Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8765/16.16.1T8LSB.L1.S2
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
SIMULAÇÃO
INTERPOSIÇÃO FICTÍCIA DE PESSOAS
FRAUDE À LEI
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
MATÉRIA DE FACTO
ACTO INÚTIL
ATO INÚTIL
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
PODERES DA RELAÇÃO
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO
Data do Acordão: 03/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / ACTOS PROCESSUAIS / ACTOS EM GERAL / DISPOSIÇÕES COMUNS / PRINCIPIO DA LIMITAÇÃO DOS ACTOS – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / ÓNUS A CARGO DO RECORRENTE QUE IMPUGNE A DECISÃO RELATIVA À MATÉRIA DE FACTO.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGOCIO JURÍDICO / OBJECTO NEGOCIAL, NEGÓCIOS USUÁRIOS.
Doutrina:
- António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, parte Geral, Tomo I, Almedina, 2.ª edição, 2000, p. 490 e ss., 519 ; Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo III, Almedina, Coimbra, 2004, p. 627-649;
- Carvalho Fernandes, Simulação e Tutela de Terceiros, Lisboa, 1988, Separata dos Estudos em Memória do Prof. Doutor Paulo Cunha, p. 24;
- Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 3ª edição, p. 388;
- Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 2015, p. 599 e 601.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 130.º E 640.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 280.º E 281.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 30-11-2010, PROCESSO N.º 1148/03.5TVLSB.S1;
- DE 11-02-2015, PROCESSO N.º 422/2001.L1.S1;
- DE 17-05-2017, PROCESSO N.º 4111/13.4TBBRG.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 20-06-2017, PROCESSO N.º 226/13.7TBFAL.E1.S1;
- DE 07-11-2017, PROCESSO N.º 919/15.4T8PNF.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 14-06-2018, PROCESSO N.º 206/08.4TBMFR.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Se os factos cujo julgamento é impugnado não forem susceptíveis de influenciar decisivamente a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte, é inútil e contrário aos princípios da economia e da celeridade a reponderação pela Relação da decisão proferida pela 1.ª instância (cfr. art. 130.º do CPC).

II - O direito à impugnação da decisão de facto previsto no art. 640.º do CPC assume um caráter instrumental face à decisão sobre o fundo da causa.

III - A simulação é uma divergência bilateral entre a vontade e a declaração, fruto de um pacto entre as partes com a intenção de enganar terceiros, assumindo nesta importância crucial o pacto simulatório, através do qual as partes acordam em criar uma aparência negocial e em regular a forma de relacionamento entre o negócio aparente, assim exteriorizado e o negócio real.

IV - Pode distinguir-se na simulação entre simulação subjetiva e objetiva, consoante incida sobre os sujeitos intervenientes ou sobre o negócio ou alguma das suas cláusulas, sendo que na simulação subjectiva surge como contraparte alguém com a finalidade de ocultar a identidade do verdadeiro interveniente no contrato, vulgarmente denominado “testa de ferro”.

V - A simulação subjetiva por interposição fictícia de pessoa não se confunde com o mandato sem representação, porquanto, embora numa como noutra se dê a ocultação da pessoa a quem o ato de destina, no mandato sem representação não há, nomeadamente, “um intuito de enganar terceiros embora haja o de não lhes revelar a posição do mandante e da sua relação com o mandatário”.

VI - Os requisitos da simulação devem ser invocados e provados por quem pretenda prevalecer-se da simulação ou de aspetos do seu regime, pelo que, não se provando, no caso, que tivessem os réus, vendedor e compradora, efectuado, entre si, qualquer pactum simulationis, com a intenção de enganar a autora, nem tão pouco ficado provado que a ré compradora tenha actuado como “testa de ferro” no exercício do direito de preferência enquanto arrendatária do prédio transmitido, improcede a invocação de que se verifica uma simulação relativa.

VII - O instituto da fraude à lei, ainda que sem tratamento autónomo no CC, tem sido reconduzido pela doutrina a um problema de interpretação do negócio e da lei, não simplesmente literal, mas de acordo com o seu fim e o seu sentido.

VIII - Não se descortinando nos autos a existência de intuito fraudulento dos agentes em presença que pudesse conduzir à nulidade do negócio, designadamente por força dos arts. 280.º e 281.º do CC, não se verificam os pressupostos fundamentais da figura da fraude à lei.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório

1. “AA, Lda.” intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra “Fundo de Investimento Imobiliário BB”, atualmente representado pela sua entidade gestora “CC – Sociedade Gestora de Fundos de Investimento Imobiliário, S.A.” e “DD, Lda.”, pedindo que:

a) – Os contratos promessa e definitivo de compra e venda celebrados entre os RR., Fundo de Investimento Imobiliário BB, representado pelo EE – Sociedade Gestora de Fundos de Investimento Imobiliário S.A. e DD, Lda., sejam declarados nulos e de nenhum efeito, declarando-se nula e de nenhum efeito a compra e venda dos imóveis que constituem o “Prédio FF”, ou seja:

i) Do prédio urbano sito na ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº ..., da freguesia de ..., e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o art. 584º, da freguesia de ...;

ii) Do prédio urbano sito na ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., da freguesia de ..., e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o art.º. ..., da freguesia de ...;

iii) Do prédio urbano sito na Rua ... tornejando para a ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de..., da freguesia de ..., e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o art.º. 331º, da freguesia de ...;

b) - Em consequência da nulidade dos referidos contratos, seja declarado que se mantém em vigor o contrato promessa de compra e venda celebrado entre a A. e o Fundo de Investimento Imobiliário BB, representado pelo EE – ... S.A.;

c) – Sejam os RR. condenados a pagar à A. a indemnização pelos prejuízos sofridos por esta que se vierem a liquidar em execução de sentença.

Para tanto, alegou, em síntese, que:

A sociedade autora foi constituída com o intuito de adquirir os imóveis conhecidos como «Prédio FF».

Por contrato-promessa de compra e venda celebrado no dia 17 de Abril de 2015, a EE – Sociedade Gestora de Fundos de Investimento Imobiliário, S.A., sociedade então gestora do 1º réu, proprietário do “Prédio FF”, agindo naquela qualidade, declarou prometer vender este “Prédio” à autora, que declarou prometer comprar-lho, pelo preço de € 9.150.000,00.

Sucede que, em consequência do alegado exercício do direito de preferência de que era beneficiária a 2ª ré, foi posto termo àquele contrato, tendo:

- Por contrato-promessa de compra e venda celebrado no dia 12 de Junho de 2015, a sociedade EE declarado prometer vender à 2ª ré, que declarou prometer comprar-lho, pelo mesmo preço de € 9.150.000, o referido “Prédio FF”;

- Por escritura realizada no dia 23 de Dezembro de 2015, a sociedade EE, sempre na qualidade de gestora do 1º réu, declarado vender à 2ª ré, que declarou comprar-lho, por aquele preço, o referido prédio.

No entanto, estes negócios constituíram uma forma de enganar e prejudicar a autora, pois, não obstante ter ficado a constar na escritura que a 2ª ré era a compradora do “Prédio FF”, a verdade é que o mesmo foi efetivamente adquirido pelo Grupo GG, tendo havido conluio entre a ré e este Grupo, com o conhecimento e a convivência do 1º réu.

Trata-se, pois de um negócio nulo, por simulação.

No entanto, ainda que se entenda que não se verifica simulação, o mesmo não deixa de ser nulo, pois, ao declarar que exercia o direito de preferência na aquisição do “Prédio FF”, a 2ª ré fê-lo sob reserva mental.

2. A ação foi contestada.

2.1. O 1º réu, defendendo-se por impugnação, pediu a sua absolvição do pedido e a condenação da autora como litigante de má-fé, «em indemnização correspondente ao reembolso de todas as despesas referidas nas alíneas a) e b) do nº 1 do art. 543º do CPC, que se vierem a liquidar em execução de sentença, ou por abuso de direito de ação, nos mesmos termos.».

2.2. A 2ª ré também contestou, impugnando a factualidade articulada pela autora.

3. A final, realizado o julgamento, foi proferida sentença que, julgando a ação improcedente, absolveu os réus dos pedidos, bem como a autora do pedido de indemnização como litigante de má-fé.

4. Desta decisão apelou a autora, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa proferido acórdão em que, embora com fundamentação essencialmente diferente, confirmou a sentença recorrida.

5. De novo irresignada, veio a autora interpor revista excecional, tendo a Formação a que se alude no art. 672º, nº3, do CPC, ordenado a distribuição do recurso como revista normal.

Nas alegações da revista, a autora formulou as seguintes conclusões:

A)        O acórdão, ora sob recurso, não se pronunciou sobre as alegações da Autora quanto aos factos que ficaram provados na audiência de julgamento, quer através dos depoimentos das testemunhas quer com atenção aos documentos juntos;

B)        Os factos que a Autora considera terem ficado provados e cujo aditamento pretende são importantes para a decisão da causa;

C)        Mesmo que se entenda, como se faz no acórdão sob recurso, que tais factos não alterariam a decisão a proferir, tal só pode ser afirmado se, depois de apreciada esta matéria de facto, se pudesse dizer que estes novos factos não alteravam a decisão;

D)       O acórdão parte da decisão que vai proferir para avaliar da relevância dos factos que se pretendem ver aditados à matéria de facto mas a sua posição, relativamente ao alegado pela Autora tinha de ser, em primeiro lugar, a de apreciar se aqueles factos ficaram efetivamente provados;

E) Torna-se, por isso, necessário que se proceda à reapreciação da matéria de facto como foi requerido pela Autora e, só depois dessa apreciação, se poderá verificar que estes novos factos alteram realmente a decisão a proferir na perspetiva defendida pela Recorrente ao longo do processo;

F) Deverá o processo baixar ao Tribunal da Relação de Lisboa para que esta matéria seja reapreciada, louvando-se, desde já, a Autora em tudo o que consta das suas alegações de recurso para aquele tribunal;

G) O Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão agora sob recurso, apreciou a validade/nulidade do negócio celebrado entre o Réu Fundo e a Ré DD, Lda. com base em três fundamentos: simulação, fraude à lei e desconsideração da personalidade jurídica;

H) A decisão proferida aprecia a nulidade, pela primeira vez, no que se refere aos dois últimos fundamentos (a fraude à lei e a desconsideração da personalidade jurídica) pelo que, em nosso entender, este recurso é admissível como revista;

I) No caso de se entender que, relativamente ao fundamento da simulação, existe dupla conforme por haver duas decisões - a da 1ª instância e a da Relação -, no mesmo sentido, sempre seria de admitir o recurso como revista excecional;

J) A tese defendida pelo acórdão sob recurso - de que não há simulação por não se ter provado que o Réu Fundo tinha conhecimento do acordo - está em oposição com o que foi decidido no acórdão do STJ de 3/12/2015;

K) Neste último acórdão, se defende que o acordo simulatório existe mesmo que uma das partes no negócio nele não tenha tido intervenção, pois o acordo pode verificar-se entre uma das partes no negócio e o terceiro interessado;

L) A oposição entre o acórdão de que se recorre e aquele acórdão do STJ impõe que, nos termos da alínea c) do nº 1, do artigo 672º do Código de Processo Civil, o recurso, nesta parte, seja admitido como revista excecional;

M) Como é entendimento unânime na doutrina e na jurisprudência, e de acordo com o nº1 do artigo 240º do Código Civil, a simulação tem três requisitos: a divergência entre a declaração e a vontade real, um pacto simulatório e o intuito de enganar um terceiro;

N) No negócio posto em causa nestes autos, a Ré DD, Lda. declarou adquirir o prédio FF quando a sua vontade real era apenas de facultar a propriedade daqueles imóveis ao grupo GG (Sociedade Hoteleira de Turismo - GG, S.A. e HH, Lda.);

O) É manifesto que a Ré DD, Lda. nunca tiveram qualquer intenção de adquirir para si a propriedade daqueles imóveis, contrariamente ao que declarou;

P) O verdadeiro adquirente dos imóveis foi o grupo GG (Sociedade Hoteleira de Turismo - GG, S.A. e II, Lda.) que, como ficou largamente demonstrado nos autos, acordou com a Ré DD, Lda. que seria esta a celebrar o negócio mas em seu benefício (do grupo GG);

Q) Este acordo era necessário para aquele grupo GG (... - GG, S.A. e II, Lda.) conseguir adquirir os imóveis uma vez que havia um contrato promessa e só quem fosse titular dum direito de preferência podia afastar a Autora do negócio;

R) Como resulta do decidido no citado acórdão do STJ de 3/12/2015, o pactum simulationis celebrado entre a Ré DD e o grupo GG (... - GG, S.A. e II, Lda.) é suficiente para se considerar verificado o requisito do acordo simulatório;

S) A interposição da Ré DD, Lda. no negócio que o grupo GG (... - GG, S.A. e ..., Lda.) pretendia celebrar para aquisição do prédio FF teve como única finalidade enganar a Autora que, assim, se viu impedida de adquirir os imóveis;

T) Tem, em consequência, de se considerar o negócio de compra e venda em causa nos autos como nulo por simulação;

U) Ao longo dos anos, os direitos de preferência foram sendo criados e atribuídos no sentido de garantir objetivos de interesse público prosseguidos pelo legislador;

V) Efetivamente, apesar do princípio geral da autonomia e liberdade de contratar das pessoas individuais, o legislador entendeu que, em certos casos, se justificava o afastamento dessa liberdade para defender interesse publicamente relevante;

W) No que se refere ao direito de preferência atribuído ao arrendatário comercial, o objetivo do legislador foi garantir e favorecer o desenvolvimento da atividade comercia, mesmo em detrimento dos direitos do proprietário;

X) A Ré DD, Lda. estava em fim de vida e acabou por cessar toda a atividade antes da celebração da escritura de compra e venda pelo que a utilização do direito de preferência não teve qualquer finalidade de contribuir para o desenvolvimento da sua atividade;

Y) Houve, por parte da Ré DD, Lda. a utilização de um instrumento legal para fim diverso daquele para que foi criado: fazer um negócio imobiliário e não para favorecer o desenvolvimento do seu comércio;

Z) Tem de se considerar, por isso, que a Ré DD, Lda. agiu em fraude à lei e o negócio tem de ser declarado nulo;

AA) A Ré DD, Lda. não retirou do negócio qualquer utilidade ou vantagem como resulta necessariamente do facto de ter cessado atividade antes da celebração da escritura de compra e venda;

BB) A Ré DD, como pessoa coletiva, tem uma personalidade jurídica que se não confunde com a personalidade jurídica dos seus sócios donde resulta que a prossecução dos seus interesses não coincide com os interesses prosseguidos pelos sócios;  

CC) Tudo demonstra que o gerente da Ré DD, Lda. (por ele ou como representante dos restantes sócios) agiu sempre na defesa dos seus interesses e não com o objetivo de prosseguir a atividade da Ré;

DD) Só assim se compreende que tenha cedido por valor elevado - 300.000,00 euros - as quotas da Ré DD, Lda. que já não exercia, à data da referida cedência, qualquer atividade, consignando-se no respetivo contrato que "não existem responsabilidades de qualquer natureza ou garantias a favor de terceiros... nem dívidas à banca" e que "a sociedade não é titular de quaisquer bens imóveis";

EE) Aquele gerente da Ré DD, Lda. atuou, a coberto da personalidade jurídica da Ré, na prossecução dos seus próprios interesses e para obtenção de lucros que não se repercutiram no património desta Ré;

FF) Esta atuação deste gerente tem de ser considerada em abuso de direito por desconsideração da personalidade jurídica;

GG) O negócio de compra e venda do prédio FF tem de ser declarado nulo por simulação;

HH) Mesmo que se entenda, como se fez no acórdão ora sob recurso, que não se verificam os requisitos da simulação, o negócio será sempre nulo porque se verifica o vício de fraude à lei;

II) Finalmente, ainda que se entenda que este vício (fraude à lei) também não se verifica, sempre terá de ser declarada a nulidade do negócio por abuso de direito devido à desconsideração da personalidade jurídica.

6. Nas contra-alegações, pugnou-se pela confirmação do acórdão recorrido.

7. Como se sabe, o âmbito objetivo do recurso é definido pelas conclusões apresentadas (arts. 608.º, n.º2, 635.º, nº4 e 639º, do CPC), pelo que só abrange as questões aí contidas.[1]

Por sua vez – como vem sendo repetidamente afirmado – os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação do tribunal que proferiu a decisão impugnada, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal a quo.

Sendo assim, as únicas questões de que cumpre conhecer consistem em saber se:

a) – O Tribunal da Relação devia ter reapreciado a decisão sobre a matéria de facto impugnada no recurso de apelação;

b) – É nulo o contrato de compra e venda celebrado entre os RR., Fundo de Investimento Imobiliário BB e “DD, Ldª”.


***

II – Fundamentação de facto

8. As instâncias deram como provado que:

1.         A 17 de Abril de 2015, foi registada a constituição da sociedade ora A.

2.         Por documento escrito datado de 17 de Abril de 2015, A. e R. Fundo celebraram acordo pelo qual este prometeu vender àquela e aquela prometeu comprar a este, pelo preço de € 9.150.000,00:

a)         o prédio sito na Travessa ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...;

b)         o prédio sito na Travessa ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...; e

c)         o prédio sito na Rua ..., tornejando para a Travessa ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...

3.        Do documento referido no ponto 2 constam, entre outras cláusulas, a seguinte: “Na eventualidade dos direitos legais de preferência referidos… serem validamente exercidos relativamente a qualquer dos Ativo Um, Ativo Dois e/ ou Ativo Três, pelos respetivos preferentes legais, o presente Contrato ter-se-á por automaticamente resolvido”.

4.         Por carta datada de 22 de Abril de 2015, o R. Fundo notificou a R. Roldão para o exercício do direito de preferência.

5.        Por carta enviada a 6 de maio de 2015, a R. DD exerceu o direito de preferência, sendo que o R. BB havia fixado para o efeito o prazo de 8 dias a contar da data da receção da carta referida no ponto 4, receção essa que se verificou a 28 de Abril de 2015.

6.        Por documento escrito datado de 12 de Junho de 2015, o R. BB e a R. DD celebraram acordo pelo qual aquele prometeu vender a esta e esta prometeu comprar àquele, pelo preço de € 9.150.000,00, os prédios identificados no ponto 2.

7.         Por documento escrito datado de 23 de junho de 2015, a A. e o R. Fundo declararam que, “em virtude da sociedade DD, Lda, …, ter exercido o Direito de Preferência que lhe assistia… se considera automaticamente resolvido” o acordo referido no ponto 2.

8.         No dia 23 de Dezembro de 2015, por escritura pública, o R. Fundo declarou vender à R. DD, e esta declarou aceitar, pelo preço de € 9.150.000,00, os prédios identificados no ponto 2.

9.         A 1 de Dezembro de 2015, foi registada a redução do capital da R. DD para € 4.987,98 por amortização da quota de JJ no valor de € 4.987,98.

10.       A 15 de Dezembro de 2015, foi registada a renúncia à gerência da R. DD de JJ e LL.

11.      A 15 de Dezembro de 2015, foram registadas alterações ao contrato de sociedade da R. DD, passando o objeto a ser “investimentos em ativos imobiliários e mobiliários, compra venda e administração de quaisquer prédios rústicos, urbanos e ou mistos, construção de imóveis, celebração e adjudicação de contratos de empreitada em obras próprias, exploração direta ou indireta de unidades hoteleiras, estabelecimentos de restauração e organização de eventos”.

12.      A 15 de Dezembro de 2015, foi registada a transmissão da quota de € 1.247,00 de JJ para a Sociedade Hoteleira de Turismo - GG, S.A. e a transmissão da quota de € 3.740,98 de JJ para a II, Lda.

13.       A 29 de dezembro de 2015, foi registada a renúncia à gerência da R. DD de MM.

14.       A 29 de dezembro de 2015, foi registada a designação, como gerentes da R. DD, de NN e OO.

15.       PP e QQ são os gerentes da II e integram o conselho de administração da GG.

16.       O objetivo da A. em investir na aquisição dos prédios era a instalação de um estabelecimento comercial do ramo hoteleiro.

17.       A 16 de Junho de 2015, a A. teve acesso à certidão permanente da R. DD.

18.       A A. não fez chegar ao conhecimento do R. BB qualquer dúvida ou objeção sobre o exercício do direito de preferência até à data da celebração da escritura de compra e venda.

9. Por sua vez, a factualidade não provada é a seguinte:

1.         O grupo GG, tomando conhecimento do acordo celebrado entre a A. e o R. BB, considerou ser desfavorável o aparecimento dum concorrente nas proximidades das suas unidades hoteleiras.

2.         Para evitar que a A. fosse a compradora, o grupo GG contactou a R. DD no sentido de conseguir que esta, no exclusivo interesse daquele grupo, exercesse o direito de preferência, disponibilizando-lhe todos os meios para o efeito.

3.        A R. DD, em conluio com o grupo GG, limitou-se a se interpor para viabilizar a compra dos prédios por este.

4.         O R. BB foi conivente ao conceder o tempo necessário para as negociações entre a R. DD e o grupo GG, dando cobertura a um esquema montado para prejudicar a A.

5.         A A. sofreu danos pelo atraso na concretização do projeto referido no ponto 16 da matéria de facto provada.

6.         A A. não solicitou ao R. Fundo elementos documentais sobre o exercício do direito de preferência.


***

III – Fundamentação de direito

10. Da (não) reapreciação da decisão de facto impugnada pela ora recorrente no recurso de apelação.

Nesta revista, a recorrente começa por se insurgir contra o acórdão recorrido, na parte em que se considerou que, independentemente do que viesse a ser decidido no plano dos factos, a decisão sobre o mérito da causa, segundo as várias soluções plausíveis de direito, não seria influenciada pelo julgamento da matéria de facto impugnada.

Pediu, assim, que este Supremo Tribunal determine a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa a fim de ser proferida decisão sobre a matéria que pretendia ver aditada aos factos provados.

Ora bem.

De harmonia com o princípio da limitação a que estão submetidos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com indiscutível relevância para a decisão da causa, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente (cf. art. 130º, do CPC).

Por conseguinte, se os factos cujo julgamento é impugnado não forem susceptíveis de influenciar decisivamente a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte, é inútil e contrário aos princípios da economia e da celeridade a reponderação da decisão proferida pela 1ª instância, no plano dos factos.

O direito à impugnação da decisão de facto previsto no art. 640º, do CPC assume, pois, claramente, um caráter instrumental face à decisão sobre o fundo da causa.

Tem sido esta, aliás, a orientação da jurisprudência deste Supremo Tribunal, podendo, a título de exemplo, citar-se os acórdãos do STJ de 17.5.2017, proc. nº 4111/13.4TBBRG.S1, disponível em www.dgsi.pt e de 11.2.2015, proc. nº 422/2001.L1.S1.[2]   

Ora, no caso concreto, mesmo que viesse a ser alterada a factualidade dada como provada na sentença, em conformidade com o pretendido pela recorrente no recurso de apelação, tal modificação revelar-se-ia juridicamente inócua, do ponto de vista da decisão a proferir sobre o mérito da causa, como acertadamente se decidiu no acórdão recorrido.

Efetivamente, o que a recorrente pretendia aditar ao elenco dos factos provados não passa de meras conjeturas, alegações vagas, presumíveis ou incertas, e/ou juízos de valor, sendo certo que, na apelação, apenas se discutia a questão da nulidade do negócio (designadamente por simulação), pois a ali apelante conformou-se com a sentença, no tocante à improcedência do pedido de indemnização.

Acresce que:

Nas alegações da revista, a recorrente afirma que a mencionada matéria se destinava a demonstrar a existência de conluio entre a 2ª ré e o Grupo GG (cf. fls. 662).

Está, porém, a esquecer que a factualidade que poderia demonstrar a existência desse alegado conluio foi dada como não provada, decisão que, nessa parte, não havia sido impugnada na apelação.

Em suma, a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de facto visa obter um efeito juridicamente útil que se projete na decisão final, sem o que não tem sentido a reapreciação do julgamento de facto.

Tal pressuposto, como já se disse, não se verifica no caso em apreço, pelo que não pode deixar de improceder, nesta parte, a alegação da recorrente.

11. Da nulidade do negócio

Com a presente ação, a autora visa a declaração de nulidade do contrato de compra e venda celebrado pelos réus (cf. ponto 8, dos factos provados), por alegada simulação e/ou fraude à lei ou, ainda, por desconsideração da personalidade coletiva.

O acórdão recorrido, porém, julgando inverificados os pressupostos dos institutos invocados, afastou a nulidade do contrato.

Insurgindo-se com o assim decidido, a recorrente veio interpor recurso para este Supremo Tribunal, continuando a sustentar, na revista, que se trata de um negócio afetado de nulidade.

Vejamos, pois.

11.1. Da simulação

A simulação é uma divergência bilateral entre a vontade e a declaração, fruto de um pacto entre as partes com a intenção de enganar terceiros.

É o que resulta do art. 240º, nº1, do CC, de harmonia com o qual é possível identificar três elementos estruturais:

- Acordo entre declarante e declaratário, com a finalidade de criar uma falsa aparência de negócio (pactum simulationis);

- Divergência entre a vontade declarada e a vontade real, isto é, entre a aparência criada (negócio exteriorizado) e a realidade negocial (negócio realizado);

- Intuito de enganar terceiros (animus decipiendi).[3]

Na simulação, assume importância crucial o pacto simulatório, através do qual as partes acordam em criar uma aparência negocial e em regular a forma de relacionamento entre o negócio aparente, assim exteriorizado e o negócio real.

A esta aparência negocial pode corresponder um negócio verdadeiro que as partes mantêm oculto (simulação relativa) ou pode também não corresponder qualquer negócio (simulação absoluta).[4]

Finalmente, é necessário que a simulação tenha sido feita com o intuito de enganar terceiros, o que não envolve necessariamente a intenção de prejudicar (animus nocendi).

Pode ainda distinguir-se a simulação subjetiva e a objetiva, consoante incida sobre os sujeitos intervenientes ou sobre o negócio ou alguma das suas cláusulas.

Na simulação subjetiva surge como contraparte alguém com a finalidade de ocultar a identidade do verdadeiro interveniente no contrato, vulgarmente denominado «testa de ferro».

Importa, no entanto, ter em atenção que a simulação subjetiva por interposição fictícia de pessoa não se confunde com o mandato sem representação. Tanto numa como noutra dá-se a ocultação de pessoa a quem o ato se destina. Porém, “na simulação, principalmente na simulação relativa, há uma vontade negocial comum às partes de produzir dois planos de eficácia jurídica do negócio: entre as partes e perante terceiros. No mandato sem representação, diversamente, o mandante incumbe o mandatário de praticar atos, ou uma atividade jurídica, por conta e no interesse dele mandante, mas sem ser em sua representação e atuando ostensivamente em nome próprio. Não há no mandato sem representação um intuito de enganar terceiros embora haja o de não lhes revelar a posição do andante e a sua relação com o mandatário.”[5]

Feito este breve enquadramento, retornemos ao caso concreto.

Como se infere das alegações e das conclusões da revista, a discordância da recorrente quanto ao decidido pelo Tribunal da Relação assenta em pressupostos de facto que não ficaram demonstrados e cuja fixação é da exclusiva competência das instâncias. Concretamente, não ficou provado que o vendedor (o 1º réu) e a compradora (a 2ª ré) tivessem efetuado, entre si, qualquer pactum simulationis, ou com o Grupo empresarial GG, com a intenção de enganar a autora. Tão pouco ficou provado que a 2ª ré tenha figurado nesse negócio como «testa de ferro» de terceiros, que, aliás, nem sequer são parte no processo.

Ora, os requisitos da simulação devem ser invocados e provados por quem pretenda prevalecer-se da simulação ou de aspetos do seu regime.[6]

Por conseguinte, não tendo a autora logrado cumprir o ónus de provar, segundo as regras gerais (cf. art. 342º, nº1, do CC), quer o acordo simulatório quer o negócio dissimulado[7], não é possível afirmar que ocorreu simulação relativa.

Improcede, pois, este fundamento da revista.


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11.2. Da fraude à lei
Prevenindo a hipótese de não se verificarem os pressupostos da simulação, a recorrente veio invocar a nulidade do negócio por fraude à lei.

Em abono da sua tese, sustenta que “ao exercer o direito de preferência, a Ré DD, Lda. teve apenas em vista proporcionar a propriedade do espaço a um terceiro. Não havia qualquer intenção de adquirir os imóveis, nem de desenvolver ou fazer crescer a, até aí, sua atividade mas tão só obter lucro injustificado ao proporcionar a possibilidade de negócio a um terceiro. O exercício do direito de preferência concretizou-se fora da finalidade para que o legislador o criou, logo, em violação do interesse que lhe está subjacente.”.

Ora bem.
Sem tratamento autónomo no nosso Código Civil[8], a doutrina tem reconduzido o tratamento da fraude à lei a um problema de interpretação do negócio e da lei, não simplesmente literal, mas de acordo com o seu fim e o seu sentido. Nas palavras de Manuel de Andrade, tudo se reconduz à exata interpretação da norma proibitiva, segundo a sua finalidade e alcance substancial.[9]

Por sua vez, afirma Menezes Cordeiro[10] que a denominada fraude à lei se reconduz, no essencial, a uma forma de ilicitude que envolve, por si, a nulidade do negócio. A sua particularidade – diz este autor - residirá, quando muito, no facto de as partes terem tentado, através de artifícios formais mais ou menos assumidos, conferir ao negócio uma feição inóqua.[11]

Também a propósito deste instituto, ensina Pedro Pais de Vasconcelos[12] que “a fraude à lei torna-se possível sempre que o Legislador, ao redigir o texto legal, intenta impedir um resultado que considera indesejável, ou promover um resultado que considera desejável, através da proibição ou da imposição das condutas tidas como causais desses resultados desejáveis ou indesejáveis. Trata-se de casos em que a prossecução de uma determinada finalidade legal é feita, não diretamente, mas indiretamente através de uma atuação legal sobre as causas ou os comportamentos que se pensa serem causais daqueles objetivos legais.

(…)

Na fraude à lei, o conteúdo negocial não agride diretamente a lei defraudada, mas antes colide com a intencionalidade normativa que lhe está subjacente e que justifica a sua imperatividade. Esta intencionalidade normativa subjacente à imperatividade da lei é a Ordem Pública, como portadora dos critérios ordenantes do sistema. O juízo de fraude à lei coloca-se, assim, no domínio da Ordem Pública. O negócio jurídico fraudulento é ilícito.”

Dito isto, e ante a matéria de facto provada, é patente não se descortinar a existência de intuito fraudulento dos agentes em presença que pudesse conduzir à nulidade do negócio, designadamente por força dos arts. 280º e 281º, ambos do CC., desde logo por não ter ficado demonstrada uma interposição fictícia de pessoas, em função da qual os bens teriam sido efetivamente adquiridos não pelo titular do direito legal de preferência, mas por um terceiro.

Desta forma, inverificados os pressupostos fundamentais da figura da fraude à lei, improcede também nesta parte a alegação da recorrente.

11.3. Da Desconsideração da Personalidade Coletiva

A recorrente veio, ainda, defender que, “no caso dos autos, não pode deixar de se considerar que Vasco Caldeira, utilizando a sua qualidade de gerente da Ré DD, Lda., efetuou um negócio apenas em seu benefício (ou seu benefício e de seus pais - os outros sócios da Ré), aproveitando a confusão de esferas jurídicas entre a sociedade e ele próprio ou seus sócios. A coberto da personalidade jurídica da pessoa coletiva - a Ré DD, Lda. -, o seu (ou os seus sócios) realizou um negócio que defendia apenas os seus interesses e nunca os interesses da sociedade. (…) O que conduz necessariamente à conclusão que o sócio (ou os sócios) da Ré agiram em abuso de direito através da desconsideração da personalidade coletiva da Ré DD, Lda. E, nesta medida, o negócio de compra e venda do prédio FF celebrado entre a Ré DD, Lda. e o Réu BB tem de ser considerado e, consequentemente, declarado nulo.”

Não lhe assiste razão, mais uma vez.

Com efeito:

Como ensina Menezes Cordeiro[13], o levantamento da personalidade coletiva (que alguns autores também designam por «desconsideração da personalidade jurídica») é um instituto que foi arquitetado como forma de evitar que, sob a capa da personalidade jurídica coletiva, se prossigam interesses individuais em detrimento de terceiros, defraudando o escopo institucional e, em última análise, a respectiva intencionalidade normativa.

Todavia, para não pôr em causa a segurança jurídica decorrente do reconhecimento legal da pessoa coletiva, nem quebrar a relação de confiança entre os diversos sujeitos de direito, o instituto em causa (a «desconsideração da personalidade jurídica») obedece a determinados pressupostos que, além do mais, enfatizam a sua natureza subsidiária.

Segundo aquele Il. Professor, o instituto pode ser chamado a resolver situações concretas em três tipos de situações mais frequentes: a subcapitalização da sociedade, a confusão das esferas jurídicas e o abuso de direito.

Verifica-se uma subcapitalização relevante, para efeitos de levantamento de personalidade, sempre que uma sociedade tenha sido constituída com capital insuficiente. A confusão de esferas jurídicas verifica-se quando, por inobservância de certas regras societárias ou, mesmo, por decorrências puramente objetivas, não fique clara, na prática, a separação entre o património da sociedade e a do sócio ou sócios. A violação das regras impostas pela boa-fé ocorre sempre que a personalidade coletiva seja usada, de modo ilícito ou abusivo, para prejudicar terceiros.

Em qualquer caso, porém, não basta uma ocorrência de prejuízo, causada a terceiros através da pessoa coletiva: para haver levantamento será necessário que se assista a uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios.

Como a respeito desta figura se considerou no ac. deste Supremo de 30.11.2010, proferido no proc. nº 1148/03.5TVLSB.S1, “a desconsideração ou levantamento da personalidade coletiva das sociedades comerciais – disregard of legal entity – tem na sua base o abuso do direito da personalidade coletiva, ou seja, deve ser usado o instituto em causa quando, a coberto do manto da personalidade colectiva, a sociedade ou sócios excederem, ou utilizarem, a autonomia societária em relação a terceiros, para exercerem direitos de forma que contraria os fins para que a personalidade colectiva foi atribuída, haja em vista o princípio da especialidade.

Também no ac. do STJ de 7.11.2017, proferido no proc. n.º 919/15.4T8PNF.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, se enfatizou que o princípio da atribuição da personalidade jurídica às sociedades e da separação de patrimónios, ficção jurídica que é, não pode ser encarado, em si, como um valor absoluto e não pode ter a natureza de um manto ou véu de protecção de práticas ilícitas ou abusivas – contrárias à ordem jurídica –, censuráveis e com prejuízo de terceiros.

E que: quando exista uma utilização da personalidade colectiva que seja, ou passe a ser, instrumento de abusiva obtenção de interesses estranhos ao fim social desta, contrária a normas ou princípios gerais, como os da boa fé e do abuso de direito, relacionados com a instrumentalização da referida personalidade jurídica, deve actuar a desconsideração desta, depois de se ponderarem os verdadeiros interesses em causa, para poder responsabilizar os que estão por detrás da autonomia (ficcionada) da sociedade e a controlam.

Ora, no caso em apreço, é indiscutível que a tese da recorrente não encontra na matéria de fato provada o indispensável suporte factual, não se vislumbrando como imputar ao (s) sócio (s) da 2ª ré uma atuação censurável e violadora das regras da boa fé, designadamente por, a coberto da personalidade jurídica da sociedade (a ré “DD, Lda.”), ter (em) realizado um negócio que defendia apenas o (s) seu (s) interesse (s), e nunca os daquela sociedade.

Consequentemente, indemonstrados os pressupostos do instituto em causa, improcede naturalmente a pretensão da recorrente.


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IV – Decisão

12. Em face do exposto, acorda-se em negar a revista.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 14.3.2018

Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado (Relatora)

Hélder Almeida

António Abreu

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[1] Para além daquelas que devam ser conhecidas oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), o STJ conhece de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações de recurso, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra ou outras (arts. 608.º, n.º 2, 635.º e 639.º, n.º 1, e 679º, do mesmo diploma), sendo de ter presente que, para este efeito, as «questões» a conhecer não se confundem com os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, aos quais o tribunal o tribunal não se encontra sujeito (art. 5.º, n.º 3, também do CPC).

[2] Inédito.
[3] Cf., a propósito, o ac. do STJ de 14.6.2018, proferido no proc. 206/08.4TBMFR.L1.S1, em www.dgsi.pt
[4] Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 2015, pág. 599, defende ser mais correto dualizar entre aparência e realidade do que entre negócio simulado e negócio dissimulado, uma vez que sob a aparência negocial não existem na verdade dois negócios: na simulação relativa há um negócio, o negocio dissimulado; na simulação relativa não há negócio, apenas uma aparência. O que as partes querem - diz este autor – é obter dois planos de eficácia, uma entre as próprias partes e outra perante terceiros. 
[5] V. Pedro Pais de Vasconcelos, ob.cit. pág. 601.
[6] Cf. ac. do STJ de 20.6.2017, proc. nº 226/13.7TBFAL.E1.S1, ainda não publicado.
[7] Cf. Carvalho Fernandes, Simulação e Tutela de Terceiros, Lisboa, 1988, Separata dos Estudos em Memória do Prof. Doutor Paulo Cunha, pág. 24.
[8] Dado que apenas se encontra especialmente prevista no art. 21º, do CC, no âmbito do conflito de leis.
[9] Cf. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 3ª edição, pág. 388.
[10] Sobre o instituto, as suas fontes e origens, pode ver-se António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, parte Geral, Tomo I, Almedina, 2ª edição, 2000, págs.490 e ss.
[11] Cf. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, parte Geral, Tomo I, Almedina, 2ª edição, 2000, págs.490 e ss.
[12] Ob. cit., pág. 519.
[13] Cf. Tratado de Direito Civil Português, I (Parte Geral), Tomo III, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 627-649.