Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
280/13.1TBCDN.C1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
INCUMPRIMENTO
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
PENHORA
VENDA JUDICIAL
COMPORTAMENTO CONCLUDENTE
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
MORA
SINAL
BOA FÉ
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
BEM IMÓVEL
JUSTA CAUSA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/02/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / CONTRATO-PROMESSA / INCUMPRIMENTO DEFINITIVO DA OBRIGAÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE EXECUÇÃO / PENHORA DE IMÓVEL / RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS DO PROMITENTE COMPRADOR.
Doutrina:
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 2009, 1049 e ss..
- Brandão Proença, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, 2011, 323.
- Evaristo Mendes/Fernando Sá, in Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, anotação I ao art. 217.º, e anotação II ao art.º 246.º.
- Galvão Telles, Direito das Obrigações, 1997, 258.
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, IX, 2016, 252 e ss..
- Pinto Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, 2011, 807 e ss., 864 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 217.º, N.º1, 442.º, N.ºS 2 E 3, 762.º, N.º2, 805.º, N.º 1,808.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 16/05/2000 (PROC. N.º 396/00), CONSULTÁVEL NA BASE DE SUMÁRIOS DA JURISPRUDÊNCIA CÍVEL IN WWW.STJ.PT .
-DE 23/09/2004 (PROC. N.º 2089/04), CONSULTÁVEL NA BASE DE SUMÁRIOS DA JURISPRUDÊNCIA CÍVEL IN WWW.STJ.PT , E DE 02/12/2008 (PROC. N.º 2653/08), IN WWW.DGSI.PT .
-DE 24/01/2008 (PROC. N.º 3813/07), IN WWW.DGSI.PT .
-DE 02/12/2008 (PROC. N.º 2653/08), E DE 20/05/2015 (PROC. N.º 1311/11.5TVLSB.L1.S1), CONSULTÁVEIS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 02/06/2009 (PROC. N.º 136/09.2YFLSB) E DE 02/03/2011 (PROC. N.º 5193/04.5TCLRS.L1.S1), CONSULTÁVEIS NA BASE DE SUMÁRIOS DA JURISPRUDÊNCIA CÍVEL IN WWW.STJ.PT ; E OS ACÓRDÃOS DE 16/06/2016 (PROC. N.º 410/10.5TBABF.E1.S1) E DE 13/10/2016 (PROC. N.º 7185/12.1TBCSC.L1.S1), CONSULTÁVEIS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 04/02/2010 (PROC. N.º 4913/05.5TBNG.P1.S1) E DE 26/09/2013 (PROC. N.º 564/11.3TVLSB.L1.S1), CONSULTÁVEIS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Em regra, o direito de resolução de um contrato implica a verificação de incumprimento definitivo, valendo este princípio também para a resolução do contrato-promessa bilateral.

II - A jurisprudência do STJ tem considerado que, salvo se da interpretação da vontade negocial resultar diversamente, o não cumprimento da obrigação de contratar constitui o devedor em simples mora, à qual não se aplica, sem mais, o regime da perda/exigência do sinal em dobro previsto no art. 442.º, n.º 2, do CC.

III - Para que tal regime seja aplicável é necessário: (i) que exista mora nos termos do art. 805º do CC; e (ii) que esta se transforme em incumprimento definitivo por uma das vias do art. 808.º do CC: perda do interesse do credor apreciada objectivamente; decurso de um prazo adicional razoável fixado pelo credor (interpelação admonitória).

IV - Além disso, a doutrina e a jurisprudência admitem a relevância de uma declaração antecipada de não cumprimento (expressa ou tácita) por parte do devedor.

V - A penhora do bem prometido vender não produz, por si só, a impossibilidade da obrigação de contratar.

VI - Porém, tendo ficado provado que a promitente-vendedora deixou penhorar o bem imóvel que prometeu vender, sem reacção e sem dar conhecimento à promitente-compradora, induzindo esta em erro acerca do desenvolvimento do processo executivo – quando, nessa data, já se encontrava marcada data para a venda judicial –, é de concluir, à luz da orientação jurisprudencial que tem sido seguida pelo STJ, que se está perante um comportamento concludente, com relevância declarativa, já que a primeira se desligou em definitivo dos compromissos assumidos perante a segunda, deixando patente que o contrato-promessa não era para cumprir.

VII - Demonstrado o incumprimento definitivo desse contrato, imputável à promitente-vendedora, não restava à promitente-compradora outra alternativa que não fosse deduzir reclamação de créditos no processo de execução no qual o bem prometido vender foi penhorado, e, consequentemente, resolver o contrato.

VIII - Ainda que se seguisse orientação distinta – considerando que a conduta da promitente-vendedora não constitui comportamento concludente – a solução sempre seria idêntica: quer porque, na data da reclamação de créditos, a celebração do contrato prometido era já impossível por estar inviabilizada a obtenção de empréstimo bancário por parte da promitente-compradora (condição a que o contrato estava sujeito); quer porque a conduta da promitente-vendedora, constituindo uma grave violação do princípio da boa fé no cumprimento das obrigações, configuraria uma situação de justa causa objectiva de resolução, admitindo-se que esta figura seja aplicável a contratos com as características do contrato promessa dos autos.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA intentou acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário contra Construções BB, Lda., CC, e Banco DD, S.A., pedindo:

- Que se julgue definitivamente incumprido o contrato promessa celebrado entre a A. e a 1ª R., por motivo a esta imputável, condenando-se a mesma a pagar-lhe a quantia de € 58.910, compreendendo o montante de € 50.000 a título de sinal em dobro e a quantia de € 8.910 referente a benfeitorias realizadas no prédio prometido vender, mais se julgando que, com respeito a esse mesmo crédito, a A. é titular de direito de retenção sobre o dito prédio;

- Subsidiariamente, a entender-se não existir incumprimento definitivo, que se considere resolvido por incumprimento definitivo imputável à 1ª R., condenando-se esta última a pagar-lhe a quantia de € 58.910, mais se julgando que, com respeito a esse mesmo crédito, a A. é titular de direito de retenção sobre o prédio prometido vender;

- Subsidiariamente, a considerar-se que o contrato promessa se mantém em vigor, deverá o mesmo ser considerado denunciado pela A., sendo a 1ª R. condenada a restituir a quantia de € 25.000, recebida a título de sinal, e a pagar o montante de € 5.930, correspondente a despesas tidas com o imóvel prometido vender, julgando-se o crédito da A. decorrente da cessação do contrato garantido por direito de retenção sobre o imóvel prometido vender.

Alegou, em síntese, que: celebrou com a 1ª R. um contrato promessa de compra e venda de um lote de terreno com moradia em construção pela 1ª R., a ser entregue “devidamente acabada e concluída” à A., tendo esta pago €25.000, a título de sinal, convencionando-se a celebração do contrato definitivo nos 30 dias posteriores à obtenção do alvará de licença de utilização; posteriormente, a A. entregou à 1ª R. a quantia de € 5.930, destinada à instalação de portas de segurança e de chão radiante; quando pronta a habitação, a 1ª R. permitiu a sua utilização pela A., que aí se instalou com a família, tendo efectuado obras de instalação de bens que, tal como aqueles, não são susceptíveis de remoção; não só a promitente vendedora não obteve ainda a licença de utilização, como o imóvel prometido foi, entretanto, objecto de penhora pelo 2º R. em processo onde o 3º R. é credor reclamante; tal penhora torna impossível a obtenção de crédito pela A., condição prevista negocialmente para concretização do contrato prometido; por carta datada de Abril de 2013, a A. comunicou à 1ª R. a resolução do contrato por incumprimento imputável a esta.

O R. Banco DD contestou, alegando, em síntese: inexiste fundamento para a resolução contratual por não se verificar incumprimento definitivo ou impossibilidade de cumprimento da promessa, existindo apenas mora, não tendo sido fixado prazo certo para cumprimento da obrigação de obtenção da licença e inexistindo fundamento objectivo para eventual perda de interesse da A., não tendo existido, ademais, interpelação admonitória; a existência de uma penhora sobre o imóvel não constitui impossibilidade de venda; quanto à impossibilidade de obtenção de crédito, quando muito, a A. poderia denunciar o contrato, solicitando as quantias pagas, mas sem direito de retenção por não ser a extinção do negócio imputável a culpa da promitente vendedora.

A R. Construções BB, Lda., contestou, negando ter recebido qualquer comunicação de resolução do contrato. Mais afirmou, quanto aos pagamentos alegados pela A. para alterações da moradia, ter recebido nunca mais de € 4.930; considera não estarem devidamente alegados os factos relativos a benfeitorias e à compensação pelo respectivo valor; quanto à promessa de venda, não constitui incumprimento a existência da penhora que pode ser levantada a qualquer momento, nomeadamente com o pagamento do preço pela A., que a R. canalizaria para o cumprimento da obrigação executiva; ademais, não existe prazo para cumprimento da obrigação emergente da promessa para a promitente vendedora; não é verdade que a A. tenha deixado de poder obter empréstimo pela existência de ónus sobre o imóvel, o qual sempre esteve hipotecado, como a A. sabia, tendo sido esta, todavia, quem se desinteressou pela obtenção do empréstimo quando emigrou para o estrangeiro, sendo abusivo pretender ver extinto o negócio depois de tal procedimento de sua parte; é abusiva a pretensão da A. ao reembolso de benfeitorias, que, estando para além das autorizadas em contrato, foram efectuadas na vigência de promessa quando a promissária não informou a promitente vendedora e não diligenciou pela obtenção do empréstimo bancário; ademais, deve a A. à R. a quantia de € 1.000, relativa ao clausulado em 3º do contrato, contra crédito que deverá extinguir parcialmente o alegado pela A..

A A. apresentou novo articulado no qual requereu a condenação da 1ª R. promitente vendedora como litigante de má-fé.

A fls. 335 foi proferida sentença, que, julgando a acção improcedente, absolveu os RR. do pedido.

Inconformada, a A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, pretendendo a reapreciação da decisão relativa à matéria de facto, e impugnado a decisão de direito.

Por acórdão de fls. 565, foi alterada a decisão relativa à matéria de facto e reapreciada a decisão de direito, decidindo-se, a final, nos seguinte termos:

Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida e considerando-se validamente resolvido o contrato promessa, condenando a Ré Construções BB, Lda., a devolver à autora o sinal em dobro, no montante de 50.000 €, e a pagar-lhe o valor das benfeitorias realizadas, no montante de 4.930,00 €, reconhecendo à autora o direito de retenção sobre o imóvel prometido vender relativamente a tais créditos.


2. Vem o R. Banco DD, S.A. interpor recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

A - Não estão reunidos os requisitos que permitam à Autora resolver o contrato promessa.

B - Nos termos do artigo 410.° n.°1 do Código Civil, o contrato-promessa é a convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato, e portanto, como qualquer outro contrato, está sujeito a resolução que corporiza um direito potestativo extintivo que deve ser fundamentado.

C - Segundo doutrina e jurisprudência, hoje, quase uniformes, só o incumprimento definitivo justifica a resolução do contrato-promessa bem como a exigência do sinal em dobro ou a perda do sinal, pois a simples mora não pode ter tal consequência,

D - Nos termos do artigo 808.° do Código Civil, a mora converte-se em incumprimento definitivo quando o credor, em consequência da mora, perde o interesse na prestação, ou, quando a prestação não é realizada dentro do prazo fixado pelo credor.

E - No contrato promessa outorgado pelas partes não foi estipulado qualquer prazo para cumprimento da aludida obrigação (vide ponto 4 da matéria provada), pelo que, se o devedor não for interpelado judicial ou extrajudicialmente para cumprir, a sua obrigação a constituição em mora não se verificará (cfr art°805°, 1 do CC).

F - Competia à Autora proceder à interpelação admonitória, da primeira Ré, intimando-a [a] outorgar o contrato prometido dentro de um peremptório razoável.

G - Conforme resulta dos factos provados (vide ponto 22) a comunicação efectuada pela Autora à primeira Ré não a intima a cumprir o contrato prometido, resolvendo de imediato o mesmo com fundamento na existência da penhora.

H - A Ré Construções BB, Lda, nem sequer se constitui em mora e, muito menos, em incumprimento definitivo.

I - O art. 808.°, n.°1 do Código Civil pressupõe, em primeira linha, a existência de mora, de onde o credor pode vir a obter a resolução do contrato, caso em consequência daquela perca o seu interesse na prestação, acrescentando o seu n°2 que tal perda de interesse é apreciada objectivamente.

J - Competia à Autora demonstrar essa perda de interesse o que, no entanto, não logrou fazer.

K - Desde logo, porque nunca interpelou a Ré Construções para a marcação da escritura.

L - A existência de penhora não configura, por si só, uma "declaração antecipada de não cumprir".

M - [A] Ré Construções poderia ainda, até à data da celebração do contrato prometido, remover esse ónus.

N - O regime legal do CIRE possibilita o cumprimento pelo Exm° Senhor Administrador de Insolvência dos contratos promessa outorgados pelo insolvente, sendo os bens vendidos livres de ónus e encargos.

O - Do supra exposto resulta que, não existe incumprimento imputável ao promitente-vendedor, uma vez que a existência de ónus sobre o bem prometido não impede o cumprimento da promessa e não constitui indício de intenção de não cumprir.

P - Pelo que, salvo o devido respeito, não estavam reunidas as condições para a resolução contratual por incumprimento culposo.

Q - O direito de retenção só é conferido ao promitente-comprador quando haja incumprimento culposo por parte do promitente-vendedor - neste sentido, nomeadamente, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04.12.2007, relator Fonseca Ramos e acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26.02.2013, relator Márcia Portela, disponíveis em www.dgsi.pt.

R - Ora, conforme supra se disse e aqui se dá por reproduzido, não concebemos que exista incumprimento definitivo e culposo da Ré construtora.

S - Pelo que, face ao exposto, não assistindo razão à Apelante, não poderá proceder o seu pedido.

T - A decisão recorrida viola o disposto nos arts. 442°, n° 2, 801°, 808° do Código Civil.

Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente e consequentemente, ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal a quo, mantendo-se a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância


   A Recorrida contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

1) A presente ação foi instaurada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 869.º do CPC, atual artigo 792.º do NCPC, na sequência de reclamação de créditos deduzida no processo n.º 1134/11.1TBCBR, na qual é Executada a Ré Construções BB, Lda, visando-se a obtenção de título executivo relativamente ao crédito ali reclamado com fundamento em incumprimento do contrato-promessa de compra e venda de imóvel para habitação celebrado entre a Autora/promitente compradora e a Ré Construções BB/ promitente vendedora e na realização de benfeitorias, garantido por direito de retenção sobre o prédio prometido, objeto de penhora nessa execução.

2) A Ré Construções BB revelou definitiva vontade de não cumprir, (i) ao permitir que o prédio prometido fosse alvo de penhora, acentuando o risco do direito da promitente-compradora, não obstante ter assumido o compromisso de vender esse imóvel livre de ónus e encargos, (ii) ao não deduzir qualquer reação relativamente à penhora do prédio prometido, conformando-se com a sua venda judicial e não demonstrando ter capacidade financeira para libertar o prédio prometido de tal ónus, bem como da hipoteca que igualmente incidia sobre tal prédio, (iii) ao ocultar a existência dessa penhora à Autora/promitente compradora e (iv) ao induzir a Autora em erro prestando-lhe informação falsa quanto à regularização da penhora, tentando que a mesma não utilizasse os meios legais ao seu dispor para a defesa do seu direito, designadamente a dedução de reclamação de crédito no processo executivo e a instauração da presente ação.

3) Tais circunstâncias são, segundo o princípio da boa fé, incompatíveis com a intenção de cumprir o contrato, revelando a vontade da Ré Construções BB de não cumprir definitivamente o contrato-promessa celebrado com a Autora, exprimindo recusa categórica de cumprimento (neste sentido v/de acórdãos do STJ de 16/05/2000, in Colectânea de Jurisprudência- Acórdãos do STJ, ano VIII, tomo … págs. 72 a 74, de 24/01/2008, Processo n.° 0763813, e de 20/05/2015, Proc n.° 1311/11.5TVLSB.L1.S1, os dois últimos in (…)

4) Competia à Ré Construções BB demonstrar que o incumprimento não procedeu de culpa sua, de acordo com o disposto no artigo 799.º, n.° 1, do CC, o que esta não logrou provar quanto à obrigação de vender o prédio prometido;

5) Atento a situação de incumprimento definitivo imputável à Ré Construções BB, assiste à Autora o direito de resolver o contrato promessa dos autos e de reclamar uma indemnização correspondente ao dobro do sinal prestado (… artigos 442.°, n.° 2,798.°, 799.º, n.° 1, e 801.º, n.° 2, todos do CC).

6) Tendo havido tradição do prédio prometido, goza a Autora de um direito de retenção pelo crédito da indemnização resultante do incumprimento do contrato-promessa pela promitente vendedora (… artigos 442.º, n.° 2, e 755.º, n.° 1, al. f), do CC).

7) A Autora introduziu melhoramentos no prédio prometido, correspondentes à instalação de portas e de chão radiante, dessa forma aumentando o valor do prédio, não sendo tais melhoramentos suscetíveis de ser removidos, estando a Ré Construções BB obrigada a pagar à Autora o valor dessas benfeitorias, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa, em montante não inferior a 4.930,00€, beneficiando esse crédito da Autora do correspondente direito de retenção sobre o prédio prometido (artº 216º, 754º e 1273º nº 1 e 2, do CC).

Nestes termos e nos mais de Direito, deverá a presente Revista ser julgada improcedente, por provada, confirmando-se integralmente o acórdão recorrido


Cumpre decidir.


3. Vem provado o seguinte:

1 - Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Condeixa-a-Nova sob o número 13…, sito na Urbanização …, Lugar …, freguesia e concelho de Condeixa-a-Nova, e aí inscrito a favor da Ré Construções BB, um prédio urbano correspondente a lote de terreno para construção, designado como “Lote 7”, com 336 m2, que confronta a note com Rua A, a Sul com Câmara Municipal de Condeixa-a-Nova, nascente com Lote 8 e poente com lote 6 (doc. de fls. 137).

2 - O mencionado prédio encontra-se inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 2091 (doc. de fls. 12).

3 - A fls. 13 v. e ss. acha-se um doc. intitulado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, mediante o qual a Ré Construções prometeu vender à Autora, que por sua vez prometeu comprar, livre de quaisquer ónus e encargos, pelo preço de 175.000,00 (cento e setenta e cinco mil euros), «um lote de terreno para construção urbana com a área de 336 m2, sito na Urbanização … Lote …, Serrado, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Condeixa-a-Nova sob o artigo n.º 20… [indicou-se por lapso 20…, quando o artigo correto é o 2091] descrito na Conservatória do Registo Predial de Condeixa-a-Nova sob o nº 13…, onde se encontra em construção uma moradia tipo T4, isolada, composta de r/chão e 1o andar e logradouro, e será entregue pela primeira outorgante [ora Ré] a segunda outorgante [ora Autora] devidamente acabada e concluída”.

4 - Na cláusula 2.ª c) lê-se: “A quantia restante de € 150.000, 00, será paga através de empréstimo bancário, aquando da realização da escritura pública de compra e venda, que realizar-se-á 30 dias após a obtenção do Alvará de Licença de Utilização”.

5 - Na cláusula 3.ª lê-se: “Este contrato está condicionado à concessão do referido empréstimo bancário ao 2.º outorgante, sob pena de devolução pelo 1º outorgante ao 2º do valor de € 25.000,00 do sinal mais despesas de alterações na moradia já efetuadas no valor de € 5.930, 00. Sendo a quantia de € 1.350,00, pelo pagamento de portas e € 4.580,00, para pagamento de instalação do chão radiante. Sendo assim, o primeiro outorgante compromete-se a restituir o valor total investido pelo segundo outorgante no valor de € 30.930,00, se o segundo outorgante não obter empréstimo bancário até 31 de Dezembro de 2012”.

6 - Já na cláusula 4ª consignou-se: “A marcação da escritura de compra e venda competirá ao Segundo Outorgante, que para o efeito notificarão a Primeira, por carta registada, com aviso de receção, para a morada constante do cabeçalho, com 10 dias de antecedência, para comparecerem ou fazerem-se legalmente representar no dia, hora e local designado para o efeito”.

7 - A Ré Construções não logrou até à data obter licença de utilização para o prédio prometido vender.

8 - O imóvel foi penhorado no âmbito do processo 1134/11.1TBCBR, em que é exequente o R. CC (doc. de fls. 91 e ss.).

Fatos apurados após audiência

9 - A Autora entregou à Ré Construções BB, Lda., a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia total de 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros), tendo entregue a quantia de 10.000,00€ em Dezembro de 2010 e a quantia de 15.000,00€ em Outubro de 2011.

10 – As partes acordaram em que a A. aplicaria as portas da casa e garagem e que a Ré pagaria o respectivo valor convencionado de € 1.350, 00, tendo a A. procedido a expensas suas a tal aplicação.

11 – Em data anterior a 1/08/2012, a Ré Construções concluiu os trabalhos de construção da moradia edificada no prédio prometido.

12 - Em 1/08/2012, a Ré Construções BB, Lda. entregou o prédio prometido à Autora para que esta, juntamente com a sua filha de 2 anos, o seu companheiro e o filho do seu companheiro, aí fixassem a residência a partir dessa data.

13 - A Ré Construções BB, Lda. entregou então à Autora todas as chaves do edifício implantado no prédio prometido vender.

14 - A Autora mobiliou e equipou a moradia, nomeadamente adquirindo e instalando frigorifico, máquinas de lavar roupa e louça, chaminé de exaustão, placa vitrocerâmica, instalando uma divisória quebra ambiente entre a entrada e a zona de estar, adquirindo e instalando móveis nas três casas de banho e uma cabine de duche e uma protecção de banheira, instalou protecção nas escadas, colocando cadeiras, mesas e carpetes nas salas, e camas e demais mobiliários e roupa de cama em cada um dos quartos que compõem a moradia.

15 – Com a aquisição e instalação da chaminé de exaustão a A. despendeu montante não apurado.

16 - Com a aquisição e instalação da divisória quebra ambiente despendeu o montante de 400,00€.

17 - Com os móveis de casa de banho, três lavatórios e dois armários, despendeu o montante € 493, 50.

18 – Com a cabine de duche e protecção de banheira despendeu € 361, 90.

19 – As portas de segurança e chão radiante não são susceptíveis de serem removidos.

20 - A Autora habitou a moradia deste 1/08/2012, acompanhada da sua filha de 2 anos, do seu companheiro e do filho do seu companheiro, aí comendo, dormindo, passando os tempos livres, recebendo familiares e amigos, procedendo ao pagamento das despesas inerentes ao uso do prédio, nomeadamente, água, televisão e à limpeza e manutenção do prédio prometido, até ter emigrado para Inglaterra, em Julho de 2013, aí regressando quando vem a Portugal e sendo o imóvel cuidado por familiares na sua ausência.

21 - A Autora desenvolveu negociações com vista à obtenção de um crédito à habitação para efeito de pagamento do remanescente do preço da compra e venda prometida.

22 - A 30.4.2013, depois de ter tentado em vão contactar o gerente da Ré Construções BB, Lda. na respectiva sede, a Autora deslocou‐se à residência do mesmo, sita na Rua … nº …, …, 3100-… Pombal, depositando na respectiva caixa de correio a carta de fls. 174 e ss., dirigida à Ré Construções BB, Lda. com data de 29/04/2013.

23 - Em 2/05/2013, a Autora remeteu para a sede da Ré Construções BB, Lda., sita na Urbanização …, Bloco A, R/c, 3150-… Condeixa-a-Nova, carta registada com aviso de recepção com o mesmo teor da mencionada carta datada de 29/04/2013.

24 - A carta remetida pela Autora em 2/05/2013 para a sede da Ré Construções BB, Lda. veio devolvida com as indicações «não atendeu» e «objeto não reclamado».

25 - A A. sabia que o imóvel se encontrava hipotecado aquando da outorga do contrato referido em C) e que poderia ser necessário aumentar o valor da hipoteca para financiamento da construção.

26 – Em Abril/Maio de 2012, o Banco DD fez uma análise preliminar da capacidade económica da autora, na sequência da qual lhe comunicou verbalmente que considerava financeiramente viável a concessão à autora de um de crédito à habitação no valor de € 150.000,00, para pagamento do remanescente do preço.

27 - O empréstimo de que a autora carecia para aquisição do prédio só poderia ser obtido mediante a constituição de hipoteca sobre o imóvel, circunstância que a Ré Construções não ignorava.

28 - A Ré Construções não deu conhecimento à A. da penhora que passou a incidir sobre o imóvel.

29 - A A. tomou conhecimento da penhora por consulta efectuada na Conservatória do Registo Predial, a 7.1.2013, após o que contactou o legal representante da Ré que a informou que a situação se encontrava resolvida.

30. O imóvel foi penhorado no âmbito do processo 1134/11.1TBCBR, em que é exequente o Réu CC, sendo Executado a Ré Construções BB e reclamantes a Autora e a Ré Banco DD (certidão judicial de fls. 91 e ss). [aditado pela Relação]

31. A Ré CONSTRUÇÕES BB, L.DA foi citada para o processo nº. 1134/11.1TBCBR em 5/12/2011 e notificada da penhora do prédio prometido em 26/10/2012, não tendo deduzido oposição nem à execução, nem à penhora, encontrando-se o processo executivo na fase de venda judicial (despacho proferido no âmbito do referido processo, cuja cópia se encontra junta a fls. 83 e certidão de fls. 91 e ss.); [aditado pela Relação]

32. Em 27/01/2013, a Autora deduziu reclamação de créditos no âmbito da execução que corre termos sob o processo nº 1134/11.1TBCBR, reclamando um crédito no valor de 58.910,00€, sendo que 50.000,00€ correspondem ao dobro do sinal prestado e 8.910,00€ a benfeitorias realizadas no prédio prometido, e invocando um direito de retenção sobre o imóvel prometido e aí penhorado (cópia da reclamação de créditos de fls. 260 a 287); [aditado pela Relação]

33. Por sentença proferida em 27/06/2013, no Apenso A do processo 1134/11.1TBCBR, transitada em julgado, foram graduados os seguintes créditos: sobre os imóveis penhorados, indicados sob os nºs 1, 2 e 3 do mencionado auto de penhora: o crédito do Banco DD, S.A. até ao montante máximo de € 1.529.270,00€, graduado em primeiro lugar e a dívida executada em segundo lugar; sobre o imóvel penhorado sob o nº 4 referido no auto da penhora, correspondente ao prédio prometido, foi determinado que a graduação dos créditos reclamados sobre esse imóvel aguarde até que a Autora obtenha título executivo na presente ação, que propôs para o efeito (sentença de graduação e verificação de créditos proferida no âmbito do processo executivo de fls. 78 a 82, e certidão judicial de fls. 91 e ss). [aditado pela Relação]

34. Em 8/04/2013, a Ré BANCO DD, S.A., requereu a declaração de insolvência da Ré CONSTRUÇÕES BB, LDA., dando origem à ação que correu termos sob o processo nº 167/13.8TBCDN, tendo sido proferida sentença de declaração de insolvência em 26/03/2014, a qual foi revogada pela Relação de Coimbra mediante decisão transitado em julgado em 21/10/2014, julgando-se como provado que a Ré CONSTRUÇÕES BB, LDA. deve à Ré Banco DD a quantia de 334.467,82€ e ao Réu CC a quantia de 125.408,22€. (certidão do processo de insolvência de fls. 118 a 134). [aditado pela Relação]

35. As partes acordaram que a Autora suportaria o custo da aquisição e instalação de chão radiante, tendo a Autora entregue à Ré Construções BB, Lda., pelo menos, a quantia de 3.580,00 € a esse título. [aditado pela Relação]

36. O contrato promessa celebrado entre autora e Ré Construções encontra-se datado de 16 de Fevereiro de 2012. [aditado pela Relação]

37. Por comunicação datada de 21.01.2013, foi, na execução 1134/11.1TBCBR, designado o dia 8 de Março de 2013, para abertura de propostas em carta fechada, relativamente à venda do imóvel prometido vender (fls. 74 dos autos). [aditado pela Relação]


4. Tendo em conta o disposto no nº 4, do art. 635º, do Código de Processo Civil, está em causa, neste recurso, a seguinte questão:

- Validade e eficácia da resolução do contrato promessa com fundamento em incumprimento definitivo da obrigação de contratar a que se encontra adstrita a 1ª R. enquanto promitente vendedora.


5. Na presente acção, a A. pretendeu ver reconhecida a validade e eficácia da resolução do contrato promessa dos autos, com fundamento no incumprimento definitivo por parte da promitente vendedora, aqui 1ª R., assim como pretendeu obter a condenação desta a pagar-lhe uma indemnização de montante correspondente ao dobro do valor do sinal (conforme previsto na cláusula 3ª, 1ª parte, do contrato promessa, em correspondência com o regime do art. 442º, nº 2, do Código Civil), acrescida do reembolso das despesas feitas com o imóvel (conforme previsto na cláusula 3ª, 2ª parte, do contrato promessa), e, ainda, ver reconhecido o direito de retenção da A. sobre o imóvel como garantia daqueles créditos sobre a 1ª R.

As pretensões da A. foram apreciadas no acórdão recorrido em termos detalhados, que aqui se sintetizam:

- O fundamento invocado para a resolução do contrato promessa pela A. consiste na inviabilização da celebração da escritura pública de compra e venda face à penhora do imóvel prometido vender no âmbito do processo executivo nº 1134/11.1TBCBR;

- Perante os factos provados, ao tomar conhecimento da existência da penhora, não restava à A. alternativa que não fosse a resolução do contrato promessa e a reclamação do consequente crédito ao sinal em dobro e ao pagamento de indemnização pelas benfeitorias realizadas;

- Com efeito, não se encontravam verificados os requisitos legais (licença de utilização) e contratuais (bem livre de ónus e encargos) para que a A. exigisse à 1ª R. a celebração da escritura pública, sendo a verificação desses requisitos obrigação da promitente vendedora;

- A A. tinha de reclamar os seus créditos na execução sob pena de perder o direito de retenção que os garante;

- A conduta da 1ª R. é indiciadora da falta de vontade ou da falta de capacidade económica para, procedendo ao pagamento da quantia exequenda, obter o levantamento da penhora;

- Reconhecer o direito da A. a resolver o contrato é compatível com o entendimento de que só o incumprimento definitivo justifica a resolução com exigência de sinal em dobro, na medida em que, para além das situações previstas no art. 808º do CC, se considera que a mora se transforma em incumprimento definitivo mediante declaração expressa ou tácita do devedor de que não cumprirá ou não quer cumprir;

- Assim, ainda que, em abstracto, a penhora não inviabilize automaticamente o cumprimento do contrato promessa, a sua existência revela uma situação de incumprimento perante o credor exequente e o valor dos créditos garantidos pelo imóvel prometido vender ultrapassa amplamente a parcela do preço que a executada poderia receber da A.;

- Por isso, a inércia da R. na obtenção da licença de construção e em proceder ao levantamento da penhora equivale a uma declaração de não cumprimento, no caso, definitivo.

        

O Recorrente põe em causa este entendimento, alegando a inexistência de mora da promitente vendedora, aqui 1ª R., quanto à obrigação de celebração do contrato definitivo e, consequentemente, também a inexistência de incumprimento definitivo através dos mecanismos de transformação da mora em incumprimento definitivo do art. 808º, do Código Civil.

        

6. Constitui entendimento pacífico no direito português que, em regra, o direito de resolução de um contrato bilateral implica a verificação de incumprimento definitivo.

      Este mesmo princípio vale para a resolução do contrato promessa bilateral, ainda que não se ignore que o nº 3, do art. 442º, do CC, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 379/86, de 11 de Novembro, suscitou certa disputa doutrinal em torno da questão da aplicabilidade ou não do art. 808º, do CC, aos contratos promessa com sinal. A jurisprudência deste Supremo Tribunal (cfr., por exemplo, os acórdãos de 02/06/2009 (proc. nº 136/09.2YFLSB) e de 02/03/2011 (proc. nº 5193/04.5TCLRS.L1.S1), consultáveis na base de sumários da jurisprudência cível in www.stj.pt); e os acórdãos de 16/06/2016 (proc. nº 410/10.5TBABF.E1.S1) e de 13/10/2016 (proc. nº 7185/12.1TBCSC.L1.S1), consultáveis em www.dgsi.pt) tem-se orientado em sentido afirmativo, isto é, tem considerado que – salvo se da interpretação da vontade negocial resultar diversamente – o não cumprimento da obrigação de contratar constitui o devedor em simples mora à qual não se aplica, sem mais, o regime da perda do sinal/exigência do sinal em dobro, do art. 442º, nº 2, do CC. Para que este regime seja aplicável é necessário: (i) que exista mora; (ii) que a mora se transforme em incumprimento definitivo por uma das vias do art. 808º, do CC: perda do interesse do credor apreciada objectivamente; ou decurso de um prazo adicional razoável fixado pelo credor (via também denominada como de interpelação admonitória, tendo como consequência aquilo que, graficamente, Pinto Oliveira – Princípios de Direito dos Contratos, 2011, págs. 807 e segs. – qualifica como princípio das duas oportunidades).

Relativamente às obrigações puras ou sem prazo, está previsto (art. 805º, nº 1, do CC) que a constituição em mora depende de interpelação do credor, salvo se ocorrer alguma das excepções das alíneas b) e c,) do nº 2, daquele mesmo art. 805º, do CC.

Para além destas hipóteses, tem-se suscitado, entre nós, o problema da atribuição de relevância à declaração antecipada de não cumprimento, sendo a resposta afirmativa dominante na doutrina (cfr. Galvão Telles, Direito das Obrigações, 1997, pág. 258; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 2009, págs. 1049 e seg.; Brandão Proença, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, 2011, pág. 323; Pinto Oliveira, cit., págs. 864 e segs.; Menezes Leitão, Direito das Obrigações, II, 2016, pág. 222; Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, IX, 2016, págs. 252 e segs.). É também esta a orientação da jurisprudência deste Supremo Tribunal (cfr., por exemplo, os acórdãos de 04/02/2010 (proc. nº 4913/05.5TBNG.P1.S1) e de 26/09/2013 (proc. nº 564/11.3TVLSB.L1.S1), consultáveis em www.dgsi.pt). Há, porém, que ter em conta as exigências de tal declaração antecipada de não cumprimento. Nas palavras de Almeida Costa (cit., págs. 1049 e seg.), “haverá mora debitória, independentemente de interpelação”, para além das hipóteses previstas no art. 805º, nº 2, do CC, “Se o devedor declara ao credor, inequívoca, definitiva, conscientemente e de forma peremptória, a sua intenção de não cumprir”. Nos termos gerais, é de admitir que a declaração possa ser expressa ou tácita, nesta última hipótese, “quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam” (art. 217º, nº 1, do CC).

    Aceite a relevância da declaração antecipada de não cumprimento, diverge a doutrina e a jurisprudência na determinação dos efeitos jurídicos produzidos: simples mora ou incumprimento definitivo. Afigura-se, porém, que a especificidade dos factos provados, no caso dos autos, não exige uma tomada de posição definitiva acerca deste problema.

    Vejamos.


7. Trata-se de apreciar se existe mora da promitente vendedora no cumprimento da obrigação de contratar e, concomitante ou subsequentemente, se ocorreu incumprimento definitivo da mesma obrigação.

Relevam os seguintes factos provados:

3 - A fls. 13 v. e ss. acha-se um doc. intitulado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, mediante o qual a Ré Construções prometeu vender à Autora, que por sua vez prometeu comprar, livre de quaisquer ónus e encargos (…).

4 - Na cláusula 2.ª c) lê-se: “A quantia restante de € 150.000, 00, será paga através de empréstimo bancário, aquando da realização da escritura pública de compra e venda, que realizar-se-á 30 dias após a obtenção do Alvará de Licença de Utilização”.

5 - Na cláusula 3.ª lê-se: “Este contrato está condicionado à concessão do referido empréstimo bancário ao 2.º outorgante, sob pena de devolução pelo 1º outorgante ao 2º do valor de € 25.000, 00 do sinal mais despesas de alterações na moradia já efetuadas no valor de € 5.930, 00. (…)

7 - A Ré Construções não logrou até à data obter licença de utilização para o prédio prometido vender.

8 - O imóvel foi penhorado no âmbito do processo 1134/11.1TBCBR, em que é exequente o R. CC

11 – Em data anterior a 1/08/2012, a Ré Construções concluiu os trabalhos de construção da moradia edificada no prédio prometido.

12 - Em 1/08/2012, a Ré Construções BB, Lda. entregou o prédio prometido à Autora para que esta, juntamente com a sua filha de 2 anos, o seu companheiro e o filho do seu companheiro, aí fixassem a residência a partir dessa data.

22 - A 30.4.2013, depois de ter tentado em vão contactar o gerente da Ré Construções BB, Lda. na respectiva sede, a Autora deslocou-se à residência do mesmo, sita na Rua … nº …, …, 3100-… Pombal, depositando na respectiva caixa de correio a carta de fls. 174 e ss., dirigida à Ré Construções BB, Lda. com data de 29/04/2013.

23 - Em 2/05/2013, a Autora remeteu para a sede da Ré Construções BB, Lda., sita na Urbanização …, Bloco A, R/c, 3150-… Condeixa-a-Nova, carta registada com aviso de recepção com o mesmo teor da mencionada carta datada de 29/04/2013.

24 - A carta remetida pela Autora em 2/05/2013 para a sede da Ré Construções BB, Lda. veio devolvida com as indicações «não atendeu» e «objeto não reclamado».

28 - A Ré Construções não deu conhecimento à A. da penhora que passou a incidir sobre o imóvel.

29 - A A. tomou conhecimento da penhora por consulta efectuada na Conservatória do Registo Predial, a 7.1.2013, após o que contactou o legal representante da Ré que a informou que a situação se encontrava resolvida.

30. O imóvel foi penhorado no âmbito do processo 1134/11.1TBCBR, em que é exequente o Réu CC, sendo Executado a Ré Construções BB e reclamantes a Autora e a Ré Banco Popular Portugal

31. A Ré CONSTRUÇÕES BB, L.DA foi citada para o processo nº. 1134/11.1TBCBR em 5/12/2011 e notificada da penhora do prédio prometido em 26/10/2012, não tendo deduzido oposição nem à execução, nem à penhora, encontrando-se o processo executivo na fase de venda judicial

32. Em 27/01/2013, a Autora deduziu reclamação de créditos no âmbito da execução que corre termos sob o processo nº 1134/11.1TBCBR, reclamando um crédito no valor de 58.910,00€, sendo que 50.000,00€ correspondem ao dobro do sinal prestado e 8.910,00€ a benfeitorias realizadas no prédio prometido, e invocando um direito de retenção sobre o imóvel prometido e aí penhorado

33. Por sentença proferida em 27/06/2013, no Apenso A do processo 1134/11.1TBCBR, transitada em julgado, foram graduados os seguintes créditos: sobre os imóveis penhorados, indicados sob os nºs 1, 2 e 3 do mencionado auto de penhora: o crédito do Banco DD, S.A. até ao montante máximo de € 1.529.270,00€, graduado em primeiro lugar e a dívida executada em segundo lugar; sobre o imóvel penhorado sob o nº 4 referido no auto da penhora, correspondente ao prédio prometido, foi determinado que a graduação dos créditos reclamados sobre esse imóvel aguarde até que a Autora obtenha título executivo na presente ação, que propôs para o efeito

34. Em 8/04/2013, a Ré BANCO DD, S.A., requereu a declaração de insolvência da Ré CONSTRUÇÕES BB, LDA., dando origem à ação que correu termos sob o processo nº 167/13.8TBCDN, tendo sido proferida sentença de declaração de insolvência em 26/03/2014, a qual foi revogada pela Relação de Coimbra mediante decisão transitado em julgado em 21/10/2014, julgando‐se como provado que a Ré CONSTRUÇÕES BB, LDA. deve à Ré Banco DD a quantia de 334.467,82€ e ao Réu CC a quantia de 125.408,22€.

36. O contrato promessa celebrado entre autora e Ré Construções encontra-se datado de 16 de Fevereiro de 2012.

37. Por comunicação datada de 21.01.2013, foi, na execução 1134/11.1TBCBR, designado o dia 8 de Março de 2013, para abertura de propostas em carta fechada, relativamente à venda do imóvel prometido vender


Estando em causa um contrato promessa de compra e venda sem fixação de prazo para a celebração do contrato definitivo, ficando a mesma condicionada, por um lado, à obtenção da licença de utilização, e, por outro lado, à concessão de empréstimo bancário à promitente compradora, aqui A., as recíprocas obrigações de contratar revestem a natureza de obrigações puras, dependendo a constituição em mora de interpelação do credor (art. 805º, nº 1, do CC, salvo nas excepções do nº 2, alíneas b) e c), que não se verificam no caso dos autos).

Importa apreciar se, como entendeu a Relação, a conduta da promitente vendedora, aqui 1ª R., configura uma declaração antecipada de não cumprimento juridicamente relevante.

No essencial provou-se: que o contrato promessa foi celebrado em 16/02/2012, enquanto a moradia se encontrava em fase de construção, obrigando-se a promitente vendedora a vender o bem “livre de quaisquer ónus e encargos”; que o imóvel foi entregue à A., promitente compradora, em 01/08/2012, para que nela habitasse juntamente com a sua família; que, em 26/10/2012, “O imóvel foi penhorado no âmbito do processo 1134/11.1TBCBR, em que é exequente o R. CC”; que a promitente vendedora, aqui 1ª R., foi “notificada da penhora do prédio prometido em 26/10/2012, não tendo deduzido oposição nem à execução, nem à penhora, encontrando‐se o processo executivo na fase de venda judicial”; que a A. “tomou conhecimento da penhora por consulta efectuada na Conservatória do Registo Predial, a 7.1.2013, após o que contactou o legal representante da Ré que a informou que a situação se encontrava resolvida.”; que, “Em 27/01/2013, a Autora deduziu reclamação de créditos no âmbito da execução (…) reclamando um crédito no valor de 58.910,00€, sendo que 50.000,00€ correspondem ao dobro do sinal prestado e 8.910,00€ a benfeitorias realizadas no prédio prometido, e invocando um direito de retenção sobre o imóvel prometido e aí penhorado”; que, “Por comunicação datada de 21.01.2013, foi (…) designado o dia 8 de Março de 2013, para abertura de propostas em carta fechada, relativamente à venda do imóvel prometido vender”. Por fim, provou-se ainda que “A Ré Construções não logrou até à data obter licença de utilização para o prédio prometido vender.”

      É certo que a penhora do bem prometido vender não produz, por si só, a impossibilidade da obrigação de contratar. Neste sentido, cfr. os acórdãos deste Supremo Tribunal de 23/09/2004 (proc. nº 2089/04, consultável na base de sumários da jurisprudência cível in www.stj.pt) e de 02/12/2008 (proc. nº 2653/08, in www.dgsi.pt).

Contudo, no caso dos autos, não pode deixar de se ter em conta o facto de a promitente vendedora, aqui 1ª R., não ter deduzido oposição à penhora do imóvel, assim como o facto de, não apenas não ter informado a A., promitente compradora, da dita penhora, como lhe comunicado que “a situação se encontrava resolvida” numa data em que fora já notificada da marcação da abertura das propostas na venda judicial.

Trata-se de saber se, como entendeu a Relação, estes factos revelam, com toda a probabilidade, a intenção de não cumprimento da obrigação de contratar (art. 217º, nº 1, 2ª parte, do CC). Saber se, ao desinteressar-se completamente pelo destino do bem prometido vender, não obstante não poder ignorar que assim comprometia o interesse da contraparte no contrato promessa, manifestou a promitente vendedora, aqui 1ª R., de forma clara e inequívoca, a sua intenção de não cumprir definitivamente a obrigação de contratar.

Não se ignora o debate doutrinal em torno das características do elemento interno da declaração negocial, designadamente em torno da exigência da denominada vontade de declaração ou consciência de declaração (cfr. a síntese actualizada deste debate em Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, anotação I ao art. 217º, e anotação II ao art. 246º, da autoria de Evaristo Mendes/Fernando Sá). Contudo – e independentemente da resolução dessa disputa – a orientação da jurisprudência deste Supremo Tribunal tem sido no sentido de considerar constituírem comportamentos concludentes, atribuindo-lhes relevância declarativa, tanto a não oposição à penhora do bem prometido vender, como a não comunicação dessa informação ao promitente comprador. Assim, em situações idênticas às dos autos, decidiu-se que “O incumprimento não decorre da impossibilidade (culposa ou não) da prestação da promitente vendedora, mas sim, da tácita, mas inequívoca, desvinculação das obrigações decorrentes do contrato-promessa. O incumprimento verificou-se quando a promitente vendedora deixou penhorar a fracção autónoma, sem reacção e sem dar conhecimento ao promitente comprador. Tal como bem se pondera no acórdão sob recurso, é óbvio que, a partir de então, ficou certo que a promitente vendedora se desligou em definitivo dos compromissos assumidos com o autor, de nada passando a interessar a interpelação para o cumprimento.” (acórdão de 16/05/2000 (proc. nº 396/00), consultável na base de sumários da jurisprudência cível in www.stj.pt;

e que “O incumprimento resulta, não da impossibilidade da prestação dos promitentes vendedores, ‘mas sim da tácita, mas inequívoca, desvinculação das obrigações decorrentes do contrato-promessa’. Nada tendo feito para erradicar a hipoteca, cujo conhecimento sonegaram à promitente vendedora, e deixando penhorar o prédio, sem reacção, e, de novo, sem a esta fazer a devida comunicação, os réus, promitentes vendedores, fizeram, em definitivo, tábua-rasa dos compromissos assumidos com a autora, deixando patente que, da parte deles, o contrato não era para cumprir, de nada passando a interessar a interpelação para o cumprimento.” (acórdão de 24/01/2008 (proc. nº 3813/07), in www.dgsi.pt). A respeito da relevância objectiva da ocorrência da penhora do bem prometido vender – em casos em que as questões jurídicas não coincidem inteiramente com a dos autos –, ver também os acórdãos de 02/12/2008 (proc. nº 2653/08), e de 20/05/2015 (proc. nº 1311/11.5TVLSB.L1.S1), consultáveis em www.dgsi.pt.

Seguindo a orientação jurisprudencial deste Supremo Tribunal, considera-se que a conduta da promitente vendedora, aqui 1ª R. – ao não deduzir oposição à penhora, não informar a promitente compradora da penhora e, mais ainda, ao tentar induzi-la em erro acerca do desenvolvimento do processo executivo – constitui um comportamento concludente com relevância declarativa: trata-se de uma declaração tácita, mas clara e inequívoca, da intenção de não cumprir o contrato.

Independentemente da solução teórica a dar à questão, supra referida, da natureza dos efeitos da declaração antecipada de não cumprimento, no caso dos autos, a cronologia dos factos provados - A Ré CONSTRUÇÕES BB, L.DA foi citada para o processo nº. 1134/11.1TBCBR em 5/12/2011 e notificada da penhora do prédio prometido em 26/10/2012, não tendo deduzido oposição nem à execução, nem à penhora, encontrando‐se o processo executivo na fase de venda judicial; A Ré Construções não deu conhecimento à A. da penhora que passou a incidir sobre o imóvel; A A. tomou conhecimento da penhora por consulta efectuada na Conservatória do Registo Predial, a 7.1.2013, após o que contactou o legal representante da Ré que a informou que a situação se encontrava resolvida; Por comunicação datada de 21.01.2013, foi, na execução 1134/11.1TBCBR, designado o dia 8 de Março de 2013, para abertura de propostas em carta fechada, relativamente à venda do imóvel prometido vender; Em 27/01/2013, a Autora deduziu reclamação de créditos no âmbito da execução que corre termos sob o processo nº 1134/11.1TBCBR, reclamando um crédito no valor de 58.910,00€ (…) – não permite senão concluir pela verificação da situação de incumprimento definitivo imputável à promitente vendedora. No final de Janeiro de 2013, tudo concorria para impedir que a A. pudesse exigir, judicial ou extrajudicialmente, a realização do contrato prometido de compra e venda: a falta de licença de utilização do prédio; a oneração do bem com a penhora, sem dedução de oposição, encontrando-se o processo executivo já na fase da venda judicial. Não restava à A. alternativa que não fosse deduzir a reclamação de créditos no processo de execução (em 27/01/2013), e, consequentemente, resolver o contrato (cartas de 29/04/2013 e 02/05/2013).


8. Ainda que se seguisse orientação distinta, ajuizando que a conduta da promitente vendedora, aqui 1ª R., não constitui um comportamento concludente com relevância declarativa, sempre a solução seria idêntica.

Quer por se entender que, na data da reclamação de créditos/declaração de resolução (27/01/2013), a celebração do contrato prometido era já impossível, uma vez que a sucessão de factos – penhora do bem, ausência de dedução de oposição à penhora, marcação da venda judicial – inviabilizara, por causa imputável à promitente vendedora, a obtenção de empréstimo bancário por parte da A., promitente compradora, condição a que o contrato promessa sujeitara a celebração do contrato definitivo.

Quer por se entender que a conduta da promitente vendedora – não dedução de oposição à penhora, não comunicação da existência de penhora à promitente compradora e indução desta em erro quanto ao andamento do processo executivo – constitui uma gravíssima violação do princípio da boa fé no cumprimento das obrigações (art. 762º, nº 2, do CC), configurando aquilo que se tem vindo a denominar como situação de justa causa objectiva de resolução, admitindo-se que esta figura seja aplicável a contratos com as características do contrato promessa dos autos.


9. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso, confirmando-se o acórdão recorrido.


Custas pelo Recorrente.


Lisboa, 02 de Fevereiro de 2017


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Bettencourt de Faria

João Bernardo