Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3210/07.6TCLRS.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ÁLVARO RODRIGUES
Descritores: EXCEPÇÃO DE CASO JULGADO
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
Data do Acordão: 03/21/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS (EXCEPÇÕES) / SENTENÇA (EFEITOS).
Doutrina:
- Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. V, pg. 174.
- Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil”, Anotado, vol. 2º, 2ª ed., p. 354.
- Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pp. 306, 319.
- Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 579; “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material”, BMJ 325, p. 49 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 503.º, N.º1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 497º, NºS 1 E 2, 498.º, 673.º, 677.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:
-DE 28.09.2010, Pº 392/09.6 TBCVL.S1, EM WWW.DGSI.PT .
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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 13.12.2007, PROCESSO Nº 07A3739;
-DE 06.03.2008, PROCESSO Nº 08B402;
-DE 12.07.2011, PROCESSO 129/07.4.TBPST.S1;
-DE 23.11.2011, PROCESSO Nº 644/08.2TBVFR.P1.S1;
TODOS EM WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I- O caso julgado tem como limites os que decorrem dos próprios termos da decisão, pois como estatui o artº 673º do CPC, «a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga».

Trata-se de um corolário do conhecido princípio dos praxistas enunciado na fórmula latina «tantum judicatum quantum disputatum vel disputari debebat».

II- Mesmo para quem entenda que relativamente à autoridade do caso julgado não é exigível a coexistência da tríplice identidade, como parece ser o caso da maioria jurisprudencial e de amplo sector doutrinal, será sempre em função do teor da decisão que se mede a extensão objectiva do caso julgado[1]e, consequentemente, a autoridade deste.

III- Ainda que se não verifique o concurso dos requisitos ou pressupostos para que exista a excepção de caso julgado (exceptio rei judicatae), pode estar em causa o prestígio dos tribunais ou a certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais se uma decisão, mesmo que proferida em outro processo, com outras partes, vier dispor em sentido diverso sobre o mesmo objecto da decisão anterior transitada em julgado, abalando assim a autoridade desta.

Decisão Texto Integral:

Acordam no SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

RELATÓRIO

AA, Lda intentou no Tribunal Judicial de Loures ação declarativa de condenação com processo ordinário contra BB, CC, Lda e DD, S.A, todos com os sinais dos autos.

A A. alegou, em síntese, que no exercício da sua atividade de comércio e aluguer de veículos sem condutor, em 23.9.1999 celebrou com a 2.ª R. um contrato de locação mediante o qual cedeu àquela o uso de um veículo marca Mercedes, matrícula 00-00-00. A referida locatária celebrou com a ora 3.ª R. um contrato de seguro que teve por objeto o referido veículo, sendo o plafond da responsabilidade civil ilimitado e o dos danos próprios, que envolvessem, entre outros riscos, o de choque-colisão ou capotamento, o quantum indemnizatório até ao valor de Esc. 13 000 000$00 (€ 64 843,73), sendo a franquia de 2%. No dia 19.12.1999 ocorreu um acidente de viação em que intervieram o aludido veículo 00-00-00 e o veículo com a matrícula 00-00-00. À data o veículo 00 era conduzido pelo ora 1.º R., gerente da 2.ª R., e o veículo 00 era conduzido por EE.

O 00 estava segurado na Companhia de Seguros FF, S.A.

Em virtude do acidente deu-se a perda total dos dois veículos.

Por sentença transitada em julgado decidiu-se pelo concurso de culpas dos dois condutores, tendo o condutor do 00 contribuído para o acidente em 80% e o outro condutor (do 00) em 20 %. A A. já foi ressarcida na indicada proporção de 20% pela seguradora FF, S.A., no montante de € 6 802,00. Ficou por receber os restantes 80% do valor do veículo, ou seja, € 27 208,00.

Subsequentemente a A. instaurou contra os ora RR. e outro uma ação, tendo os RR. sido absolvidos do pedido, formulado com base no contrato de locação e fiança. Subsiste a responsabilidade objectiva ou pelo risco. Sendo a A. proprietária do veículo, que totalmente perdeu por causa do acidente, recebendo apenas 20% do seu valor, deve ser ressarcida dos restantes 80%, solidariamente, pelos RR.. O ora 1.º R. actuou com imperícia, inconsideração, negligência, falta de destreza e com violação das disposições aplicáveis do Código da Estrada, pelo que incorre na obrigação de indemnizar a proprietária do veículo sinistrado pelos danos patrimoniais emergentes do citado acidente de viação.

A responsabilidade da 2.ª R. emerge da circunstância de deter o uso do veículo que estava contratualmente obrigada a conservar em perfeitas condições e a da seguradora emerge do respectivo contrato de seguro.

A A. terminou pedindo que os RR. fossem solidariamente condenados a pagar à A. a quantia de € 27 208,00, acrescida de juros moratórios calculados à taxa legal desde 19.12.1999 até ao efectivo pagamento.

A Ré seguradora contestou, arguindo a incompetência territorial do tribunal, que o seguro de responsabilidade civil não cobre os danos causados no próprio veículo seguro, de que a A. é proprietária, que o direito de indemnização está prescrito, que ignora as circunstâncias do acidente, não foi parte na primeira ação referida e foi absolvida da instância na segunda ação.

A R. seguradora concluiu pela incompetência do tribunal quanto ao território e pela sua absolvição do pedido.

Também o 1.º R. contestou, arguindo a sua ilegitimidade passiva, invocando a contradição alegadamente consistente em se reivindicar a sua condenação no âmbito da responsabilidade pelo risco e simultaneamente invocar-se a culpa do R., e que apenas a 2.ª R. poderia ser responsabilizada pelo risco, por ser a detentora do veículo, sendo certo que essa R. transferira a sua responsabilidade para a R. seguradora.

O 1.º R. terminou concluindo pela sua absolvição da instância, por ser parte ilegítima, ou pela improcedência da ação e sua consequente absolvição do pedido.

Igualmente a 2.ª R. contestou, arguindo a sua ilegitimidade processual, a contradição consistente na invocação de responsabilidade pelo risco com base na culpa do 1.º R., e deduziu pedido reconvencional, emergente de rendas alegadamente pagas indevidamente.

A 2.ª R. terminou pedindo a sua absolvição da instância, por ser parte ilegítima ou, se assim não se entendesse, a improcedência da ação e a sua absolvição do pedido; mais pediu que o pedido reconvencional fosse julgado procedente e consequentemente a A. fosse condenada a pagar à R. a quantia de € 3 999,84, acrescida de juros legais vencidos e vincendos, desde a citação até integral pagamento. Mais pediu que a A. fosse condenada como litigante de má fé, em multa e indemnização à R., a liquidar em sede de execução de sentença.

Em 02.11.2010 foi proferido despacho em que o tribunal de Loures se julgou incompetente quanto ao território e ordenou a remessa dos autos para distribuição pelas Varas Cíveis de Lisboa.

Em 30.01.2012 foi proferido saneador-sentença em que se decidiu:

a) Julgar improcedentes as excepções de ilegitimidade arguidas pelo 1.º e 2.º RR.;

b) Julgar improcedente a exceção de prescrição arguida pela 3.ª R.;

c) Julgar improcedentes os pedidos de condenação como litigantes de má fé deduzidos pelas partes;

d) Com base na autoridade de caso julgado da decisão proferida na ação que correu termos na 11.ª Vara Cível de Lisboa, 3.ª Secção, sob o n.º 4716/2000, julgar a ação totalmente improcedente e consequentemente absolver os RR. do pedido, com custas pela A..

A Autora apelou da sentença para o Tribunal da Relação de Lisboa que, julgando a Apelação procedente, revogou a decisão recorrida e determinou que fosse dado seguimento aos autos.

       A Ré Cª de DD, S.A., inconformada,  veio interpor recurso de Revista para este Supremo Tribunal de Justiça, rematando as suas alegações, com as seguintes:

         CONCLUSÕES

1ª Em acção intentada por CC, Lda. contra Companhia de Seguros FF, S A, que correu termos pela 11ª vara cível de Lisboa, 3ª secção, processo 4716/2000, emergente do acidente de viação em que intervieram os veículos 00-00-00 e 00-00-00, foi proferida, sentença, transitada em julgado, atribuindo a culpa do sinistro a ambos os condutores, na proporção de 80% ao do 00 e de 20% ao do 00.

2ª Na presente acção a A., ora recorrida, pede a condenação da ora recorrente, de CC e de BB no pagamento de 80% dos danos que alega ter sofrido em consequência do mesmo acidente.

3ª E fundamenta o pedido em responsabilidade objectiva ou pelo risco decorrente da circulação e riscos próprios do 00-00-00,  como inquestionavelmente se alcança do artigo 18° da petição inicial: "Tendo esta douta sentença absolvido os ora Réus do pedido formulado no contrato de locação e fiança, subsiste a responsabilidade objectiva ou pelo risco (cfr. artºs. 499 e seguintes do C. Civil) emergente do mesmo acidente de viação".

4ª É forçoso entender que a sentença proferida na mencionada acção da 11ª Vara Cível de Lisboa exerce autoridade de caso julgado na presente acção.

5ª Com efeito, o instituto do caso julgado exerce duas funções: uma positiva e outra negativa.

6ª Esta última é exercida através da excepção de caso julgado (artigo 497° -1 e 2 do CPC) que tem em vista evitar a repetição de causa idêntica obstando a que se contradiga ou reproduza decisão anterior.

7ª A função positiva é exercida através da autoridade do caso julgado (artigo 671° -1 do CPC) a qual impede que uma questão que já foi decidida com trânsito em julgado possa voltar a ser discutida judicialmente.

8ª  Donde resulta que, enquanto a excepção de caso julgado pressupõe a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir, tal não ocorre quanto á autoridade do caso julgado.

9ª  Na verdade, esta última tem por função impedir que o órgão jurisdicional seja chamado a discutir questão que já foi objecto de decisão definitiva, não sendo necessária a falada identidade.

10ª E como se refere na douta sentença de 1ª instância: essa autoridade de caso   julgado   "incide   sobre   a   decisão   como   conclusão   de   certos fundamentos e atinge esses fundamentos  como pressupostos  daquela decisão"

11ª   Ora,   a   sentença   do   processo   da   11ª   vara   cível   de   Lisboa   decidiu definitivamente que no sinistro em causa houve concorrência de culpas de ambos os condutores, na proporção de 80% para o do 00 e de 20% para o do 00, matéria que está abrangida pela autoridade do caso julgado.

12ª Estando, pois, definitivamente afastada a responsabilidade objectiva ou pelo risco invocada pela A., ora recorrida, como causa de pedir.

13ª Ao julgar procedente o recurso, revogando a douta sentença de 1ª instância e ordenando o prosseguimento dos autos, o Acórdão recorrido violou por erro de aplicação o disposto no artigo 671°-1do CPC.

14ª Por todo o exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso revogando o Acórdão recorrido e confirmando inteiramente a douta sentença da 1ª instância, como é de JUSTIÇA

Foram apresentadas contra-alegações pela Autora, pugnando pela improcedência do recurso, com consequente manutenção do Acórdão recorrido

         Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, pois nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, sendo que este é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, nos termos, essencialmente, do artº 684º, nº 3 do CPC, como, de resto, constitui doutrina e jurisprudência firme deste Tribunal.

FUNDAMENTOS

         Das instâncias, vem dada como provada a seguinte factualidade:

1- Correu seus termos na 11ª Vara Cível de Lisboa, 3ª Secção, sob o nº 4716/2000, acção declarativa de condenação intentada pela ora R. CC contra a Companhia de Seguros FF, S.A. no âmbito da qual foi peticionada a condenação da ré no pagamento da quantia de 11.261.966$00, acrescida de juros de mora, desde a data de entrada da acção até integral pagamento.

Para tanto, a aí autora alegou, em síntese, ter celebrado com a ora A. um contrato de aluguer do veículo 00-00-00 e ter ocorrido um acidente de viação no dia 19.12.1999, na Praça Humberto Delgado, em Lisboa, em que foram intervenientes o referido veículo, conduzido pelo ora R. BB, e o veículo 00-00-00, segurado na ré, acidente imputável ao condutor do veículo 00-00-00 e do qual resultaram danos para a aí autora.

2- No âmbito do referido processo foi admitida a intervenção principal provocada do lado activo da ora A. e da ora R. DD.

3- Aí a ora A. peticionou a condenação da aí ré no pagamento da quantia de € 34.010, correspondente às prestações vincendas após o acidente decorrentes do contrato de aluguer de veículo celebrado com a aqui R. CC e, caso assim, não se entendesse, fosse a DD admitida a intervir do lado passivo e condenada no referido pedido.

4- Por decisão transitada em julgado em 27.04.2005, consideraram-se verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, bem como haver concorrência de culpa de ambos os condutores na verificação do acidente de viação, contribuindo o condutor do veículo 00-00-00, o ora R. BB, na proporção de 80% e o condutor do veículo seguro na aí ré na proporção de 20%, e foi condenada a aí ré a pagar à ora R. CC a quantia de € 998,06 e à ora A. a quantia de € 8.802, acrescidas de juros de mora desde a citação até integral pagamento.

         A única questão a decidir no presente recurso consiste em saber, tal como se verificou no recurso de Apelação, se existe obstáculo à viabilidade da presente acção por ter havido decisão transitada em julgado, numa outra acção que correu termos na 11ª Vara Cível de Lisboa, em que se consideraram, além do mais,  verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e a concorrência de culpas de ambos os condutores intervenientes no acidente viação de que tratam ambos os processos, contribuindo o condutor do veículo 00-00-00, o ora R. BB, na proporção de 80% e o condutor do veículo, seguro na aí Ré, na proporção de 20%, e foi condenada a aí ré a pagar à ora R. CC a quantia de € 998,06 e à ora A. a quantia de € 8.802, acrescidas de juros de mora desde a citação até integral pagamento.

          Para melhor intelecção da questão decidenda, permitimo-nos transcrever uma passagem do acórdão ora em recurso, na parte em se registou a discordância da 2ª Instância relativamente ao que havia decidido o tribunal da 1ª Instância, não, porém, sem antes se recordar, aqui e agora, a parte fulcral (para o problema em questão) da decisão deste tribunal e que foi objecto do recurso de Apelação:

         «Nos termos do artº 671º, nº 1 do C.P.C. (na redacção aplicável aos autos) “Transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele dentro dos limites fixados pelos artigos 497º e seguintes, sem prejuízo do que vai disposto sobre os recursos de revisão e de oposição de terceiros.”

Por sua vez, dispõe o artº 673º do mesmo diploma que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…).”

Estes preceitos legais referem-se ao caso julgado material, ou seja, ao efeito imperativo atribuído à decisão transitada em julgado (artº 677º do C.P.C.) que tenha recaído sobre a relação jurídica substancial.

O instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa.

A função positiva é exercida através da autoridade do caso julgado. A função negativa é exercida através da excepção dilatória do caso julgado, a qual tem por fim evitar a repetição de causas (artº 497º, nºs 1 e 2 do C.P.C.).

A autoridade de caso julgado de sentença que transitou e a excepção de caso julgado são, assim, efeitos distintos da mesma realidade jurídica.

Escreve o Prof. Lebre de Freitas (“Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 2ª ed., p. 354), que “pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito”, enquanto que “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. (...). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”.

No mesmo sentido, o Prof. Miguel Teixeira de Sousa (“O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ 325, p. 49 e ss”), “a excepção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior”, já “quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão anterior”.

Temos entendido que a autoridade de caso julgado, diversamente da excepção de caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o artº 498º do C.P.C., pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida - nesse sentido, entre outros, Acs. do STJ de 13.12.2007, processo nº 07A3739; de 06.03.2008, processo nº 08B402, e de 23.11.2011, processo nº 644/08.2TBVFR.P1.S1, www.dgsi.pt»

Acresce ser entendimento dominante que a força do caso julgado material abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado – vd., por todos, Ac. do STJ de 12.07.2011, processo 129/07.4.TBPST.S1, www.dgsi.pt. Como diz Miguel Teixeira de Sousa (“Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 579), citado no referido Acórdão do STJ, “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.»

O Tribunal da Relação teve entendimento contrário, expendendo o seguinte argumentário:

«Nada temos a opor às considerações do tribunal recorrido, supra transcritas.

Porém, discorda-se da aplicação delas feita ao caso concreto, a que na sentença se procede nos termos que ora se transcrevem:

“No caso em apreço, temos que, na acção que correu seus termos na 11ª Vara Cível de Lisboa, 3ª Secção, sob o nº 4716/2000, entre a ora A. e as ora RR. CC e DD e outro, por sentença transitada em julgado em 27.04.2005, foi decidido que, no acidente de viação em discussão nos presentes autos, havia concorrência de culpa de ambos os condutores, contribuindo o condutor do veículo 00-00-00, o ora R. BB, na proporção de 80% e o condutor do outro veículo na proporção de 20%.

Deste modo, a decisão definitiva proferida na referida acção, entre as mesmas partes, não pode deixar de actuar como autoridade de caso julgado.

E, assim, sendo o acidente imputável a título de culpa aos condutores dos veículos intervenientes no acidente, fica precludida a responsabilidade pelo risco invocada pela A. nos presentes autos, conforme resulta, aliás, do disposto no artº 506º, nº 1, 1ª parte do C.Civil “a contrario”.

Na verdade, apurando-se que o acidente foi devido a culpa concorrente dos condutores dos veículos intervenientes no acidente, carece manifestamente de sentido a invocação das normas atinentes à responsabilidade pelo risco, cujo âmbito de aplicação se considera excluído quando as circunstâncias do acidente se mostram cabalmente determinadas, em termos de permitir imputar o evento danoso a título de culpa- vd., entre outros, Ac. do STJ de 21.10.2010, processo nº 513/06.0TBMNC.G1.S1, www.dgsi.pt.”»

Mais adiante, depois de outras considerações que não interessam especificamente aqui e agora,  e  depois de frisar que a sentença proferida no outro processo não se pronunciou quanto à eventual responsabilidade da seguradora do OD, a ora R. Tranquilidade, que interveio na ação por via da intervenção principal provocada do lado activo, o Tribunal da Relação considerou que, no tangente à Ré Cª de DD «a sua responsabilidade alegadamente advém do contrato de seguro que celebrou com a locatária do veículo. Uma vez que à locatária/segurada apenas é imputada responsabilidade por 80% dos danos alegadamente sofridos pela A., à seguradora é pedido igual montante. Também aqui não se vislumbra contradição entre o peticionado e o decidido naquela primeira sentença, sendo certo, de resto, que na sentença não foi proferida qualquer decisão de mérito acerca da responsabilidade da Tranquilidade, seja no âmbito do sinistro em geral, seja face à ora A..

O acórdão do STJ citado na sentença ora recorrida reporta-se a situação diferente da destes autos: aí aborda-se um caso em que a alegada responsabilidade pelo risco do detentor de um dos veículos colidentes é afastada por o acidente ter sido devido a culpa exclusiva do lesado, condutor do outro veículo.

Entende-se, pois, que o motivo invocado para a improcedência da ação (autoridade de caso julgado) não se verifica.

Questão diversa será a análise dos direitos da A. na perspectiva da sua qualidade de proprietária do próprio veículo seguro, no âmbito do regime da responsabilidade civil obrigatória, e de entidade que não é tomadora do seguro, no âmbito do seguro, facultativo, por danos próprios.

Matéria essa que não cabe no objeto deste recurso e que poderá ainda justificar debate no processo, sendo certo aliás que existe matéria de facto controvertida, concernente aos danos peticionados».

         Importa apreciar com algum detalhe a questão jurídica em debate no presente recurso.

Está fora de duvida que a sentença que foi proferida no processo que correu termos na 11ª Vara Cível de Lisboa, onde se apreciou e se decidiu da responsabilidade de ambos os condutores intervenientes no acidente e se fixou judicialmente a contribuição de cada um deles para o sinistro verificado, transitou em julgado.

Constitui, portanto, caso julgado.

Todavia, há que ter presente duas realidades bem diversas no que tange aos efeitos do caso julgado.

         São essencialmente duas as realidades que se nos deparam no tratamento jurídico das consequências ou efeitos do caso julgado:

a) A excepção dilatória do caso julgado

b) A autoridade do caso julgado

É manifesto que não se verifica no caso sub judicio qualquer violação de caso julgado, enquanto excepção dilatória, pois, como bem salienta a Recorrida, não existe identidade de sujeitos processuais, já que neste processo as partes são a AA, como Autora, e BB, CC, Lda e DD, S.A,  como Réus, enquanto no Processo nº 4716/2000 da 11ª Vara Cível, foram partes,  CC – Revestimentos e Decoração, Lda, como Autora, e como Ré, Cª de Seguros FF, S.A., tendo sido requerida a intervenção principal ao lado da Ré, da Cº de DD ( ora Ré/ Recorrente), não se tendo pronunciado o Tribunal sobre a responsabilidade desta (Cª DD) e ainda da AA, Lda.

Também os pedidos formulados na presente acção e o que foi formulado no falado processo nº 4716/2000 são diversos, pois enquanto na presente acção a Autora,  AA, formulou o pedido de condenação solidária dos RR nos termos supra indicados, naquele processo a então Autora pedia a condenação da Ré FF, S.A., no pagamento da importância da quantia de 11.261.966$00, como tudo melhor se vê da certidão da sentença proferida naquele processo e junta a estes autos com a petição inicial.

A decisão recorrida não aceitou a excepção dilatória de caso julgado, que teria levado à absolvição da instância, dizendo que «não se verifica repetição ou contrariedade  face ao decidido na primeira sentença referida»                           

         Como se sabe, o direito cuja tutela se pede em juízo, como objecto de acção (res in judicio deducta) individualiza-se através do seu próprio conteúdo e objecto (pedido) e ainda através do acto ou facto jurídico que se pretende ter-lhe dado origem (causa de pedir, causa petendi), como ensinava Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, 1979, 319).

         Não tendo havido pronúncia do Tribunal relativamente à responsabilidade da Cª de DD,  na referida acção que correu termos na 11ª Vara Cível de Lisboa, é por demais evidente que inexiste excepção de caso julgado que esta possa validamente opor à sua contraparte.

 Importa agora averiguar se se verificou ofensa à autoridade de caso julgado, que não se confunde com a excepção dilatória de caso julgado.

Para cabal resposta, importa traçar o esboço conceptual de tal conceito, em latim denominado auctoritas rei judicatae, seguindo a lição magistral do Prof. Manuel Andrade.

         Como aquele emérito civilista de Coimbra ensinou[2], com o brilho e o apurado sentido das realidades que todos lhe reconhecemos, mesmo em gerações posteriores às que tiveram o privilégio de escutar as suas palavras, o fundamento do caso julgado reside no prestígio dos tribunais (considerando que «tal prestígio seria comprometido em alto grau se mesma situação concreta uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente») e numa razão de certeza ou segurança jurídicasem o caso julgado estaríamos caídos numa situação de instabilidade jurídica verdadeiramente desastrosa»).

Assim, ainda que se não verifique o concurso dos requisitos ou pressupostos para que exista a excepção de caso julgado (exceptio rei judicatae), pode estar em causa o prestígio dos tribunais ou a certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais se uma decisão, mesmo que proferida em outro processo, com outras partes, vier dispor em sentido diverso sobre o mesmo objecto da decisão anterior transitada em julgado, abalando assim a autoridade desta.

A feliz síntese do acórdão da Relação de Coimbra, de 28-09-2010, de que foi Relator, o Exmº Desembargador, Jorge Arcanjo[3], afigura-se-nos cabalmente adequada ao traçado da fronteira entre estas duas figuras jurídico-processuais, pelo que importa aqui registar a parte do seu sumário, que importa à presente decisão:

 I - A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objecto e pedido.

II - A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no artº 498° do CPC,

Ora, como é bom de ver, o caso julgado formado pela decisão que julgando procedente a anterior acção, supra referida, e fixando as percentagens da responsabilidade de cada um dos condutores intervenientes no acidente, em sede de concurso de responsabilidades, não colide com a decisão a proferir no presente processo face aos pedidos formulados.

Importa jamais olvidar que o caso julgado tem como limites os que decorrem dos próprios termos da decisão, pois como estatui o artº 673º do CPC, «a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga».

Trata-se de um corolário do conhecido princípio dos praxistas enunciado na fórmula latina «tantum judicatum quantum disputatum vel disputari debebat».

Mesmo para quem entenda que relativamente à autoridade do caso julgado não é exigível a coexistência da tríplice identidade, como parece ser o caso da maioria jurisprudencial, será sempre em função do teor da decisão que se mede a extensão objectiva do caso julgado[4]e, consequentemente, a autoridade deste.

Ora nada nos autos permite concluir que a Autora tenha contrariado, com o seu pedido, a decisão proferida pela 11ª vara Cível de Lisboa relativamente à dinâmica do acidente ou à concorrência das responsabilidades no mesmo e à graduação efectuada naquela decisão.

Significa isso que não existe qualquer violação de autoridade de caso julgado, como bem decidiu a Relação, ao afirmar o seguinte:

«Ao reclamar uma indemnização deste R., que não foi parte na supra referida primeira ação, na proporção de 80% do montante dos danos alegadamente sofridos, a A. não contraria o decidido na referida ação, nem desencadeia uma inútil repetição de pronúncia por parte do poder judicial.

Quanto à responsabilidade da 2.ª R., a mesma assenta alegadamente na sua condição de detentora efectiva do veículo OD, ou seja, no risco, tal como regulado no n.º 1 do art.º 503.º do Código Civil. Porém, atendendo a que na sentença proferida pela 11.ª Vara Cível de Lisboa se ajuizou que o contributo do OD para o sinistro fora apenas de 80%, medida em que se calculou a culpa do respectivo condutor, a A. apenas reclama da 2.ª R., que também não foi demandada na primeira ação, uma indemnização correspondente a 80% dos prejuízos alegadamente sofridos.

Também aqui não se vislumbra repetição ou contrariedade face ao decidido na primeira sentença referida.

Finalmente, quanto à 3.ª R[5]., a sua responsabilidade alegadamente advém do contrato de seguro que celebrou com a locatária do veículo. Uma vez que à locatária/segurada apenas é imputada responsabilidade por 80% dos danos alegadamente sofridos pela A., à seguradora é pedido igual montante. Também aqui não se vislumbra contradição entre o peticionado e o decidido naquela primeira sentença, sendo certo, de resto, que na sentença não foi proferida qualquer decisão de mérito acerca da responsabilidade da Tranquilidade, seja no âmbito do sinistro em geral, seja face à ora A».

Claudicam, desta sorte, todas as conclusões da matéria alegatória da Recorrente, o que conduz à improcedência do presente recurso.

DECISÃO 

Face a tudo quanto exposto fica, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em negar a Revista.

Custas pelo Recorrente, por via da sua sucumbência neste Supremo Tribunal e nas Instâncias.

Processado e revisto pelo Relator.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 21 de Março de 2013

Álvaro Rodrigues (Relator)

Fernando Bento

Álvaro Rodrigues

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[1] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. V, pg. 174.
[2]Manuel D. Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pg. 306
[3] Pº 392/09.6 TBCVL.S1, in www.dgsi.pt
[4] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. V, pg. 174.
[5] Por lapso, vem escrito 1ª Ré.