Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5384/15.3T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 4ª. SECÇÃO
Relator: CHAMBEL MOURISCO
Descritores: PROCESSO DE TRABALHO
NULIDADE PROCESSUAL
NULIDADE DE SENTENÇA
GRAVAÇÃO DA AUDIÊNCIA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 02/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL LABORAL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / DISCUSSÃO E JULGAMENTO / GRAVAÇÃO DA AUDIÊNCIA / RECURSOS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - ACTOS PROCESSUAIS ( ATOS PROCESSUAIS ) / GRAVAÇÃO DA AUDIÊNCIA FINAL / SENTENÇA ( NULIDADES ) / RECURSOS / INTERPOSIÇÃO DE RECURSO / IMPUGNAÇÃO DA DECISO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO.
Doutrina:
- Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil” anotado, Vol. V, reimpressão, Coimbra, 1984, 424.
- Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, 372 e ss.
- Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, 133.
- João Correia e Albertina Pereira, “Código de Processo do Trabalho”, Anotado à luz da reforma do Processo Civil, Almedina, anotação ao art.º 68.º.
- José Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil”, anotado em coautoria com Isabel Alexandre, Coimbra Editora, Vol. 1º, 3.ª Edição, anotação ao art.º 195.º, 384.
- Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, 183.
- Paulo Sousa Pinheiro, Curso Breve de Direito Processual do Trabalho, 2.ª edição, Revista e atualizada, Coimbra Editora, 153.
- Pedro Madeira de Brito, «O novo Código de Processo Civil e o Processo do Trabalho», Estudos A.P.O.D.I.T. 2, A.A.F.D.L., Lisboa 2016.
-Viriato Reis e Diogo Ravara, «O Novo Processo Civil. Impactos do Novo C.P.C. no Processo do Trabalho», Caderno IV (2.ª Edição), 88, Publicação do C.E.J., disponível na respetiva página da internet.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 7.º, N.º 3.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 139.º, N.º 3, 149.º, N.º 1, 155.º, 195.º, N.º 1, 248.º, 615.º, N.º 1, 637.º, N.º 1, 655.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO DO TRABALHO (CPT): - ARTIGOS 1.º N.ºS 1 E 2, AL. A), 68.º, N.º 4, 77.º, 80.º N.ºS 1 E 3, 81.º, N.º 1.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 207.º, N.º 2.
LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO (LOSJ): - ARTIGO 127.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-DE 23/03/2004, N.º 183/2004, PUBLICADO EM WWW.TRIBUNALCONCTITUCIONAL.PT .

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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 04/10/2006 E 17/01/2007, PROCESSOS N.ºS 06S2069 E 06S2333, RESPECTIVAMENTE, AMBOS PUBLICADOS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
1. O incumprimento pelo tribunal da relação do disposto no art.º 655.º n.º 1 do CPC é suscetível de integrar a prática da nulidade processual prevista no art.º 195.º n.º 1 do mesmo diploma legal, pois foi omitido um ato que a lei prescreve, que consistia em dar a possibilidade às partes de exercer o contraditório.

2. A intensidade desta violação é tal, uma vez que se trata de um princípio estruturante do direito processual civil, que a decisão final ao dar cobertura a esse desvio processual acaba por assumi-lo, ficando ela própria contaminada.

3. Esta nulidade processual coberta pelo acórdão, ainda que não se configure como uma das nulidades previstas no art.º 615.º n.º 1 do CPC, acaba por inquinar o mesmo, ferindo-o de nulidade.

4. Em processo laboral as nulidades do acórdão devem ser arguidas no requerimento de interposição do recurso de revista, como é imposto pelo art.º 77.º do CPT.

5. A disposição constante do art.º 1.º n.º 1 do CPT, de que o processo do trabalho é regulado pelo respetivo Código, continua a ser a norma estruturante que deve nortear toda a interpretação inerente a um regime que o legislador quis destacar do CPC, dadas as suas particularidades.

6. No processo laboral o registo da prova continua a ter carácter facultativo, tal como se encontra definido no art.º 68.º do CPT, disposição que não foi derrogada pela primeira parte do n.º 1 do art.º 155.º do CPC.

7. O facto de as partes não terem requerido a gravação da audiência de discussão e julgamento, e de não constar da ata despacho a determiná-la oficiosamente, não é relevante para que essa gravação não possa ser considerada para efeitos de impugnação da decisão da matéria de facto, na medida em que tal gravação foi efetuada através do programa informático utilizado no tribunal, em conformidade com o disposto na segunda parte do n.º 1 e números seguintes do art.º 155.º do CPC, com registo na própria ata de julgamento, assinada pelo juiz.

8. Existindo registo magnético oficial com a gravação da audiência, as partes passam a ter o direito a impugnar a matéria de facto, beneficiando assim, caso o façam, do acréscimo do prazo para interpor recurso, que passa a ser de trinta dias, nos termos do art.º 80.º n.os 1 e 3 do CPT, ou seja ao prazo normal de vinte dias acrescem dez dias.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 5384/15.3T8GMR.G1.S1 (Revista) - 4ª Secção

CM/PH/GR

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

                                                           I

1. Após a receção da participação da Autoridade para as Condições do Trabalho, prevista no n.º 3, do art.º 15.º-A, da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, o Ministério Público intentou ação declarativa especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho contra Massa Insolvente da AA, SA. (R.), relativamente à trabalhadora BB.

Para o efeito, em síntese, alegou a existência de um contrato de trabalho, na medida em que a referida trabalhadora, desde junho de 2011, desempenha as funções de enfermeira nas instalações da R., utilizando os instrumentos de trabalho desta, tendo um horário pré-definido, controle das horas de início e termo da prestação de serviço, tendo formação de integração e recebendo ordens e instruções da beneficiária da prestação de trabalho.

A R. contestou, alegando que a ação deveria ser intentada e correr por apenso ao seu processo de insolvência (3576/14.1T8 GMR), uma vez que decisão poderá alterar o montante total das dívidas da massa insolvente e consequentemente a diminuição das garantias dos respetivos credores, verificando-se a incompetência material do tribunal, tendo ainda impugnado os factos alegados pelo Ministério Público, invocando que o contrato que a vinculava à referida trabalhadora era de prestação de serviço.

Foi cumprido o disposto no art.º 186º-L, n.º 4, do Código de Processo do Trabalho.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou improcedente a invocada incompetência material do tribunal e decidiu julgar a ação procedente por provada e, em consequência, reconhecer que a relação contratual que existe desde junho de 2011 entre a R.“ AA, SA” (declarada insolvente) e a trabalhadora BB, consiste num contrato de trabalho enquadrável no conceito definido no art.º 12.º, do Código do Trabalho”.

2. A R. interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de …, que através de acórdão, julgou extemporâneo o recurso e, consequentemente, não conheceu o seu objeto considerando extinta a instância.

Esta decisão estribou-se na argumentação de que a prova testemunhal foi gravada sem que as partes o tivessem requerido ou sem que o tribunal o tivesse determinado, o que impede a reapreciação da prova testemunhal. Logo, ao não ser admissível o recurso da matéria de facto, não podia a recorrente beneficiar do acréscimo de 10 dias ao prazo normal de 20 dias para interpor recurso.

 

3. Inconformada com esta decisão, a R. interpôs recurso de revista, tendo formulado as seguintes conclusões:

1- O Novo Código de Processo Civil, no seu artigo 655.º, n.º 1, tem como redação “Se entender que não pode conhecer do objeto do recurso, o relator, antes de proferir a decisão, ouvirá cada uma das partes, pelo prazo de 10 dias.”

2- O Tribunal da Relação não cumpriu o preceituado no art.º 655.º, n.º 1, do Novo Código de Processo Civil, e decidiu julgar extemporâneo o recurso sem que para esse efeito tenha dado às partes a possibilidade de exercer o contraditório, violando claramente o disposto art.º 3.º, n.º 3, do Novo Código de Processo Civil.

3- A omissão de tal notificação negou às partes o direito assegurado pelo art.º 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, a um processo equitativo e leal, designadamente por violação do princípio do contraditório, princípio este que vem sendo considerado pela jurisprudência ínsito no direito fundamental de acesso aos tribunais, consagrado no n.º 1, desse mesmo art.º 20.º, da Lei Fundamental.

4- A violação do disposto no n.º 3, do artigo 3.º, do Código de Processo Civil, integrando a violação do princípio do contraditório, é suscetível de consubstanciar a prática de uma nulidade processual, quando a subjacente irregularidade cometida se mostre capaz de influir no exame ou decisão da causa.

5- No acórdão de que aqui se recorre foi proferido o seguinte sumário, da única responsabilidade do relator:

“7 - Não sendo requerida ou ordenada oficiosamente a gravação da prova produzida em audiência de julgamento, nos termos do art.º 68.º, do Código de Processo do Trabalho, não pode ser considerado e valorado pelo tribunal de recurso o registo-áudio efetuado na audiência.

2 - Se a impugnação sobre a decisão da matéria de facto é ineficaz pela impossibilidade da sua apreciação e a parte não tendo ab initio esse direito, a mesma só poderia utilizar o prazo de 20 dias para interpor o recurso.”

6 - Decidiram os juízes da Relação julgar extemporâneo o recurso e, consequentemente, não conhecer do objeto considerando extinta a instância.

7- 0 Tribunal da Relação fez uma interpretação errada do art.º 68.º, n.º 4, do Código de Processo do Trabalho, violando o princípio do Estado de Direito que se concretiza através de elementos retirados de outros princípios, designadamente, o da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, expressamente consagrados no art.º 2.º, da Constituição da República Portuguesa, bem como violando o princípio de acesso ao direito, constitucionalmente consagrado no art.º 20.º. A este propósito ver Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 24/05 de 18 de janeiro de 2005, relatora Maria Fernanda Palma.

8- A interpretação jurídica realiza-se através de elementos, meios, fatores ou critérios que devem utilizar-se harmónica e não isoladamente.

9- Assim, se o Tribunal da Relação recorresse à conjugação dos art.º 68.º, n.º 4, do Código de Processo do Trabalho, art.º 2.º, n.º 2, da Lei Preambular, art.º 1.º, do Código de Processo do Trabalho e art.º 155.º, do Novo Código de Processo Civil, chegaria à conclusão de que o art.º 68.º, n.º 4, do Código de Processo do Trabalho, não pode viver isoladamente e que ao prazo de recurso de 20 dias, teria de se acrescer o prazo de 10 dias, face à reapreciação da prova gravada requerida pela Ré/recorrente.

10 - Da leitura conjugada dos art.º 68.º, n.º 4, do Código de Processo do Trabalho, art.º 2.º, n.º 2, da Lei Preambular, art.º 1º, do Código de Processo do Trabalho e art.º 155.º, do Novo Código de Processo Civil, a redação do art.º 68.º, n.º 4, do Código de Processo do Trabalho, deve ser interpretada no sentido de que as audiências são todas gravadas, sem necessidade de ser requeridas ou determinadas oficiosamente.

11- Seria de todo insensato às partes e ao juiz terem necessidade de solicitar a gravação de algo que já decorre de uma obrigatoriedade legal.

12- Se assim não fosse, da própria notificação do Tribunal à parte contrária, no caso o Ministério Público, não constaria a possibilidade de o mesmo beneficiar de um prazo de 20 dias, acrescido de 10 dias, caso o recurso tivesse por objeto a reapreciação da prova gravada.

13- Permitir ao Ministério Público beneficiar de um prazo superior àquele que o Tribunal da Relação no Acórdão recorrido entendeu ter a Ré, aqui recorrente, constitui uma clara violação ao estatuído no art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa.

14- Os mandatários da ré/recorrente tendo sido notificados da sentença em 11/01/2016, via eletrónica, o prazo de 20 dias, acrescidos de 10 para recorrer, começou a contar a 15/01/2016 e terminou em 15/02/2016.

15- Logo, tendo o recurso apresentado pela Ré/Recorrente versado sobre a reapreciação da prova gravada, e tendo sido apresentado dentro do prazo, 13/02/2016, o mesmo deveria ter sido apreciado pela Relação e nunca ter sido julgado extemporâneo como o foi.

O Ministério Público contra-alegou defendendo a manutenção do acórdão recorrido, tendo formulado as seguintes conclusões:

1.a- Da factualidade revelada nos autos verifica-se que, não obstante o Exmo. Sr. Desembargador Relator ter decidido não poder conhecer-se do objeto do recurso de apelação interposto pela Recorrente, em razão da sua extemporaneidade, não foi dado cumprimento ao prescrito no art.º 655.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

2.a- Tal omissão e consequente violação do princípio do contraditório - cfr. n.º 3, do art.º 3.º, do Código de Processo Civil - é suscetível de consubstanciar a prática de uma nulidade processual prevista no art.º 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

3.a- As nulidades processuais devem, em regra, ser suscitadas perante o tribunal em que as mesmas foram cometidas e, caso o requerente se não conforme com a decisão proferida sobre o requerimento de arguição de nulidade, desta caberá recurso, nos termos gerais.

4.a- A Recorrente em lugar de ter arguido pelo meio processual adequado a aludida nulidade processual perante o tribunal em que foi cometida, i.e., Tribunal da Relação de …, vem apenas agora em sede de recurso de revista arguir tal nulidade, o que determina necessariamente a impossibilidade do seu conhecimento pelo tribunal ad quem.

5ª.- Mesmo a entender-se que no caso sub judice se estava perante uma violação suscetível de consubstanciar uma nulidade do acórdão em si mesmo considerado, ainda assim estava o tribunal ad quem impossibilitado de conhecer de tal nulidade, uma vez que por força do disposto no art.º 77.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, necessário se tornaria que a Recorrente tivesse arguido tal nulidade, expressa e separadamente, no requerimento de interposição de recurso, o que não fez, tendo apenas formulado a respetiva arguição no corpo das suas alegações e correspondentes conclusões recursórias.

6-a- Nos termos das disposições conjugadas dos n.os 2 a 4, do art.º 68.º, do Código de Processo do Trabalho, a gravação da audiência de julgamento no âmbito do processo do trabalho está consagrada em termos facultativos, sendo necessário para que a mesma ocorra que qualquer das partes a requeira ou que o tribunal oficiosamente a determine.

7.a- No âmbito do processo civil comum o regime é diverso, uma vez que a gravação da audiência está atualmente e desde a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil consagrada em termos obrigatórios - cfr. art.º 155.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

8.a- Tendo em consideração o princípio geral consignado no art.º 1.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, a aludida norma processual laboral prevalece sobre o mencionado preceito processual civil vertido no art.º 155.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, não tendo, por isso, sido derrogada por este último.

9.a- Assim sendo, julgamos poder concluir-se e com a segurança que os princípios basilares da hermenêutica jurídica conferem que o registo da prova no âmbito do processo do trabalho continua a ter carácter facultativo.

10.a- Não tendo no caso dos autos partido da iniciativa de qualquer das partes ou do próprio tribunal a realização da gravação da prova oral produzida em sede de audiência de julgamento, não pode tal gravação, efetuada por exclusiva iniciativa do respetivo funcionário judicial e sem suporte legal, produzir quaisquer efeitos jurídicos, maxime para fins recursórios, tudo se passando afinal como se essa gravação não tivesse sido efetuada.

11.a- Tendo a Recorrente fundado a impugnação da decisão da matéria de facto em depoimentos constantes da referida gravação, não merece censura o acórdão recorrido ao ter decidido não poderem ser considerados e valorados tais depoimentos, não merecendo, também, censura ao não ter conhecido do objeto do recurso interposto pela Recorrente, em razão da sua extemporaneidade, porquanto não tendo a mesma ab initio direito à reapreciação da prova gravada, não podia beneficiar no caso sub judice do acréscimo de 10 dias previsto no art.º 80.º, n.º 3, do Código de Processo do Trabalho, pelo que tendo o recurso sido interposto no 30.º dia após a notificação da sentença recorrida, já há muito se mostrava transcorrido o prazo (normal) de 20 dias estabelecido no art.º 80.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho.

12.a- Em suma, o acórdão recorrido não incorreu em erro de julgamento, tendo feito correta interpretação e aplicação da lei.

13.a- Nestes termos, deve ser confirmado o acórdão recorrido, negando-se, desse modo, provimento ao recurso.

4. Nas suas conclusões a recorrente suscita as seguintes questões:

a) A nulidade do acórdão por falta de cumprimento pelo Tribunal da Relação do disposto no art.º 655.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, tendo julgado extemporâneo o recurso sem que tenha dado às partes a possibilidade de exercer o contraditório;

b) Determinar, face ao regime do Novo Código de Processo Civil, se o art.º 68.º, n.º 4, do Código de Processo do Trabalho, deve ser interpretado no sentido de que as audiências de discussão e julgamento são todas gravadas, sem necessidade dessa gravação ser requerida pelas partes ou determinada oficiosamente;

c) Saber se no caso concreto, uma vez que a audiência de discussão e julgamento foi gravada, o recurso pode ser considerado interposto em prazo.

Cumpre apreciar o objeto do recurso interposto.

                                                           II


1. As instâncias deram como provados os seguintes factos:

1- A “AA, S.A.” tem como objeto o exercício de medicina e cirurgia.

2- Por sentença transitada em julgado em 10.3.2015, proferida no processo nº 3576/14.1 T8GMR da 1ª Secção de Comércio de …, foi declarada insolvente.

3- A massa insolvente da AA é detentora do Hospital Privado de …, que presta serviços de saúde em regime de ambulatório, internamento e urgência.

4- Este estabelecimento de saúde, para além do quadro de contratados de enfermagem, em função dos picos de atividade existentes, recorre a prestadores de serviços externos na área de enfermagem.

5- Na sequência da ação inspetiva desenvolvida, no dia 20 de julho de 2015, nas instalações dos serviços que a “AA” possui na AMl-Hospital Privado de …, sito na Alameda dos …, em …, pela Autoridade para as Condições de Trabalho - Centro Local do …-…, a inspetora do trabalho, BB verificou que aquela tinha ao seu serviço, naquelas instalações, a prestar a sua atividade de enfermeira, a trabalhadora BB, residente em ..., ....

6- A enfermeira BB iniciou em junho de 2011 a prestação de atividade ao serviço da “AA”, sem nunca ter sido celebrado contrato de trabalho nem contrato de prestação de serviço entre a trabalhadora e a beneficiária.

7- A enfermeira BB está ao serviço da R., exercendo funções de enfermeira, que, consistem, essencialmente, em serviços de enfermagem.

8- Exerce essas funções nas instalações da beneficiária da prestação de trabalho, ou em local por ela determinado, utiliza os equipamentos e instrumentos de trabalho pertencentes àquela, que assim os disponibiliza, nomeadamente, mobiliário, todo o material inerente à atividade própria de um enfermeiro(a) como seja o material de higiene e desinfeção, equipamentos hospitalares, material de emergência, descartáveis/consumíveis e material de proteção.

9- Aquando da ação inspetiva a enfermeira BB, como habitualmente, trajava uma bata branca fornecida pela beneficiária da prestação de trabalho, bata essa identificada com a inscrição AMI, igual a todos os restantes enfermeiros que aí prestam a sua atividade, estejam eles qualificados como trabalhadores independentes ou como trabalhadores por conta de outrem.

10- Está vinculada a observar um horário de trabalho determinado pela beneficiária da prestação de trabalho, com horas de início e de termo de cada dia de trabalho, obedecendo a uma escala de serviço definida e elaborada pela enfermeira-chefe DD, com distribuição de turnos que variam entre as 6 e as 12 horas diárias.

11- Essa escala de serviço é disponibilizada, em regra, à enfermeira BB no final do mês anterior.

12- A R. ao elaborar os horários dos enfermeiros contratados e prestadores de serviços consulta previamente a respetiva disponibilidade de horário de ambos.

13- Como todos os outros enfermeiros contratados e prestadores de serviços a enfermeira BB, no fim de cada mês, enviava a sua disponibilidade horária mensal para prestar serviços à unidade da Ré.

14- As horas de início e termo de prestação de serviço são controladas pela beneficiária da prestação de trabalho através de um sistema de picagens do registo das suas entradas e saídas, utilizado por todos os trabalhadores que prestam a mesma atividade naquele local, estejam eles qualificados como trabalhadores independentes ou como trabalhadores por conta de outrem, no seguimento de instruções da beneficiária.

15-A enfermeira BB, na eventualidade de não poder cumprir a escala de serviço definida pela beneficiária da atividade, deve comunicar à enfermeira-chefe, DD em tempo útil, o motivo da sua ausência.

16- A retribuição auferida pela enfermeira BB é paga mensalmente pela entidade beneficiária do trabalho, habitualmente ao dia 8 ou 9 do mês seguinte, por transferência bancária, obrigatoriamente para a conta bancária daquela.

17- Em valor variável e à razão de € 7,00/hora de trabalho.

18- O valor mensal a receber é o resultante do somatório dos tempos de atividade prestada em todos os turnos praticados pela trabalhadora em cada mês, calculados a partir do registo no sistema informático.

19- O trabalho prestado na R. pela enfermeira BB constitui a sua fonte principal de subsistência e é essencialmente com ele que se sustenta e satisfaz as suas necessidades básicas.

20- A enfermeira BB, tal como os outros enfermeiros, contratados e prestadores de serviços, recebeu formação inicial - formação de integração por parte da entidade empregadora, tendo sido acompanhada durante os primeiros meses por “um colega mais antigo”, não podendo ficar sozinha durante o turno.

21- Foi sujeita a uma avaliação efetuada pela já referida enfermeira-chefe, DD.

22- A enfermeira BB recebe ordens e instruções da beneficiária da prestação de trabalho, que lhe são dadas através daquela enfermeira-chefe, sendo esta que define qual o serviço onde aquela trabalhadora deve trabalhar e quais os utentes que tem que acompanhar e vigiar.

23- A Norma da DGS nº 029/12, obriga que entidades hospitalares, como o Hospital Privado de ..., garantam a existência de sistemas e recursos que facilitam a implementação das precauções básicas do controlo da infeção (PBCI) e a monitorização do seu cumprimento, por todos aqueles que prestam cuidados de saúde, o que também inclui os profissionais das empresas de prestação de serviços.

24-No estrito cumprimento desta norma, todos os profissionais independentemente do vínculo laboral, recebem formação, utilizam os equipamentos, materiais, consumíveis e vestuário fornecido pela Ré.

25- Por cada pagamento efetuado pela Ré, a Autora emite a correspondente fatura recibo.

26- A R. nunca pagou à enfermeira BB subsídio de férias e de Natal, nem quaisquer proporcionais correspondentes aos serviços efetuados.

27- A enfermeira BB efetuava os descontos como trabalhadora independente, junto da Segurança Social.

28- E também desde sempre que junto da Autoridade Tributária abriu atividade como trabalhadora independente, sob o regime da prestação de serviços, tendo-se mantido coletada até à data como profissional liberal.

29- A enfermeira BB prestava e continua a prestar alguns serviços para outras entidades externas.

30- No dia 30 de julho de 2015 a A.C.T. procedeu à notificação da Ré, na pessoa do administrador de insolvência, por carta registada com aviso de receção, dando-lhe o prazo de dez dias para proceder à regularização da situação da trabalhadora e para fazer prova perante a ACT dessa regularização mediante a apresentação do contrato de trabalho por tempo indeterminado ou de documento comprovativo da existência do mesmo reportado à data do início da relação laboral.

31- Não foi regularizada a situação nem obtida resposta.

2. Os presentes autos respeitam a ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho instaurada em 28/08/2015, tendo o acórdão recorrido sido proferido em 30/11/2016.

Assim sendo, o regime processual aplicável é o seguinte:

- O Código de Processo Civil, na versão conferida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho;

- O Código de Processo do Trabalho, na versão operada pela Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto.

3. A recorrente invocou a nulidade processual consubstanciada no facto de o tribunal da relação ter julgado extemporâneo o recurso sem que tenha dado às partes a possibilidade de exercer o contraditório, não cumprindo o disposto no art.º 655.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, violando, assim, o n.º 3, do art.º 3.º, do mesmo diploma legal.

O art.º 655.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Não conhecimento do objeto do recurso”, dispõe que “Se entender que não pode conhecer-se do objeto do recurso, o relator, antes de proferir decisão, ouvirá cada uma das partes, pelo prazo de dez dias.”

Por seu turno, o art.º 3.º, n.º 3, do mesmo diploma legal, sob a epígrafe “Necessidade do pedido e da contradição” estatui que “ O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo em caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”

No caso concreto, da análise do processado resulta que o tribunal da relação julgou extemporâneo o recurso sem que tenha dado às partes a possibilidade de exercer o contraditório, não cumprindo o disposto no art.º 655.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

O art.º 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, com a epígrafe “Regras gerais sobre a nulidade dos atos” dispõe que “ Fora dos casos previstos nos artigos anteriores (art.º 186.º a 194.º, que integram as nulidades principais), a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.”

O incumprimento pelo tribunal da relação do disposto no art.º 655.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, é suscetível de integrar a prática da nulidade processual prevista no art.º 195.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, pois foi omitido um ato que a lei prescreve, que consistia em dar a possibilidade às partes de exercer o contraditório.

Resulta do regime geral das nulidades dos atos que as nulidades processuais devem, em regra, ser arguidas perante o tribunal em que as mesmas foram cometidas, cabendo recurso, nos termos gerais, da decisão proferida sobre o requerimento da arguição.

A arguição das nulidades deve ser efetuada no prazo perentório de 10 dias, como impõe o art.º 149.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, sob pena de se extinguir o direito de praticar o ato, segundo a cominação do art.º 139.º, n.º 3, do mesmo diploma legal.

No caso concreto dos autos, a nulidade cometida pelo Tribunal da Relação, que consistiu na inobservância do princípio do contraditório imediatamente antes de proferir decisão, no sentido de que não podia conhecer do objeto do recurso, inquinou a mesma de forma a poder influir no exame ou na decisão da causa.

A intensidade da violação é tal, uma vez que se trata de um princípio estruturante do direito processual civil, que a decisão final ao dar cobertura, implícita, a esse desvio processual acaba por assumi-lo, ficando ela própria contaminada.

Temos assim que esta nulidade processual coberta pelo acórdão, ainda que não se configure como uma das nulidades previstas no art.º 615.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, acaba por inquinar o mesmo, ferindo-o de nulidade.

O meio de reação próprio a esta decisão judicial é o recurso a interpor da mesma, com fundamento na sua nulidade por falta de audição das partes antes de ter sido proferida a decisão que não conheceu do objeto do recurso.

O Professor Alberto dos Reis[1] refere que “ se a nulidade é consequência de decisão judicial, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infração de disposição da lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam-se por meio de recursos e não por meio de arguição de nulidade do processo.”

Esta posição é comungada pelo Professor Manuel de Andrade[2] que escreve “se a nulidade está coberta por uma decisão judicial (despacho), que ordenou, autorizou ou sancionou o respetivo ato ou omissão em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente, a deduzir (interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo.”

Por sua vez, o professor Artur Anselmo de Castro[3], quanto ao modo de arguição das nulidades, sintetiza: “ Tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está, ainda que indireta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há despacho que pressuponha o ato viciado, diz--se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respetivo despacho pela interposição do competente recurso, conforme a máxima tradicional – das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se. A reação contra a ilegalidade volver-se-á então contra o próprio despacho do juiz; ora, o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respetivo recurso (art.º 677.º, n.º 1), por força do princípio legal de que, proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional (art.º 666.º).”

 Também o Professor Antunes Varela[4] sublinha que “ as nulidades, para cuja apreciação é competente o tribunal onde o processo se encontre ao tempo da reclamação, (…) serão julgadas logo que apresentada reclamação (…). Se, entretanto, o ato afetado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão.”

Mais recentemente, o Professor José Lebre de Freitas[5], esclarece que “ Assim também, quando um despacho judicial aprecia a nulidade de um ato processual ou, fora do âmbito da adequação formal do processo, admite a prática de um ato da parte que não podia ter lugar, ordena a prática de um ato inadmissível ou se pronuncia no sentido de não dever ser praticado certo ato prescrito por lei, a questão deixa de ter o tratamento das nulidades para seguir o regime do erro de julgamento, por a infração praticada passar a ser coberta pela decisão, expressa ou implícita, proferida, ficando esgotado, quanto a ela, o poder jurisdicional.”

O Tribunal Constitucional no Acórdão de 23 de março de 2004[6] dá conta que “tem sido doutrinal e jurisprudencialmente sustentado que, cabendo recurso ordinário da decisão judicial em causa, é no âmbito desse recurso, e não através de reclamação perante o autor da decisão, que deve ser atacada tal violação das regras processuais.”

Esta mesma posição foi seguida nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 04/10/2006 e 17/01/2007, relatados respetivamente pelos Juízes Conselheiros Maria Laura Leonardo e Pinto Hespanhol.[7]

Nesta linha, confrontado com a nulidade do acórdão, o recorrente deveria, no requerimento de interposição do recurso de revista, arguir a mesma, nos termos do art.º 77.º do CPT.

Com efeito, no processo laboral, resulta do art.º 77.º, do Código de Processo do Trabalho, que existe um regime particular de arguição de nulidades de sentença, que se traduz no facto da arguição ter de ser feita expressa e separadamente no requerimento de interposição de recurso e quando da sentença não caiba recurso ou não se pretenda recorrer, a arguição das nulidades da sentença é feita em requerimento dirigido ao juiz que a proferiu.

Apesar de no processo laboral o requerimento de interposição de recurso dever conter a alegação do recorrente (art.º 81.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho), não pode confundir-se o requerimento de interposição de recurso com a alegação de recurso. O requerimento é dirigido ao tribunal que proferiu a decisão - art.º 637.º, n.º 1, do Código de Processo Civil - e a alegação é dirigida ao tribunal superior devendo conter as razões da discordância em relação à sentença e os fundamentos que, no entender do recorrente, justificam a sua alteração ou revogação.

 O Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou inúmeras vezes sobre esta questão, sempre de forma unânime, no sentido de que a arguição de nulidades não deve ser atendida por extemporânea, caso a arguição de nulidades de sentença não seja feita pela forma prevista no art.º 77.º, do Código de Processo do Trabalho, nomeadamente quando tal arguição foi só suscitada na alegação de recurso.

Apreciando o requerimento de interposição de recurso logo se vê que a recorrente não suscitou a nulidade do acórdão recorrido de forma expressa e separadamente, limitando-se a fazer referência à mesma nas suas alegações e conclusões, pelo que não respeitou o estatuído no art.º 77.º, do Código de Processo do Trabalho, razão pela qual não se pode conhecer da sobredita arguição.

 4. Outra questão suscitada pela recorrente, nas suas conclusões, consiste em saber, face ao regime do Novo Código de Processo Civil, se o art.º 68.º, n.º 4, do Código de Processo do Trabalho, deve ser interpretado no sentido de que as audiências de discussão e julgamento são todas gravadas, sem necessidade dessa gravação ser requerida pelas partes ou determinada oficiosamente.

Para sustentar a tese de que as audiências de discussão e julgamento no processo laboral devem ser sempre gravadas, a recorrente argumenta com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 68.º, n.º 4, do Código de Processo do Trabalho, art.º 2.º, n.º 2, da Lei Preambular, art.º 1.º, do Código de Processo do Trabalho e art.º 155.º, do Novo Código de Processo Civil.

Vejamos as referidas disposições legais:

O art.º 68.º, n.º 4, do Código de Processo do Trabalho, estatui que “ A gravação da audiência ou a intervenção do tribunal coletivo devem ser requeridas na audiência preliminar, se a esta houver lugar, ou até 20 dias antes da data fixada para a audiência de julgamento.”

Por seu turno, o art.º 1 do Código de Processo do Trabalho, com a epígrafe “ Âmbito e integração do diploma” dispõe:

1 - O processo do trabalho é regulado pelo presente Código.

2 - Nos casos omissos recorre-se sucessivamente:

a) À legislação processual comum, civil ou penal, que diretamente os previna;

b) À regulamentação dos casos análogos previstos neste Código;

c) À regulamentação dos casos análogos previstos na legislação processual comum, civil ou penal;

d) Aos princípios gerais do direito processual do trabalho;

e) Aos princípios gerais do direito processual comum.

3 - As normas subsidiárias não se aplicam quando forem incompatíveis com a índole do processo regulado neste Código.

No regime do Novo Código de Processo Civil [8], a gravação das audiências passou a ser obrigatória, como impõe o art.º 155.º, n.º 1, do referido diploma, que estatui “ A audiência final de ações, incidentes e procedimentos cautelares é sempre gravada, devendo apenas ser assinalados na ata o início e o termo de cada depoimento, informação, esclarecimento, requerimento e respetiva resposta, despacho, decisão e alegações orais.”

O art.º 2.º, n.º 2, da Lei preambular, que aprovou o referido diploma, sob a epígrafe “ Remissões”, ordena que “Nos processos de natureza civil não previstos no Código de Processo Civil, as referências feitas ao tribunal coletivo, que deva intervir nos termos previstos neste Código, consideram-se feitas ao juiz singular, com as necessárias adaptações, sem prejuízo do disposto no n.º 5, do artigo 5.º.”

Todo este novo regime processual civil impõe uma nova articulação com o Código de Processo do Trabalho, sendo certo que a doutrina não é unânime quanto à forma como a mesma deve ser feita.

O Professor Doutor Pedro Madeira de Brito[9], debruçando-se sobre a aplicação do Novo Código de Processo Civil ao Código de Processo do Trabalho, refere que devem considerar-se “ab-rogadas as normas (do Código de Processo do Trabalho) que sejam incompatíveis com o novo regime (Novo Código de Processo Civil), mesmo sem remissão formal, quando se verifique que a norma especial do Código de Processo do Trabalho não é autossuficiente e que necessita de se articular com o regime regra, não sendo a situação suscetível de ser harmonizada com o Novo Código de Processo Civil.”

Quanto ao art.º 68.º, do Código de Processo do Trabalho o citado Professor refere que a “aplicação do mesmo pressupõe a existência do regime da gravação da audiência do processo civil e introduz alterações ao mesmo sem se lhe referir expressamente”, concluindo que neste caso, “o regime previsto no Código de Processo do Trabalho não é autossuficiente para fornecer uma regulação completa.”

Também a Juíza Desembargadora Albertina Pereira[10], defende que o regime regra é o da gravação de todas as audiências finais, como impõe o novo Código de Processo Civil, devendo prevalecer o art.º 155.º, deste diploma, sobre o art.º 68.º, do Código de Processo do Trabalho.

No entanto, há quem defenda que o regime especial do Código de Processo do Trabalho, nesta matéria, deve prevalecer sobre o Código de Processo Civil.

O Mestre Paulo Sousa Pinheiro[11] sublinha, que o facto de estarmos perante uma norma especial, referindo-se ao art.º 68.º, n.º 4, do Código de Processo do Trabalho, o regime constante do art.º 155.º, n.º 1, do Código de Processo Civil deve ser afastado.

No mesmo sentido se pronunciam o Procurador da República Viriato Reis e o Juiz de Direito Diogo Ravara, numa apreciação dos impactos do Novo Código de Processo Civil no processo do trabalho[12], são claros ao afirmar que parece pacífica a conclusão de que a norma processual laboral, constante no art.º 68.º, n.º 4, do Código de Processo do Trabalho, deve prevalecer sobre o art.º 155.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Vejamos então, face às disposições legais acima referidas, qual a articulação que nos parece mais adequada, atentas as especialidades do processo laboral.

A disposição constante do art.º 1.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, de que o processo do trabalho é regulado pelo respetivo código, continua a ser a norma estruturante que deve nortear toda a interpretação inerente a um regime que o legislador quis destacar do Código de Processo Civil, dadas as suas particularidades.

Atento o disposto nesta norma, temos de considerar que o art.º 68.º, n.º 4, do Código de Processo do Trabalho, por ser lei especial, tem, necessariamente, de prevalecer sobre o disposto no art.º 155.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, como se retira do art.º 7.º, n.º 3, do Código Civil, que dispõe que a lei geral não revoga a lei especial, exceto se outra for a intenção inequívoca do legislador.

Em abono da manutenção da lei especial, manifesta-se a atitude do legislador, que consciente do comando que deriva do art.º 207.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, que prevê a possibilidade de a lei estabelecer a intervenção de juízes sociais no julgamento de questões de trabalho, manteve na Lei da Organização do Sistema Judiciário[13] que entrou em vigor em 1/9/2014, portanto depois da entrada em vigor do CPC, em 1/9/2013, o disposto no art.º 127.º, n.º 1, que prevê, que nas causas referidas nas alíneas a), b), e), f), g) e q) do n.º 1, do art.º 126.º, em que deva intervir o coletivo, o tribunal é constituído pelo coletivo e por dois juízes sociais. As recentes alterações a esta lei, introduzidas pela Lei n.º 40-A/2016, de 22/12, mantiveram o figurino anterior.

Perante esta manifestação clara e expressa, temos de concluir que os princípios gerais inerentes à interpretação das leis não permitem concluir que o regime especial previsto no Código de Processo do Trabalho tenha sido derrogado pelo novo regime do Código de Processo Civil.

Não tendo havido qualquer alteração à referida norma do Código de Processo do Trabalho, na sequência da alteração do Código de Processo Civil, não podemos aplicar o regime deste último no foro laboral, ainda que a referida alteração do processo civil seja considerada uma das linhas mestras da reforma.

O art.º 68.º, do Código de Processo do Trabalho, referente à instrução, discussão e julgamento da causa, bem como a possibilidade de intervenção dos juízes sociais, quanto à sua essencialidade, é autossuficiente, não necessitando do recurso, subsidiário, às disposições do Código de Processo Civil, pelo que continua a ser um dos pilares basilares do processo do trabalho, refletindo as tensões sociais que se confrontam no mesmo e a necessidade de uma mais apurada composição do litígio.

Concluímos assim que no processo de trabalho o registo da prova continua a ter carácter facultativo, tal como se encontra configurado no art.º 68.º, do Código de Processo do Trabalho, sendo certo que quando tenha lugar a gravação da audiência de discussão e julgamento aplica-se, nesse particular, por força do disposto no art.º 1.º, n.º 2, al. a). do Código de Processo do Trabalho, o disposto no n.º 2, e seguintes, do art.º 155.º, do Código de Processo Civil, que dispõem sobre a documentação dos atos da audiência, por se tratar de matéria que não se encontra regulada no Código de Processo do Trabalho.

5. Finalmente importa saber se, no caso concreto, tendo a audiência de discussão e julgamento sido gravada, o recurso pode ser considerado interposto em prazo.

A recorrente estribando-se na argumentação de que a audiência de discussão e julgamento tinha de ser obrigatoriamente gravada, e tendo-o sido, pretende impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, beneficiando para o efeito do acréscimo do prazo para recorrer, que passaria a ser de 30 dias, nos termos do art.º 80.º, n.os 1 e 3, do Código de Processo do Trabalho.

Como já atrás referimos, entendemos que no processo laboral o registo da prova continua a ter carácter facultativo.

No entanto, no caso concreto, a audiência de discussão e julgamento foi gravada sem que nenhuma das partes o tenha requerido, não tendo também sido o tribunal a determiná--lo oficiosamente.

De qualquer forma, na ata de julgamento foi feita referência à gravação fonográfica através do programa informático H@bilus Média Studio, pelo que temos de concluir que essa gravação foi feita com conhecimento do juiz que presidiu à audiência e assinou a ata.

Aliás, consta da ata de audiência de julgamento, realizada a 23 de novembro de 2015, a referência ao início e ao termo de cada depoimento e na parte final da mesma a menção, que por determinação da Mmª Juiz de Direito, conforme o disposto no n.º 5, do art.º 155.º, do Código de Processo Civil, revisto pela Lei n.º 41/2013, de 26/06, foram transcritos para a ata todos os requerimentos, respostas e despachos/decisões proferidos na referida audiência.

A gravação da audiência de discussão e julgamento, feita através do programa informático utilizado no tribunal, em conformidade com o disposto na segunda parte do n.º 1 e números seguintes do art.º 155.º, do Código de Processo Civil, com registo na própria ata de julgamento, assinada pelo juiz, é uma realidade que consta do processo que tem de ser considerada.

Na verdade, tendo sido efetuada a gravação da audiência de discussão e julgamento, em conformidade com o disposto na lei, o processo passou a dispor de todos os elementos necessários para que qualquer das partes pudesse impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto.

O registo que resultou da gravação da audiência de discussão e julgamento passou a integrar o acervo processual, numa sintonia perfeita com o princípio da aquisição processual.

O facto de nenhuma das partes ter requerido a gravação, e de não constar da ata despacho a determiná-la oficiosamente, não é, a nosso ver, relevante para que se considere que o registo-áudio não possa ser considerado em sede de impugnação da decisão da matéria de facto.

O legislador ao permitir, mesmo perante a inércia das partes, que o tribunal determine oficiosamente a gravação está abrir o caminho a que sejam carreados para os autos todos os elementos necessários que permitam a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

Esta opção do legislador permite até que o juiz possa dar uma ordem de serviço à secretaria no sentido de que todas as audiências de discussão e julgamento das causas passíveis de recurso sejam gravadas.

No caso concreto dos autos, o facto de o juiz ter assinado a ata onde consta referência expressa à gravação da audiência de discussão e julgamento, por si só, é suficiente para que se considere a gravação fidedigna e idónea para permitir que as partes a possam utilizar, querendo, em sede de impugnação.

Existindo registo magnético oficial com a gravação da audiência passam as partes a ter o direito à impugnação, beneficiando assim, caso o façam, do acréscimo do prazo para interpor recurso, que passa a ser de trinta dias, nos termos do art.º 80.º, n.os 1 e 3, do Código de Processo do Trabalho, ou seja ao prazo normal de vinte dias acrescem dez dias.

No caso concreto, a sentença foi notificada aos mandatários das partes em 11/01/2016, por via electrónica, pelo que a notificação se presume efectuada no terceiro dia posterior, nos termos do art.º 248.º, do Código de Processo Civil,[14] logo tendo o recurso sido interposto também, por via eletrónica, em 13/02/2016, o mesmo está em prazo, tendo sido respeitado o prazo de trinta dias.

                                                           III

           

Pelos fundamentos expostos, decide-se:

a) Não tomar conhecimento do objeto do recurso no que diz respeito à nulidade que é imputada ao acórdão recorrido.

 b) Quanto ao mais alegado, concede-se a revista, revogando-se o acórdão recorrido, devendo remeter-se os autos ao tribunal da relação para que o recurso seja apreciado, caso não exista qualquer outro fundamento para a sua rejeição.

Custas pela parte vencida a final.

Anexa-se sumário do acórdão.

Lisboa, 22/02/2017

Chambel Mourisco - Relator

Pinto Hespanhol

Gonçalves Rocha

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Sumário

- Processo de trabalho

- Nulidade processual

- Nulidade de sentença

- Gravação da audiência

- Impugnação da matéria de facto

- Prazo para a interposição do recurso


1. O incumprimento pelo tribunal da relação do disposto no art.º 655.º n.º 1 do CPC é suscetível de integrar a prática da nulidade processual prevista no art.º 195.º n.º 1 do mesmo diploma legal, pois foi omitido um ato que a lei prescreve, que consistia em dar a possibilidade às partes de exercer o contraditório.
2. A intensidade desta violação é tal, uma vez que se trata de um princípio estruturante do direito processual civil, que a decisão final ao dar cobertura a esse desvio processual acaba por assumi-lo, ficando ela própria contaminada.
3. Esta nulidade processual coberta pelo acórdão, ainda que não se configure como uma das nulidades previstas no art.º 615.º n.º 1 do CPC, acaba por inquinar o mesmo, ferindo-o de nulidade.
4. Em processo laboral as nulidades do acórdão devem ser arguidas no requerimento de interposição do recurso de revista, como é imposto pelo art.º 77.º do CPT.
5. A disposição constante do art.º 1.º n.º 1 do CPT, de que o processo do trabalho é regulado pelo respetivo Código, continua a ser a norma estruturante que deve nortear toda a interpretação inerente a um regime que o legislador quis destacar do CPC, dadas as suas particularidades.
6. No processo laboral o registo da prova continua a ter carácter facultativo, tal como se encontra definido no art.º 68.º do CPT, disposição que não foi derrogada pela primeira parte do n.º 1 do art.º 155.º do CPC.
7. O facto de as partes não terem requerido a gravação da audiência de discussão e julgamento, e de não constar da ata despacho a determiná-la oficiosamente, não é relevante para que essa gravação não possa ser considerada para efeitos de impugnação da decisão da matéria de facto, na medida em que tal gravação foi efetuada através do programa informático utilizado no tribunal, em conformidade com o disposto na segunda parte do n.º 1 e números seguintes do art.º 155.º do CPC, com registo na própria ata de julgamento, assinada pelo juiz.
8. Existindo registo magnético oficial com a gravação da audiência, as partes passam a ter o direito a impugnar a matéria de facto, beneficiando assim, caso o façam, do acréscimo do prazo para interpor recurso, que passa a ser de trinta dias, nos termos do art.º 80.º n.os 1 e 3 do CPT, ou seja ao prazo normal de vinte dias acrescem dez dias.

Data do acórdão: 22/02/2017

Processo n.º 5384/15.3T8GMR.G1.S1 (Revista) - 4ª Secção

Chambel Mourisco (relator)

Pinto Hespanhol

Gonçalves Rocha

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[1] Código de Processo Civil anotado, Vol.V, reimpressão, Coimbra, 1984, pág. 424.
[2] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, pág. 183.
[3] Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, pág.133.
[4] Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, pág. 372 e segs.
[5] Código de Processo Civil, anotado em coautoria com Isabel Alexandre, Coimbra Editora, Vol. 1º, 3ª Edição, anotação ao art.º 195.º, pág. 384.
[6] Acórdão n.º 183/2004, publicado em TC> Jurisprudência> Acórdãos 183/2004.
[7] Publicados em www.dgsi.pt 06S2069 e 06S2333.
[8] Lei n.º 41/2013, de 26/6, que entrou em vigor em 1/9/2013.
[9] O novo Código de Processo Civil e o Processo do Trabalho, Estudos APODIT 2, AAFDL, Lisboa 2016.
[10] Código de Processo do Trabalho, Anotado à luz da reforma do Processo Civil (João Correia e Albertina Pereira), Almedina, anotação ao art.º 68.º.
[11] Curso Breve de Direito Processual do Trabalho, 2ª edição, Revista e atualizada, Coimbra Editora, pág.153.
[12] O Novo Processo Civil. Impactos do Novo CPC no Processo do Trabalho, Caderno IV (2ª Edição), pág. 88, Publicação do CEJ, disponível na respetiva página da internet.
[13] Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, alterada pela Lei n.º 40-A/2016, de 22/12.
[14] O art.º 248.º, do Código de Processo Civil, dispõe que os mandatários são notificados nos termos definidos na portaria prevista no n.º 1 do artigo 132.º, devendo o sistema informático certificar a data da elaboração da notificação, presumindo-se esta feita no 3.º dia posterior ao da elaboração ou no 1.º dia útil seguinte a esse, quando o não seja.