Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2153/06.5TBCBR-C.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: TRIBUNAL ECLESIÁSTICO
TRIBUNAIS PORTUGUESES
COMPETÊNCIA MATERIAL
IGREJA CATÓLICA
DIREITO CANÓNICO
VALIDADE
REPRESENTAÇÃO
CONFISSÃO JUDICIAL
CONCORDATA
ESTADO
LIBERDADE DE RELIGIÃO
Data do Acordão: 03/01/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - TRIBUNAIS / COMPETÊNCIA INTERNACIONAL / COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES.
DIREITO CANÓNICO - INSTITUIÇÕES INTEGRADAS NA ORDEM RELIGIOSA E ECLESIAL / ASSOCIAÇÕES DE FIÉIS.
Doutrina:
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República” Anotada, vol. I, pp. 612/613.
- Rui M. Moura Ramos, “A Concordata de 2004 e o Direito Internacional Privado Português”, R.L.J., Ano 135.º, p. 282 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 63.º,
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - 2.º, 8.º, 20.º, 41.º, N.º4, 46.º, N.ºS 1 E 2.

*

CÓDIGO DE DIREITO CANÓNICO (CDC): - CÂNONES 305.º, 318, 323.º, 1267.
DECRETOS BISPAIS DE 15.7.2008 E 29.7.2008, PRORROGADOS PELOS DE 13.7.2009 E 15.7.2010.
NORMAS GERAIS DAS ASSOCIAÇÕES DE FIÉIS, APROVADAS PELA CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA EM 4.4.08: - ARTIGOS 7.º E 23.º.
Referências Internacionais:
CONCORDATA DE 2004, DE 18.5.2004, ESTABELECIDA ENTRE A SANTA SÉ E A REPÚBLICA PORTUGUESA: -ARTIGOS 1.º, N.º2, 2.º, 4.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

-DE 29.9.2011, PROC. N.º 27/09.7TBHRT.L1-8, IN WWW.DGSI.PT.

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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 17.12.2009, PROC. N.º 743/08.0TBABT-A.E1.S1, IN WWW.DGSI.PT
-DE 22.2.2011, PROC. N.º 332/09.2TBPDL.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT
-DE 10.12.2013, PROC. N.º 27/09.7TBHRT.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT
Sumário :
I. Reconhecendo o Estado Português personalidade jurídica à Igreja Católica e autonomia no que respeita às suas actividades de culto, magistério e ministério, bem como a sua jurisdição em matéria eclesiástica, remanesce para a competência material dos Tribunais do Estado a apreciação de litígios que não se enquadrem em tais actividades, a par daqueles que constituam sua competência exclusiva.

II. A questão da validade da outorga de poderes de representação, dimanada do Acto do Bispo DD nomeando comissário para agir na vida interna da “BB”, num quadro circunstancial de gravidade e por motivos ponderosos relacionados com a sua actuação negocial “terrena”, não pode ser dirimida à luz das regras do direito civil português, mas no quadro legal previsto no Código de Direito Canónico.

III. O respeito pela Concordata, a não confessionalidade do Estado Português, a liberdade de associação religiosa e de culto, só são garantidos se a ordem jurídica interna portuguesa não interferir na organização, funcionamento orgânico e representativo das instituições integradas na ordem religiosa e eclesial regida pelo direito canónico.

IV. Estando a Autora “BB” sujeita à autoridade e direcção eclesiásticas, as questões relacionadas com a sua organização interna e representatividade, que aqui estão em causa no que respeita à legitimidade para confessar validamente em acção judicial intentada em Tribunal português, são da competência dos Tribunais da autoridade eclesiástica.

Decisão Texto Integral:

Proc.2153/06.5TBCBR-C.C1.S1

R-523[1]

Revista


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


            A AA e a BB, intentaram, em 23.3.2011, no Tribunal Judicial de Coimbra – Vara de Competência Mista – 2ª Secção – agora Comarca de Coimbra – Inst. Central – Secção Cível – J1 a presente acção declarativa de condenação, ao tempo com processo ordinário, contra:

             O CC;

            A Diocese de DD, representada pelo respectivo Bispo

            EE; e,

            FF.

            Formulando o seguinte pedido:

           “Ser declarada nula e de nenhum efeito a confissão no Processo nº2153/06.5 TBCBR, revogando o despacho de homologação e determinando-se que o processo siga os seus termos, anulando-se todos os actos subsequentes que pressupõem ou têm como fundamento a referida “confissão” e condenando-se os RR., solidariamente, nas custas dos autos a que deram causa e nas despesas suportadas pelas AA., a liquidar em execução de sentença.”

            Para tal alegam, em resumo, que na sequência do afastamento do signatário da petição inicial, como mandatário da Autora “BB”, com base no entendimento de que esta é uma associação canónica pública de fiéis, foi homologado o termo de desistência da acção e confissão da reconvenção, a que a Autora não pode reagir.

            Não obstante, a Autora “BB” é uma associação privada de fiéis, representada pela sua Superiora, pelo que são nulos, por absoluta falta de poderes de representação, os actos praticados pelo Réu FF em representação da “BB”, nomeadamente os tidos em vista com os presentes autos.

            Consequentemente, não podia o 3.º Réu, na qualidade de Bispo da Diocese de DD, emitir os dois decretos, que emitiu, em 15 de Julho de 2008 e 29 de Julho de 2008, designando o ora 4.º Réu, como comissário-adjunto, para representar a BB, invocando o disposto no cânone 318.º, do Código de Direito Canónico (adiante referido como CDC), por este ser apenas aplicável a associações públicas de fiéis e a bens eclesiásticos, o que, defendem, não ser o caso.

            Sendo, como é, a 1.ª Autora uma associação privada, o acto do Senhor Bispo de DD é nulo, por fundamentado em norma que não é aplicável e porque violador do disposto no artigo 11.º da Concordata celebrada entre o Estado Português e a Santa Sé, que estabelece que as associações privadas de fiéis só têm as limitações à sua autonomia constantes do Código de Direito Canónico (CDC).

           Do que decorre, reiteram, que o Sr. Bispo de DD, não tem poderes para indicar o 4.º Réu como representante da BB, o que se traduz na absoluta falta de vontade desta, que determina a nulidade ou anulabilidade da confissão/transacção que foi levada a cabo nos autos principais.

            Contestando, os Réus, alegaram, além do mais, a incompetência material do Tribunal recorrido para julgar a presente acção, o que acarreta a sua absolvição da instância, dado que o que verdadeiramente está em causa é a apreciação da validade dos Decretos Bispais acima já referidos, o que implica averiguar da natureza jurídica da autora “BB”:

           - se se trata de uma Associação Pública ou Privada de Fiéis, sendo certo que só no 1.º caso, estaria sujeita à autoridade do Ordinário do Lugar (no caso o Senhor Bispo da Diocese de DD) e ao disposto nos cânones 318 e segs. do CDC, estando-lhe vedada no caso de se tratar de Associação Privada de Fiéis e, neste caso, seria ilegal a decisão do Sr. Bispo de DD, consubstanciada nos acima referidos Decretos Bispais.

           Acrescentam, nesta sequência, que estando em causa um acto relativo à organização de uma pessoa jurídica canónica praticado com fundamento no Direito Canónico, a apreciação da sua validade cabe em exclusivo ao ordenamento jurídico canónico, estando vedado o conhecimento de tal matéria aos tribunais comuns, por força do disposto nos artigos 2.º 10.º, n.º1 e 11.º, n.º1, da Concordata acima já referida e artigos 41.º, n.º4 e 8.º, n.º2, da CRP, de onde decorre que o Estado Português reconhece à Igreja Católica o direito de aplicar o direito canónico, quanto à organização das entidades com personalidade jurídica canónica, através de órgãos e foro próprios.

           Salientam, ainda, que a própria classificação da autora “BB”, enquanto Associação Pública ou Privada de Fiéis, depende da aplicação das regras contidas no CDC e, em qualquer caso, independentemente de tal qualificação (da BB) se tem de aplicar o ordenamento canónico, de que retiram a conclusão da validade dos Decretos Bispais a que acima já se aludiu, uma vez que só a Autoridade Eclesiástica, no caso o Ordinário do lugar – Bispo de DD, tem competência para dizer quem representa uma determinada Associação de Fiéis, com sede na referida diocese, em face do que deve ser decretada a invocada excepção de incompetência material dos Tribunais Comuns Portugueses para a decisão da presente acção.

           Respondendo, as Autoras, reiteram que a “BB” se tem de qualificar como Associação Privada de Fiéis, pelo que, nos termos do artigo 11.º, n.º2 da Concordata, só relevam as limitações canónicas à capacidade das pessoas jurídicas canónicas quando estas constem no CDC e, in casu, trata-se de “questões de interesse temporal – disputa sobre a propriedade de dois prédios”, que estiveram na génese de todos processos que se encontram em curso na justiça terrena, pelo que são competentes para tal os tribunais comuns do Estado Português, como já decidido em alguns de tais processos, por se tratar de uma “associação privada e interesses puramente patrimoniais”, por inexistir qualquer limitação de direito canónico que limite a autonomia da autora BB, tal como decorre do cânone 305, só sendo de aplicar o previsto no cânone 318.º, no caso de se tratar de Associação Pública de Fiéis, o que aqui não acontece e assim sendo, de acordo com o cânone 1257, os bens temporais da pessoa jurídica privada apenas se regem pelos seus estatutos próprios.

           

           Do que decorre serem os tribunais portugueses os competentes para dirimir a disputa entre as partes, nos termos do disposto no artigo 65.º-A, Código de Processo Civil, em face do que pugnam pela improcedência da invocada excepção.


***

           Teve lugar a audiência prévia, na qual, conhecendo da excepção de incompetência do tribunal, em termos internacionais e em razão da matéria, se julgou a mesma procedente e se absolveram os Réus da instância, com o fundamento, em resumo, em a BB constituir uma Associação Pública de Fiéis e, por isso, as regras convocáveis para dirimir a questão sub judice são as constantes do CDC, designadamente as que determinam a forma de representação da “BB” e conexa validade dos Decretos Bispais que nomearam um seu representante.


***

           Inconformada, a Autora “AA”, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, por Acórdão de 23.6.2015 – fls. 732 a 738 –, negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.


***

           

           Inconformadas, as AA. recorreram de revista excepcional para este Supremo Tribunal de Justiça, que não admitindo tal recurso, remeteu os autos à distribuição como revista normal, recurso que foi admitido – art. 629º, nº2, a) do Código de Processo Civil.

            Alegando formulou as seguintes conclusões:

           A) O critério distintivo entre associações privadas e públicas de fiéis assenta apenas na iniciativa da constituição, sendo privadas as criadas por iniciativa dos fiéis (can. 299) e públicas as criadas pela autoridade eclesiástica (can. 301), estas para a prossecução dum dos fins constantes da mesma disposição;

           

           B) Face aos termos da aprovação dos Estatutos da BB “Tendo-nos sido pedida…” e à ausência de qualquer acto de atribuição de missão em nome e representação da Igreja, a BB é, inequivocamente, uma associação privada de fiéis;

           C) De acordo com o art. 11° da Concordata de 2004, aprovada para ratificação pela RAR n°74/2004, de 16 de Novembro, relativamente às pessoas jurídicas canónicas, é competente a autoridade eclesiástica, quando esteja em causa a violação do direito canónico, e os tribunais civis, quando esteja em causa a violação do direito interno português;

           D) No caso dos autos estão em causa actos relativos a bens temporais duma associação de fiéis constituída canonicamente, expressamente excluídos da aplicação do Código de Direito Canónico pelo parágrafo 2° do Cânone 1257°;

           E) Aliás, os “decretos” reconhecem a autoridade da Superiora para os aspectos litigioso e apostólicos da BB e o cuidado da vida dos seus membros;

           F) Pelo que, tratando-se de averiguar, a título incidental, qual a natureza – pública ou privada – da BB no sentido de se aferir a aplicabilidade do referido preceito, são os Tribunais Civis competentes por força do art. 91°, n°1, do Código de Processo Civil;

           G) Competência que, reportando-se os actos impugnados (essencialmente) a bens imóveis e à constituição de pessoa colectiva com sede em Portugal (a AA) é exclusiva dos tribunais portugueses, nos termos das als. a) e b) do art. 63° do Código de Processo Civil;

           H) Uma interpretação que vede aos Tribunais do Estado a averiguação da natureza jurídica da BB e a regularidade da sua representação para a prática de actos relativos a bens imóveis e à constituição de pessoa colectiva de direito português e com sede em Portugal viola frontalmente.

           Gl) Os princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático, consignado no art. 2° da Constituição,

           G2) concretizado na violação do princípio da liberdade de associação, nas vertentes de liberdade de auto-govemo, liberdade administração e disposição dos seus bens pelas associações privadas, consignado no art. 46°, n° l e 2 da Constituição e,

            G3) a garantia da tutela jurisdicional efectiva, consagrada no art. 20° da Constituição, consubstanciando uma denegação do acesso a um tribunal independente.

           G4) porquanto a autoridade eclesiástica é parte, não podendo ser independente, nos autos impugnados.

            I) Pelo que, violando o douto Acórdão recorrido as disposições processuais e constitucionais acima referenciadas, deverá ser revogado por douto Acórdão que reconheça serem competentes para o julgamento dos autos os Tribunais do Estado, fixando-se jurisprudência nesse sentido.

            Assim se fazendo a costumada Justiça.

           Os RR. contra-alegaram pugnando pela confirmação do Acórdão recorrido.


***


           Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que, para apreciação do recurso, releva o que consta do Relatório.

            Fundamentação:

           Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se, para apreciação do pedido de anulação da confissão feita no identificado processo, é competente, em razão da nacionalidade, o Tribunal português ou o Tribunal Eclesiástico, por a querela dever ser apreciada e dirimida com aplicação do Código de Direito Canónico, por força da Concordata celebrada entre Portugal e a Santa Sé.

           Para tal importa saber se a Autora “BB” é uma associação pública ou privada de fiéis e se a reapresentação para intervir em negócios jurídicos deve ser conferida pela entidade eclesiástica.

           Se o entendimento sufragado na decisão recorrida viola a Lei Fundamental.

           As Instâncias, concordantemente, enfocaram a questão da competência material, na perspectiva de saber, desde logo, se a Autora “BB” é uma associação pública ou privada de fiéis e se a sua representação válida para celebrar negócios jurídicos, deve aferir-se, pelas normas do CDC, o que passa ainda por saber se a validade dos Decretos Bispais, que conferiram os poderes representativos, deve ser apreciada pelo CDC, se pelo Código Civil.

           De referir que o processo espelha de modo exuberante, que a questão da incompetência absoluta em razão da matéria, vem sendo decidida em sentido diametralmente oposto pelos tribunais de Instância e também por este Supremo Tribunal de Justiça.

           A questão não versa sobre a reivindicação de qualquer bem imóvel, sendo certo que a confissão anulanda se reportava a um litígio acerca da propriedade de um bem imóvel sito em Portugal.

           Nos termos do art. 65º-C a) do vCódigo de Processo Civil, caso se tratasse de reivindicação de imóvel assistia competência exclusiva aos Tribunais portugueses, com salvaguarda do estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais.

           Do que se trata, enfatizamos, é saber se a Autora “BB” é uma associação privada ou pública de fiéis e se a sua representação orgânica, dimanada de Decretos Bispais de 15.7.2008 e de 29.7.2008, deve ser apreciada pelos tribunais comuns aplicando o direito civil, ou pelos tribunais eclesiásticos.

 

            Nas relações entre o Estado Português e a Igreja Católica vigora a Concordata de 2004, de 18.5.2004 estabelecida entre a Santa Sé e a República Portuguesa, podendo no seu breve preâmbulo, ler-se:

           “Afirmando que a Igreja Católica e o Estado são, cada um na própria ordem, autónomos e independentes;

           - considerando as profundas relações históricas entre a Igreja Católica e Portugal e tendo em vista as mútuas responsabilidades que os vinculam, no âmbito da liberdade religiosa, ao serviço em prol do bem comum e ao empenho na construção de uma sociedade que promova a dignidade da pessoa humana, a justiça e a paz;

           - reconhecendo que a Concordata de 7 de Maio de 1940, celebrada entre a República Portuguesa e a Santa Sé, e a sua aplicação contribuíram de maneira relevante para reforçar os seus laços históricos e para consolidar a actividade da Igreja Católica em Portugal em beneficio dos seus fiéis e da comunidade portuguesa em geral;

           - entendendo que se toma necessária uma actualização em virtude das profundas transformações ocorridas nos planos nacional e internacional: de modo particular, pelo que se refere ao ordenamento jurídico português, a nova Constituição democrática, aberta a normas do direito comunitário e do direito internacional contemporâneo, e, no âmbito da Igreja, a evolução das suas relações com a comunidade política”.

           No art. 1º, nº2, da Concordata, a República Portuguesa reconhece a personalidade jurídica da Igreja Católica.

            No artigo 2º consta:

           1. A República Portuguesa reconhece à Igreja Católica o direito de exercer a sua missão apostólica e garante o exercício público e livre das suas actividades, nomeadamente as de culto, magistério e ministério, bem como a jurisdição em matéria eclesiástica.

           2. A Santa Sé pode aprovar e publicar livremente qualquer norma, disposição ou documento relativo à actividade da Igreja e comunicar sem impedimento com os bispos, o clero e os fiéis, tal como estes o podem com a Santa Sé.

           3. Os bispos e as outras autoridades eclesiásticas gozam da mesma liberdade em relação ao clero e aos fiéis.

           4. É reconhecida à Igreja Católica, aos seus fiéis e às pessoas jurídicas que se constituam nos termos do direito canónico a liberdade religiosa, nomeadamente nos domínios da consciência, culto, reunião, associação, expressão pública, ensino e acção caritativa.

           

           Reconhecendo o Estado Português personalidade jurídica à Igreja Católica e autonomia no que respeita às actividades de culto, magistério e ministério, bem como a jurisdição em matéria eclesiástica, remanesce para a competência material dos Tribunais do Estado a apreciação de litígios que não se enquadrem em tais actividades, a par daqueles que constituam sua competência exclusiva.

            Entendemos que a 1ª Autora “BB” é um a associação pública de fiéis, pelas razões que não se afastam do sentenciado pelas Instâncias, e cremos, da Jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça.

            Vejamos:

            Rui M. Moura Ramos, in “A Concordata de 2004 e o Direito Internacional Privado Português”, RLJ, Ano 135.º, págs. 282 e segs, afirma:

           “O Estado Português reconhece também expressamente a personalidade jurídica das restantes pessoas jurídicas canónicas que hajam sido constituídas e participadas à autoridade competente pelo bispo da diocese onde tenham a sua sede ou pelo seu legítimo representante          (…)

            As pessoas jurídicas objecto de reconhecimento nos termos que acabamos de referir regem-se pelo direito canónico e pelo direito português, aplicados pelas respectivas autoridades, tendo a mesma capacidade civil que o direito português reconhece às pessoas colectivas de idêntica natureza (…)

           Se, nos termos do nosso direito internacional privado, a lei pessoal é a lei da sede das pessoas colectivas, serão pessoas colectivas de estatuto português e portanto sujeitas, na sua constituição, às regras da lei portuguesa, as entidades deste tipo que se encontrem sedeadas em Portugal.

           Ora, os referidos artigos 1.º, 8.º, 9.º e 10.º da Concordata reconhecem expressamente a personalidade jurídica a entidades sedeadas em Portugal em cuja constituição não têm que ser observados os preceitos da lei portuguesa. Assim acontece, desde logo, com a Igreja Católica (artigo 1.º, n.º 2)”.

           Nos termos do artigo 11.º, n.º1, da Concordata: “As pessoas jurídicas canónicas reconhecidas nos termos dos artigos 1, 8, 9 e 10 regem-se pelo direito canónico e pelo direito português, aplicados pelas respectivas autoridades, e têm a mesma capacidade civil que o direito português atribui às pessoas colectivas de idêntica natureza.”. 

           A Concordata vigora na ordem interna portuguesa e, como tratado internacional, tem primazia sobre o direito interno, nos termos dos arts. 8º e 41º, nº4, da Constituição da Republica.

           Como se ponderou no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 10.12.2013, Proc. 27/09.7TBHRT.L1.S1 – in www.dgsi.pt., versando sobre o litígio entre as mesmas partes:

           

           “Encontra-se assente que a BB é uma pessoa jurídica canónico-concordatária, erecta canonicamente por Decreto de 02.03.1959 do Bispo de Leiria, cuja comunicação de participação de erecção foi feita ao Governador Civil de Santarém e registada na respectiva Secretaria sob o n.°181, em 06/03/1959.

           A expressão “canonicamente erectos”, utilizada no texto concordatário é equivalente a “com personalidade jurídica” e também se entende que das normas concordatárias referidas decorre que o Estado Português parte do princípio de que as associações e fundações cuja existência lhe é participada pelo Bispo ou pelo seu representante já se constituíram e têm personalidade jurídica no âmbito civil (cfr. estudo de José António Silva Marques, “Associações e Organizações”, incluído na obra “Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa”, págs. 99-100) – Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 20.06.2006, Revista n.º84/06 (Relator Paulo Sá), com sumário disponível no site deste Supremo Tribunal.

           Com efeito, o Estado Português reconhece a personalidade jurídica das pessoas jurídicas canónicas que, pelo regime do seu conhecimento, devem ser consideradas pessoas jurídicas de estatuto estranho à ordem nacional, já que, diferentemente do que resulta do art. 33.º do Código Civil, a sua personalidade jurídica face à ordem jurídica portuguesa resulta, não dos preceitos gerais da nossa lei, mas da regular constituição à face de um outro ordenamento (o canónico) e da respectiva notificação ou registo ao Estado Português – Rui Manuel Moura Ramos, “A Concordata e o Direito Internacional Privado Português, RLJ n.º 3938, págs. 277 e segs”.

            Com o Código de Direito Canónico de 1983 foi criada a figura das Associações de Fiéis com natureza privada. Anteriormente, todas as Associações de Fiéis tinham natureza pública, regendo-se pelo direito canónico.

            A “BB” foi canonicamente erecta na vigência do anterior CDC e, não tendo sido alterada a sua natureza, como decorre dos seus Estatutos e também da sua actuação, conserva essa natureza, estando sujeita à autoridade, direcção e controle da autoridade eclesiástica.

           É uma pessoa colectiva canónica-concordatária, sob a autoridade do Bispo DD, que nos termos do CDC, em caso especiais pode intervir na vida interna da Associação, nos termos dos Cânones 305, 318 e 1267.

           Essa intervenção na vida interna da Associação radicou em “motivos graves e ponderosos” que, naturalmente, são apreciados pela autoridade eclesiástica competente, pelo que não se vislumbra como pode ser discutida à luz do direito português, a existência do quadro factual legitimador daquela entidade.

            No caso essa intervenção reguladora da vida interna da Autora “BB”, em alegada convulsão, fez-se ao abrigo dos Decretos Bispais de 15.7.2008 e 29.7.2008, prorrogados pelos de 13.7.2009 e 15.7.2010 com consta do processo.

           Como se refere no Acórdão da Relação de Lisboa, de 29.9.2011 – Proc. 27/09.7TBHRT.L1-8 – in www.dgsi.pt., que trata proficientemente controvérsia comum:

           “A BB foi erecta canonicamente por Decreto de 02/03/1959 emitido pelo Bispo de DD Dom GG, tendo sido posteriormente feita comunicação de participação de erecção ao Governador Civil de Santarém e registada na Secretaria do Governo Civil de Santarém sob o n° … em 06/03/1959.

           A sua natureza pública e os fins religiosos que prossegue são bem ilustrados desde o início pelo pedido de erecção e reconhecimento da BB, em que o Bispo titular de então da Diocese de …., enviou uma recomendação ao Bispo DD, em 31/08/1957, em que expressamente refere: “… que se trata de pessoas sérias e que desejam realmente entregar-se ao serviço de Deus e das almas …”. Tendo no tocante à erecção da BB, sido consultada a Santa Sé, e indicado principalmente: “o fundador, a causa, o fim, o título, cor, forma e matéria do hábito, bens materiais, ministérios e obras, se há outras semelhantes na diocese, etc.”.

           Se a Santa Sé disser “Nihil Obstat”, o Bispo faz o decreto de erecção e a congregação torna-se de “direito diocesano…”.

             […] As circunstâncias de a BB ter sido erecta canonicamente e de prosseguir fins religiosos, proclamados nos seus Estatutos e vividos pelas irmãs que faziam e fazem parte dessa comunidade religiosa, em obediência aos princípios evangélicos de castidade, pobreza e obediência à Igreja, são elementos caracterizadores da BB como Associação Pública de Fiéis.

           “As associações públicas são erectas pela autoridade eclesiástica, para conseguir alguns fins reservados “natura sua” à hierarquia e outros fins que não tinham sido conseguidos pela iniciativa privada; são constituídas “ipso iure”, pessoas jurídicas públicas e agem “nomine Eccclesiae”, sob a superior direcção da autoridade eclesiástica. Todas as acções abrangem a autoridade eclesiástica, supondo uma relação de quase identificação com ela”. “Uma associação é pública…porque entra a fazer parte da estrutura hierárquica da Igreja, conseguindo fins propriamente institucionais, como estabelece cânone 301,nº1 […].”

           Sendo a Autora “BB” uma associação canonicamente erecta pela Autoridade Eclesiástica competente, constituída por iniciativa de fiéis, com aprovação pela entidade eclesiástica competente no seio da Igreja Católica, prosseguindo finalidades de ordem religiosa, segundo as normas de direito canónico, não pode ser considerada Associação Privada de Fiéis, mas Associação Pública de Fiéis.

          As associações constituídas de harmonia com o art. 4° da Concordata de 1940, “podem até adquirir bens e dispor deles nos mesmos termos por que o podem fazer, segundo a legislação vigente, as outras pessoas morais perpétuas, e administram-se livremente sob a vigilância e fiscalização da competente autoridade eclesiástica...”.

           Tais associações encontram-se sujeitas à vigilância e à dependência da autoridade eclesiástica, nos termos dos cânones 305º e 323º do CDC.”, o que significa que não gozam de autonomia total em relação ao direito canónico, mesmo estando em causa actos estranhos ao múnus religioso.

           Estando a “BB” sujeita à autoridade e direcção eclesiásticas, as questões relacionadas com a sua organização interna e representatividade, que aqui estão em causa no que respeita à legitimidade para confessar validamente na acção judicial a que se aludiu, são da competência das autoridades eclesiásticas, que as apreciarão à luz do Código de Direito Canónico, ajuizando da validade formal e substancial dos Decretos Bispais que decidiram a representatividade que vem posta em causa para intervir naquela confissão judicial, intervenção que ocorreu, alegadamente, por motivos “graves e ponderosos”, sob invocação daquele Código.

               

           Decorre das “Normas Gerais das Associações de Fiéis”, aprovadas pela Conferência Episcopal Portuguesa em 4.4.08, designadamente, dos seus artigos 7.º e 23.º, que todas as associações de fiéis estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica competente, no caso o Ordinário do Lugar, possibilitando a este, em circunstâncias especiais, quando razões graves o exigirem, a nomeação de um “comissário” (representante) que, em seu nome, dirige temporariamente a associação.

           Como bem se observa no Acórdão recorrido – “Do confronto entre o disposto nos artigos 11 e 12 da Concordata, como se salienta no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.12.2009, já citado, “a aplicabilidade da ordem jurídica nacional não tem lugar quanto à regulação dos aspectos estruturais, orgânicos ou internos das pessoas colectivas canónicas, mas apenas quanto à disciplina de certas actividades, extrínsecas e complementares aos fins estritamente religiosos, envolvendo aspectos de índole patrimonial e prestacional que justificam a aplicação do nosso ordenamento jurídico e a sujeição a alguma forma de tutela ou controlo público”.

           

         A questão da validade da outorga de poderes de representação, dimanada do Acto do Bispo DD, nomeando comissário para agir na vida interna da “BB”, num quadro circunstancial de gravidade e por motivos ponderosos relacionados com a sua actuação negocial “terrena”, não pode ser dirimida à luz das regras do direito civil português, mas no quadro legal previsto no Código de Direito Canónico.

            Como se refere no Acórdão recorrido:

           “A questão da validade desse Decreto Bispal colocado em crise no douto recurso (…) emerge como uma questão de competência exclusiva da Igreja Católica, competência essa que o Estado Português reconhece, não sendo sindicável nos tribunais comuns as decisões nestas matérias de organização da vida de pessoas jurídicas canónicas, pois os mesmos carecem de competência em razão da matéria para as julgar.

            Note-se que, quanto a esta matéria da competência exclusiva da jurisdição eclesiástica no que toca à organização de Associações Canónico-concordatárias, a única alteração de relevo entre a Concordata de 1940 e a Concordata de 2004 em vigor, foi que, ao passo que, na anterior, era reconhecida a competência do Ordinário do Lugar para aplicação do direito interno, na actual (art.º 11º), essa competência passou a ficar limitada às situações em que esteja em causa a aplicação das normas de direito canónico, passando os Tribunais Comuns a ser competentes para julgar os actos praticados ou atinentes a essas Associações quando se trate da aplicação do direito interno.

           Como bem ficou sintetizado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26.04.2007 (in www.dgsi.pt), o regime passou a ser o seguinte: “regendo-se as pessoas jurídicas canónicas pelo direito canónico e pelo direito português, cada um é aplicado pelas respectivas autoridades, está em causa o direito canónico: será chamado a intervir a autoridade da igreja, estando em causa a violação do direito interno português: recorre-se aos tribunais civis.”

           Entender diversamente, seria violar a autonomia que a Lei Fundamental e a Concordata reconhecem à Igreja Católica, a liberdade de culto, bem como o princípio fundamental de separação entre o Estado e a Igreja com a inerente autonomia de organização, nos termos do disposto no art.º 41º, n.º4, da Constituição da República, interferindo na liberdade de associação contemplada no art. 46º e violando o princípio da não confessionalidade do Estado.

            No Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 17.12.2009 – Proc. 743/08.0TBABT-A.E1.S1 – in www.dgsi.pt., na esteira do seu Acórdão de 26.04.2007, afirma-se:

           “Está excluída – desde logo, como decorrência do princípio constitucional da separação da Igreja e do Estado – a possibilidade de outorgar a um tribunal ou entidade pública o poder de sindicar um concreto acto ou decisão da competente autoridade eclesiástica no exercício da sua tarefa de vigilância e fiscalização sobre a vida interna de associações constituídas sob a égide do Direito Canónico – no caso, a recusa de homologação do resultado eleitoral para os corpos gerentes de uma Misericórdia, estatutariamente imposta como condição para a investidura – não podendo, por força do referido princípio constitucional, existir zonas de interferência, sobreposição ou colisão entre as competências atribuídas aos órgãos estaduais e as conferidas às autoridades eclesiásticas”.

           […] Não nos parece que o novo texto Concordatário ponha minimamente em causa o entendimento segundo o qual os aspectos estruturais, internos ou intra-orgânicos de uma “associação pública de fiéis, constituída na ordem jurídica canónica”, e tendo como fins e atribuições, não apenas a prática de actividades de solidariedade social, mas também a “realização de actos de culto católico”, por essencialmente conexionados com a ordem jurídica canónica, são da jurisdição das autoridades e do foro eclesiástico.
           Seria, na verdade, incongruente com a natureza que incontestavelmente assiste à entidade requerente de pessoa colectiva canónica que devesse incumbir aos tribunais ou autoridades estaduais uma intromissão na vida interna de tal associação de fiéis, regida pela ordem jurídica canónica, em tudo aquilo que se não prenda, de modo directo e imediato, com uma actividade de realização de prestações assistenciais: é que, sendo obviamente unitários os órgãos da pessoa colectiva canónica, compete-lhes prosseguir, desde logo e em primeira linha, os fins e atribuições de índole religiosa da entidade em cujo substrato orgânico se inserem – e não apenas as actividades extrínsecas de solidariedade social, em nome das quais – e em homenagem ao interesse público que também lhes subjaz – lhe foi outorgado o estatuto de instituição de solidariedade social.”

               No entanto, no sentido que os Tribunais comuns têm competência para apreciar litígios relacionados com a organização interna das associações de fiéis, o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 22.2.2011 – Proc. 332/09.2TBPDL.L1.S1 – in www.dgsi.pt entendeu que, “Compete aos tribunais judiciais resolver conflitos que possam surgir entre pessoas jurídicas canónicas erectas pela Igreja e com personalidade jurídica civil, no que concerne à organização e regime de funcionamento, designadamente quanto à sua autonomia no campo da administração e da disposição dos seus bens temporais”.

            Como decorre de quanto se disse, a atribuição de competência material, em razão da nacionalidade, aos Tribunais Eclesiásticos, não viola a Lei fundamental, mormente os arts. 2º, 46º, nºs 1 e 2, e 20º da Constituição da República.

            O respeito pela Concordata, a não confessionalidade do Estado Português, a liberdade de associação religiosa e de culto, só são garantidos se a ordem jurídica interna portuguesa não interferir na organização, funcionamento orgânico e representativo das instituições integradas na ordem religiosa e eclesial regida pelo direito canónico.

           O art. 41º, nº4, da Lei fundamental proclama: “As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto”.

           Ensinam Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Anotada”, vol. I, págs. 612/613:

           “O preceito do n°4 dá expressão ao princípio da separação entre o Estado e as igrejas, princípio inerente à dimensão republicana do Estado português, enfaticamente reafirmado pela CRP de 1976, que o transformou mesmo em princípio constitucional irreversível (art. 288°/c). A separação é tanto uma garantia da laicidade do Estado como da liberdade religiosa (liberdade das igrejas e confissões religiosas). Corolários imediatos do princípio da separação são, por um lado, o princípio da não confessionalidade do Estado e, por outro lado, o princípio da liberdade de organização e independência das igrejas e confissões religiosas.”

            Pelo quanto dissemos, o Acórdão recorrido não merece censura ao absolver os RR. da instância, por serem incompetentes internacionalmente, em razão da matéria, os tribunais portugueses.

            Decisão:

            Nestes termos, nega-se a revista.

            Custas pelos Recorrentes.

       

Supremo Tribunal de Justiça,  1 de março de 2016

Fonseca Ramos (Relator)

Fernandes do Vale

Ana Paula Boularot

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[1] Relator – Fonseca Ramos.
Ex.mos Adjuntos:
Conselheiro Fernandes do Vale.
Conselheira Ana Paula Boularot.