Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9443/20.2T8SNT-A.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
ARRENDAMENTO URBANO
FIADOR
NOTIFICAÇÃO
ENUMERAÇÃO TAXATIVA
PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA
DIREITO ADJETIVO
DIREITO DE DEFESA
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
AÇÃO EXECUTIVA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - O título executivo previsto no art.14.º-A da Lei n.º 6/2006 (denominada NRAU) pode ser feito valer contra o fiador do arrendatário, desde que este seja notificado diretamente dos montantes em dívida, como decorre do disposto no art. 1041.º, n.os 5 e 6, do CC (aditados pela Lei n.º 13/2019).
II - Tal solução não constitui uma violação do numerus clausus dos títulos executivos previstos no art. 703.º do CPC, porque, em rigor, o art. 14.º-A não enuncia, em termos excludentes, o sujeito em relação ao qual o título executivo pode ser feito valer. Esta norma define a estrutura constitutiva do título (integrado por dois documentos: contrato de arrendamento e comunicação do montante em dívida) e delimita a tipologia de débitos relativamente aos quais tal título se torna normativamente operativo (rendas, encargos, despesas que corram por conta do arrendatário).
Decisão Texto Integral:


Processo n. 9443/20.2T8SNT-A.L1.S1

Recorrente: AA

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. “Maxirent - Fundo e Investimento Imobiliário Fechado”, na qualidade de senhorio, credor de rendas não pagas, propôs ação executiva contra “Fuel TV Emea, S.A.”, arrendatária devedora e AA, fiador do pagamento das rendas, com base no artigo 14º-A da Lei n.6/2006 (designada por NRAU). Juntou como título executivo um contrato de arrendamento e dois contratos denominados “prestação de serviços”, acompanhados de cartas de comunicação das rendas em atraso, valores das despesas a cargo dos executados e valores de indemnização.

2. A primeira instância, indeferiu liminarmente o requerimento executivo, quanto ao executado fiador – AA – determinando, consequentemente, a extinção do processo executivo quanto a ele.

3. Não se conformando com essa decisão, o exequente interpôs recurso de apelação, no qual peticionou a revogação da decisão e o prosseguimento dos autos. Fê-lo com sucesso, pois a Relação decidiu nos seguintes termos:

«julgar a apelação procedente na íntegra, revogando-se a decisão recorrida, e ordenando o prosseguimento da execução contra ambos os executados

4. Inconformado com o Acórdão do TRL, o fiador executado interpôs o presente recurso, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:

«A) Vem o presente recurso interposto da decisão do Tribunal da Relação que revogou a decisão (despacho liminar) proferido pelo tribunal de 1ª instância e, consequentemente, a substituiu por outra que ordenou o prosseguimento da execução também contra o fiador ora Recorrente, tendo aderido ao entendimento da Exequente, igualmente perfilhado, entre outros, pelos Acórdãos desta Relação de 12.03.2019 e de 14.03.2019, com súmula de jurisprudência e doutrina disponíveis na base de dados do IGFEJ, de que o artigo 14º-A do N.R.A.U. confere força executiva para efeitos de execução para pagamento de quantia certa relativamente às rendas em dívida contra o arrendatário e o fiador, desde que o requerimento executivo seja acompanhado do contrato de arrendamento escrito e do documento comprovativo de comunicação feita aos dois obrigados.

B) Se, numa primeira redação, (antes das alterações aditadas pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto) o artigo 15º, nº 2 do NRAU dispunha que “O contrato de arrendamento é título executivo para a acção de pagamento de renda quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida.”, certo é que o actual artigo 14.º-A não clarificou a situação, continuando a não explicitar contra quem se forma o título executivo aí previsto.

C) É de rejeitar a posição do douto Acórdão de que se recorre quando afirma que “a intervenção legislativa não tem de pautar-se necessariamente pela função pedagógica, clarificadora ou uniformizadora do sentido das normas cuja interpretação gere controvérsia. Não é isso que se pede ou que se espera do legislador. Se norma antecedente já revelava o sentido e alcance que ora se propugna, era totalmente dispensável e inapropriada a interpretação autêntica realizada, enviesadamente, por esta via omissiva ou inerte”, porquanto ignora por completo o conceito de interpretação teleológica (atendendo à ratio legis), na qual tantas vezes o aplicador da lei se tem de apoiar para fazer uma correta interpretação da lei.

D) Como o legislador, ao alterar a lei, não clarificou a norma, há que retirar que não o quis fazer, por entender que o que a norma dispõe é o que o legislador pretendia dizer: não fazer referência formal à figura do fiador na letra na lei, porque refere apenas o arrendatário.

E) O facto de a norma não explicitar as pessoas que ficam abrangidas pela força executiva desses documentos e em que termos não é de molde a justificar a criação de categorias de títulos executivos para situações que não estão expressamente previstas na norma.

F) Temos de nos auxiliar do que dispõe o nº 1 do artigo 703.º do CPC, que enumera taxativamente os títulos executivos que podem servir de fundamento a uma acção executiva, sendo que o emprego do advérbio “apenas” no proémio do mencionado preceito não deixa margem para qualquer dúvida: só têm natureza de título executivo os constantes desse elenco, nullus titulus sine lege.

G) No elenco das espécies de título executivo figuram, na al. d) do nº 1 do artº 703º do CPC, “Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.” E um desses títulos executivos, por força de disposição especial é, justamente, o título para pagamento de rendas previsto no artigo 14º-A do NRAU, que é formado pelo contrato de arrendamento complementado pela notificação de liquidação ao inquilino, o qual tem exequibilidade extrínseca apenas contra o inquilino e não também contra o fiador.

H) Pensamos, assim, que a notificação prevista no artigo 14.º-A do NRAU ao arrendatário, não obstante possa ter, de forma secundária, a referida função de liquidação, o seu objectivo primário é a de constituir uma derradeira interpelação do arrendatário devedor para que proceda ao pagamento, sob pena de execução imediata.

I) E se essa é ratio legis que subjaz ao referido preceito, forçoso é concluir que se fosse também intenção do legislador a formação de título executivo contra o fiador naqueles moldes, teria optado por diferente redacção do preceito de forma a abranger todos os possíveis obrigados.

J) A notificação ao fiador não está prevista na lei e não estando prevista na lei não pode o tribunal, como fez o douto Tribunal da Relação de Lisboa, criá-la ou atribuir-lhe valor jurídico, pois estaria a construir uma norma fora dos casos em que o pode fazer, pois não é necessária por não existir lacuna a colmatar.

K) Ao contrário do entendimento defendido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, o regime substantivo da fiança não tem a virtualidade de, sem mais, possibilitar a extensão das normas processuais adjectivas, de molde a abranger o fiador no âmbito da execução.

L) O Decreto-Lei n.º 1/2013, de 7 de Janeiro aplica-se, designadamente, à resolução do contrato de arrendamento por não pagamento de renda por mais de dois meses, sendo que o artigo 7.º deste diploma estabelece expressamente que quando seja deduzido pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas, este apenas pode ser deduzido contra os arrendatários, não sendo, por isso, possível deduzir, no BNA, um pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas, contra devedores subsidiários da obrigação do arrendatário; admitindo o citado artigo 14.º-A que, além do arrendatário, possam ser executadas outras pessoas (o cônjuge do arrendatário, mesmo que não seja parte do contrato de arrendamento) então ter-se-ia de concluir que o que justifica a solução não é o número de pessoas a demandar e que a existência de outros possíveis demandados para além do arrendatário não levantaria, afinal, qualquer dificuldade que impedisse a sua demanda através do Balcão Nacional do Arrendamento.

M) É de realçar o argumento que o douto despacho liminar explana, seguindo o Acórdão da Relação do Porto no processo 869/13.9YYPRT.P1, relatado por ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA: “Por último e como também no citado aresto se refere não se pode olvidar que a Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, que alterou o NRAU teve o cuidado de retirar este normativo (artigo 14.º-A) do lugar secundário de último número do artigo 15.º, conferindo-lhe a dignidade de constituir sozinho um preceito autónomo. Assim, sendo já conhecida a polémica jurisprudencial e doutrinal que a norma vinha suscitando, o facto de as melhorias introduzidas no seu texto não terem compreendido, como seria então desejável, a tomada de posição expressa sobre a divergência de posições e, ao invés, se ter antes optado pela manutenção da menção exclusiva ao arrendatário (e não, por exemplo, a sua substituição pela referência a “devedor” ou a “obrigado”), tem que ser interpretada como vontade do legislador de a norma legal em questão abranger exclusivamente a formação do título executivo contra o arrendatário – ver, neste sentido, Ac. RP, de 02.12.2019, relatado por Manuel Domingos Fernandes (in www.dgsi.pt).”

N) A doutrina tem-se inclinado para a tese de que o fiador estaria excluído do âmbito do artigo 14º-A do NRAU, formando-se título executivo contra o próprio arrendatário (temos as posições de Fernando Gravato de Morais, in “Falta de pagamento de renda no arrendamento urbano”, pags. 77 a 81; Cadernos de Direito Privado, nº 27, pags. 57 a 63, e in “A jurisprudência no triénio posterior à entrada em vigor do NRAU”, publicado na revista “Direito e Justiça – Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes”, pags. 512 a 513 e Rui Pinto, in “Manual de Execução de Despejo”, a páginas 1164 a 1165).

O) Na jurisprudência também se tem defendido posições no sentido da exclusão do fiador do âmbito do artigo 14º-A do NRAU, de que são exemplos os Acs. do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de Novembro de 2007 (relator José Eduardo Sapateiro); acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18 de Setembro de 2014 (relator Ezaguy Martins); acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31 de Março de 2009 (relatora Ana Resende); acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de Abril de 2014 (relator Aristides de Almeida), proc. nº 869/13.9YYPRT.P1, todos publicados in www.dgsi.pt .

P) Resulta claro que o artigo 14.º-A do NRAU não prevê a formação de título executivo contra o fiador do arrendatário, uma vez que o propósito do legislador foi possibilitar ao senhorio a formação de título executivo apenas em relação ao devedor principal, abstraindo-se da eventualidade de haver qualquer garante da obrigação exequenda.

Q) O recurso deve ser julgado procedente, revogando-se o acórdão recorrido e confirmando-se a douta decisão proferida em primeira instância que indeferiu liminarmente o requerimento executivo quanto ao Executado ora Recorrente por ser parte ilegítima, pois assim se fará JUSTIÇA

Cabe apreciar.

*

II. FUNDAMENTOS

1. A questão prévia da admissibilidade do recurso e o objeto do recurso.

O presente recurso de revista vem formulado nos autos de uma ação executiva para pagamento de quantia certa. Sobre a admissibilidade da revista em processo executivo, o art. 854º do CPC dispõe o seguinte:

«Sem prejuízo dos casos em que é sempre admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apenas cabe revista, nos termos gerais, dos acórdãos da Relação proferidos em recurso nos procedimentos de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, de verificação e graduação de créditos e de oposição deduzida contra a execução

O recorrente sustenta a sua pretensão recursiva numa das hipóteses em que o recurso será sempre admissível, invocando o art. 629º, n. 2, alínea d) do CPC, por entender existir oposição entre o acórdão recorrido e outros acórdãos sobre a mesma questão jurídica respeitante ao âmbito normativo do art. 14º-a da Lei n. 6/2006. Invoca (entre outros), a oposição com o Acórdão do TRP, de 24.04.2014 (relator Aristides Almeida), proferido no processo n. 869/13.9YYPRT.P1.

Efetivamente, sobre a mesma questão fundamental de direito a jurisprudência das Relações encontra-se dividida, e não existe acórdão de uniformização de jurisprudência quanto a esta matéria. Por outro lado, a presente hipótese recursiva não cabe diretamente no âmbito de admissibilidade do art. 854º do CPC (dado que o acórdão recorrido não é proferido em apenso de oposição à execução, mas sim nos próprios autos, face à posição adotada pela primeira instância quanto à ilegitimidade do executado agora recorrente).

Preenchida a hipótese do art. 629º, n. 2, alínea d) do CPC, a revista é, portanto, admissível.

Como resulta das conclusões das alegações do recorrente, a única questão que integra o objeto da presente revista é a de saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação da lei quanto ao modo como interpretou o art.14º-A da Lei n.6/2006.

2. A factualidade relevante:

A segunda instância considerou factualmente relevante a seguinte matéria, alegada no requerimento executivo:

 «1. A Exequente é a legítima proprietária do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito em ..., na Av. ..., ..., destinados a escritório e a comércio, descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...15, da freguesia ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...16 da referida freguesia.

2. A sociedade Executada tomou de arrendamento as frações autónomas, designadas pelas letras ..., ... e ... (correspondentes ao ..., ... e ... do piso ...), todas do prédio acima mencionado, destinadas a serem exclusivamente utilizadas na sua atividade de prestação de serviços em gestão e comercialização de conteúdos para televisão e internet, organização de ações e eventos recreativos, culturais e desportivos ou quaisquer outros afins ou acessórios daqueles, por contrato de arrendamento urbano para fins não habitacionais, celebrado em 2 de maio de 2013, com prazo certo, pelo período de três anos, com termo em 28 de fevereiro de 2016, renovável automaticamente por períodos sucessivos de um ano (cfr. Documento n.º 1 que ora se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).

3. O arrendamento foi celebrado com a renda mensal de € 7.000,00 (sete mil euros), com vencimento no primeiro dia útil do mês imediatamente anterior àquele a que disser respeito, sujeita às atualizações anuais com base no coeficiente legalmente fixado, fixando-se em €8.515,06 (oito mil quinhentos e quinze euros e seis cêntimos) para os anos de 2019 e 2020.

4. No referido contrato de arrendamento, cabia ainda à sociedade Executada suportar, na parte correspondente ao local arrendado, todos os encargos e despesas correntes respeitantes à fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento dos serviços de interesse comum, nos termos fixados na Cláusula Quinta, pontos 3. a 5. do Documento n.º 1 já junto, cifrando-se em € 1.431,41 (mil quatrocentos e trinta e um euros e quarenta e um cêntimo) o valor para os anos de 2018, 2019 e 2020.

5. Por contrato de prestação de serviços, celebrado em 22 de março de 2013, a Exequente concedeu à Executada o direito a utilizar nove lugares de estacionamento localizados no piso-... do prédio supra descrito, identificados com os números ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., e ... (correspondentes às respetivas frações autónomas designadas pelas letras ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ...) (cfr. Documento n.º 2 que se junta e se dá por integralmente reproduzido).

6. O preço mensal fixado para a utilização dos referidos lugares de estacionamento foi de € 544,00 (quinhentos e quarenta e quatro euros), acrescido de IVA à taxa em vigor. 7. Também por contrato de prestação de serviços, celebrado nessa mesma data, a Exequente concedeu à Executada o direito a utilizar onze lugares de estacionamento localizados no piso-... do prédio supra descrito, identificados com os números ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ... (correspondentes às respetivas frações autónomas designadas pelas letras ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ... (cfr. Documento n.º 3 que se junta e se dá por integralmente reproduzido).

8. Em 4 de março de 2016, por aditamento aos contratos de arrendamento e de prestação de serviços supra descritos, Exequente e Executados fixaram, entre outros, a redução do objeto do anterior contrato de prestação de serviços para seis lugares de estacionamento localizados no piso -8 do referido prédio, identificados com os números 836, 837, 838, 839, 840 e 841 (correspondentes às respetivas frações autónomas designadas pelas letras ..., ..., ..., ..., ... e ...) (cfr. Documento n.º 4 que se junta e se dá por integralmente reproduzido).

9. Convencionando, assim, que o preço para a utilização desses seis lugares de estacionamento seria reduzido para o valor mensal de € 303,00 (trezentos e três euros), acrescido de IVA à taxa em vigor.

10. No âmbito do contrato de arrendamento, celebrado em 2 de maio de 2013, aditado em 4 de março de 2016, o ora executado constituiu-se fiador e principal pagador de todas as quantias devidas pela sociedade Executada à Exequente, tendo renunciado expressamente ao benefício da excussão prévia (cfr. Cláusula Nona do Documento n.º 1 e Cláusula Segunda do Documento n.º 4 ambos já juntos).

11. Por carta registada com aviso de receção, datada de 16 de abril de 2019, a Exequente comunicou à arrendatária (ora executada) a sua intenção de se opor à renovação automática do contrato de arrendamento e dos dois contratos de prestação de serviços já descritos, com efeitos no dia 28 de fevereiro de 2020, cumprindo-se dessa forma o pré-aviso contratualmente fixado para cessação dos vínculos contratuais (cfr. Documento n.º 5 que se junta e se dá por integralmente reproduzido).

12. Face à ausência de pagamento das rendas e preço respeitantes às frações arrendadas e aos lugares de estacionamento utilizados, bem como aos encargos e despesas anexos ao contrato de arrendamento, em 13 janeiro de 2020, a Exequente interpelou a sociedade Executada e o seu fiador (ora Executado) para pagamento dos valores em dívida nessa data; alertando para a aproximação da data de cessação dos contratos, altura em que os espaços deveriam ser entregues, sob pena de aplicação de indemnização correspondente ao valor da renda elevada ao dobro (cfr. Documentos n.º 6 e 7 que se juntam).»

*

3. O direito aplicável:

3.1. O problema em equação na presente revista é o de saber se o título executivo previsto no art.14º-A da Lei n.6/2006 (correntemente designada como NRAU) poderá ser invocado pelo locador apenas contra o arrendatário ou se poderá valer também contra o fiador, apesar de este último não se encontrar expressamente referido na letra dessa norma.

Dispõe o n.1 do art.14º-A[1] da Lei n.6/2006:

«1- O contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário

3.2. O STJ já se pronunciou sobre a matéria em três acórdão, cujos sumários se transcrevem:

- Acórdão do STJ, de 26.11.2014 (relator Granja da Fonseca)[2], no processo n. 1442/12.4TCLRS-B.L1.S1:

«I - O art. 15.º, n.º 2, do NRAU, conjugado com o art. 46.º, n.º 1, al. d), do CPC, confere força executiva ao contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante das rendas em dívida.

II- A comunicação ao arrendatário, a que alude o art. 15.º, n.º 2, do NRAU, funciona como requisito complementar de exequibilidade do título

III- O título executivo referido em I, tendo natureza complexa, integra dois elementos: (i) o contrato onde a obrigação foi constituída; (ii) a demonstração da realização da comunicação ao arrendatário da liquidação do valor das rendas em dívida.

IV - A identidade do obrigado pelo título resulta do próprio contrato de arrendamento e abrange quem nele se obrigou, perante o senhorio, ao pagamento das rendas em dívida.

V - Não obstante o art. 15.º, n.º 2, do NRAU apenas fazer referência à comunicação ao arrendatário, a mesma – por identidade de razões e enquanto condição de exequibilidade do título – deve ser feita também aos fiadores.

VI - Constitui título executivo, tanto em relação ao arrendatário como em relação aos fiadores, o contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo da comunicação referida em V.

VII - A força executiva referida em VI abrange as rendas indicadas na comunicação, como sendo rendas em dívida, e já não as rendas vincendas, as não mencionadas na comunicação, bem como as demais obrigações imputadas, como sejam a indemnização pela mora[3]

- Acórdão do STJ, de 17.11.2020 (relatora Fátima Gomes)[4], no processo n. 3794/18.3T8SNT-A.L1.S1:

«I- O contrato de arrendamento é título executivo para a acção de pagamento de renda quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida.

II- Tendo os embargantes sido fiadores dos arrendatários, figurando a fiança no contrato de arrendamento e não tendo aqueles sido notificados das rendas em atraso, nem da resolução do contrato pelo senhorio, ainda que este tenha notificado o arrendatário, não pode a execução avançar contra os embargantes, por falta de título

Acórdão do STJ, de 20.05.2021 (relator Manuel Capelo)[5], no processo n. 8520/20.4T8PRT-B.P1.S1:

«I- Em contrato de arrendamento em que os executados intervieram como terceiros contraentes e declararam-se solidariamente como principais pagadores de todas as obrigações emergentes do referido contrato, renunciando ao benefício de excussão prévia, esse contrato e a sua interpelação constitui título executivo para poderem ser accionados nos termos do art. 14.º-A do NRAU.

 II- A notificação do fiador para permitir a obtenção contra ele de título justifica-se por razões de equilíbrio e proporcionalidade, atendendo à natureza das próprias obrigações tripartidas e ao facto de se tratar da criação de um título executivo cuja norma refere esse requisito para o arrendatário garantido

A jurisprudência do STJ encontra-se alinhada, assim, num único sentido.

Diferentemente, na jurisprudência dos tribunais da Relação têm sido seguidos entendimentos divergentes. Para além de se encontrarem decisões em sentido coincidente com o que tem sido sustentado pelo STJ, ou seja, entendendo que o art. 14º-A também se aplica ao fiador desde que este tenha sido diretamente notificado, encontram-se acórdãos que vão mais além nesse alinhamento, dispensando até a notificação ao fiador (considerando suficiente a notificação ao arrendatário para que exista também título executivo contra o fiador). E encontram-se decisões em sentido contrário, ou seja, entendendo que o titulo executivo previsto no art.14º-A da Lei n.6/2006 não poderá formar-se contra o fiador.

Também na doutrina publicada sobre o tema se identificam teses em sentidos diversos, coincidindo, em maior ou menor medida, com o argumentário que tem sido sustentado nas diferentes correntes jurisprudenciais.

A diversidade de entendimentos, tanto jurisprudenciais como doutrinais, sobre a aplicação do art. 14º-A da Lei n.6/2006 encontra-se profusamente exposta no supra referido acórdão do STJ de 17.11.2020 (relatora Fátima Gomes), para o qual se remete, sem necessidade, portanto, de aqui se reproduzir expressamente toda essa informação.

3.3. Nenhuma das soluções que têm sido defendidas sobre a interpretação do art. 14º-A é isenta de dúvidas, na medida em que, por um lado, o elemento literal parece favorecer uma interpretação, mas, por outro lado, o elemento teleológico parece abrir caminho à interpretação oposta.

Porém, tendo-se a jurisprudência do STJ firmado em determinado sentido, como no presente caso, em matéria de natureza essencialmente adjetiva, os valores da segurança e da previsibilidade decisória merecerão ser preservados quando a solução interpretativa não conduza a um resultado injusto do ponto de vista da tutela dos interesses do recorrente.

Cabe, assim, perguntar se a opção interpretativa seguida pelo acórdão recorrido (coincidente com a jurisprudência que se firmou no STJ) conduzirá a uma supressão ou compressão significativa dos direitos de defesa do fiador, por confronto com as possibilidades de tutela processual que teria numa ação declarativa (caso se defendesse a interpretação oposta).

Para responder a esta questão importa ter presente que o título executivo previsto no art.14º-A da Lei n.6/2006 cabe na categoria dos «(…) documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva», prevista na alínea d) do n.1 do art.703º do CPC.

No que respeita à amplitude dos direitos de defesa do executado quando a execução se baseia nesta tipologia de título executivo vale o disposto no art.731º do CPC (com a epígrafe “Fundamentos de oposição à execução baseada noutro título”):

«Não se baseando a execução em sentença ou em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, além dos fundamentos de oposição especificados no artigo 729.º, na parte em que sejam aplicáveis, podem ser alegados quaisquer outros que possam ser invocados como defesa no processo de declaração

Concluiu-se, assim, que o facto de o fiador ser demandado numa ação executiva tendo por base o título executivo formado nos termos do art.14º-A não implicará uma significativa afetação dos seus direitos de defesa, por confronto com a tutela que lhe caberia numa ação declarativa.

3.4. Tem-se argumentado que a inclusão do fiador no âmbito dos sujeitos em relação aos quais o título executivo previsto no art. 14º-A da Lei n.6/2006 poderá ser feito valer constituiria uma violação do numerus clausus dos títulos executivos previstos no art.703º do CPC.

Porém, em rigor, o referido art.14º-A não enuncia, em termos excludentes, o sujeito em relação ao qual o título executivo pode ser feito valer. Essa norma define a estrutura constitutiva do título (integrado por dois documentos: contrato de arrendamento e comunicação do montante em dívida) e delimita a tipologia de débitos relativamente aos quais tal título se torna normativamente operativo (rendas, encargos, despesas que corram por conta do arrendatário).

Sendo óbvio que o sujeito responsável pelo pagamento desses valores é o arrendatário, por constituir a sua obrigação principal, como previsto no art.1038º, alínea a) do CC, será lógico que a comunicação dos montantes em dívida seja dirigida ao devedor – o arrendatário, até para que este, querendo, proceda ao pagamento voluntário dos montantes reclamados, evitando a propositura da ação executiva. Por outro lado, terá o arrendatário a possibilidade de discutir extrajudicialmente a exatidão dos valores reclamados pelo locador ou, eventualmente, a possibilidade de invocar a compensação, caso tenha algum crédito face ao locador, evitando-se o recurso a tribunal (com os inerentes custos).

Estando o pagamento dos débitos referidos no art. 14º-A garantido por fiador, tem-se entendido que a comunicação referida nessa norma também tem de ser dirigida a este sujeito por identidade de razões face ao arrendatário e porque, nos termos do art. 631º do CC, o fiador não deverá ficar em condições mais onerosas do que as do devedor principal.

Porém, a jurisprudência mais recente que se tem pronunciado sobre a matéria não tem tido em conta as alterações que a Lei n. 13/2019 introduziu no art. 1041º do CC, com o propósito de tutelar a posição do fiador[6].

Dispõe o art.1041º, números 5 e 6, do CC (aditados pela Lei n.13/2019):

«5-Caso exista fiança e o arrendatário não faça cessar a mora nos termos do n.º 2, o senhorio deve, nos 90 dias seguintes, notificar o fiador da mora e das quantias em dívida.
6 -
O senhorio apenas pode exigir do fiador a satisfação dos seus direitos de crédito após efetuar a notificação prevista no número anterior

Tendo presente que nos termos do art.12º, n. 2, 2ª parte, do CC a lei nova se aplica às relações em curso, esta nova definição dos critérios de exigibilidade do pagamento dirigido ao fiador tem aplicação em qualquer hipótese em que o locador o pretenda demandar, depois da entrada em vigor da Lei n.13/2019.

Os números 5 e 6 do art. 1041º do CC vieram, assim, conferir uma tutela específica ao fiador do arrendatário que, na medida da sua especificidade, afastam a aplicação das regras gerais da fiança. Por outro lado, não sendo feita qualquer distinção quanto ao meio processual a usar pelo locador, deverá concluir-se que se aquela notificação prévia vale quando o locador pretenda demandar o fiador numa ação declarativa, por identidade de razão (ou até por maioria de razão) deverá valer quando o locador pretenda mover ação executiva contra o fiador com base no art. 14º-A da Lei n. 6/2006.

No caso dos presentes autos não existem elementos factuais para se saber qual o âmbito de exigibilidade da notificação dirigida ao fiador (porque, obviamente, a execução não continuou contra ele), mas encontra-se assente (e o fiador recorrente não o nega) que foi notificado pelo senhorio credor para proceder aos pagamentos reclamados.

Assim, do ponto de vista da estrutura constitutiva do título, é possível concluir que se verificam em relação ao fiador os dois elementos formais exigidos pelo art. 14º-A da Lei n.6/2006, ou seja, existe contrato de arrendamento escrito no qual o recorrente se constituiu como fiador garante do pagamento das rendas devidas pela sociedade arrendatária, e existe notificação que lhe foi dirigida pelo locador.

Tal é suficiente para se concluir que se encontra formalmente constituído título executivo com base no qual o fiador pode ser demandado e, consequentemente, para se concluir que a execução deve continuar contra ele, cabendo-lhe, depois, exercer os direitos que a lei lhe confere na ação executiva.

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DECISÃO: Pelo exposto nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido, devendo a execução prosseguir os seus trâmites na primeira instância.

Custas na revista: pelo recorrente.

Lisboa, 21.06.2022

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Ricardo Costa

António Barateiro Martins

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] O art. 14º-A da Lei n. 6/2006 foi aditado pela Lei n. 31/2012, cujo corpo correspondia ao seu atual n.1.

[2] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0fbd71584ac864bb80257d9d00553ba0?OpenDocument
[3] Este acórdão foi proferido na vigência do art. 15º, n. 2 da Lei 6/2006 (na sua redação originária), o qual consagrava a solução que passou para o art. 14º-A por força da Lei n.31/2012.

[4] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4ab8ddf80b9764e780258646004c5766?OpenDocument
[5] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/99ccbe3eb6519593802586e0004da80d?OpenDocument
[6] Sobre esta alteração legislativa, Maria Olinda Garcia, “Alterações em matéria de Arrendamento Urbano introduzidas pela Lei n.º 12/2019 e pela Lei n.º 13/2019”, in Revista Julgar Online, março de 2019, pág.6, acessível em: http://julgar.pt/alteracoes-em-materia-de-arrendamento-urbano-introduzidas-pela-lei-n-o-122019-e-pela-lei-n-o-132019/