Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1420/11.0T3AVR.G1-G.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: NUNO ANTÓNIO GONÇALVES
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
TRIBUNAL PLENO
PRESSUPOSTOS
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 01/31/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: NÃO VERIFICADA A OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Sumário :
"O Supremo Tribunal de Justiça, em pleno das secções criminais, julga não verificada a oposição de julgados e, em consequência, decide rejeitar, nos termos do n.º 1, do art. 441.º do CPP, o recurso do arguido”.
Decisão Texto Integral:

Recurso para fixação de jurisprudência


Recorrente: AA

Recorrido: Ministério Público

Questão jurídica postulada: - pode valorar-se a reconstituição dos factos efetuada por coarguido que incrimina outro, quando na audiência de julgamento recusa depor?


Acórdão:


O Supremo Tribunal de Justiça, em pleno das secções criminais, acorda:

I. relatório:

O recorrente AA, arguido nos autos em epígrafe, interpôs em 15.06.2020 recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães (TRG), de 30.09.2019, proferido no processo n.º 1420/11.0T3AVR.G1, alegando encontrar-se em oposição com o decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6.12.2018, transitado em julgado, proferido no processo n.º 22/98.0GBVRS.E2.S1, publicado em www.dgsi.pt, alegando estar em causa, em ambos, a mesma questão de direito.

Este Supremo Tribunal, na 3ª secção, em conferência, por acórdão de 3 de março de 2021, decidiu o prosseguimento do recurso, dando por verificada a oposição de julgados.

Cumprido o disposto no artigo 442.º, n.º 1, do CPP, o recorrente e o Ministério Público recorrido, apresentaram alegações.

a. conclusões do recorrente:

O recorrente AA remata a argumentação dizendo: ---

“1.º - (…), vem ocupar o tempo deste Venerando Tribunal por considerar não lhe ter sido feita Justiça, por ter sido valorada a prova por reconstituição em sentido contrário ao estabelecido pelo Supremo Tribunal de Justiça.

2.º - (…) à semelhança do que dispõe o n.º 4 do artigo 345.º do Código de

Processo Penal e sob pena de violação das garantias de defesa e do princípio do contraditório constitucionalmente assegurados (artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa), entende o recorrente que a nossa ordem processual não permite que um qualquer arguido participe numa reconstituição e que outro ou outros arguidos sejam incriminados pela versão por ele reconstituída, caso venha na audiência de julgamento a remeter-se ao silêncio ou se recuse a depor, e, assim, à partida, impedir o exercício do direito ao contraditório, traduzindo-se esse meio numa autêntica proibição de valoração de prova.

3.º - No âmbito dos presentes autos, o AA foi condenado como co- autor material, na forma consumada e em concurso de crimes, de 9 crimes de corrupção passiva agravada e a liquidar o património incongruente apurado no valor de € 34.844,68.

4.º - A condenação em relação a 5 candidatos teve fundamento incontornável na reconstituição feita pelos então co-arguidos.

5.º - Daqui se vê que, sendo pouco relevante a prova por reconhecimento fotográfico e presencial, foi à prova testemunhal e na prova por reconstituição que o Tribunal se teve que estribar para fundamentar as asserções em que laborou para condenar o AA.

6.º - Se em relação aos candidatos, co-arguidos, que consentiram prestar declarações (nos termos do artigo 133.º, n.º 2, do CPP) foi possível exercer o contraditório àquilo que haviam dito ou feito em sede de inquérito, aos demais, o AA não pôde colocar uma questão que fosse...

7.º - Portanto, o AA não teve o direito de pedir qualquer tipo de esclarecimentos àqueles que, enquanto arguidos, haviam contra si prestado declarações ou feito uma reconstituição.

8.º - Apontando às situações em que os candidatos não consentiram prestar declarações em julgamento (nem sequer sobre a reconstituição), ficam as passagens mais relevantes do acórdão da Relação de Guimarães:

“Procedeu à reconstituição da forma como decorreu a ajuda no exame teórico

(...) Na prova teórica foi ajudado pelo examinador.”

“Na prova teórica foi ajudado pelo examinador vide reconstituição do facto (...)

Onde mencionou que foi o examinador que lhe indicou as respostas no ecrã do computador.”

(...) Mas por outro lado, fez a reconstituição acerca da forma como foi ajudada no teórico. É nesta amálgama de prova imbrincada e até contraditória que temos de analisar aquilo que nos parece mais lógico face aos elementos provatórios disponíveis. O que é certo é que, não podemos passar por cima do significado e relevância da reconstituição. Ou seja, não podemos sem mais, dizer que a reconstituição é falsa. Ela até pode ser. Até pode ser inventada.

Mas com que base o podemos dizer. Nem mesmo podemos extrair das palavras da candidata quando diz que outros fizeram por mim.”

“Procedeu à reconstituição da forma como decorreu a ajuda no exame teórico, cf. Fls. 9093”

“Ou seja, antes de chegar á escola “N... ......” reprovou 6 vezes. O que não significa que à 7ª vez não poderia ter êxito. Só que a reconstituição do facto não nos deixa margem para dúvidas.”

9.º - Como se vê, para legitimarem as reconstituições imputadas ao AA (e em relação às quais não houve uma testemunha que tivesse prestado declarações), foram apontando à ideia de que aquelas constituem um meio de prova que vale por si mesmo.

10.º - Juntaram a essa ideia a decorrente de alguns acórdãos que transcreveram.

11.º - Contudo, a jurisprudência referida pela Relação de Guimarães trata de reconstituições feitas pelo próprio arguido ou por co-arguido que, em audiência, se prontificou a discutir o tema...

12.º- Aqui não: o AA não esteve presente; não esteve presente o seu defensor; muitos dos co-arguidos que procederam à reconstituição não estavam assessorados; nem sequer rubricaram as fotografias juntas aos autos imputadamente por si subscritos...

13.º - Assim, de que se tenha conhecimento, o único acórdão do STJ (cfr. proferido a 06-12-2018, sob o n.º 22/98.0GBVRS.E2.S1, in www.dgsi.pt) que trata de situação semelhante à dos presentes autos é o que se transcreve:

“IX - À semelhança ainda do que dispõe hoje o n.º 4 do art. 345.º do CPP e sob pena de violação das garantias de defesa e do princípio do contraditório constitucionalmente assegurados (art. 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP), a nossa ordem processual não permite que um qualquer arguido participe numa reconstituição e que outro ou outros arguidos sejam incriminados pela versão por ele reconstituída, caso venha a usar do direito ao silêncio em audiência de julgamento, e, assim, à partida impedir o exercício do direito ao contraditório, traduzindo-se esse meio numa autêntica proibição de valoração de prova.

X - Assim impõe-se que o tribunal recorrido reaprecie os termos da causa sem valoração dos mencionados “autos de reconstituição” e dos depoimentos prestados sobre como tais diligências decorreram, dado não constituírem meio de prova válido para alicerçar a convicção.” – cfr. acórdão do STJ proferido a 06-12- 2018, sob o n.º 22/98.0GBVRS.E2.S1, in www.dgsi.pt

14.º - Com a melhor doutrina do Insigne Assessor neste Supremo Tribunal, Sr. Dr. Tiago Caiado Milheiro, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II - Artigos 124.º a 190.º, Almedina, 2.ª edição, p. 381: “aplicando por analogia o disposto no artigo 345.º/4 não poderão valer como prova os contributos de um arguido numa reconstituição incriminadores de co-arguido se na diligência ou em sede de julgamento não responder aos pedidos de esclarecimento do defensor deste. A não ser assim as garantias de defesa (32.º/1 CRP) na vertente do direito ao contraditório seriam intoleravelmente limitadas.”.

15.º - É assim evidente que o conteúdo dos autos de reconstituição incriminatórios para co-arguido que em tais diligências não participou, não podem deixar de estar sujeitas às restrições que decorrem dos artigos 357.º, n.º 2 e 356.º, n.º 7, ambos do CPP.

16.º - Portanto, deste acórdão do Supremo temos uma absoluta similitude de facto pois, no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, a questão da reconstituição é a mesmíssima: até que ponto (não) pode ser valorada a reconstituição feita por co-arguido que incrimine outro, quando em audiência de julgamento se remeteram ao silêncio ou se recusaram a depor, impedindo o exercício do direito ao contraditório.

17.º - Mais se dirá que, se antes da reforma operada em 2007 o artigo 345.º não chegava ao n.º 4, este veio a ser estatuído em face da sucessiva declaração de inconstitucionalidade de interpretações que validassem as declarações de co-arguidos prestadas em inquérito e que depois, em julgamento, se recusassem a prestar esclarecimentos.

18.º - Estamos, desta feita, perante uma autêntica proibição de valoração de prova.

19.º - Aliás, proibindo o legislador o menos (as declarações de co-arguido prestadas em inquérito e não corroboradas por este em julgamento), naturalmente que se tem de proibir o mais (as reconstituições de co-arguido executadas em inquérito e não corroboradas por este em julgamento).

20.º - Impõe-se, por isso mesmo, que este Supremo Tribunal emende a decisão da Relação e mande reapreciar os termos da causa sem valoração dos mencionados autos de reconstituição.

21.º - Pelo exposto, considera o AA que a Relação de Guimarães só

não terá seguido pela via oposta à estabelecida na decisão por desconhecer a proferida pelo STJ.

22.º - Nessa conformidade, terá que desvalorizar, em absoluto, as reconstituições imputadas ao AA e que não tenham sido corroboradas pelos co-arguidos que as executaram.

23.º - Recorde-se: quem não prestou declarações, não fez qualquer reconhecimento ou reconstituição; por isso, se as declarações não puderam ser valoradas, muito menos poderiam valer as suas reconstituições.

24.º - Aliás, os autos de reconstituição têm sempre sempre sempre transcrições dos autos de declarações... pelo que, não podendo estes ser valorados, mais que não fosse, segundo a teoria dos frutos da árvore envenenada, esta prova contaminaria a restante por haver um nexo de dependência cronológica, lógica e valorativa entre a prova produzida e a restante prova (artigo 122.º, n.º 1, do CPP) lido à luz da jurisprudência do Tribunal Constitucional no acórdão 198/2004, de 24 de março.

25.º - Concretizando, nos autos de interrogatório dos co-arguidos, fez-se constar:

“Neste ato, o arguido mostrou-se disponível a demonstrar os gestos com os dedos da mão efetuados pelo(s) Examinador(es) para o "favorecer" na execução do exame teórico, autorizando a realização e junção aos autos da reportagem fotográfica elucidativa daquela diligência.”.

26.º - Daqui se vê que a própria PJ considerou que, no ato em curso, portanto, de interrogatório de arguido, o declarante iria demonstrar os gestos com os dedos da mão efetuados (a pseudo-reconstituição).

27.º - Com isto, deverá o AA ser absolvido dos crimes que lhe foram imputados a respeito dos candidatos supra mencionados, sob pena de se condenar a pena de prisão efetiva, um ser humano.

Temos então duas soluções opostas:

28.º - A Relação de Guimarães valorou reconstituições feitas em inquérito por co- arguidos que, em sede de julgamento, não consentiram prestar declarações,

29.º - Sendo que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu em sentido oposto (cfr. acórdão proferido a 06-12-2018, sob o n.º 22/98.0GBVRS.E2.S1, in www.dgsi.pt),

30.º - Pelo que é a mesma a questão de direito,

31.º - Não sendo admissível recurso ordinário da decisão recorrida,

32.º - Nem do acórdão fundamento, igualmente transitado,

33.º - Foram proferidos no domínio da mesma legislação pois, durante o intervalo da sua prolação, não ocorreu qualquer modificação legislativa que interferisse, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida,

34.º - O presente recurso foi interposto, atempadamente, no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar,

35.º - E o AA pretende seja uniformizada a jurisprudência no sentido propugnado pelo STJ:

À semelhança ainda do que dispõe hoje o n.º 4 do art. 345.º do CPP e sob pena de violação das garantias de defesa e do princípio do contraditório constitucionalmente assegurados (art. 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP), a nossa ordem processual não permite que um qualquer arguido participe numa reconstituição e que outro ou outros arguidos sejam incriminados pela versão por ele reconstituída, caso venha a usar do direito ao silêncio [ou se recuse a depor] em audiência de julgamento, e, assim, à partida impedir o exercício do direito ao contraditório, traduzindo-se esse meio numa autêntica proibição de valoração de prova.”.


*


b. alegação do Ministério Público:

O Ministério Público, recorrido, na sua alegação, reiterando a posição anteriormente assumida nos autos, suscita, como questão prévia, a verificação da não oposição de julgados, argumentando: ----

(…) o acórdão fundamento, perfilhando o entendimento de Eurico Balbino Duarte , decidiu que, como o conteúdo dos autos de reconstituição ali em causa mais não era do que “declarações de arguidos, auto-incriminatórias de determinados factos e de incriminação para o coarguido que em tais diligências não participou”, não se estava perante uma verdadeira reconstituição de facto como meio de prova, regulada no art.º 150º, mas perante uma “mera demonstração presencial onde não há lugar à reprodução das condições nem à repetição simulada do facto, pelo que ainda que ocorra in loco não tem valor autónomo como meio de prova, reconduzindo-se ao regime das declarações de arguido (artº 140º e 143º). Não é, pois, por este «mostrar» onde e como é que as coisas se passaram que aquelas declarações deixam de valer como tal para serem promovidas a reconstituição.” Daí que tenha concluído que “as declarações, a que materialmente e em substância os autos de reconstituição em apreço se reconduzem, não podem deixar de estar sujeitas às restrições que decorrem dos artºs 357º, nº 2 e 356º, nº 7 do CPP.” No acórdão recorrido, o que se passou foi diferente. (…) também aqui os arguidos invocaram que as reconstituições do facto realizadas com a participação dos co-arguidos constituem prova proibida e insuscetível de ser valorada na convicção do tribunal. Contudo, em relação aos autos de reconhecimento, o tribunal entendeu que “em face da sua substância e conteúdo, tais diligências reconduzem-se claramente ao acto processual de produção de prova por reconstituição do facto, previsto no artº 150º. (…) Efectivamente, nas diligências em apreço procedeu-se a uma reconstituição de parte dos acontecimentos objecto dos autos, mais concretamente a referida ajuda na realização da prova teórica de cada arguido candidato, por parte do examinador presente, ou seja, a forma como este lhe indicou, por atos ou gestos, as respostas correctas a assinalar. (…) Assim, as contribuições do arguido para a reconstituição do facto, designadamente com a prestação oral de informações e esclarecimentos, desde que essenciais e enquanto indispensáveis à compreensão da reconstituição, não se confundem com a problemática da leitura em audiência de julgamento das declarações anteriormente prestadas no inquérito ou na instrução, essa sim não permitida fora das situações a que alude o artº 357º. (…) Consequentemente, porque as contribuições individuais do arguido na reconstituição do facto relevam apenas para este meio de prova e não passam a valer como declarações de arguido, não estão cobertas pelo direito ao silêncio (…).

Daí que o acórdão tenha concluído que “este meio de prova ganha relevância autónoma, pelo que os contributos do reconstituinte vertido nos autos, ainda que verbais mas dentro dos limites que é essencial, para o fim da reconstituição, não se confundem com a prova declaratória, podendo ser valorados nos termos do art.º 127º.”

Em conclusão, independentemente de se apreciar se as decisões em questão, no que respeita ao conteúdo dos autos de reconhecimento, foram ou não acertadas , há que ter em conta que, enquanto no acórdão fundamento, se entendeu não ter sido realizada uma verdadeira reconstituição do facto e, em virtude disso, ao conteúdo dos autos de reconhecimento aplicou-se o regime das declarações de arguido (artº 140º e 143º do CPP), sujeitas às restrições dos artºs 357º nº 2 e 356º nº 7 do CPP3 ; no acórdão recorrido, entendeu-se que o conteúdo dos autos de reconhecimento mostravam uma verdadeira reconstituição do facto, tal como prevista no artº 150º do CPP, e, portanto, as declarações dos arguidos participantes bem como as restantes declarações e acções levadas a cabo e que ali tivessem sido registadas (não autonomizáveis umas das outras), ficam globalmente sujeitas ao regime do artº 127º do CPP: Ou seja, o acórdão recorrido e fundamento, em face do concreto e diferente conteúdo dos autos de reconhecimento, aplicaram normas jurídicas diferentes.”

Concluindo:

1) Não se verifica oposição de julgados tendo ambos os acórdãos aplicado normas jurídicas diferentes devendo, assim, o recurso ser rejeitado.

Para o caso de não proceder a questão prévia, quanto ao mérito, concluiu: -------

2) O acórdão recorrido entendeu que o conteúdo do auto de reconhecimento mostrava uma verdadeira reconstituição do facto e aplicou os artºs 150.º e 127.º do CPP; enquanto o acórdão fundamento, perante o conteúdo do auto, decidiu não se estar perante uma reconstituição do facto e aplicou os artºs 140.º, 357.º, nº 2 e 356º, nº 7 do CPP.

3) A reconstituição de facto é um acto processual dinâmico que envolve variadas acções ou operações podendo nele participar diretamente pessoas que tenham presenciado os factos ou que possam contribuir para os esclarecer, sejam elas arguidos, testemunhas ou peritos.

4) Este meio de prova visa esclarecer, não se um determinado facto histórico foi praticado pelo arguido, mas se um facto poderia ter ocorrido de certa e determinada forma.

5) Apurar se os factos imputados ao arguido foram por este praticados, será feito em função da valoração, em conjunto, de todos os meios de prova produzidos.

6) A oportunidade da reconstituição do facto é avaliada em face de todas as provas já constantes do processo (perícias, documentos, depoimentos, declarações de arguidos) sendo estas que constituem o amparo e o ponto de partida para a encenação e reprodução da factualidade histórica.

7) Os contributos individuais prestados pelos vários participantes ou intervenientes processuais, como testemunhas ou arguidos, não ganham autonomia a ponto de se transformarem em prova testemunhal ou declarações de arguido mas, pelo contrário, diluem-se e fundem-se com os demais instrumentos usados.

8) No final, a reconstituição do facto traduzir-se-á no resultado global de todas as intervenções e operações e poderá servir para esclarecer ou elucidar se é possível que certo ou certos factos se tenham passado de determinada maneira.

9) O resultado da reconstituição corporizar-se-á num auto onde ficarão registadas, de forma objetiva, as intervenções de cada um dos participantes, o que fizeram e disseram, bem como as várias operações realizadas e o que delas resultou.

10) O auto de reconstituição é um auto plurifacetado que espelhará toda a realidade que se passou na reconstituição do facto.

11) A reconstituição do facto não pode ser baseada unicamente na audição dos participantes e não se pode reduzir, na prática, a um mero registo ou repositório de declarações dos intervenientes.

12) Há que distinguir a reconstituição do facto da mera demonstração presencial onde não há lugar à reprodução das condições nem à repetição simulada do facto. 13) A reconstituição do facto é um meio de prova que vale por si e representa um meio autónomo de prova tal como os demais legalmente admitidos, estando sujeito ao princípio da livre apreciação da prova (artº 125º e artº 127º do CPP).

14) Uma coisa é saber se, no caso de silêncio do arguido em audiência de julgamento, a validade da reconstituição do facto é posta em causa e constitui prova proibida por força do artº 355º nº 1 e dos artigos 357º nº 2 e 356º nº 7 a 9 do CPP; outra coisa é saber se as declarações prestadas pelo arguido na reconstituição do facto, registadas no respetivo auto, caso o mesmo se remeta ao silêncio, podem ser lidas em audiência, questão esta que não é objeto do presente recurso.

15) O silêncio do arguido em julgamento não impede que seja utilizada a prova produzida por reconstituição do facto e nem belisca a sua validade mesmo que o auto de reconstituição contenha registo de declarações prestadas pelo arguido.

16) Mesmo no caso de o arguido se remeter ao silêncio, o princípio da imediação continua a ser plenamente respeitado na medida em que as declarações dos participantes na reconstituição não ganham autonomia e não visam substituir o depoimento de testemunhas, substituir as declarações do arguido e, no caso de declarações do perito, substituir ou sobrepor-se ao resultado da perícia.

17) O direito ao silêncio, encontra-se plenamente assegurado uma vez que a utilidade das declarações que prestou na reconstituição ocorre, não de uma forma individualizada, segmentada ou estanque, mas no contexto global de apreciação de todas as acções levadas a cabo e, portanto, as contribuições individuais diluem-se com os demais instrumentos usados.

18) O privilégio contra a auto- incriminação (direito ao silêncio) significa que o arguido não pode ser obrigado a contribuir para a sua própria incriminação e tem o direito a não ceder ou fornecer informações que o desfavoreçam, ou a não prestar declarações, sem que, do silêncio, possam resultar quaisquer consequências negativas ou ilações desfavoráveis no plano da valoração probatória.

19) Estão situadas fora do círculo de proteção do direito ao silêncio as contribuições probatórias, sequenciais e autónomas, que o arguido tenha disponibilizado ou permitido, ou que informações prestadas tenham permitido adquirir, possibilitando a identificação e a correspondente aquisição probatória, ou a realização e a prática de actos processuais com formato e dimensão própria na enumeração dos meios de prova, como é a reconstituição do facto.

20) Deve, pois, fixar-se jurisprudência no seguinte sentido:

A reconstituição do facto é válida e apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 150º nº 1 e do artigo 127, ambos do CPP, mesmo que o auto que a corporiza, para além de descrever as várias acções e operações levadas a cabo e o que das mesmas resultou, contenha o registo de declarações de arguido nela participante, incriminatórias de co- arguido, e aquele, em julgamento, se remeta ao silêncio.”


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Colhidos o visto dos restantes Juízes Conselheiros, o processo foi presente a julgamento que se realizou em conferência do pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos previstos no artigo 443.º, do CPP.

Cumpre decidir.


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II. Fundamentação:

a. pressupostos da fixação de jurisprudência:

Nos termos do artigo 692.º n.º 4, do Código de Processo Civil (aplicável ex vi artigo 4.º, do CPP), o Pleno das secções criminais pode decidir em divergência com a conferência da secção.

Pelo que, se impõe, antes de mais, aferir se se confirmam os pressupostos do presente recurso extraordinário e, mormente, se existe oposição de julgados.

i. formais:

Nos termos dos artigos 437.º e 438.º do Código do Processo Penal encontram-se verificados os pressupostos de natureza formal sempre que: ----

i) o recorrente tenha legitimidade para recorrer (a legitimidade) e o resultado do recurso possa atender interesses seus (o interesse em agir);

ii) o recurso seja interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido (a tempestividade);

iii) o recorrente identifique, na alegação, um acórdão da mesma ou de outra Relação ou do Supremo Tribunal de Justiça com o qual o acórdão recorrido esteja em oposição (um acórdão fundamento), indicando o local da sua publicação, caso exista;

iv) os dois acórdãos em oposição estejam trânsitos em julgado (a definitividade);

v) venha fundamentada a oposição do decidido no acórdão recorrido com o julgado no acórdão fundamento (motivação do recurso).

ª. no caso:

Pelo reexame dos elementos constantes do processo e certifica o acórdão preliminar, verificam-se todos os pressupostos de natureza formal: ----

a) o recorrente, arguido foi condenado nos autos na pena única de anos de 5 anos e 4 meses de prisão e na pena acessória de proibição do exercício da atividade de examinador pelo período de 3 anos e ainda na perda a favor do Estado do valor incongruente apurado no montante de € 51.429,31;

b) o acórdão recorrido é da Relação de Guimarães, tendo sido proferido em recurso;

c) da certidão emitida pelo Tribunal recorrido extrai-se que o requerimento de interposição do recurso foi apresentado em 15.06.2020, dentro do prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido, no que ao mesmo arguido diz respeito;

d) o recorrente identifica como fundamento um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça também transitado em julgado, indicando a sua publicação na base de dados da DGSI, onde efetivamente está acessível em texto integral;

e) na alegação, o recorrente, expôs os argumentos que, na sua ótica, consubstancia a oposição de julgados;

ii. substanciais:

Encontram-se verificados os pressupostos de natureza substancial sempre que: --

(a) os dois acórdãos sejam proferidos na vigência da mesma legislação, ou, tendo advindo reforma legislativa, a alteração não interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida (o mesmo quadro normativo);

(b) as afirmações opostas dos acórdãos dissonantes tenham consagrado soluções dissemelhantes para a mesma questão de direito (mesma questão de direito);

(c) a questão tenha sido objeto de decisões expressas (antagonismo decisório);

(d) exista identidade das situações de facto implícitas aos dois acórdãos em conflito (mesmidade da questão de facto), porquanto apenas assim será exequível criar uma confrontação que consinta concluir que analogamente à mesma questão de direito subsistem soluções jurídicas opostas.

b. no caso:

Conforme se expõe no acórdão preliminar, verifica-se o primeiro dos pressupostos de natureza substancial: ------

“o recorrente convoca para amparar a pretensão uniformizadora os artigos 150.º, 345.º, n.º 4, 356.º, n.º 7 e 357.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal, [que] não sofreram alteração no período temporal sobre que incidiram os acórdãos fundamento e recorrido. Aquelas normas, não são alteradas, umas desde a Lei n.º 48/2007 de 29/08 [e as] outras desde a Lei n.º 20/2013 de 21/02.”

No que concerne aos pressupostos substanciais assinalados em (b), (c) e (d), revivamos o que se diz no acórdão preliminar: -----

“(…) Da análise dos arestos colocados em confronto extrai-se que a factualidade sobre que incidiram se apresenta similar. Naturalmente com as especificidades ditadas pela muito diferente natureza dos crimes que num (homicídio qualificado) e no outro (corrupção ativa e corrupção passiva) estiveram em julgamento.

Assim: -

- no caso sobre que incidiu o decidido no acórdão fundamento, o OPC, na presença da Magistrada do Ministério Público titular do inquérito, procedeu à reconstituição do crime que investigava, com a participação e colaboração de dois coarguidos que confessando a sua comparticipação, incriminaram outro, elaborando o auto de acordo com as explicações daqueles, que indicaram os motivos, as circunstâncias, o local, o modo como o coarguido incriminado disparou sobre a vítima matando-a, indicando ainda como transportaram o cadáver e onde o abandonaram.

- no caso sobre que versou o acórdão recorrido, o OPC, mediante despacho do Magistrado do Ministério Público, procedeu à reconstituição de alguns crimes que investigava, com a participação e colaboração de coarguidos que confessaram a respetiva atividade criminosa, incriminando outros coarguidos.

O auto foi elaborado e a reconstituição fotografada, de acordo com as explicações dos primeiros, que exemplificaram com gestos a atividade criminosa dos coarguidos incriminados.

iv. oposição de julgados:

A questão de direito que vinha suscitada e foi apreciada num e no outro dos arestos colocados em confronto é a mesma, consistindo na valoração – ou não -de autos de reconstituição do facto com a participação e colaboração de coarguidos que, incriminando outro, em julgamento se recusam a prestar declarações ou a depor. A circunstância de, no processo em que foi proferido o acórdão recorrido, os coarguidos participantes na reconstituição do facto, terem sido arrolados como testemunha não altera a similitude da questão de facto, nem interfere na mesmidade da questão jurídica.

Tanto assim que a razão pela qual as referidas testemunhas se escusaram de depor foi, exclusivamente, por terem invocado a qualidade de coarguidos no mesmo processo. Estatuto que os tribunais de instância lhes reconheceram em conformidade com o disposto no art.º 133.º n.º 1, al.ª a) e n.º 2, do CPP.

Mesma questão de direito que foi decidida em sentidos antagónicos

No acórdão fundamento, entendeu-se que “a coberto das explicações dadas [o auto de reconstituição] (…) se traduz, (…) em declarações de um e outro arguido interveniente, mais ou menos coincidentes, sobre locais, percursos e acontecimentos, neles envolvendo o outro arguido, (…) enquanto autor material dos disparos sobre a vítima”. “(…) as declarações, a que materialmente e em substância os autos de reconstituição em apreço se reconduzem, não podem deixar de estar sujeitas às restrições que decorrem dos art.ºs 357.º, n.º 2 e 356.º, n.º 7, do CPP.

Por isso, revogando a decisão recorrida, determinou a reapreciação da “causa sem valoração dos (…) autos de reconstituição (…) e dos depoimentos das testemunhas prestados sobre o modo como essas diligências decorreram”.

No acórdão recorrido, entendendo-se que se “é certo que ao proceder à reconstituição, o arguido fala, (…) porém, esse discurso verbal não se reconduz ao estrito conceito processual de “declarações”, sendo antes a verbalização do ato de recriação do acontecimento”.

As “(informações, sugestões e declarações) (…) vão diluir-se e fundir-se com os demais instrumentos usados (fotografias, plantas, croquis, etc.), dando (…) origem a um meio de prova distinto e autónomo”. “A circunstância de o então coarguido que participou na reconstituição não consentir validamente a prestar o seu depoimento, como testemunha, em julgamento, na sequência da separação de processos, não pode ser equiparada à recusa em responder a perguntas formuladas, em contra inquirição, pelo defensor do coarguido visado pelo ato, uma vez que não está em causa a violação do contraditório relativamente a uma prova declaratória”

Em conformidade, decidiu que que não há qualquer “impossibilidade de valoração da prova por reconstituição do facto realizada nos autos”, por coarguidos que, arrolados como testemunhas, na audiência de julgamento se recusaram a depor, não tendo (…) “sido violados os preceitos (…), [d]o art. 32.º, n.º 5, da Constituição, e [o]s arts. 126.º, 133.º, 150.º, 343.º, 345.º, 356.º e 357.º do Código de Processo Penal”. Contata-se, assim, que os dois acórdãos incidiram sobre similar questão de facto: - autos de reconstituição dos factos efetuados com a participação de coarguidos que descreveram ou exemplificaram a atuação de outro coarguido, assim o incriminando, mas que, na audiência de julgamento se remeteram ao silêncio ou se recusaram a depor.

Decidindo em sentido oposto a mesma questão de direito que lhes foi apresentada: - consistente em determinar se, naquelas condições, podiam, ou não, valorar-se os autos de reconstituição dos factos: - enquanto o acórdão fundamento, submetendo-os ao regime estabelecido nos arts. 345.º n.º 4, 355.º e 356.º n.º 7 do CPP, decidiu pela invalidade da valoração; - no acórdão fundamento, entendendo que se trata de um meio de prova autónomo, subtraindo-os ao complexo normativo citado, decidiu validar a valoração.

Nestes termos, conclui-se pela verificação também dos pressupostos substantivos da admissibilidade da uniformização de jurisprudência.”

III – delimitação:

a. Deve salientar-se, antes de mais, que a fundamentação do acórdão recorrido, no segmento em que decidiu confirmar a valoração, como meio de prova, dos autos de reconstituição dos factos existentes no processo, inculca conterem os mesmos “declarações” verbais do arguido que efetuou a reconstituição e, com isso, induziu a “ler” que a decisão recorrida adotou uma “tese normativa” segundo a qual as declarações verbais do arguido ali reproduzidas no auto perdem autonomia, transmutando-se em prova por reconstituição do facto, em prova pré-constituída, não podendo “valer como declarações”, não estando, por isso, “cobertas pelo direito ao silêncio”. Induz a “ler” que sufraga e adotou o entendimento segundo o qual as contribuições verbais do arguido para a reconstituição do facto, “designadamente com a prestação oral de informações e esclarecimentos”, “desde que essenciais e enquanto indispensáveis à compreensão da reconstituição”, “relevam apenas para este meio de prova e não passam a valer como declarações de arguido, não estão cobertas pelo direito ao silêncio”. E que uma vez redigido o correspondente auto, porque “ganha relevância autónoma” “como meio de prova”, as declarações que incorpore, “dentro dos limites que é essencial para o fim da reconstituição, não se confundem com a prova declaratória”.

Se pudesse ser essa a interpretação do art.º 150.º do CPP, então, haveria que conceder que os autos de reconstituição existentes no processo onde foi tirado o acórdão fundamento mais não continham que as informações, explicações e declarações do arguido indispensáveis à reprodução das condições e ao modo de realização dos factos, isto é, do seguimento ou “perseguição” da vítima até ao local, ao tempo e ao modo do seu “sequestro”, o trajeto seguidamente efetuado ao encontro do terceiro coarguido, o local onde se supunha ou se afirmava que foi consumado e o modo como foi executado o homicídio e, depois, as condições e o modo de realização da profanação do cadáver. Explicações e declarações indispensáveis porque não se perspetiva como seria minimamente plausível, sem elas, reproduzir tão fielmente quanto possível as condições em que se afirma ou se supõe terem ocorrido tais factos e repetir o modo da sua realização.

É que, enquanto nos autos de reconstituição deste processo - n.º 1420/11.0T3AVR - as condições ambientais do facto que se reconstitui eram estáticas – um só local e mesmo espaço -, tratando-se de uma sala de uma edificação onde, em ambiente informático, se realizaram as provas de exame teórico (para obtenção da licença de condução de veículos automóveis) e o modo de realização do facto reconstituído consistiu na indicação meramente gestual (pelos dedos da mão) do número da resposta que o examinando devia marcar, carregando na tecla ou marcando o quadrado correspondente, no caso do processo onde foi tirado o acórdão fundamento as condições supostas ou afirmadas eram geograficamente muito dispersas e o modo de realização dos factos bastante dinâmico.

Não se objete que a reconstituição também aí podia efetuar-se simplesmente por gestos (que não devem confundir-se com declarações em linguagem gestual, estas submetidas ao mesmo regime das declarações verbais), enfim, ser “muda”, porque não se vislumbra como seria possível lavrar um auto de reconstituição útil para servir como meio de prova com a finalidade legalmente estabelecida, sem que do mesmo constassem as indicações verbais precisas do arguido “reconstituinte” relativamente aos trajetos e cenários e ao modo de realização de factos que se espargiram pelo território de vários concelhos algarvios e se levaram a cabo num encadeamento dinâmico de sucessos (espera da vítima, perseguição, abalroamento em acidente de viação provocado, sequestro, condução ao encontro do “mandante”, homicídio, transporte do cadáver e seu arremesso).

Aquela referência no acórdão recorrido a “declarações de arguido” “ainda que verbais” e bem assim o remate conclusivo, em linha com jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que cita, permitiu que o aqui recorrente tenha interpretado que o tribunal a quo teria valorado positivamente declarações de coarguidos registadas nos autos de reconstituição dos factos, considerando-as um meio de prova autónomo que escapa ao regime consagrado no artigo 357.º do CPP, delas podendo servir-se, licitamente, para formar a convicção probatória do tribunal.

Mas, aquela alusão no acórdão recorrido a “declarações” “ainda que verbais”, só pode ter sentido meramente teórico porque, repete-se, nenhum dos referidos autos reproduz declarações do coarguido reconstituinte. E, concomitantemente, da leitura atenta do aresto extrai-se que circunscreveu a interpretação adotada às “informações e esclarecimentos” orais, “desde que essenciais e enquanto indispensáveis à compreensão da reconstituição”.

De todo o modo, não se pode olvidar que está sedimentado entendimento segundo qual as afirmações, divergências ou contradições da motivação, doutrinária e jurisprudencial, que possam surpreender-se na fundamentação da decisão, desde que não se repercutam diretamente no dispositivo, não são suficientes para que o Supremo Tribunal de Justiça conclua pela oposição de julgados.

Como é entendimento uniforme do mais Alto Tribunal da ordem judiciária comum, a mesmidade exigida para a admissibilidade da fixação de jurisprudência verifica-se apenas quando há oposição entre duas soluções de direito expressas e não apenas contraposição de fundamentos ou afirmações. As soluções só são opostas se se verificar o pressuposto da mesmidade da questão de facto e, cumulativamente, o antagonismo de decisões judiciais. O que só ocorrerá quando a situação fáctica sobre que incidiram se apresente com contornos equivalentes para desencadear a aplicação das mesmas normas jurídicas. Sendo diversa a situação de facto subjacente às duas soluções jurídicas colocadas em confronto, não é possível estabelecer comparação entre ambas, sendo até espetável que a decisão seja diferente.


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b. O acórdão recorrido, no segmento da motivação que sustenta a confirmação da valoração probatória efetuada na decisão condenatória, coloca no mesmo patamar a reconstituição realizada pelo próprio arguido e aquela a que procedeu coarguido que, não estando a ser julgado, em audiência se recusou a depor.

Sem dúvida que a colaboração do arguido na reconstituição do facto, dando indicações e aportando uma versão dos acontecimentos, suscita a questão da sua compatibilização com a prova por declarações que tenha prestado no processo em momento anterior à audiência. Entendendo-se, generalizadamente, que a contribuição probatória do arguido quando participa na reconstituição do facto não admite confusão nem com as conversas informais nem, mormente, com as suas respostas em interrogatórios, visto se tratar de intervenções autónomas, juridicamente distintas.

Destarte, o regime da valoração de declarações do próprio arguido, prestadas nos autos de modo válido, anteriormente à audiência, nas quais se autoincrimina, estando submetidas ao regime especial – do art.º 357.º -, não pode chamar-se aqui à colação senão para vincar a diversidade relativamente ao regime das declarações de coarguido, nas quais incrimina outro que está a ser julgado.

O legislador estabeleceu um regime para a valoração das contribuições autoincriminatórias do arguido, designadamente através de declarações prestadas anteriormente nos autos (máxime: artigos 140.º, n.º 2, 141.º n.º 4 al.ª b), 356.º, n.º 1 al.ª b) e 357.º) ou prestadas na audiência (artigo 344º, n.ºs 1, 2 e 5). Estabeleceu outro para as declarações anteriormente prestadas no processo por coarguido (julgado no mesmo processo ou, em caso de separação de processos, que está impedido ou não consente depor como testemunha -art.º 133.º n.º 1 al.ª a) e n.º 2), que incriminam outro - artigos 133.º, n.º 1, al.ª a) e 2, 356.º, n.º 1, al.ª b), 345. º n.º 4 e 356.º, todos do CPP.

Assim, quando é um coarguido a colaborar na reconstituição do facto e, nesse âmbito, fornece indicações, através declarações, explicações, de gestos, sinais, desenhos ou plantas sobre as condições e/ou o modo como os factos foram realizados por determinado/s agente/s, que são vertidos para o auto de reconstituição, torna-se necessário determinar se tal auto pode, ademais de servir como prova autoincriminatória, também pode valorar-se como prova pré-constituída contra outro coarguido ali incriminado quando, na audiência, o primeiro se tenha acolhido ao direito ao silêncio ou, em caso de separação de processos, não tenha consentido em depor como testemunha.


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IV. reconstituição dos factos:

a. Deve dizer-se, ainda que sucintamente, que a prova por reconstituição dos factos não estava prevista no regime processual penal antecedente ao vigente Código de Processo Penal. O que não obstou a que tivesse sido amplamente utilizada, “lançando-se mão” do disposto no art. 612.º do Código de Processo Civil, que regulava a “inspeção judicial”.

O atual Código de Processo Penal (de 1987) adotou-a como meio de prova autónomo. No artigo 150.º estabelece as condições de admissibilidade e regula o respetivo procedimento dispondo que “consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo”.

b. Alguma jurisprudência tem vindo a decidir que este meio de prova poderá, por si só, demonstrar a existência de um determinado facto1. Nesta linha, no Acórdão de 28.09.2011, do Supremo Tribunal de Justiça, sustentou-se que “a reconstituição, que vem definida como meio de prova no art. 150.º do CPP, é um meio de prova válido de demonstração da existência de certos factos a valorar, como os demais, segundo as regras da experiência e livre convicção da entidade competente, tudo nos termos do art. 127.º do CPP.2

A doutrina divide-se entre os que defendem que não tem “por finalidade a comprovação de um facto histórico, mas apenas verificar se um facto poderia ter ocorrido3 e os que consideram que tal conceção encerra “uma limitação desrazoável e desdignificante da figura”. Sustentando maioritariamente que é “um meio de prova através do qual se controla experimentalmente a veracidade de uma determinada hipótese factual, relevante para o processo, cuja possibilidade ou modo de ocorrência se pretende confirmar ou excluir”4.

Jurisprudência e doutrina coincidem em que a reconstituição do facto consiste na verificação, a posteriori, das condições de tempo, lugar e demais topografia da cena em que se afirma ou se supõe ter ocorrido um determinado acontecimento processualmente relevante ou também do modo como o facto criminalmente punível ou algum segmento da respetiva dinâmica foi realizado. E que também “pode ter por objeto aspetos atinentes à prova”, designadamente, para se perceber se uma testemunha pode ter presenciado ou ouvido ou de outro modo percecionado acontecimentos que relatou. Consiste, pois, na reprodução, tanto quanto possível, do cenário (“das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido”) e na repetição, simulada, da dinâmica (“do modo de realização”) de um concreto sucesso, facto ou ato. Mas unicamente com a finalidade de confirmar ou infirmar se poderia ter ocorrido nessas condições e/ou ter-se realizado do modo que se afirma ou supõe ter ocorrido. Visa confirmar, demonstrando-a in loco, empiricamente, a plausibilidade, ou falta dela, de determinada hipótese ou versão sobre as condições e a dinâmica de um acontecimento passado.

A finalidade é conseguir uma representação das condições topográficas e ambientais e do modo de execução de um crime ou de aspetos ou detalhes atinentes à prova, nas condições em que se afirma ou se supõe ter acontecido, testando in loco a mecânica dos factos e se ocorreram como declararam os intervenientes ou a investigação supõe e se depreende das provas já existentes no processo. Consiste, em suma, em por à prova “uma dada hipótese factual e se os seus resultados” poderiam ser os que afirmam.

Para M. Simas Santos e M. Leal Henriques, citando Costa Pimenta “trata-se «do controlo experimental de um dado acontecimento, (…)» feito segundo determinadas «condições … de tempo e de topografia (…)”. Com a reconstituição “pretende-se … «apreender o próprio modo» como ocorreram os factos cuja veracidade se quer atingir e em ordem à dissipação de eventuais dúvidas”. Acrescentam que “pode ser de grande valor, prevenindo as dificuldades de prova que, em circunstâncias especificas, se possam levantar em julgamento quanto, v. g., à verosimilhança da tese da acusação. E quando conte com a colaboração do arguido, v. g., por se seguir à confissão, terá a vantagem de materializar e objetivar o caráter pessoal da confissão …”.

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que “na reconstituição dos factos, é o modus faciendi que está em causa, e nele a pessoa que procede à reconstituição mostra como fez, refazendo no próprio local todos os passos da sua acção (…).

Trata-se, portanto, de uma revivescência o mais «ao natural» possível de uma situação. E, se esta revivescência de uma forma geral não prescinde de palavras, estas não constituem o ponto crucial da reconstituição, visto que a linguagem gestual e corporal assume aqui uma primacial relevância.

Ao passo que não há declarações sem palavras e, mais especificamente, sem discurso verbal, já se admite que uma reconstituição possa prescindir deles. A reconstituição é reduzida a auto - é certo -, mas esse auto não é um auto de declarações, não obedece à lógica deste, nem a ele se reconduz. O que lá fica escrito não é o produto das declarações; é a tradução para escrito de uma revivescência do que foi feito e que consistiu, sobretudo, numa reprodução do acto que teve lugar no passado.

Daí que a reconstituição seja dirigida à obtenção de uma mais perfeita inteligibilidade do que aconteceu - inteligibilidade em acto, que não propriamente em palavras. E daí que só quem viveu o acontecimento o possa reconstituir de uma maneira inconfundível.

Tendo concluído que “se o arguido que faz a reconstituição envolve outro arguido, a prova que dai resulta contra este último será havida como corroborada, numa exigência acrescida de prova, se ela for confirmada por outros elementos probatórios, derivados de provas directas e indirectas, que, devidamente conjugadas entre si e com as regras da experiência, mostrem a veracidade da reconstituição relativamente a esse arguido, que no julgamento optou pelo direito ao silêncio, bem como o que procedeu à reconstituição.” 5

Realça-se deste aresto, pela patente acuidade para a decisão do vertente recurso, que o auto de reconstituição “não é um auto de declarações (…) nem a ele se reconduz”, devendo traduzir por escrito (complementado por qualquer suporte legalmente permitido) “uma revivescência do que foi feito e que consistiu, sobretudo, numa reprodução do acto que teve lugar no passado” dirigida “a uma mais perfeita inteligibilidade” de um determinado acontecimento pretérito e ou da sua dinâmica.

Se houver necessidade de determinar se um facto poderia ter acontecido de certa forma, ademais da reprodução objetiva das condições topográficas e ambientais do suposto ou afirmado “cenário” dos factos, deverá proceder-se à repetição simulada do seu modo de realização, repetir experimentalmente a cronologia e a dinâmica do acontecimento. Tendo sido cometido um crime em afirmado ou suposto lugar e em determinadas condições e do modo como foi realizado, poderá ser necessário situar aí, experimentalmente, o respetivo agente e imitar o modo de execução. Se o crime foi cometido por vários agentes, a reconstituição do facto pode incriminar o próprio (autoincriminação), mas pode contribuir também para incriminar outros agentes ou comparticipantes na realização dos mesmos factos.

c. Jurisprudência e doutrina coincidem em distinguir a reconstituição do facto (a própria encenação da repetição das condições e do iter do acontecimento), do respetivo suporte (auto, vídeo, áudio, fotografias, croquis) que mais não é que “o registo objetivo da forma como o ato foi reconstituído e pôde ser observado por quem a ele assistiu6. Recorda-se que o artigo 99.º do Código de Processo Penal estabelece que o auto “é o instrumento destinado a fazer fé quanto aos termos em que se desenrolam os atos processuais”, devendo conter a “descrição especificada das operações praticadas, do modo como o foram e das circunstâncias em que o foram (…)”. Podendo o auto de reconstituição do facto ser complementado “com recursos a meios audiovisuais” (art. 150.º n.º 2 do CPP).

Se um auto não regista declarações que possam ter sido feitas no ato que documenta e perante quem o redige, inexistem juridicamente no processo, designadamente para efeitos do disposto nos artigos 356º e 357º do CPP. Só constituirão uma declaração prestada para o processo se forem reproduzidas, registadas e assim integradas no auto.

E, de todo o modo, elemento probatório é a reconstituição, a observação dos factos reconstituídos ou reproduzidos, não o auto ou sequer o seu conteúdo. O auto dá fé da reconstituição, documentando os termos em que foi efetuada, se desenrolou e foi observada pela entidade que à mesma assistiu.

d. a questão prévia suscitada:

A Digna Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal de Justiça, reiterando o que tinha sustentado aquando da vista a que alude o artigo 440.º, n.º 1, do CPP, insiste na não verificação da oposição de julgados, que agora volta a postular como questão prévia.

Sintetizando, argumenta que “no acórdão fundamento, se entendeu não ter sido realizada uma verdadeira reconstituição do facto e, em virtude disso, ao conteúdo dos autos de reconhecimento aplicou-se o regime das declarações de arguido (artº 140º e 143º do CPP), sujeitas às restrições dos artigos 357.º, n.º 2 e 356.º, n.º 7, do CPP, ao passo que no acórdão recorrido, entendeu-se que o conteúdo dos autos de reconhecimento mostravam uma verdadeira reconstituição do facto, tal como prevista no artigoº 150.º, do CPP, e, portanto, as declarações dos arguidos participantes bem como as restantes declarações e acções levadas a cabo e que ali tivessem sido registadas (não autonomizáveis umas das outras), ficam globalmente sujeitas ao regime do artº 127º do CPP. Concluindo que “o acórdão recorrido e fundamento, em face do concreto e diferente conteúdo dos autos de reconhecimento, aplicaram normas jurídicas diferentes.”

Cumpre, pois, começar por conhecer desta questão prévia, que a granjear provimento, obstará à pretendida uniformização de jurisprudência.

Para tanto, impõe-se em primeiro lugar centrar com precisão os termos da questão e seguidamente perscrutar detalhadamente os autos de reconstituição dos factos que o acórdão fundamento julgou constituírem prova proibida, por ter considerado que, materialmente e em substância, se reconduzem a declarações autoincriminatórias dos próprios arguidos que efetuaram a reconstituição e incriminatórias de outro coarguido, decidindo que não podiam valorar-se, e os autos de reconstituição dos factos que o acórdão recorrido, julgando prova válida, valorou para motivar a confirmação da condenação do recorrente e, confrontando aqueles com estes, ajuizar, exclusivamente à luz da respetiva fundamentação, qual seria a decisão adotada no acórdão fundamento se, no caso ali em julgamento, tivesse sido apreciada a validade de autos de reconstituição dos factos de conteúdo idêntico aos do vertente processo e também igualmente, qual seria a decisão no acórdão recorrido se, neste processo, houvesse de decidir sobre a validade de autos de reconstituição iguais aos existentes no processo n.º 22/98.0GBVRS.E2.S1. Em suma: se este Supremo Tribunal, com a fundamentação adotado no respetivo aresto, também consideraria provas proibidas os autos de reconstituição dos factos existentes no presente processo; e, identicamente, se o Tribunal da Relação, com a fundamentação explanada no acórdão recorrido, consideraria válidos os autos de reconstituição dos factos existentes naquele outro processo.

Vejamos então: ------

V – diversidade da questão de facto:

a. no acórdão fundamento:

No processo onde foi tirado o acórdão fundamento, do Supremo Tribunal de Justiça, existem dois autos de reconstituição dos factos. Um auto reproduz as explicações e indicações dos coarguido BB, o outro as explicações e indicações do coarguido CC sobre a preparação e execução do homicídio que, disseram, tinha sido consumado pelo coarguido DD e um deles também sobre a subsequente profanação do cadáver. Coarguido incriminado que não participou ou sequer esteve presente, nem o seu defensor assistiu, às referidas reconstituições.

Pormenorizando: ----

Do auto de folhas 1759 a 1762 (em 4 páginas), consta, em súmula, que: -------

“A diligência decorreu sob orientação do arguido BB (…).

Iniciada a reconstituição “sempre através da explicação do arguido BB, começou o mesmo por explicar e localizar (…)” a porta do local onde trabalhava e por onde a vítima saiu ao fim do dia, bem assim como o sítio onde estavam estacionadas as viaturas da mesma e does dois coarguidos (reconstituintes), que ali postados o esperavam.

“Explicou (…)” como arrancaram e seguiram o automóvel da vítima.

“Explicou (…)” por onde circularam no encalço do automóvel conduzido pela vítima e como e onde o abalroaram.

“Explicou (…)” como sequestraram a vítima e o trajeto que depois fizeram até ao encontro do outro coarguido, o DD bem como o percurso efetuado, em seguida até ao sítio onde pararam.

“Explicou (…)” a dinâmica dos acontecimentos ocorridos nesse local, dizendo que o coarguido DD alvejou a vítima com dois disparos na cabeça, matando-e “reproduziu” a discussão havida com aquele.

“Explicou (…)” como todos decidiram desfazer-se do cadáver e quem o fez.

“Explicou (…)” onde arrojaram o cadáver da vítima.

Explicações de tal modo narrativa da sua versão sobre o “sequestro”, o homicídio da vítima e a profanação do cadáver que: ----

- no §3 de fls. 1760 consta: “Explicou que o BB … dirigiu-se (…) até junto da viatura da vítima, tendo aquele berrado que se tratava de um assalto …”; e

- no §5 de fls. 1761 consta, ademais da verbalização da reação do próprio, do CC – “surpreendidos por dois disparos” – e do “DD” (o coarguido DD), e como este matou a vítima, pormenoriza a conversação que terá havido entre os três: “A esse propósito, indignados com o sucedido, o BB e o BB questionaram o DD sobre o que este acabara de fazer, tendo o mesmo desviado a conversa e mencionado que iriam transportar o cadáver para ..., a fim de se desfazer dele.”

A Polícia Judiciária efetuou reportagem da reconstituição, documentando-a (ilustrada) em 17 fotografias.

O procedimento foi o mesmo para a elaboração do auto de folhas 1777 a 1779 (com 3 páginas), que “… decorreu sob orientação do arguido CC …”, sendo o conteúdo, em parte repetido ou semelhante, com a divergência em alguns pormenores e sem que esse coarguido tenha identificado o local do homicídio.

A fls. 1778 (2ª pag. do auto) consta que o coarguido “reconstituinte” explicou: ---

- no §3 ter havido “uma breve troca de palavras entre o BB e a vítima em que “o primeiro indicou que necessitaria de ir a casa buscar o seguro, tendo a vítima acedido em seguir na viatura dos arguidos…”.

- no §5 consta o relato de conversação do BB com a vítima nos seguintes termos: “tendo dito ao DD que o DD queria falar com ele …”.

- no último § consta que o arguido “descreveu [o homicídio] no auto de interrogatório, …”.

A reportagem da reconstituição é documentada pelas mesmas 17 fotografias.

A reconstituição não se limitou à “demonstração presencial” dos factos, isto é, das condições espácio-temporais em que se afirmava ou supôs terem ocorridos, designadamente do local da espera da vítima, o seguimento efetuado, o abalroamento e “sequestro”, o trajeto efetuado depois ao encontro do coarguido DD, o percurso até ao sítio onde se afirma ter ocorrido o homicídio e, depois, o local onde se afirmava ter sido arrojado o cadáver, incluindo também o versão de cada um dos coarguidos reconstituintes, sobre quem “executou” a vítima, o meio utilizado, por iniciativa de quem e como decidiram profanar o cadáver, incluindo a narração de conversas que se diz ter havido, incluindo as reações atribuídas aos intervenientes.

i. o decidido:

O Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão fundamento, de 6.12.2018, entendeu que o conteúdo daqueles autos se circunscreve a “declarações de arguidos, auto-incriminatórias de determinados factos e de incriminação para o coarguido que em tais diligências não participou”, pelo que, não se estava perante uma verdadeira reconstituição de facto como meio de prova regulado no artigo 150.º, do Código de Processo Penal, mas perante uma “mera demonstração presencial onde não há lugar à reprodução das condições nem à repetição simulada do facto, pelo que ainda que ocorra in loco não tem valor autónomo como meio de prova, reconduzindo-se ao regime das declarações de arguido (artº 140º e 143º). Não é, pois, por este «mostrar» onde e como é que as coisas se passaram que aquelas declarações deixam de valer como tal para serem promovidas a reconstituição.”

Tendo concluído que “as declarações, a que materialmente e em substância os autos de reconstituição em apreço se reconduzem, não podem deixar de estar sujeitas às restrições que decorrem dos artigos 357.º, n.º 2 e 356.º, n.º 7, ambos do CPP.”

E, repristinando “a posição assumida no acórdão do tribunal colectivo de 1.ª instância quando, negando a natureza de verdadeiros autos de reconstituição dos factos às duas diligências encetadas, sustentou que a respectiva valoração levaria o tribunal, não a determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, mas a demonstrar o facto em si mesmo e quem foi o seu autor através das declarações dos co-arguidos neles intervenientes, não podendo ser valorados como meios de prova porque os arguidos se remeteram ao silêncio em audiência de julgamento, tal como não podem ser valorados os depoimentos de testemunhas que se referiram ao modo como tais diligências decorreram.

Salientando que “à semelhança ainda do que dispõe hoje o n.º 4 do art.º 345.º do CPP e sob pena de violação das garantias de defesa e do princípio do contraditório constitucionalmente assegurados (art.º 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP), a nossa ordem processual não permite que um qualquer arguido participe numa reconstituição e que outro ou outros arguidos sejam incriminados pela versão por ele reconstituída, caso venha a usar do direito ao silêncio em audiência de julgamento e, assim, à partida impedir o exercício do direito ao contraditório, traduzindo-se esse meio numa autêntica proibição de valoração de prova.”

Em suma, entendendo que aqueles autos não documentando uma autêntica reconstituição dos factos nos termos legalmente pressupostos, não restava senão aplicar o regime das declarações de arguido (artigos 140.º e 143.º, do CPP), sujeitando-as às restrições dos artigos 357.º, n.º 2 e 356.º, n.º 7, do CPP.

b. no acórdão recorrido:

No vertente processo (n.º 1420/11.0T3AVR), o tribunal motivou a condenação do arguido, para além das demais provas que enumera e examina, também em oito autos de reconstituição dos factos (constantes e identificados no processo) efetuados com a participação de outros tantos coarguidos. Todas sem a presença do aqui recorrente ou do seu defensor.

Reconstituição que seguiu procedimento idêntico nos oito casos. O auto que as documenta, apresenta texto igual. Pela que se tem por suficientemente ilustrativo, transcrever o núcleo de apenas um.

Do auto de folhas 11272 (com fotografia a fls. 11273) consta o seguinte: -------

«… na presença do arguido EE procedi à reconstituição dos factos (…) com o intuito de definir o tipo de gestos efetuados pelo(s) examinador(es) que permitiram à candidata assinalar as respostas corretas no “posto de exame” que lhe foi atribuído (em ambiente multimédia), os que lhe tornaram possível a aprovação ilícita (fraudulenta) no exame teórico necessário à obtenção da carta de condução BG – 43986 – a prova de exame a realizar no Centro de Exames de ... no dia 10.04.2013. ---

Iniciada a diligência, o arguido posicionou-se e representou, conjuntamente com um figurante, a personagem do Examinador. Depois, o arguido demonstrou como o Examinador o “abordou” e através de gestos com os dedos da mão lhe indicou as respostas corretas a assinalar no “posto de exame”, após ter sido dado início à prova de exame (exame teórico). ---

Nesta diligência o arguido interpretou o personagem do Examinador que “fiscalizou” o respetivo exame teórico e lhe indicou as respostas corretas a assinalar no “posto de exame” através dos gestos com os dedos da mão.

O ora arguido e os restantes intervenientes autorizaram ser fotografados …».

Sem nada mais que tenha qualquer relevância probatória.

A reconstituição assim documentada consistiu, em terminologia cénica, na reprodução muda de um acontecimento pretérito. O auto relata que o arguido “reconstituinte” (examinando) e o figurante (representando o examinador, ora recorrente) tomam o respetivo lugar na sala de exame e o primeiro demonstrou unicamente por gestos (movimentos com as mãos e dedos) como o segundo, abordando-o, lhe indicou o número da resposta que deveria assinalar no questionário, em formato eletrónico (exibido no mostrador à frente do examinando).

Este auto - e outro tanto sucede com os restantes sete (7) que o tribunal de 1ª instância valorou, também neles alicerçando a convicção para julgar provada a facticidade perpetrada pelo ora recorrente e que o Tribunal da Relação confirmou -, não contém quaisquer declarações (verbais) do coarguido “reconstituinte”. Descreve a “figuração” da posição em que se colocou e da atuação gestual com que cada um desses coarguidos reproduziu determinado ato material de execução de um segmento do crime de corrupção. Reprodução documentada também por reportagem fotográfica, anexada ao auto.

A reconstituição dos factos, limitou-se a demonstrar as condições (ambientais) em que os referidos atos de execução dos crimes de corrupção foram levados a cabo e a reproduzir, apenas gestualmente, o modo como os corrompidos (passivos) transmitiram, (também apenas por gestos) aos examinandos, corruptores (ativos), os números com as respostas que estes deveriam marcar no enunciado do exame teórico realizado em ambiente informático, para obterem aprovação no mesmo e, assim, poderem acederem à prova prática de habilitação legal à condução de veículos automóveis.

Não se duvida que cada coarguido reconstituinte terá prestado informações sobre as condições do local onde os factos ocorreram e terá explicado a reprodução efetuada do modo como o facto foi realizado. Mas é incontestável que cada um daqueles autos não contém o registo de qualquer relato verbal, de qualquer declaração oral que então tenha sido feito pelo coarguido que efetuou a reconstituição.

i. o decidido:

O acórdão recorrido, do Tribunal da Relação de Guimarães, de 30.09.2019, entendeu que “em face da sua substância e conteúdo, tais diligências reconduzem-se claramente ao acto processual de produção de prova por reconstituição do facto, previsto no art. 150.º.

(…) Efectivamente, nas diligências em apreço procedeu-se a uma reconstituição de parte dos acontecimentos objecto dos autos, mais concretamente a referida ajuda na realização da prova teórica de cada arguido candidato, por parte do examinador presente, ou seja, a forma como este lhe indicou, por atos ou gestos, as respostas correctas a assinalar.

Não obstante nenhum daqueles autos conter quaisquer declarações do arguido (coarguido nos autos) que realizou a reconstituição que documentam, no acórdão recorrido, motivando a decisão, acrescentou-se: ----

(…) Assim, as contribuições do arguido para a reconstituição do facto, designadamente com a prestação oral de informações e esclarecimentos, desde que essenciais e enquanto indispensáveis à compreensão da reconstituição, não se confundem com a problemática da leitura em audiência de julgamento das declarações anteriormente prestadas no inquérito ou na instrução, essa sim não permitida fora das situações a que alude o artº 357º.

(…) Consequentemente, porque as contribuições individuais do arguido na reconstituição do facto relevam apenas para este meio de prova e não passam a valer como declarações de arguido, não estão cobertas pelo direito ao silêncio (…).

Concluindo que “este meio de prova ganha relevância autónoma, pelo que os contributos do reconstituinte vertido nos autos, ainda que verbais mas dentro dos limites que é essencial, para o fim da reconstituição, não se confundem com a prova declaratória, podendo ser valorados nos termos do artº 127º.”

c. resultado da comparação:

Do que vem de expor-se emerge ser exato que a questão de direito apreciada e julgada nos dois acórdãos colocados em confronto é a mesma, consistindo em decidir da validade ou invalidade como prova e, consequente da admissão ou proibição de valoração de autos de reconstituição de factos a que, no respetivo processo, se procedeu com a participação e colaboração de coarguidos que, incriminando outro, em julgamento, exercendo o seu direito ao silencio, se recusaram a prestar declarações ou a depor. Todavia, a situação de facto sobre que incidiu cada um dos arestos colocados em confronto não a mesma.

Como a jurisprudência publicada evidencia – e os autos de reconhecimento sobre que versou o acórdão fundamento exemplarmente comprovam -, as entidades a quem legalmente compete a investigação criminal utilizavam, com alguma frequência, a reconstituição dos factos para registar no correspondente auto, declarações do arguido que são autoincriminatórias e que também incriminam coarguidos que não participam nem assistem a essa diligência probatória. Em substância, trata-se de documentar em auto e, por vezes, de gravar em áudio ou vídeo a confissão do arguido e as declarações que então presta incriminando coarguidos, para servirem como meio de prova autónomo.

Foi essa “fraude” à lei que o acórdão fundamento detetou no caso ali em reexame e o Supremo Tribunal de Justiça fulminou com a proibição de valoração. É que, como acima se citou resumidamente e se confirma pela leitura integral dos dois extensos “autos de reconstituição dos factos”, contém, essencialmente, o registo da versão dos factos dado por cada um daqueles coarguidos. Das declarações destes sobre o circunstancialismo espácio-temporal dos acontecimentos, o modo como os factos foram realizados e quem, como e onde os levou a cabo, incluindo a reprodução e ou resumo de diálogos ou interações verbais que afirmam ter existido entre os próprios e a vítima e com o terceiro coarguido.

O Supremo Tribunal, conclui, repete-se, que o conteúdo dos referidos autos em vez da reprodução “tão fiel quanto possível”, das condições em que se afirmava ou se supunha terem ocorrido os factos e da repetição simulada “do modo de realização” dos mesmos, “não passam, na essencialidade, de declarações de arguidos, auto-incriminatórias de determinados factos e de incriminação para o co-arguido que em tais diligências não participou.” Concluindo “que materialmente e em substância os autos de reconstituição em apreço se reconduz” a declarações. Como, cita-se ali, a doutrina também sustenta, alertando que “é preciso distinguir a reconstituição do facto - meio de prova tipificado e regulado no art.º 150.º do Código – da mera demonstração presencial onde não há lugar à reprodução das condições nem à repetição simulada do facto, pelo que ainda que ocorra in loco não tem valor autónomo como meio de prova, reconduzindo-se ao regime das declarações de arguido (art.ºs 140.º e 143.º). Não é, pois, por este «mostrar» onde e como é que as coisas se passaram que aquelas declarações deixam de valer como tal para serem promovidas a reconstituição7.

Sintetizando, o acórdão fundamento concluiu que os autos de reconstituição dos factos existentes no processo, porque se reconduzem, materialmente, a declarações escritas da versão oral de cada um dos coarguidos não podiam constituir “meio de prova válido para alicerçar qualquer convicção”. Não podendo, por isso, ser valorados para incriminar o outro coarguido que não participou nem assistiu nem, depois, em audiência pode exercer o contraditório porque, na audiência de julgamento, os coarguidos, no exercício de um direito próprio, remeteram-se ao silêncio.

Da motivação do acórdão fundamento extrai-se que o Supremo Tribunal de Justiça, se tivesse de reexaminar a valoração dos autos de reconstituição dos factos existentes no vertente processo (n.º 1420/11.0T9AVR) efetuada pelas instâncias, tê-la-ia confirmado, pela patente razão de, como se viu, nenhum contém quaisquer declarações verbais dos coarguidos que participaram nessa diligência probatória. Não haveria, pois, oportunidade e, consequentemente, possibilidade, de dizer que algum dos referidos sete (7) autos de reconstituição dos factos contêm declarações verbais dos arguidos participantes. E, não contendo tais autos declarações verbais do arguido, logicamente que não podiam ler-se em audiência de julgamento. É que, conforme se evidenciou, cingem-se ao registo escrito e fotográfico da representação “muda” da demonstração de uma versão do modo de execução de um determinado acontecimento que, com outros atos, materializou os crimes de corrupção pelos quais o recorrente foi condenado. Dito de outro modo, não poderia concluir que contêm o mero registo da simples experienciação da demonstração dos factos ocorridos.

Da motivação do acórdão recorrido no segmento em apreço, extrai-se que se o Tribunal da Relação tivesse apreciado os dois autos de reconstituição dos factos existentes no processo n.º 22/98.0GBVRS.E2.S1 julgaria, sem dúvida, que contém materialmente declarações de cada um dos arguidos que efetuou a reconstituição e, em conformidade, decidira pela proibição da sua valoração como prova. E assim decidiria porque os referidos autos contêm mais que informações e/ou explicações “indispensáveis à compreensão da reconstituição”, contêm contribuições verbais que se situam para além dos limites que é essencial, para o fim da reconstituição do facto.

VI. conclusão:

Em suma, a concreta questão fáctica - probatória - sobre que incidiram os dois arestos não é a mesma, não é sequer essencialmente idêntica. Os autos de reconstituição em causa num e no outro processo são diferentes: os do processo n.º 22/98.0GBVRS contêm materialmente declarações de coarguido que incrimina outro; os do processo 1420/10.0T3AVR não reproduzem, como acima se demonstrou, nenhuma declaração verbal, não contêm o registo de qualquer discurso direto que o arguido possa ter pronunciado.

Tanta basta para se concluir pela diversidade da concreta situação de facto (probatória) sobre que incidiram o dois arestos colocados em confronto, justificativa da diversidade da decisão: no acórdão fundamento, de proibição de valoração dos dois autos de reconstituição dos factos (que, materialmente, se reconduzem a declarações do coarguido “reconstituinte”) existentes nesse processo; no acórdão recorrido, de valoração (como prova pré-constituída) dos sete autos de reconstituição acima referidos que não contém o registo de quaisquer declarações do arguido que participou em cada uma dessas diligências probatórias.


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Destarte concluímos que em face do concreto e diferente conteúdo dos autos de reconhecimento, falece o preenchimento do pressuposto de natureza substancial para que possa fixar-se jurisprudência, consistente na mesmidade ou identidade da questão de facto sobre que incidiram o acórdão fundamento e o acórdão recorrido. Pelo que não resta senão concluir pela verificação da não oposição de julgados.

Neste conspecto, o recurso deve rejeitar-se nos termos do disposto no artigo 441.º, n.º 1, do CPP, sem que a tal obste o decidido em contrário no acórdão preliminar, nos termos do disposto no artigo 692.º, nº 4, do CPC, aplicável ex vi do disposto no artigo 4.º, do CPP.

VII. Dispositivo:

Atento todo o supra exposto, o do Supremo Tribunal de Justiça, em pleno das secções criminais, julga não verificada a oposição de julgados e, em consequência, decide rejeitar, nos termos do n.º 1, do artigo 441.º, do CPP, o recurso do arguido AA,.

Condena-se o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta (UCs) - artigos 513.º n.º 1, 514.º n.º 1 e 448.º, do CPP, e artigo 8.º e tabela III, estes do Regulamento das Custas Processuais.


Lisboa , 31 de janeiro de 2024


Nuno António Gonçalves (relator)

Maria Teresa Féria Gonçalves de Almeida

Sénio Manuel dos Reis Alves

Ana Maria Barata de Brito

Orlando M. J. Gonçalves

Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias

Pedro Branquinho Ferreira Dias

Leonor Furtado

Teresa de Jesus Oliveira de Almeida

Ernesto Carlos dos Reis Vaz Pereira

Agostinho Soares Torres

António Latas

Jorge Gonçalves

João António Gonçalves Fernandes Rato

Heitor Vasques Osório

Jorge Manuel Almeida dos Reis Bravo

Albertina das Dores Nunes Aveiro Pereira

Helena Isabel Gonçalves Moniz Falcão de Oliveira

José Luís Lopes da Mota

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1. Máxime: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.01.2005, in www.dgsi.pt.

2. Processo n.º 172/07.3GDEVR.E2.S2.

3. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. II, Verbo 2008, pag. 214.

4. Eurico Balbino Duarte, Making Of – A Reconstituição do Facto no Processo Penal Português, em Prova Criminal e Direito de Defesa, Almedina, 2.ª reimp., pág. 12.

5. Acórdão de 20.04.2006, citado, tirado no processo 06P363,

6. Acórdão do Supremo Tribunal de justiça de 20.04.2006, in www.dgsi.pt.

7. Eurico Balbino Duarte, publicação citada, paga. 63.