Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
698/11.4TAFAR.E1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: NUNO GONÇALVES
Descritores: ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PENA DE MULTA
PENA DE SUBSTITUIÇÃO
SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA N.º 11/2023, PUBLICADO NO DR Nº 218, 1ª SÉRIE, 10 DE NOVEMBRO DE 2023, P. 101-116
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : O requerimento apresentado pelo condenado, peticionando a substituição da multa por dias de trabalho, nos termos do artigo 48.º, n.º 1 do Código Penal, não integra a causa suspensiva da prescrição prevista no artigo 125.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal
Decisão Texto Integral:

thema decidendum: Se o requerimento apresentado pelo condenado, a pedir a substituição da pena de multa por dias de trabalho, nos termos do artigo 48.º, n.º 1, constitui causa suspensiva do prazo de prescrição prevista no artigo 125.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal.

I. relatório:

1. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Évora interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão daquela Relação proferido em 23 de fevereiro de 2021, no processo n.º 698/11.TAFAR.E1, transitado em julgado em 11 de março de 2021, alegando encontrar-se em oposição com o acórdão da mesma Relação de 4 de fevereiro de 2020, tirado no processo n.º 287/08.GCFAR.E1, transitado em julgado em 5 de junho de 2020 (acórdão fundamento), com publicação acessível em www.dgsi.pt.

Alegou, em síntese, que os acórdãos em causa incidindo sobre questão factual e jurídica rigorosamente idêntica, aplicaram o mesmo dispositivo legal – o disposto no artigo 125.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, tendo decidido em sentido diametralmente oposto a questão de direito ali em apreciação consistente em saber se se suspende (ou não) o decurso do prazo de prescrição da pena de multa com a apresentação, pelo condenado, de requerimento para que lhe seja substituída por dias de trabalho.

2. Recebido o processo no Supremo Tribunal de Justiça, a conferência da 3.ª secção, por acórdão de 30 de junho de 2021, julgou verificada a oposição de julgados e determinou o prosseguimento do recurso.

3. Os sujeitos processuais foram notificados nos termos do artigo 442.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, para apresentar, querendo, alegações.

O arguido nada disse.

O Ministério Público, através do Digno Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, concluiu a respetiva alegação propondo que se fixe jurisprudência no sentido de: ------

O requerimento do arguido em ordem ao cumprimento da pena de multa através de dias de trabalho (art. 48.º do CP) não suspende o prazo de prescrição da pena nos termos do art. 125.º, n.º 1, al. a), do CP.”

O processo foi aos vistos.

O Supremo Tribunal de Justiça, reuniu em conferência do Pleno das secções criminais e decidiu: -----

II. oposição de julgados:

Porque o Pleno das secções criminais pode decidir em sentido contrário ao firmado no acórdão da 3.ª secção reunida em conferência (artigo 692.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal), impõe-se, antes de mais, certificar se, como aí então se julgou, estão preenchidos os pressupostos do vertente recurso extraordinário, com especial enfâse na verificação da oposição de julgados.

Pressupostos específicos que o legislador enuncia nos artigos 437.º e 438.º do Código de Processo Penal.

Dispondo o primeiro: ----

“1 - Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.

2 - É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

3 - Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.

4 - Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.

5 - O recurso previsto nos n.os 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público”.

Por sua vez, o referido artigo 438.º preceitua: ------

“1 - O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

2 - No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.”


*


1. Perscrutando outra vez com detalhe, reafirma-se o entendimento de se encontrarem integralmente preenchidos os pressupostos formais e substanciais estabelecidos nas duas normas adjetivas citadas.

Conforme se fundamentou no acórdão preliminar, dos autos resulta que a facticidade sobre que incidiram um e o outro dos arestos que o recorrente colocou em confronto e a decisão que a questão de direito aí resolvida mereceu foi a seguinte: -----

a. No caso sobre que versou o acórdão recorrido, proferido neste processo, o arguido foi julgado em 1.ª instância e, por sentença que se tornou definitiva em 18.09.2012, foi condenado na pena de 130 dias multa, à taxa diária de €5,00, perfazendo o montante total de €650,00 (seiscentos e cinquenta euros);

b. O condenado, não pagou a multa no prazo legal, mas, em 4.12.2013, requereu a substituição da mesma por prestação de dias de trabalho a favor da comunidade;

c. O Ministério Publico instaurou em 5.05.2014 execução para cobrança coerciva da pena pecuniária.

d. O condenado requereu outra vez, em 17.06.2014, a substituição da pena de multa por prestação de trabalho a favor da comunidade.

e. O tribunal, por despacho de 1.09.2016, deferindo o requerido pelo condenado, decidiu substituir-lhe a pena de multa aplicada pela prestação de 130 horas de trabalho a favor da comunidade;

f. O arguido cumpriu 81 (oitenta e uma) horas de trabalho a favor da comunidade, entre 3.04.2017 e 15.10.2018.

g. Desde então não mais comparecendo.

h. Por incumprimento culposo, o juiz, por despacho de 13.07.2020, revogou- a prestação de trabalho a favor da comunidade.

i. E, por despacho de 3.11.2020, entendendo não ter havido qualquer causa de suspensão do prazo de prescrição, que considerou iniciado com o trânsito em julgado da sentença condenatória – em 18.09.2012 –, declarou extinta, por efeito da prescrição (ocorrida em 18.09.2018), a pena de multa aplicada ao arguido.

j. O Ministério Público, inconformado com o assim decidido, recorreu.

k. Defendendo a interpretação que o requerimento do condenado a solicitar a substituição da pena de multa pela prestação de trabalho a favor da comunidade constitui causa de suspensão da prescrição da pena, não voltando a correr até que o mesmo seja decidido, peticionou a revogação do despacho recorrido e que se determinasse a prolação de outro que reconheça que ainda não decorreu o prazo de prescrição da pena de multa aplicada ao arguido.

l. O tribunal da Relação de Évora, no acórdão recorrido, tirado por maioria, decidiu julgar improcedente o recurso, assim confirmando o despacho em causa, fundando-se no entendimento de o requerimento do condenado a peticionar a substituição da pena de multa por dias de trabalho não integrar a causa de suspensão da prescrição prevista no artigo 125.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.


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m. Por sua vez, no caso sobre no processo n.º 287/08.GCFAR.E1, o aí arguido foi julgado em 1ª instância e, por sentença de 22.05.2009, transitada em julgado em 6.07.2009, foi condenado na pena única de 220 (duzentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), perfazendo o montante total de €1.100,00 (mil e cem euros);

n. O condenado, em 23.02.2010, requereu a substituição daquela pena única de multa por prestação de dias de trabalho a favor da comunidade.

o. Pretensão que o tribunal deferiu, por despacho judicial de 01.10.2010, substituindo-lhe aquela pena de multa pela prestação de 220 horas de trabalho a favor da comunidade.

p. Dessas 220 horas de trabalho, o condenado cumpriu 111 horas, entre 3.05.2012 e 13.07.2017;

q. Em razão do incumprimento culposo do arguido, o tribunal, por despacho de 5.06.2018, revogou-lhe a prestação de trabalho a favor da comunidade, determinando que fosse notificado para pagar os 109 dias da pena de multa “em falta” (remanescente resultante do descontado dos dias de trabalho prestados);

r. Não tendo sido possível notificar o condenado, o Ministério Público promoveu que o remanescente da multa não paga fosse convertida em prisão subsidiária;

s. O juiz de 1ª instância, entendendo não ter havido qualquer causa de suspensão e que o prazo de prescrição da pena de multa aplicada ao arguido se iniciou com o trânsito em julgado da sentença condenatória – em 6.07.2009 –, julgou-a extinta, por efeito da prescrição (ocorrida em 6.07.2015);

t. O Ministério Público, inconformado, recorreu.

u. Defendendo que o requerimento do arguido a solicitar a prestação de trabalho a favor da comunidade constitui causa de suspensão da prescrição da pena de multa, peticionou a revogação do despacho impugnado e a sua substituição por outro que considerasse que o prazo de prescrição da pena (4 anos) esteve suspenso desde 23.02.2010 e até 5.06.2018.

v. O tribunal da Relação de Évora, no acórdão invocado como fundamento, julgou procedente o recurso.

2. Do exposto resulta evidenciada a mesmidade da questão fáctica e jurídica e certificada a oposição de julgados.

Quanto aos demais pressupostos processuais, verifica-se que o recorrente, Ministério Público, dispõe de legitimidade para intentar o presente recurso de fixação de jurisprudência. Interposição a que, aliás, está obrigado, conforme estabelece o n.º 5, parte final, do artigo 437.º do Código de Processo Penal.

Ambos os acórdãos, fundamento e recorrido, foram proferidos em recurso por Tribunal da Relação, no caso o de Évora e encontram-se transitados em julgado.

O recorrente identifica adequadamente o acórdão fundamento e o lugar da sua publicação (oficial).

Tendo o vertente recurso sido apresentado tempestivamente.

Do exposto resulta ser manifesta a verificação dos requisitos de ordem formal.

Verifica-se, em suma, que, em ambos os casos, o arguido em cada um daqueles processos havia sido condenado numa pena de multa, tendo requerido a sua substituição por dias de trabalho. Pretensão que foi deferida. Cumprindo o condenado apenas parte das horas de trabalho resultante da substituição da pena de multa aplicada. Ante o incumprimento, tanto em um como no outro caso, foi-lhe revogada a prestação de trabalho a favor da comunidade. Nos dois casos, o juiz da 1ª instância, considerando não ter havido suspensão, decidiu julgar extinta, pelo decurso do prazo de prescrição, a pena de multa aplicada ao arguido no respetivo processo.

Nos dois processos o Ministério Público impugnou a decisão, recorrendo para a 2ª instância, peticionando a revogação do despacho recorrido e que se determinasse a prolação de outro que decidisse que a pena de multa aplicada ao arguido não estava prescrita porque, defendeu, com a apresentação pelo condenado, de requerimento a solicitar a substituição da pena de multa pela prestação de trabalho suspendeu-se o decurso do prazo de prescrição daquela pena principal.

Recurso que obteve procedência no acórdão fundamento, no qual, a Relação entendeu que o requerimento de substituição da multa por trabalho integrava a causa de suspensão prevista no artigo 125.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.

Recurso que foi julgado improcedente no acórdão recorrido, no qual, contrariamente ao que foi decidido no acórdão fundamento, se entendeu que o requerimento do condenado a solicitar a substituição da pena de multa pela prestação de trabalho a favor da comunidade não integra a causa de suspensão da prescrição da pena prevista no citado artigo 125.º, n.º 1, al.ª a), do Código Penal.

Conclui-se, pois, que as duas decisões colocadas em confronto versam idêntica questão de facto e decidiram antiteticamente a mesma questão de direito, consistente em saber se o requerimento do condenado em pena de multa que pede a substituição da mesma pela prestação de trabalho integra ou não integra a causa de suspensão da prescrição da pena, prevista no artigo 125.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal. Norma, cuja redação não sofreu modificação relevante1 no intervalo da prolação daqueles acórdãos - aliás, desde a sua redação originária (de 1982) onde constava do artigo 123.º n.º 1 al.ª a) -, tendo sido, pois, os arestos colocados em confronto, proferidos no domínio da mesma legislação.

Reafirma-se, assim, a oposição de julgados, em conformidade com o disposto no artigo 437.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, porquanto os acórdãos recorrido e fundamento, versando sobre idêntica situação de facto, assentam em soluções jurídicas opostas para a mesma questão de direito, sendo expressa a oposição dos respetivos dispositivos.

III. posições em confronto:

1. No acórdão recorrido entendeu-se que a apresentação, pelo condenado, de requerimento a peticionar a substituição da multa por trabalho a favor da comunidade não integra a causa de suspensão da prescrição da pena prevista no artigo 125.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.

Para tanto, fundamentou que o recurso à analogia se encontra totalmente proibido neste âmbito, não podendo o julgador criar outras causas de suspensão do prazo de prescrição, diferentes das estabelecidas na lei, à semelhança do que tem vindo a ser decidido pelo Tribunal Constitucional, nomeadamente no acórdão n.º 110/2007.

De outra perspetiva – que os arestos em confronto têm mais (o acórdão fundamento) ou menos (o acórdão recorrido) explicita -, se a disposição do artigo 48.º (com o proémio: “Substituição da multa por trabalho”), n.º 1 (com a seguinte redação: “A requerimento do condenado, pode o tribunal ordenar que a pena de multa fixada seja total ou parcialmente substituída por dias de trabalho em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou ainda de instituições particulares de solidariedade social, quando concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”) integra ou não, a previsão da norma do artigo 125.º, n.º 1, al.ª a), ambos os preceitos do Código Penal.

Atentando no texto da norma, entendeu o acórdão recorrido não ser possível integrar naquele normativo a situação aqui em causa desde logo porque a não execução da pena de multa não se iniciou “por força de lei”, mas sim “por força de acção do arguido”, não se podendo equiparar a “previsão legal” à entrega de um requerimento. Ademais, não se poderá reconhecer um direito ao arguido (o de requerer o pagamento da multa em prestações, ou em trabalho) e, simultaneamente, negar-se o decurso do prazo prescricional, confrontando-o com a ideia de que o exercício de um direito lhe retira o “direito” à prescrição.

Tal consubstanciaria a criação de uma causa de suspensão de prazo prescricional não prevista na lei, sem prazo limite, com o objetivo de “salvar” certas práticas judiciais que conduzem à delonga do processo.

Conclui, assim, o acórdão recorrido, que a possibilidade de suspender o decurso do prazo de prescrição de uma pena apenas poderá resultar de expressa previsão legal, o que, neste caso, não acontece.

2. Por sua vez, no acórdão fundamento sustenta-se que a partir do momento em que o condenado formula o requerimento previsto no artigo 48.º, n.º 1, do Código Penal não faz qualquer sentido que o Ministério Público diligencie pela execução da pena de multa, pois que o referido requerimento terá de ser judicialmente apreciado, iniciando-se a prestação do trabalho, se for deferido. Nessa medida, uma vez que é a Lei que concede ao condenado a possibilidade de não pagar (em numerário) a pena de multa, mas antes de a substituir por trabalho, é precisamente por “força da lei” que a execução da pena não pode ter lugar.

Como tal, a suspensão do prazo de prescrição só terminará quando transitar em julgado a decisão que indeferir a requerida substituição da pena ou quando transitar em julgado a decisão que a revogar, momento em que renasce a possibilidade de executar a pena de multa.

IV. normas jurídicas aplicadas:

Como ponto de partida, importa notar, ainda que sumariamente, que a natureza jurídica da prescrição do procedimento criminal e da prescrição das penas tem sido discutida na jurisprudência e na doutrina. Entendem alguns que tem natureza material, outros processual e outros ainda natureza mista. Certo é que, indiferente a essa controvérsia, a prescrição da pena decretada em decisão judicial transitada em julgado, impede a execução da mesma. Trata-se de “um instituto excepcional, formulado primeiro em 1972 e depois adoptado pelo Código Penal de 1982”, assente em razões, essencialmente, de política criminal e também de paz e segurança jurídica. Contudo, de acordo com a motivação do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 183/2008 que acabamos de citar, “nos Estados de direito democráticos, o direito penal apresenta uma série de limites garantísticos que são, de facto, verdadeiras «entorses» à eficácia do sistema penal; são reais obstáculos ao desempenho da função punitiva do Estado.

Trata-se de princípios e direitos que “são a mais categórica afirmação que, para o Direito, a liberdade pessoal tem sempre um especial valor mesmo em face das prementes exigências comunitárias que justificam o poder punitivo”.

Assim se justifica que nem mesmo os erros e falhas do legislador possam ser corrigidos pelo intérprete contra o arguido.

É o que bem explica Figueiredo Dias (Direito Penal, Parte Geral, t. I, 2.ª ed., p. 180): «Esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou de redacção funcionam, por isso, sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na punibilidade também outros comportamentos. Neste sentido se tornou célebre a afirmação de v. Liszt segundo a qual a lei penal constitui a ‘magna charta do criminoso’.»

No mesmo sentido, diz Taipa de Carvalho (Direito Penal, t. I, Porto, 2003, pp. 210 e segs.): «O texto legal constitui, porém, um limite às conclusões interpretativas teleológicas, no sentido de impedir a aplicação da norma a uma situação que não esteja abrangida pelo teor literal da norma, isto é, por um ou vários significados da(s) palavra(s) do texto legal. Poder -se -á dizer que, assim, ficarão, por vezes, fora do âmbito jurídico -penal situações tão ou mais graves do que as expressamente abrangidas pela norma legal […] Responde -se que assim é, e tem de ser quer em nome da tal garantia política do cidadão quer na linha do carácter fragmentário do direito penal.»

A amplitude do processo hermenêutico e argumentativo de aplicação da lei penal encontra aqui, na moldura semântica do texto, uma barreira intransponível — uma barreira que apenas se explica pela preferência civilizacional que o direito concede à liberdade pessoal sobre a necessária realização das finalidades político -criminais que justificam a instituição do sistema penal e que está na base da especial força normativa que a nossa Constituição concede à garantia pessoal de não punição fora do domínio da legalidade, ao incluí-la no catálogo dos direitos, liberdades e garantias (artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa).

No domínio da legalidade criminal, a linguagem da lei perde o sentido pragmático que geralmente tem no âmbito do direito para, excepcionalmente, se conter dentro de um sentido semântico que abstrai da concreta teleologia da norma legal. Isto em nome da garantia da liberdade ético-pessoal que se situa no cerne da teleologia última do direito.”

Neste conspecto e no que para aqui releva, do disposto no Código Penal, resulta do artigo 122.º, que regula os “prazos de prescrição das penas”, n.º 1, alínea d), que a pena de multa prescreve no prazo de quatro anos. Dispondo no n.º 2 que “o prazo de prescrição começa a correr no dia em que transitar em julgado a decisão que tiver aplicado a pena.”

No artigo 125.º que rege sobre a “suspensão da prescrição” da pena, o n.º 2 estabelece que “a prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão”.

Diferentemente da interrupção que apaga o prazo de prescrição decorrido, iniciando-se novo prazo prescricional (tendo a prescrição sempre lugar, “quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal da prescrição, acrescido de metade”), a suspensão apenas paralisa o prazo em curso que continuará a correr logo que cessar a causa que a determinou.

Por não estar em causa nos arestos confrontados, não deve trazer-se aqui à colação o regime da interrupção.

Razão pela qual também não assume especial relevo para dirimir a nossa questão a jurisprudência fixada no Acórdão n.º 2/2012, segundo a qual “a mera instauração pelo Ministério Público de execução patrimonial contra o condenado em pena de multa, para obtenção do respetivo pagamento, não constitui a causa de interrupção da prescrição da pena prevista no artigo 126.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal” (realce nosso).

Sendo igualmente irrelevante - este não é um recurso ordinário - ajuizar dos efeitos que o cumprimento de alguns dias de trabalho produziu no cumprimento da pena de multa e sobre a suspensão da prescrição desta. Afinal, o que ora nos ocupa é somente fixar jurisprudência sobre se o requerimento do condenado em que peticiona a substituição da multa que lhe foi aplicada por dias de trabalho suspende ou não suspende o prazo de prescrição da pena de multa.

Como adianta se realça, a norma a interpretar é somente a do artigo 125.º do Código Penal que, regendo sobre a “suspensão da prescrição” das penas, no n.º 1 e alínea a), dispõe: ----------------------------

1 - A prescrição da pena (…) suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:

a. Por força da lei, a execução não puder começar ou continuar a ter lugar;”.

Por interceder diretamente, impõe-se ter presente o disposto no artigo 48.º do Código Penal que, dispondo sobre a “substituição da multa por trabalho”, estabelece: ----

1 - A requerimento do condenado, pode o tribunal ordenar que a pena de multa fixada seja total ou parcialmente substituída por dias de trabalho em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou ainda de instituições particulares de solidariedade social, quando concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

E considerar o artigo 490º do Código de Processo Penal que, com o proémio “substituição da multa por dias de trabalho”, dispõe, no n.º “1 – O requerimento para substituição da multa por dias de trabalho é apresentado no prazo previsto nos números 2 e 3 do artigo anterior, (…)”; E. no n.º 2 que “Em caso de não substituição da multa por dias de trabalho, o prazo de pagamento é de 15 dias a contar da notificação da decisão”.

V. substituição da pena de multa por trabalho:

Circunscritos os termos da questão interpretativa em causa e o regime normativo à luz do qual, os acórdãos em oposição decidiram a questão jurídica a uniformizar, impõe-se discorrer sobre os fundamentos da solução a adotar.

1. Neste propósito, importa, primeiramente, compreender qual a natureza da substituição da pena de multa por dias de trabalho: se é uma pena de substituição em sentido próprio ou se mais não é que uma modalidade de cumprimento da pena de multa.

A este respeito é uniformemente sustentado que a lei penal substantiva, com especial enfoque no Código Penal, consagra, no que às pessoas singulares respeita2, duas penas principais e diversas acessórias, sendo que as primeiras se resumem à pena de prisão (artigo 41.º do Código Penal) ou à pena de multa (artigo 47.º do Código Penal) e as segundas são aquelas que não poderão ser aplicadas sem que, simultaneamente, tenha sido determinada na sentença condenatória uma pena principal. Entendimento amparado em que, na previsão legal, os tipos de ilícito (culposo ou negligente) são punidos com prisão ou com multa.

Para além das penas principais e acessórias, está prevista também a categoria das penas de substituição, que radicando num “movimento político-criminal de luta contra a aplicação de penas privativas da liberdade, nomeadamente de penas curtas de prisão”, “são aplicadas e executadas em vez de uma pena principal”3.

As penas substitutivas são definidas na decisão condenatória e poderão ser revogadas quando, na respetiva execução, se verifique incumprimento culposo, ressurgindo nesse momento a pena que substituíam, originariamente aplicada.

No que respeita à pena principal de multa, o seu regime geral encontra-se previsto no artigo 47.º do Código Penal, aí se estabelecendo que é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no artigo 71.º n.º 1 do do Código Penal, com o limite mínimo de 10 e o máximo de 360 (ou 900, para a pena única aplicável em concurso de crimes - art.º 77º n.º 2 do mesmo diploma legal)

2. A substituição da pena de multa (aplicada às pessoas singulares) por dias de trabalho está sedimentada no nosso ordenamento jurídico-criminal.

Em traços largos nota-se que o Código de Processo Penal de 1929 - aprovado pelo Decreto 16.489, de 2 de fevereiro - no artigo 639.º, § 5º, já estabelecia que “O réu pode ser autorizado a pagar a multa, o imposto de justiça e quantias acrescidas com trabalho nos serviços do Estado ou corpos administrativos, na forma determinada em regulamento» (o negrito é nosso como os demais que vão adiante).

O Decreto-Lei n.º 39.688, de 5 de junho de 1954, alterou o artigo 87.º, do Código Penal de 1886, passando a dispor que "As penas de multa, quer directamente aplicadas como tais, quer resultantes da substituição de penas de prisão, poderão ser substituídas pela prestação de trabalho em qualquer mister ou ofício, em obras públicas ou oficinas do Estado ou dos corpos administrativos.”

Cabendo ao juiz autorizar a substituição, “sob proposta do diretor da cadeia, e nas condições estabelecidas em regulamento.”

O Decreto-Lei n.º 34.674 de 18 de junho de 1954 regulou detalhadamente a prestação de trabalho como forma de pagamento da multa.

O mesmo Código Penal, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 184/72, passou a dispor no artigo 123.º que “A pena de multa, na falta de bens suficientes e desembaraçados, pode ser modificada na sua execução:

1.º Pela conversão em prisão por tempo correspondente;

2.º Pela substituição por prestação de trabalho.”

E no artigo 124.º, com o sugestivo proémio de "regime do cumprimento da pena de multa por prestação de trabalho", passou a dispor que "As penas de multa, quer directamente aplicadas como tais, quer resultantes da substituição de penas de prisão, poderão ser cumpridas por meio de prestação de trabalho em qualquer mister ou ofício, em obras públicas, serviços ou oficinas do Estado e dos corpos administrativos, ou em obras, serviços ou oficinas de entidades particulares, nos termos e nas condições constantes da lei.

O Decreto-Lei n.º 371/77 de 5 de setembro, alterando o Código Penal então vigente, desdobrou a execução da pena de multa “em diversas fases. Em primeiro lugar, procura-se que seja cumprida a pena de multa e só quando este cumprimento se revele inviável se cogita do cumprimento da pena alternativa de prisão. Mas do não cumprimento voluntário da pena de multa transita-se, antes de mais, para a tentativa da sua cobrança coerciva e, após isso, para a sua substituição por dias de trabalho, só sendo cumprida a pena de prisão quando a pena de multa não puder ser executada nem remida com trabalho.

Passando o artigo 123.º a dispor, no “§ 2º - Quando a multa não for paga nem puder ser executada ou substituída por dias de trabalho nos termos da lei de processo penal, será cumprida a pena de prisão aplicada na sentença em alternativa.”

No projeto de Código Penal, de Eduardo Correia, o artigo 59.º, no § 3, previa que “Se um réu condenado a uma pena de multa não puder solvê-la senão com o produto do seu trabalho e não encontrar ocupação poderá requerer ao tribunal que a substitua total ou parcialmente por correspondentes dias de trabalho em obras públicas, oficinas do Estado ou dos corpos administrativos, nas condições estabelecidas em regulamentos."

Normas estas fontes do artigo 47.º do Código Penal de 1982 que, no n.º 2, dispunha, se “a multa não for paga voluntária ou coercivamente, mas o condenado estiver em condições de trabalhar, será total ou parcialmente substituída pelo número correspondente de dias de trabalho em obras ou oficinas do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público”.

A substituição por dias de trabalho concebia-se como “sucedâneo da multa” não paga, destinada a obstar, até ao limite possível, a execução carcerária da prisão subsidiária4.

A multa não paga era substituída, imperativamente, na totalidade ou em parte, por dias de trabalho, contanto o condenado pudesse trabalhar.

Na doutrina, sustentava-se que a imperatividade da substituição equivalia à imposição de uma sanção pelo não pagamento, voluntário ou coercivo, da pena de multa.

No n.º 3 do mesmo preceito estabelecia-se: “quando a multa não for paga ou substituída por dias de trabalho, nos termos dos números anteriores, será cumprida a pena de prisão aplicada em alternativa na sentença.”

Nota-se, como apontamento, que no artigo 48.º, que no Código Penal de 1982 tratava da pena suspensa, o n.º 1 estabelecia que o tribunal podia suspender a execução “da pena de multa imposta a condenado que não tenha possibilidade de a pagar”.

No Código Penal atual – aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95 -, a substituição da multa por dias de trabalho encontra-se prevista no citado artigo 48.º n.º 1, arrumado, sistematicamente, na secção I (“Penas de prisão, de multa e de proibição do exercício de profissão, função ou actividade”), do Capítulo II, do Título III que trata “Das consequências jurídicas do facto”.

Diversamente do regime originário, a substituição da multa por dias de trabalho depende agora de requerimento do condenado e somente pode ser ordenada quando o tribunal “concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Deixou de estar condicionada ao não pagamento (voluntário ou em execução patrimonial).

A pena de multa não admite a aplicação de pena suspensa5.

Mandando o artigo 48.º, n.º 2 aplicar “correspondentemente” o disposto no artigo 59.º, n.º 1, ambos do Código Penal, resulta que a prestação dos dias de trabalho pode ser provisoriamente suspensa “por motivo grave de ordem médica, familiar, profissional, social ou outra, não podendo, no entanto” ser por tempo que obste a que a pena de multa se cumpra por esta modalidade sem “ultrapassar 30 meses” sobre o trânsito em julgado da decisão condenatória.

Os procedimentos para a substituição da multa por dias de trabalho encontram-se no artigo 490.º do Código de Processo Penal.

A doutrina largamente maioritária defende que “depois de 1995, os dias de trabalho prestados passaram a constituir uma forma de execução da pena de multa.” Cumprindo-se a mesma “através do pagamento voluntário do quantitativo fixado ou da prestação de dias de trabalho, a requerimento do condenado”6.

3. Por seu turno, a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade surgiu no Código Penal de 1982, dispondo no artigo 60.º, n.º 1 que “se o agente for considerado culpado pela prática de crime a que, concretamente, corresponda pena de prisão, com ou sem multa, não superior a 3 meses, ou só pena de multa até ao mesmo limite, pode o tribunal condená-lo à prestação de trabalho a favor da comunidade”.

Atualmente, após a reforma operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, com posterior alteração operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, a pena substitutiva de prestação de trabalho a favor da comunidade encontra-se prevista no artigo 58.º com a proémio de “Prestação de trabalho a favor da comunidade”, inserido na secção III, que trata dessa pena de substituição e da “admoestação”, inserido nos já refenciados capítulo e título. Dispõe no n.º 1: “se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir, nomeadamente em razão da idade do condenado, que se realizam, por este meio, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição”. No n.º 2: “consiste na prestação de serviços gratuitos ao Estado, a outras pessoas colectivas de direito público ou a entidades privadas cujos fins o tribunal considere de interesse para a comunidade”. No n.º 3 estabelece que “cada dia de prisão fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho, no máximo de 480 horas” Estatuindo no n.º 5 que a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade depende de aceitação pelo condenado.

No referido artigo 59º n.º 1, estabelece-se que “A prestação de trabalho a favor da comunidade pode ser provisoriamente suspensa por motivo grave de ordem médica, familiar, profissional, social ou outra, não podendo, no entanto, o tempo de execução da pena ultrapassar 30 meses”.

A execução desta pena de substituição está regulada autonomamente, no artigo 496.º do Código de Processo Penal.

Afigura-se inequívoco, conforme defende esmagadoramente a doutrina7 e interpreta e aplica uniformemente a jurisprudência8 que esta prestação de trabalho a favor da comunidade consubstancia uma verdadeira pena de substituição, com a finalidade de evitar o cumprimento de penas curtas de prisão. Trata-se, ainda assim de uma pena de substituição da pena de prisão que deveria ser aplicada na sentença condenatória em medida não superior a dois anos.

4. Não obstante a remissão do n.º 2 do artigo 48.º, esta pena substitutiva da pena privativa da liberdade não é a mesma figura jurídica prevista no artigo 48.º n.º 1 do Código Penal.

De facto, a análise deste quadro legal que nos serve de base, tendo em consideração a integração sistemática dos referidos normativos9, o elemento literal e as consequências do incumprimento culposo, conduz-nos à existência de dois institutos jurídicos diferenciados, autónomos entre si e com diferente construção teórica10: ------

- a pena de trabalho a favor da comunidade, substitutiva da pena de prisão; e

- a substituição da pena de multa por dias de trabalho.

Ademais do já exposto quanto à sistemática do Código Penal, também o diploma adjetivo processual penal, no Título III, Capítulo I, reservado à “execução da pena de multa”, no artigo 489.º começa por definir as regras aplicáveis ao pagamento da multa. Seguidamente, e ainda inserido nesse mesmo capítulo, o artigo 490.º regula a “substituição da pena de multa por dias de trabalho”, estabelecendo que o requerimento do condenado deverá ser apresentado no prazo de pagamento da multa e que, em caso de não substituição desta por dias de trabalho, o pagamento deverá efetuar-se no prazo de 15 dias a contar da notificação da decisão.

Por sua vez, a execução da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade surge regulada, autonomamente, nos artigos 496.º e 498.º do Código de Processo Penal.

Distinguem-se também pelas consequências jurídicas do incumprimento.

Na substituição da pena de multa, rege o disposto no artigo 49.º do Código Penal e não o artigo 59.º do mesmo diploma legal.

O artigo 49.º, n.º 1 do Código Penal, estatui que “a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão, não se aplicando, para o efeito, o limite mínimo dos dias de prisão constante do n.º 1 do artigo 41.º”.

Diferentemente, dispõe o artigo 60.º, n.º 2 do Código Penal que verificado o incumprimento culposo da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade o tribunal revoga-a, ordenando “o cumprimento da pena de prisão determinada na sentença”.

Destaca-se também a diferente nomenclatura legal, à qual o intérprete não pode ficar indiferente – “prestação de trabalho a favor da comunidade” e “dias de trabalho”.

Paralelamente, o texto do artigo 48.º, estabelecendo o pressuposto material, refere que a substituição deverá ser deferida quando o tribunal “concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” (destaque nosso).

Se a Lei estabelece que ao regime da prestação de dias de trabalho é correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 58.º e o n.º 1 do artigo 59.º, ambos do Código Penal impõe-se concluir que estamos perante figuras jurídicas distintas11.

Ademais, esta substituição da multa por trabalho pode ser apenas parcial, podendo, inclusivamente, a qualquer momento o condenado liquidar o valor que ainda esteja em dívida, havendo uma total equiparação entre o cumprimento da pena de multa através do pagamento em dinheiro ou por dias de trabalho. Como tal, a prestação de dias de trabalho consubstancia uma autêntica forma de cumprimento da pena de multa, a par do pagamento, voluntário – imediato, deferido no tempo ou em prestações - ou através de execução patrimonial, que não se encontra prevista para outra pena.

Assim, este regime, do cumprimento da multa com dias de trabalho, não obstante alguma similitude terminológica, não se pode confundir com a prestação de trabalho a favor da comunidade, pena substitutiva autónoma que visa, precisamente, substituir uma pena de prisão curta (para quando deva ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos).

Nesta medida, “não poderemos afirmar que a pena de prisão poderá ser substituída por dias de trabalho nem igualmente poderemos afirmar que a pena de multa poderá ser cumprida através de trabalho a favor da comunidade, isso corresponderia a uma forma de desvirtuar um regime que o legislador conseguiu que fosse coerente e equilibrado”12.

Na jurisprudência, nesta senda, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2016, embora abordando um tema diferente, tomou posição expressa no sentido de que a prestação de trabalho não consubstancia uma pena substitutiva da multa, antes uma forma de cumprimento desta pena principal. Nesse aresto afirmou-se que “(…) Não estamos, pois, a admitir aquilo que por vezes incorretamente se afirma quando se diz que o condenado em pena de multa pode substituí-la por prestação de trabalho. Não se trata aqui de uma substituição, ou da aplicação de uma outra pena em vez de uma pena principal; a pena de substituição que lhe foi aplicada foi a pena de multa, apenas estando agora a pagá-la, diríamos, em espécie e não em numerário. Assim contribuindo para assegurar a finalidade que presidiu à aplicação daquela pena de substituição: evitar as penas curtas de prisão e aplicar uma pena detentiva apenas em ultima ratio”13.

Entendimento que já havia sido sustentado no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 13/2013, onde se referiu que “a prestação de trabalho não constitui, porém, no nosso sistema penal, uma pena principal. Ela não recebeu, sequer, um tratamento unitário no Código Penal. Na verdade, ela funciona em duas vertentes diferentes: umas vezes como pena autónoma, outras como forma de execução de outra pena, concretamente a de multa. Enquanto pena autónoma, constitui pena substitutiva da pena de prisão, com o regime descrito nos arts. 58.º e 59.º do CP, cominada na própria sentença condenatória. Mas também funciona como forma de execução da pena (principal) de multa, nos termos do artigo 48.º do CP, a utilizar se não houver pagamento voluntário da multa e for requerida pelo condenado, sendo então objeto de decisão em sede de execução da pena (artigo 490.º, n.os 1 e 3, do CPP)”14.

O regime legal interpretado como se vem de expor permite, assim, afirmar que a prestação de dias de trabalho pelo condenado, deferido que seja requerimento seu a peticioná-la, consubstancia uma das modalidades de cumprimento voluntário da pena de multa que lhe foi aplicada na sentença ou acórdão condenatório, não sendo uma pena substitutiva, diversamente da prestação de dias de trabalho a favor da comunidade que essa sim é uma verdadeira pena de substituição15.

VI. suspensão da prescrição:

Estabelecida que se encontra a natureza da substituição da pena de multa por dias de trabalho importa, então, averiguar se o requerimento apresentado pelo condenado visando cumpri-la desse modo, suspende – ou não – o decurso do prazo prescricional da multa penal.

1. Em traços largos, o instituto da prescrição encontra-se sedimentado no ordenamento jurídico português há variadíssimas décadas, consubstanciando uma vertente da segurança e paz jurídica. Sintetizando, no Acórdão n.º 483/2002 do Tribunal Constitucional, não reconhecendo a existência de um «verdadeiro direito subjetivo à prescrição» (Acórdãos n.ºs 483/2002, 629/2005 e 126/2009 – … “existem razões, constitucionalmente fundadas, decorrentes da ideia de certeza e de paz jurídica, do estado de direito democrático e do progressivo esbatimento da necessidade de perseguição penal com o decurso do tempo, à luz dos fins que tal perseguição serve, bem como das próprias garantias de defesa dos arguidos, que levam à consagração de um instituto como aquele” e “que é razoável que a sociedade, objectivamente considerada, possa entender - ao menos enquanto se mantiverem em vigor na sua essencialidade os preceitos que instituem a prescrição e rejam os respectivos prazos, modos de ocorrência e contagem - que, uma vez decorrido o tempo previsto nesses preceitos, não reclamam perseguição criminal os agentes de factos delituosos cuja prática de há muito ocorreu, o que inculca que também é razoável que aquela sociedade conte com que aquela perseguição não opere mediante normas ou processos interpretativos de onde resulte, na realidade prática, a ineficácia da actuação do instituto da prescrição.”

Do mesmo modo, a prescrição da pena pode ser fundada no princípio da proporcionalidade. Como se escreveu no Acórdão n.º 625/13: «Pode dizer-se, por isso, que a prescrição das penas é uma exigência do princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade. Dado que o direito penal utiliza como sanções os meios mais onerosos para os direitos e as liberdades, designadamente o direito à liberdade, ele só deve intervir quando haja uma carência absoluta de tutela penal para a proteção de um determinado bem jurídico. Ora, quando o tempo decorrido torna desnecessário o cumprimento da pena, deve o instituto da prescrição atuar de modo a impedir que ela aconteça16

O Instituto da prescrição encontra-se previsto nos artigos 118.º a 126.º do Código Penal, estando dividido em dois capítulos: prescrição do procedimento criminal – artigos 118.º a 121.º – e prescrição da pena – artigos 122.º a 126.º.

O legislador entendeu que, decorrido um determinado lapso de tempo após o trânsito em julgado da decisão que determinou a aplicação duma pena, (…), sem que se tenha iniciado o seu cumprimento, as finalidades visadas com a sua imposição esfumam-se, perdendo sentido o seu cumprimento.17

Considera-se que o decurso de determinados períodos temporais, cujos prazos, no caso da prescrição da pena, são definidos por referência à gravidade da que foi concretamente aplicada (cfr. artigo 122.º, n.º 1 do Código Penal), é fundamento para afastar a atuação do direito penal e efetivação das consequências jurídicas do crime cometido, uma vez que, decorrido um significativo lapso temporal, “(…) a censura comunitária traduzida no juízo de culpa esbate-se, se não chega mesmo a desaparecer. Por outro lado, e com maior importância, as exigências da prevenção especial, porventura muito fortes logo a seguir ao cometimento do facto, tornam-se progressivamente sem sentido e podem mesmo falhar completamente os seus objectivos: quem fosse sentenciado por um facto há muito tempo cometido e mesmo porventura esquecido, ou quem sofresse a execução de uma reacção criminal há muito tempo já ditada, correria o sério risco de ser sujeito a uma sanção que não cumpriria já quaisquer finalidades de socialização ou de segurança. Finalmente, e sobretudo, o instituto da prescrição justifica-se do ponto de vista da prevenção geral positiva: o decurso de um largo período sobre a prática de um crime ou sobre o decretamento de uma sanção não executada faz com que não possa falar-se de uma estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, já apaziguadas ou definitivamente frustradas”18.

A prescrição das penas funciona, assim, como um pressuposto negativo da punição, sendo apontado a este instituto uma natureza mista, substantiva e processual, que leva a que as normas que integram o seu regime sejam qualificadas como normas processuais materiais (FIGUEIREDO DIAS, na ob. cit, pág. 702, da ed. de 1993, da Aequitas, e PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, em “Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pág. 383, da 2.ª ed., da Universidade Católica Editora)19.

Para o instituto da prescrição o tempo é, pois, fator determinante, assumindo influência sobre o exercício do poder punitivo do Estado e, no reverso, favorecendo o arguido a quem foi aplicada uma pena. Por isso, à medida que vai decorrendo, sobre o trânsito em julgado da decisão condenatória sem que a pena tenha sido cumprida, vão-se esbatendo as finalidades que legitimaram a aplicação da pena, reduzindo-se as necessidades da sua execução.

Quando o cumprimento da pena se encontra temporalmente muito distante da condenação, a execução tardia não cumpriria as respetivas finalidades e tornar-se-ia inútil.

Quando assim sucede, a prescrição extingue a pena aplicada.

Contudo, nem sempre o mero decurso do tempo deve conduzir à prescrição da pena ou da medida de segurança judicialmente decretada em decisão condenatória definitiva. Tal não deverá favorecer o condenado quando o Estado reafirma, através de certos atos de perseguição penal, a pretensão punitiva ou quando ocorrem circunstâncias ou situações que justificadamente impeçam a execução da condenação20. Trata-se de ocorrências a que o legislador atribuiu o efeito de impedir que o prazo prescricional se inicie ou continue a correr, paralisando-o. Nessas situações, a prescrição fica suspensa, apenas se iniciando o prazo ou retomando o seu decurso quando o acontecimento cessa. Diferentemente, no instituto da interrupção da prescrição, o ato interruptivo elimina o prazo que já tiver decorrido e começa a correr, a partir desse momento, novo prazo prescricional.

2. Estabelece o legislador – no artigo 122º, n.º 2 do Código Penal - que o prazo de prescrição da pena se inicia no momento em que a decisão condenatória transita em julgado, suspendendo-se ou interrompendo-se nos termos legalmente definidos, respetivamente, nos artigos 125.º e 126.º do mesmo Código.

As causas de suspensão e de interrupção da prescrição da pena estão taxativamente previstas, estando sedimento entendimento de que neste domínio não poderá haver recurso à analogia21.

No que respeita às causas de suspensão da prescrição, o já citado artigo 125.º, do Código Penal (na redação atual, dada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março) estabelece, no n.º 1 que “A prescrição da pena e da medida de segurança suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:

a. Por força da lei, a execução não puder começar ou continuar a ter lugar;

b. Vigorar a declaração de contumácia;

c. O condenado estiver a cumprir outra pena ou medida de segurança privativas da liberdade; ou

d. Perdurar a dilação do pagamento da multa.

Porque o dissídio jurisprudencial a resolver respeita unicamente à causa de suspensão da prescrição consagrada na alínea a), é apenas da mesma que aqui nos ocupamos.

Deverá salientar-se que não têm a mesma moldura semântica as expressões “por força da lei” empregue na norma em apreço e os “casos especialmente previstos na lei” constante do corpo do referido artigo 125º. A segunda refere-se a realidades especificadamente tipificadas em determinada norma, exigindo que a suspensão da prescrição da pena esteja expressa e especialmente firmada numa determinada norma. Diversamente, com a primeira, - que a prescrição da pena se suspende por força de lei -, o legislador razoável que soube exprimir-se em termos adequados, não querendo, seguramente, repetir o que acaba de dizer no corpo do preceito, estabeleceu um critério normativamente previsto, aplicado a situações em que a lei, por razões de ordem substantiva ou adjetiva, não permite que se inicie ou se retome o cumprimento da pena.

Servindo-nos do exposto na fundamentação22 da decisão tirada no já referenciado Acórdão n.º 625/2013 do Tribunal Constitucional, 2ª secção, enfatizamos que nesta norma “relevam-se as condicionantes legais que possam impedir o início ou a continuação do cumprimento da pena. Designadamente, a necessidade do prosseguimento, por imposição da própria lei, de um determinado programa processual que é incompatível com o simultâneo cumprimento da pena, justifica que, durante o respetivo período, não conte o prazo de prescrição estabelecido. Nessas situações, o tempo que corre não é fator de esquecimento da pena, antes mantém viva a sua existência, por força da pendência ativa desse procedimento conducente à sua execução, mas impeditivo do seu início ou continuação.

Assim, a justificação da causa de suspensão do prazo prescricional em apreço durante esse período em que não é possível, por força do regime legal vigente, iniciar-se o cumprimento da pena, encontra-se nesse estado de pendência do procedimento conducente à efetivação da pena em que o arguido foi condenado por decisão transitada em julgado, o qual impossibilita o início do seu cumprimento. Não se trata de sancionar qualquer comportamento, mormente de sujeitos processuais, mas de considerar no domínio prescricional esse período como um tempo em que permanecem vivas e atuantes as finalidades da pena.”

Reafirma-se que nos presentes autos está, precisamente e apenas, saber se a apresentação, pelo condenado, de um requerimento a peticionar a substituição da pena de multa por dias de trabalho integra, ou não, a causa de suspensão da prescrição prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 125.º do Código Penal nos termos do qual os prazos de prescrição das penas se suspendem quando, por força da lei, a sua execução não se possa iniciar ou continuar a ter lugar.

Afigura-se, desde logo, manifesto, tendo em conta o elemento literal do normativo em causa, que a suspensão terá de resultar por imposição da própria lei, no sentido de a mesma impedir que se inicie ou que se continue a execução da pena aplicada. Não basta que estanque o andamento do processo, que suspenda os respetivos termos. O princípio da legalidade previsto no artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República demanda que dos termos da lei decorra que não pode exigir-se o cumprimento da pena.

Neste sentido, afirma Germano Marques da Silva que “a previsão da alínea a) significa apenas que, como no corpo do artigo, a lei pode estabelecer outras causas de suspensão da prescrição além das indicadas nas alíneas seguintes e que só a lei o pode fazer, não cabendo por isso ao foro judicial criar ou justificar causas de suspensão não especialmente previstas”23.

Exemplos paradigmáticos desta causa de suspensão decorrentes de lei são: (i) o perdão da pena sob condição resolutiva que tem sido prática firmada nas sucessivas leis de amnistia de infrações e perdão de penas; (ii) a situação em que, tendo a multa sido substituída por dias de trabalho, a prestação estiver provisoriamente suspensa por motivo grave de ordem médica, familiar, profissional, social ou outra (artigos 48º n.º 2 e 59º n.º 1 do mesmo Código); (iii) a situação em que foi admitido recurso interposto de decisão judicial posterior ao trânsito em julgado da condenação a que a lei atribua efeito suspensivo, conforme se extrai do citado Acórdão n.º 625/2013, no qual o Tribunal Constitucional decidiu “não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 125.º, n.º 1, a), do Código Penal, interpretado no sentido de que os recursos interpostos durante o prazo de prescrição da pena, ainda que lhes tenha sido atribuído efeito suspensivo sobre as decisões recorridas relativas ao cumprimento daquela, têm o efeito de suspender o prazo de prescrição da pena aplicada. Motivando entendeu que nestas situações “as finalidades da pena não se esfumam, antes mantém viva a sua existência, por força da pendência ativa do processo conducente à sua execução, pelo que a interpretação sindicada não se revela excessiva face à garantia substantiva subjacente ao instituto da prescrição, não merecendo censura perante o disposto nos artigos 27.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição”.

Será que o texto da Lei se refere, também, a outros atos processuais empreendidos pelo tribunal destinados a executar a pena de multa e, especificamente para o que aqui releva, esclarecer se a apresentação de um requerimento do condenado a peticionar o pagamento em prestações tem a virtualidade de suspender o prazo prescricional?

Em várias ocasiões no processo, há momentos em que não existe uma execução propriamente dita da pena, em que não estamos perante uma execução em sentido restrito. Mas naturalmente que as causas de suspensão da prescrição, limitadas e taxativamente elencadas, não visam abranger o amplo espetro de situações. O procedimento comum é o de o prazo de prescrição da pena, iniciado com o trânsito em julgado da decisão condenatória, se encontrar a correr, devendo a pena ser cumprida no mais curto espaço temporal possível, de forma que as necessidades de prevenção sejam asseguradas, apenas se suspendendo quando a lei expressamente o estabelece ou preveja.

Nesta senda, “não pretende o legislador, obviamente, referir-se às vicissitudes procedimentais e processuais inerentes ao próprio processo onde foi imposta a pena e à ordem do qual a mesma deve ser executada e cumprida, designadamente os procedimentos tendentes à execução da pena, sob pena de a prescrição se dever ter por suspensa, grosso modo, perante qualquer acto ou incidente processual”24.

Ao decidido no acórdão fundamento parece estar subjacente o entendimento que a prestação de dias de trabalho não consubstancia a execução da pena de multa, explicitando que ao ser concedida ao condenado a possibilidade de lhe ser deferida a aplicação de tal pena substitutiva, é a própria lei que determina que a execução da pena de multa não deverá ter lugar. Não assenta os seus fundamentos em qualquer tipo de aplicação analógica, antes entendendo que sendo a própria lei a atribuir ao condenado a possibilidade de “suspender” a obrigação de pagamento da multa, para que possa prestar o trabalho a favor da comunidade, naturalmente que o tribunal não poderá, nesse período temporal executar a multa. Como tal entendeu25 que, apresentado o requerimento e até que o mesmo esteja definitivamente decidido (e, em caso de deferimento, até que haja decisão de revogação) não irá o tribunal emitir guias para pagamento, nem o Ministério Público impulsionará a execução coerciva, pelo que a execução não pode ter lugar.

Entendeu que a suspensão da prescrição da pena de multa nessa situação resulta do disposto no artigo 125.º, nº 1, al. a), do Cód. Penal. Afirmando tratar-se de uma situação em tudo semelhante à dilação do pagamento da multa, tal como se prevê na al. d) do nº 1 do art.º 125º do Cód. Penal.

Retomando as considerações expostas supra acerca da natureza desta prestação de trabalho, reafirma-se que a substituição da multa por dias de trabalho é uma modalidade de cumprimento voluntário da pena de multa, a par do pagamento integral, - imediato ou deferido - ou do pagamento em prestações26.

Nesta medida, o requerimento apresentado pelo arguido com vista à substituição da pena de multa por dias de trabalho, tratando-se de uma forma de cumprimento em determinada espécie – com a força do trabalho - da pena de multa, bem como todas as diligências que são desencadeadas pelo tribunal com vista à efetivação desse trabalho, integra-se na tramitação processual normal prevista para o cumprimento da pena de multa. Assim, no momento em que o condenado prestar a primeira hora de trabalho, dá-se início, justamente, à execução da pena de multa, da mesma forma que, no caso da pena de prisão, a execução da pena se inicia com a privação da liberdade. Contudo, quando estamos perante uma condenação em pena de prisão, não é dada qualquer relevância – ao nível da suspensão do prazo prescricional – a todos os actos adoptados pelo tribunal no sentido de, por exemplo, apurar o paradeiro do arguido com vista à execução dessa mesma pena ou enquanto estão pendentes mandados de detenção. Trata-se de actuações processuais que visam dar cumprimento à pena em que o arguido foi condenado, tal qual os actos prévios que são levados a cabo pelos serviços, antes da prestação dos dias de trabalho com que o condenado requereu - e obteve – poder cumprir a pena de multa.

Do mesmo modo que a instauração de processo executivo para cobrança coerciva do valor relativo à multa penal consubstancia um acto tendente à sua execução27, perfeitamente equiparável à situação sub judice.

Sendo a prestação de trabalho uma forma de cumprimento da multa, não pode afirmar-se que enquanto ocorre a prestação, a execução da pena de multa não é exigível. Ao invés, ela encontra-se em execução nesta modalidade legalmente prevista. O que realmente não pode é instaurar-se execução patrimonial, “mas [esta] não é a única forma legal de cumprimento da pena de multa”.28 Nem pode converter-se a multa em prisão subsidiária29.

Consequentemente, o requerimento do arguido a peticionar o substituição da pena de multa por dias de trabalho, não é acto ou facto que não permita o início ou continuação da execução da pena, antes consubstanciando diligências processuais prévias que o tribunal tem de levar a cabo, com vista a autorizar (ou não) que a pena de multa seja cumprida nessa modalidade, diligências que não assumem eficácia suspensiva da prescrição, fazendo parte da normal tramitação do processo, identicamente a todos os actos que são adoptados com o objectivo de executar as penas30. Se assim não fosse, em todos esses momentos se poderia afirmar que, por não ser possível executar a pena, em sentido estrito, a prescrição sempre estaria suspensa, à mercê das contingências e atrasos dos vários tribunais, sem qualquer limite temporal definido, o que contraria em absoluto os princípios subjacentes ao instituto da prescrição.

“A reforçar este entendimento há que ter presente, ainda, o que sucede relativamente à suspensão e à interrupção do procedimento criminal, previstas nos artigos 120º e 121º, do Código Penal, preceitos em que o legislador pretendendo que o procedimento criminal se suspenda ou interrompa perante determinados actos ou situações processuais, indica-os especificadamente (…)”31.

É por tais actos processuais não integrarem a causa de suspensão prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 125.º do Código Penal que, quanto à dilação no pagamento da pena multa, o legislador teve a necessidade de prever expressamente tal circunstância como suspensiva do prazo prescricional (alínea d) do referido normativo).

Nesta medida, seria necessário existir previsão legal expressa no sentido de atribuir ao requerimento apresentado pelo arguido a peticionar a substituição da multa por dias de trabalho, o valor de causa suspensiva da prescrição da pena, o que, manifestamente, não sucede.

Como tal e visando esse requerimento desencadear o procedimento judicial destinado a autorizar o cumprimento da pena de multa através da prestação de dias de trabalho, é imperativo concluir que o mesmo não suspende a execução da multa, antes conduz (sendo deferido) à sua concretização (naquela modalidade). Assim, encontrando-se a pena de multa em vias de ser cumprida, não se verifica a suspensão da prescrição pena, nos termos do artigo 125.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.

Desta forma, conclui-se que a apresentação do requerimento, por parte do condenado, com vista à substituição da multa por dias de trabalho, nos termos do artigo 48.º do Código Penal, não integra a causa de suspensão da prescrição prevista no artigo 125.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.

3. jurisprudência fixada:

Em face do exposto, o Supremo Tribunal de Justiça, em Pleno das Secções Criminais, decidindo confirmar o acórdão recorrido, fixa a seguinte jurisprudência: -


*


«O requerimento apresentado pelo condenado, peticionando a substituição da multa por dias de trabalho, nos termos do artigo 48.º, n.º 1 do Código Penal, não integra a causa suspensiva da prescrição prevista no artigo 125.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal

Sem custas (não são devidas por não ter havido decaimento e, ademais, o Ministério Público goza de isenção) – artigos 513.º n.º 1 e 522.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 4.º n.º 1 al.ª al. a) do Regulamento das Custas Processuais).

Oportunamente, cumpra-se o disposto no artigo 444.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

Lisboa, 11 de outubro de 2023

(Processado e revisto pelo Relator)

Nuno António Gonçalves (Relator)

Maria Teresa Féria Gonçalves de Almeida

Sénio Manuel dos Reis Alves

Ana Maria Barata de Brito

Orlando Manuel Jorge Gonçalves

Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias

Pedro Manuel Branquinho Ferreira Dias

Leonor do Rosário Mesquita Furtado

Teresa de Jesus Oliveira de Almeida

Ernesto Carlos dos Reis Vaz Pereira

Agostinho Soares Torres

António João Casebre Latas

José Eduardo Miranda Santos Sapateiro

Helena Isabel Gonçalves Moniz Falcão de Oliveira

José Luís Lopes da Mota

______


1. O DL n.º 48/95, de 15 de março alterou o tempo verbal de (“… não possa …”) para (“… não puder …”).

2. As penas principais aplicáveis às pessoas coletivas são a dissolução e a multa – artigo 90º-A do Código Penal.

3. DIAS, JORGE DE FIGUEIREDO, “Direito Penal, Parte geral II, As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas Editorial Notícias, 1993, pág. 91

4. DIAS, JORGE DE FIGUEIREDO, “As Consequências …”, pág. 139, § 168.

5. O que não obsta à suspensão da execução da prisão subsidiária, necessariamente subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro – artigo 49.º n.º 3 do Código de Processo Penal.

6. Antunes, Maria João, “Penas e Medidas de Segurança”, Almedina, 2020, pág. 106 e 131/131, defende que a substituição por dias de trabalho não é pena substitutiva, consubstanciando “uma forma alternativa de cumprimento voluntário da multa”.

  No mesmo sentido CUNHA, MARIA DA CONCEIÇÃO FERREIRA DA, “As Reações Criminais no Direito Português”, Universidade Católica, maio de 2022, § 172, pág. 91.

  ALBUQUERQUE, PAULO PINTO DE, “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos”, Universidade Católica Editora, 5ª edição, pág. 334, afirma que a prestação de trabalho é uma forma de execução da multa antes de o condenado entrar em incumprimento e não uma pena de substituição.

  Rodrigues, Hélio Rigor, “Cumprimento da pena de multa de substituição”, Revista do Ministério Público, n.º 131: julho – setembro de 2012, pág. 199, entende que a prestação de dias de trabalho equivale ao que constava no regime anterior, consubstanciando uma efetiva forma de cumprimento da pena de multa.

  Também assim SILVA, PEDRO GAMA DA, “A Prescrição no Direito Penal Português”, Almedina, 2ª ed., 2023, pág. 196.

7. Vd. nota anterior.

8. Vd. infra, máxime: ACÓRDÃO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA n.º 13/2013, onde se sustenta que os dias de trabalho funcionam “como forma de execução da pena (principal) de multa”.

9. Destacando que o artigo 490.º do Código de Processo Penal se encontra inserido num capítulo dedicado, precisamente, à execução da pena de multa.

10. CUNHA, MARIA DA CONCEIÇÃO FERREIRA DA CUNHA, “As Reações Criminais …”, cit. salienta que “não está aqui em causa exatamente uma pena de substituição (diversamente da pena de trabalho a favor da comunidade, que é uma verdadeira pena de substituição”, páginas 91 e 92/93, § 172 e 173.

  Também SILVA, PEDRO GAMA DA, “A Prescrição …”, Almedina, 2ª ed., 2023, pág. 196, sustenta que “os dias de trabalho não são uma pena de substituição …, mas antes um modo de execução da pena de multa”.

11. Neste sentido, Rodrigues, Hélio, “Cumprimento …”, cit. pág. 202.

12. Rodrigues, Hélio, “Cumprimento …”, citado, pág. 200.

13. De 18 de fevereiro de 2016, em DR, I Série, n.º 56, de 21.03.2016.

14. De 18.09.2013, em DR, I Série, n.º 201, de 17.10.2013.

15. CUNHA, MARIA DA CONCEIÇÃO FERREIRA DA, “As Reações …”, cit., pág. 91, § 172.

16. Acórdão n.º 366/2018, do TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, em www.tribunalconstitucional.pt.

17. Acórdão n.º 625/2013, do TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, em ww.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.

18. Dias, Jorge de Figueiredo, “…, As consequências do Crime”, Aequitas Editorial Notícias, 1993, página 699.

19. Acórdão do TRIBUNAL CONSTITUCIONAL n.º 625/2013, citado.

20. DIAS, J. FIGUEIREDO, ob. citada, pág. 708.

  Também Silva, Pedro Gama da, “A Prescrição …”, cit., Almedina, 2018, pág 47.

21. Vd. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 110/2007, processo n.º 788/06, de 15 de fevereiro de 2007 e n.º 625/2013 de 26 de setembro de 2013, processo n.º 239/13.

22. Reafirmada por transcrição no Acórdão n.º 463/2016 do mesmo TRIBUNAL.

23. “Direito Penal Português, Parte Geral, III, Penas e Medidas de Segurança”, Editorial Verbo, 2008, 2.ª edição, página 268.

24. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de setembro de 2015, processo n.º 53/11.6PKLRS-A-S1, disponível em www.dgsi.pt.

25. Alinhado com, entre outros, os Acórdãos da mesma Relação (Évora), de 13 de julho de 2017, processo n.º 1936/09.9TAFAR-A.E1; e de 22 de janeiro de 2019, processo n.º 554/09.6GAOLH-A.E1, disponíveis em www.dgsi.pt. No primeiro aresto entendeu-se que “(…) a partir do momento em que a arguida requer a substituição da multa pela prestação de trabalho a favor da comunidade - aliás, no exercício de um direito que lhe assiste - o tribunal ficou impedido de executar a pena de multa, pois que a mesma ficou dependente da apreciação desse pedido; é um direito que assiste ao arguido de ver apreciada aquela questão - que obsta ao início da execução da pena - e, uma vez deferida a sua substituição, de não a ver executada enquanto não for revogada a pena pela qual foi substituída, o mesmo é dizer que aquela pena não era exequível, nos termos do art.º 125 n.º 1 al.ª a) do CP. (…) Não pode esquecer-se que a execução da pena de multa não é algo que esteja na disponibilidade arbitrária do Ministério Público, pelo contrário, a sua execução é tarefa sujeita ao princípio da legalidade, cujo início, processamento e termos dependem de determinados pressupostos processuais que no caso - a partir do momento em que a arguida pede para ser substituída - deixaram de se verificar, impedindo o Ministério Público de dar início à execução de tal pena.”

26. No ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA n.º 2/2012, de 8 de março de 2012, afirmou-se que “a execução da pena de multa consubstancia-se no pagamento, voluntário ou coercivo, por conta da mesma, a não ser nos casos de substituição por trabalho ou conversão em prisão subsidiária”.

27. Situação apreciada no âmbito do já referido ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA n.º 2/2012, de 8 de março de 2012.↩︎

28. Assim, SILVA, PEDRO GAMA DA, “A Prescrição …” cit., pág. 197, que afasta “desta causa de suspensão da prescrição o período que decorre entre o trânsito em julgado da decisão condenatória e o termo final para pagamento voluntário da pena de multa e o período que media entre a apresentação do pedido para pagamento da multa em prestação e a decisão do mesmo”.

29. Que, realça-se, “não representa uma diferente pena, mas sim uma sanção de constrangimento, conducente à realização do efeito pretendido de pagamento da multa” – Acórdão do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, de 30.03.2023, proc. 147/18.7PALGS.1.E1.S1, em www.dgsi.pt/jstj. Tanto assim que o condenado pode ainda pagar a multa, no todo ou na parte ainda não cumprida, e com isso evitar ou fazer cessar a prisão subsidiária – artigo 49º n.º 2 do Código Penal.

30. SILVA, PEDRO GAMA DA, ob. cit. pág. 196, considera “não haver fundamento legal de suspensão do prazo de prescrição, enquadrável na al. A) do n.º 1 do art.º 125º do CP, nem para a apresentação do pedido formulado para a substituição da multa por trabalho, nem para a decisão que defere o pedido, nem para o período que decorre entre a formulação de tal pedido e a decisão que revogue o cumprimento por dias de trabalho”.

  ALBUQUERQUE, PAULO PINTO DE, “Comentário …” cit. pág, 551, convocando a fundamentação do Acórdão para Fixação de Jurisprudência n.º 2/2012, afirma que “a prescrição da pena de multa não se suspende com o pedido do arguido de pagamento em prestações nem com o pedido do arguido para substituição da pena de multa em que foi condenado pela prestação de trabalho a favor da comunidade“ e que “o período que decorreu entre o trânsito em julgado da decisão e o termo final do para pagamento voluntário da multa não consubstancia causa de suspensão da prescrição da pena

31. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de setembro de 2015, processo n.º 53/11.6PKLRS-A-S1, disponível em www.dgsi.pt.