em que colocaria nas mãos da autoridade administrativa a possibilidade de, na sequência da impugnação judicial apresentada pela ora Recorrida no seu exclusivo interesse, poder vir a fixar uma sanção mais gravosa que aquela que constava da decisão primária – o que é vedado pelo art. 72.º-A, n.º 1, do RGCO (ver acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06.05.2018, referente ao processo n.º 116/17.4T8ABF.E1).

X. A solução preconizada pelo Ministério Público, para além de desrespeitar o disposto no art. 29.º, n.º 5, da CRP, violaria ainda o vertido no art. 72.º-A, n.º 1, do RGCO.

Y. Por conseguinte, andou bem o Tribunal da Relação do Porto ao decidir julgar improcedente o recurso interposto pelo ministério Público e ao manter a decisão recorrida, que julgou como totalmente procedente a impugnação judicial apresentada pela ora Recorrida.

Z. Atento o exposto, não oferece dúvidas a conclusão de que, a existir oposição de julgados – o que não se consente pelos motivos apresentados acima –, teria sempre de prevalecer a solução seguida no acórdão recorrido, pelo Tribunal da Relação do Porto, ao contrário do proposto pelo Ministério Público.

Termina pedindo que seja rejeitado o recurso interposto pelo Ministério Público, uma vez que não se encontram preenchidos os respetivos pressupostos de admissibilidade, designadamente a oposição de julgados e, caso assim não se entenda, então se considere que deve prevalecer a solução seguida no acórdão recorrido, pelo Tribunal da Relação do Porto, mantendo-se o acórdão recorrido.

1.4. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça e, o Sr. PGA emitiu parecer no sentido de não se verificar a oposição de julgados, por o acórdão recorrido e o acórdão fundamento terem aplicado normas diferentes (tendo o primeiro aplicado o disposto no art. 283.º, n.º 1, al. b), do CPP e, o segundo, o disposto nos arts. 379.º, n.º 2 e 374.º, n.º 2, do CPP), quando concluíram que a decisão administrativa era nula.

1.5. Na resposta ao Parecer, a arguida/recorrida concorda com a posição ali defendida, sustentando que, para além do acórdão recorrido e do acórdão fundamento não terem aplicado as mesmas normas, no caso do acórdão recorrido está em causa uma situação de autentica atipicidade da conduta, o que não foi considerado ou mencionado sequer no acórdão fundamento, pelo que deve ser rejeitado o recurso interposto pelo Ministério Público, por falta de oposição de julgados; caso assim não se entenda, deve prevalecer a solução seguida no acórdão recorrido.

1.6. Colhidos os vistos de acordo com o exame preliminar e realizada a conferência, incumbe, agora, decidir sobre a admissibilidade ou rejeição deste recurso extraordinário (art. 441.º do CPP).

II. Fundamentação

2.1. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência tem por finalidade a obtenção de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça que fixe jurisprudência, “no interesse da unidade do direito”, resolvendo o conflito suscitado (art. 445.º, n.º 3, do CPP), relativamente à mesma questão de direito, quando existem dois acórdãos com soluções opostas, no domínio da mesma legislação, assim favorecendo os princípios da segurança e previsibilidade das decisões judiciais e, ao mesmo tempo, promovendo a igualdade dos cidadãos.

O que se compreende, até tendo em atenção, como se diz no ac. do STJ n.º 5/2006, publicado no DR I-A Série de 6.06.2006, que «A uniformização de jurisprudência tem subjacente o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito.»

Ora, a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência depende do preenchimento de requisitos formais e de requisitos materiais, que se extraem dos arts. 437.º e 438.º do CPP.

Assim, este Supremo Tribunal tem entendido, como é clarificado em variada jurisprudência3, que são requisitos formais, a legitimidade do recorrente, a tempestividade da interposição do recurso (prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido), a identificação do acórdão fundamento (com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição), incluindo se tiver sido publicado, o lugar da publicação e o trânsito em julgado do acórdão fundamento e, por sua vez, são requisitos materiais, que os dois acórdãos respeitem à mesma questão de direito, tenham sido proferidos no “domínio da mesma legislação”, “assentem em soluções opostas”, partindo de idêntica situação de facto, importando que as decisões em oposição sejam expressas.

Quanto a estes últimos dois requisitos, a saber, que sejam proferidas “soluções opostas a partir de idêntica situação de facto e que as decisões em oposição sejam expressas”, assinala-se no acórdão do STJ de 21.10.2021 citado, que “constitui jurisprudência assente deste Supremo Tribunal que só havendo identidade de situações de facto nos dois acórdãos é possível estabelecer uma comparação que permita concluir, quanto à mesma questão de direito, que existem soluções jurídicas opostas, bem como é necessário que a questão decidida em termos contraditórios seja objeto de decisão expressa, isto é, as soluções em oposição têm de ser expressamente proferidas (ac. STJ 30.01.2020, proc. n.º 1288/18.6T8CTB.C1-A.S1, 5.ª, ac. STJ 11.12.2014, proc. 356/11.0IDBRG.G1-A.S1, 5.ª) acrescendo que, de há muito, constitui também jurisprudência pacífica no STJ que a oposição de soluções entre um e outro acórdão tem de referir-se à própria decisão, que não aos seus fundamentos (ac. STJ 30.01.2020, proc. n.º 1288/18.6T8CTB.C1-A.S1, 5.ª, ac. de 13.02.2013, Proc. 561/08.6PCOER-A.L1.S1).”

2.2. Posto isto, vejamos se, neste caso concreto, estão ou não preenchidos todos os requisitos acima apontados.

Assim.

Analisados os autos não há dúvidas que o Ministério Público tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência que, para si é obrigatório (art. 437.º, n.º 2 e n.º 5, do CPP), sendo claro o seu interesse em agir, tendo-o apresentado tempestivamente (art. 438.º, n.º 1, do CPP), em 10.11.2023, uma vez que foi interposto dentro do prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar, ou seja, do ac. do TRP proferido em 27.09.2023, nos autos nº 576/23.4T9VLG.P1, notificado aos respetivos sujeitos processuais em 28.09.2023, que apenas transitou em 12.10.2023.

Para além disso, neste seu recurso extraordinário, o recorrente/MP identifica o acórdão fundamento (Ac. do TRC de 30.03.2022, proferido no processo n.º 173/21.9T8TND.C1, transitado em julgado em 24.05.2023) - ou seja, o acórdão que invoca estar em oposição com o acórdão recorrido de 27.09.2023 - transitado em julgado em 12.10.2023.

Dir-se-á que estão preenchidos os pressupostos formais do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.

Resta, agora, apurar, se igualmente se mostram preenchidos os seus pressupostos materiais.

Analisando o acórdão recorrido (ac. do TRP de 27.09.2023 proferido no processo nº 576/23.4TVLG.P1, de que este recurso é apenso) e o acórdão fundamento (ac. do TRC de 30.03.2022 proferido no processo n.º 173/21.9T(TND.C1), verificamos que embora ambos concluam pela nulidade da decisão administrativa, a verdade é que para lá chegar seguiram vias diversas, pois, enquanto o acórdão recorrido aplicou o disposto no art. 283.º, n.º 1, al. b), do CPP, para além de considerar a conduta descrita atípica, já o acórdão fundamento aplicou o disposto nos arts. 379.º, n.º 2, e 374.º, n.º 2, do CPP, nem sequer se debruçando sobre a questão da atipicidade da conduta, tendo antes concluído por ordenar o envio do processo à autoridade administrativa, para suprimento da nulidade verificada.

Com efeito, na fundamentação do acórdão recorrido da Relação do Porto consignou-se, além do mais, o seguinte:

(…)

Na verdade, a decisão administrativa, quando impugnada, corresponde a uma acusação em processo penal, e sendo esta omissa quanto à narração de factos determinantes do preenchimento de elementos típicos da infração, tal só pode ter esse resultado, ou seja, é nula por ausência de tipicidade da conduta.

Ora, tal nulidade, por se traduzir na omissão da narração de factos determinantes do preenchimento do tipo subjetivo, equivalendo, portanto, a uma atipicidade da conduta, implica o arquivamento dos autos.

(…)

Por sua vez, o AFJ n.º 05/2019 de 04/07/19 (in DR, I Série, 185, de 26/09/19), refere que a decisão da autoridade administrativa não impugnada assume contornos de definitividade, mas, sendo-o, converte-se, em consonância com o estipulado no art. 62.º, n.º 1 do RGCO, numa “decisão-acusação”.

Por sua vez, no Ac. do STJ de 29.01.2007 (proc. n.º 06P3202), decidiu-se: «A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do artigo 58.º, n.º 1 do RGCOC constitui, também, elemento fundamental para garantia do direito de defesa do arguido, que só poderá ser efetivo com o adequado conhecimento dos factos imputados, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem. A consequência da falta dos elementos essenciais que constituem a centralidade da própria decisão - sem o que nem pode ser considerada decisão em sentido processual e material - tem de ser encontrada no sistema de normas aplicável, se não direta quando não exista norma que especificamente se lhe refira, por remissão ou aplicação supletiva; é o que dispõe o artigo 41.º do RGCOC sobre “direito subsidiário”, que manda aplicar, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal. Deste modo, a decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima (ou outra sanção prevista para uma contra-ordenação), e que não contenha os elementos que a lei impõe, é nula por aplicação do disposto no artigo 374.º, n.º 1, alínea a) do CPP para as decisões condenatórias. (…)

De igual modo, no Ac. TRP de 11.09.2022 (proc. n.º 1004/22.8T9AVR.P1, in www.dgsi.pt), entendeu-se: «I - A natureza tendencialmente mais simplificada e menos formal do procedimento contraordenacional não pode constituir justificação para a não descrição de modo compreensível do facto que consubstancia o elemento subjetivo da concreta contraordenação em causa, nomeadamente em termos de saber se estamos perante uma imputação a título de dolo ou, diversamente, a título de negligência. II - Independentemente da qualificação jurídico-processual que se atribua à decisão da autoridade administrativa de aplicação de uma coima, quer por referência à acusação (art. 283.º n.º 3 do Código de Processo Penal), quer por referência à sentença penal (artº 379º nº 1 al. a) do Código de Processo Penal), o certo é que a consequência atribuída à omissão de administrativa o elemento subjectivo, impõe-se, por falta de tipicidade, a absolvição do arguido factos nessa decisão (nomeadamente, de factos atinentes ao elemento subjetivo) consiste sempre na nulidade dessa decisão. III - A ausência de descrição na decisão administrativa dos elementos constitutivos da contraordenação, geradora de nulidade dessa decisão, não pode ser colmatada em fase subsequente através da remessa dos autos a essa autoridade, impondo-se, por isso, o arquivamento dos autos por falta de objeto».

Adianta ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31.10.2019 (proc. n.º 344/19.8T9MFR.L1-9), in www.dgsi.pt: «Estando em falta, na Decisão Administrativa, a narração de factualidade concretizadora do tipo subjetivo da contra-ordenação que é imputada ao arguido, esse hiato, à luz da jurisprudência fixada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º1/2015 de 27 de Janeiro (in DR, 1ª Série, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015), não pode ser integrada em julgamento, ou neste caso no recurso de contraordenação interposto para o Tribunal de 1ª instância e logo na sua decisão final, mesmo com recurso ao disposto no artº 358º do CPP; Por conseguinte, ...a decisão administrativa que foi exarada nos autos já era nula, porque omissa em factos concretizadores do tipo subjetivo contraordenacional imputado...sendo questão que não pode ser revertida por qualquer outro modo legal, ou seja com a sanação de tal nulidade, sob pena de se ignorar o Ac de fixação de Jurisprudência 1/2015 e tendo como consequência a absolvição do arguido».

Ora, este raciocínio aplicado ao processo contraordenacional, leva-nos a concluir, desde logo, que não é admissível a sanação de uma tal nulidade através da remessa dos autos para a autoridade administrativa para respetiva reformulação da decisão proferida, pois iria transformar uma conduta não punível numa conduta punível, uma vez que os factos constantes daquela decisão administrativa não constituem infração contraordenacional, por haver ausência de tipicidade da conduta.

(…)

Na verdade, não só o artigo 64.º, n.º 3, do RGCO não prevê a possibilidade aventada pelo Ministério Público de remessa dos autos à entidade administrativa «com vista à sanação da declarada nulidade», como a remessa dos autos à autoridade administrativa para sanação da referida nulidade, a ocorrer através da integração de factualidade que não constava da decisão administrativa, corresponderia a uma alteração fundamental de tal decisão, mediante a conversão de uma conduta atípica numa conduta típica.

Como se diz na sentença recorrida, a factualidade em causa não constitui qualquer infração contraordenacional, designadamente por falta de verificação dos pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma coima, face à ausência de narração de factos determinantes do preenchimento do elemento subjetivo, com a caracterização das circunstâncias que permitem estabelecer um nexo psicológico de ligação dos factos objetivos ao agente e a sua imputação a título de negligência.

Por outro lado, a eventual“sanação” dos vícios da decisão administrativa por parte da entidade competente, com nova decisão condenatória, pelos mesmos factos, também corresponderia a uma violação do princípio ne bis in idem (cfr. artigo 29.º, n.º 5, da CRP) e uma possível violação da proibição da reformatio in pejus (art. 72.º-A do RGCO) - cfr. Ac. do Tribunal Central Administrativo Sul de 07.05.2018, no proc. n.º 2481/15.9BELRS, e Ac.Tribunal da Relação de Lisboa de 27.09.2017 no proc. n.º 1873/16.0T8TVD.L1, ambos em www.dgsi.pt.

(…)

Pelo exposto, não podemos deixar de concordar com a procedência da impugnação judicial em apreço, porquanto, atentos os termos conjugados do art. 58.º, n.º 1, als. c) e d), e 64.º, do RGCO e dos arts. 283.º, n.º 1, al. b) e 338.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, ex vi art. 41.º, n.º 1 do RGCO, se constata a existência da mencionada nulidade da decisão administrativa recorrida, que em consequência, determina o arquivamento dos autos, nos termos do art. 64.º, n.º 3 do RGCO.

Constituindo a decisão administrativa uma “decisão-acusação” (art. 62.º, n.º 1, do RGCO), como não pode deixar de ser, os invocados vícios da decisão administrativa enquadram-se na nulidade prevista no art. 283.º, n.º 3, alínea b), do CPP, e, consequente, arquivamento dos autos, por omissão insuscetível de ser integrada em julgamento ou vício que possa ser sanável nomeadamente mediante reformulação da decisão pela entidade administrativa que a proferiu.

Na verdade, repetimos, a decisão administrativa, quando impugnada, corresponde a uma acusação em processo penal, e sendo esta omissa quanto à narração de factos determinantes do preenchimento de elementos típicos da infração, tal só pode ter esse resultado, por ausência de tipicidade da conduta.

Assim sendo, nada temos a criticar à decisão proferida pelo Tribunal a quo que decidiu julgar procedente a impugnação judicial em apreço, atentos os termos conjugados do art._58.º, n.º 1, als. c) e d), e 64.º, do RGCO e dos arts. 283.º, n.º 1, al. b) e 338.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, ex vi art. 41.º, n.º 1 do RGCO, e art. 64.º, n.º 3 do mesmo diploma legal.”

Como se vê, o acórdão recorrido da Relação do Porto fundamenta a nulidade da decisão administrativa impugnada, na circunstância de não conter a narração dos factos determinantes do preenchimento de elementos típicos da infração contraordenacional que se pretendia imputar à arguida e, nessa medida, verificava-se a nulidade prevista no art. 283.º, n.º 3, al. b), do CPP, a qual não pode ser sanada por remessa à entidade administrativa, uma vez que não se pode transformar uma conduta atípica em conduta típica.

Por sua vez, o acórdão fundamento da Relação de Coimbra, consignou, além do mais, a seguinte argumentação na sua fundamentação:

APRECIANDO

Atendendo ao disposto no n.º 1 do artigo 75º do DL n.º 433/82, de 27.10 (RGCO), este tribunal conhece apenas da matéria de direito, isto sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, designadamente os vícios indicados no artigo 410º, n.º 2 do CPP, conforme acórdão do STJ para fixação de jurisprudência de 19-10-1995, publicado no DR, I-A Série de 28-12-95.

Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e que estas limitam o seu objecto, no presente recurso a questão suscitada consiste em saber se, verificando-se a nulidade da decisão administrativa, por preterição do dever de fundamentação nos termos do artigo 58º, n.º 1, al. b), do RGCO, pode tal nulidade ser sanada pela autoridade administrativa; ou, ao invés, como defende a sentença recorrida, trata-se de nulidade insanável, a determinar o arquivamento dos autos.

Alega o recorrente:

"o auto de notícia especifica pormenorizadamente os fatos que determinaram a violação das normas e a instauração dos autos de contra ordenação, certo é que a decisão administrativa é omissa quanto aos mesmos.

Na impugnação judicial a arguida "C..., S.A.", suscita a questão da nulidade da decisão administrativa, por falta da descrição de fatos e do elemento subjetivo.

Ainda, assim, o tribunal "a quo", recebeu a acusação (cfr. artigo 62º, nº 1, do RGCO), sem proceder à apreciação das nulidades suscitadas.

O tribunal "a quo", deveria rejeitar a acusação por manifestamente infundada, conforme resulta do disposto nos artigos 311º, nº 1 e 2, alínea a) do Código de Processo Penal ex-vi artigo 58º e 41º, nº 1, da RGCO.

Ou, decidir tais questões, por despacho, nos termos do disposto no artigo 64º, do RGCO.

Não o fez e permitiu a realização do julgamento, para depois apreciar as nulidades invocadas e determinar a absolvição da arguida e arquivar os autos.

Ainda assim, entendemos, salvo o devido respeito, que o tribunal "a quo" ao declarar a nulidade da decisão administrativa, deveria, como consequência, remeter os autos à autoridade administrativa para sanação daquela, e não, determinar a absolvição da arguida e arquivar os autos."

Com efeito,

Como reconhece o recorrente e consta na sentença recorrida «a decisão administrativa, (...) não indica que concretos produtos estavam a ser vendidos, a que preço, em que condições e que redução havia, quais os dizeres existentes na loja para cada produto, ou pelo menos a título exemplificativo; não obstante o cuidado do agente autuante que identificou que produtos estavam a ser vendidos, preço e dizeres nos expositores.

Tal narração concretizada, por motivos que se desconhecem, não foi transcrita para a decisão administrativa, nem sequer é feita qualquer remissão.

(...) Da leitura da decisão recorrida (fls. 77 e segs.) afere-se que esta não encerra em si e nos factos imputados ao arguido, tanto objectivos como também nenhum de natureza subjectiva, comummente os chamados elementos subjetivos do tipo (nem a qualquer título de dolo nem se referindo a negligência, neste caso da contraordenação que lhe era imputada.».

(…)

Face às questões suscitadas no recurso de impugnação judicial, a sentença recorrida pronunciou-se sobre a falta de fundamentação da decisão administrativa no sentido de que: «Dos elementos dos autos, não obstante a extensão da decisão, sobre as normas e finalidades das mesmas, certo é que factos, não possui.

Logo a decisão administrativa proferida nos presentes autos é nula, porque omissa em factos concretizadores dos elementos do tipo objectivos e subjectivos contra-ordenacional imputado (e pela qual condenou) a Recorrente, sendo que esta neste tipo de processos, reveste a natureza de uma "acusação".

Tal nulidade, porque não foi retirada a acusação (artigo 65º-A do RGCO), determina que, nos termos do artigo 64º do mesmo diploma, sejam arquivados os autos por falta de objecto.».

"Na verdade, as decisões administrativas não constituem efectivamente verdadeiras sentenças e a aplicação subsidiária das disposições processuais penais tem de ser analisada de harmonia com a natureza dos processos contra-ordenacionais e da sua especificidade, de forma a que sejam adequadamente compreendidas as exigências contidas naquele artigo 58º, as quais se aproximam de algum modo dos requisitos previstos para a acusação referidos no artigo 283º do CPP.

Porém, a exigência de fundamentação é requisito também da decisão administrativa -art. 58º, n.º 1, al. c) -, diferentemente do que naturalmente se verifica com a mera peça acusatória em processo criminal.

E, embora nos termos do artigo 62º, n.º 1, do RGCO, a apresentação pelo Ministério Público dos autos ao juiz (e não propriamente apenas a decisão administrativa), valha como acusação, isso não significa que à decisão administrativa seja aplicável o regime estrito das nulidades da acusação, por referência ao artigo 283º do CPP, consagrado nos artigos 119º e 120º do mesmo diploma.

Afigura-se, assim, que a decisão, apesar de toda a sua especificidade e com vista à finalidade que prossegue, terá de cumprir as formalidades descritas no artigo 58º do RGCO e que, caso não as cumpra, por via do art. 41º do RGCO - por aplicação subsidiária, com a necessária harmonização, atentando em que as autoridades administrativas estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal, também com as necessárias adaptações -, incorrerá em nulidade, com a disciplina do artigo 379º do CPP, com as consequências previstas no artigo 122º do mesmo Código - tornando inválido o acto em que se verificarem, bem como todos os actos que dele dependerem e que possam por eles ser afectados -." cfr. Ac. RE de 3-12-2009, proc. n.º 2768/08.7TBSTRE1, in www.dgsi.pt.

Acresce que as nulidades de sentença são sanáveis, nos termos do n.º 2 do artigo 379º, não constando, por isso, do elenco taxativo das nulidades insanáveis do artigo 119º do CPP.

Por isso, existindo nulidade por não se mostrarem cumpridas as formalidades descritas no artigo 58º do RGCO, esta não está sanada, o que não significa que não deva ser suprida pela autoridade administrativa que inicialmente tramitou o processo, por referência ao n.º 2 do artigo 374º do CPP - v. entre outros, o acórdão do STJ de 21-12-2006, proferido no proc. nº. 06P3201, acessível em www.dgsi.pt - , aliás de harmonia, com o princípio do máximo aproveitamento dos actos processuais, em homenagem ao princípio da economia processual, dando-se oportunidade (...) de suprir nulidades, restringindo-se, até onde for possível, as consequências da declaração de nulidade do acto. Tal decorre da circunstância de o processo (...) ser uma sequência de actos, os quais nem sempre estarão entre si numa relação causal ou de dependência.

No mesmo sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ, de 21-9-2006, no proc. n.º 06P3200 e, de 6-11-2008, no proc. n.º 08P2804; da RL de 28-4-2004, no proc. n.º 1947/2004-3 e de 19-2-2013, no proc. n.º 854/11.5TAPDL.L1-5; da RE de 3-12-2009, no proc. n.º 2768/08.7TBSTR.E1 e, de 25-9-2012 no proc. n.º 82/10.7TBORQ.E1; todos disponíveis in www.dgsi.pt.

Verifica-se, assim, que no acórdão fundamento, para além de nem sequer se colocar a questão da atipicidade da conduta, como sucedeu no acórdão recorrido, o fundamento da nulidade declarada da decisão administrativa, baseou-se não no art. 283.º do CPP (que no caso até afastou), mas antes no art. 379.º, n.º 2, do CPP, considerando-a sanável e, portanto, antes pressupondo que a conduta seria típica (pois só assim se compreenderia a possibilidade de remessa do processo para a entidade administrativa para suprir a nulidade, incluindo na decisão os concretos factos integradores dos elementos objetivos e subjetivos da contraordenação imputada à arguida).

Ou seja, são diferentes as condutas analisadas e é diversa a fundamentação entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, apoiando-se cada um deles em normas distintas, para além de no acórdão recorrido se ter mesmo concluído pela conduta ser atípica, o que nessa perspetiva sempre impedia a devolução dos autos à entidade administrativa (por não se poder transformar uma conduta atípica em conduta típica).

É, assim, manifesto que não se podem considerar os dois acórdãos em oposição.

Do exposto compreende-se que os dois acórdãos não se podem equiparar, nem tão pouco se pode deduzir ou afirmar que tratam da mesma questão de forma oposta (sendo uma a encontrada pelo acórdão recorrido e a outra encontrada pelo acórdão fundamento).

É que os pressupostos para cada uma das soluções encontradas num caso e noutro são diferentes (o acórdão recorrido tratou de um caso em que se verificava uma conduta atípica e, daí não fazia sentido ordenar a remessa do processo à entidade administrativa e, o acórdão fundamento tratou de caso em que se considerou que a conduta seria típica e, por isso, ordenou a remessa do processo à entidade administrativa para suprir a nulidade detetada, ao abrigo do art. 379.º, n.º 2, do CPP).

Portanto, não se pode confundir a argumentação do acórdão recorrido, com a solução adotada no acórdão fundamento.

Assim, as situações analisadas e decididas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento não são equiparadas.

Não há, pois, identidade, semelhança ou equivalência nas situações analisadas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, o que justificou as diferentes/opostas soluções jurídicas que foram dadas.

Daí que, não seja possível estabelecer uma comparação entre as duas situações descritas (ou seja, não há identidade de situações de facto) que constam do acórdão recorrido por um lado e do acórdão fundamento por outro lado, o que inviabiliza que se possa concluir pela verificação do requisito substantivo ou material da existência, quanto à mesma questão de direito, de decisões opostas.

Por isso, por falta do apontado requisito material, rejeita-se o presente recurso extraordinário.


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III - Decisão

Pelo exposto, acordam nesta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em rejeitar o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pelo Ministério Público.

Sem custas por delas estar isento o recorrente.


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Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos.

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Supremo Tribunal de Justiça, 28 de Fevereiro de 2024

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

José Luís Lopes da Mota (Adjunto)

Ernesto Vaz Pereira (Adjunto)

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1. Transcrição sem negritos, nem sublinhados.

2. Transcrição sem negritos, nem sublinhados.

3. Entre outros, Ac. do STJ de 21.10.2021, proferido no proc. n.º 613/95.0TBFUN-A.L1-C.S1 (relatado por António Gama), consultado no site da dgsi.