Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4140/14.0YYLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: BERNARDO DOMINGOS
Descritores: RESOLUÇÃO BANCÁRIA
BANCO DE PORTUGAL
DELIBERAÇÃO
INCONSTITUCIONALIDADE
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
ACÇÃO EXECUTIVA
AÇÃO EXECUTIVA
INSTITUIÇÃO DE CRÉDITO
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES
Data do Acordão: 06/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA.
Doutrina:
- Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra, 2000, p. 103 e ss.;
- J. A. Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, p. 56;
- Mário Aroso de Almeida (Teoria Geral do Direito Administrativo, 4ª ed., p. 45 e 294)
- Menezes Cordeiro, Direito Bancário, 6.ª ed., p. 1011 e ss.;
- Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa,1997, p. 460-461.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 615.º, ALÍNEAS C) E D).
REGIME GERAL DAS INSTITUIÇÕES DE CRÉDITO E DEMAIS SOCIEDADES FINANCEIRAS (RGICSF): - ARTIGO 145.º-AR.
ESTATUTO DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS (ETAF): - ARTIGO 4.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 2.º E 111.º, N.º 1.
LEI ORGÂNICA DO BANCO DE PORTUGAL: - ARTIGO 39.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 27-03-2007, PROCESSO N.º 07A760;
- DE 30-03-2017, PROCESSO N.º 725/14.3TBLSD-A.P1.S1;
- DE 26-09-2017, RELATORA ANA PAULA BOULAROT;
- DE 06-12-2017, PROCESSO N.º 1509/13.LTVLSB.LL.S1;
- DE 13-03-2018, RELATOR CABRAL TAVARES;
- DE 22-03-2018, RELATORA MARIA DO ROSÁRIO MORGADO;
- DE 10-05-2018, RELATOR FONSECA RAMOS;
- DE 22-05-2018, PROCESSO N.º 31476/15.0T8LSB.L1.S, TODOS IN WWW.DGSI.PT.~


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ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:

- DE 13-11-2007, PROCESSO N.º 0164A/04, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

- DE 22-09-2015, PROCESSO N.º 2604/15.8T8VIS.C1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Nos termos do art. 145.º-AR do RGICSF as decisões do Banco de Portugal que apliquem medidas de resolução bancária estão sujeitas aos meios processuais previstos na legislação do contencioso administrativo.

II - A competência para apreciar a título principal a nulidade das deliberações do Banco de Portugal cabe aos tribunais administrativos (art. 4.º do ETAF).

III - As deliberações do Banco de Portugal a respeito da medida de resolução bancária do BES e as normas do RGICSF, ao abrigo do qual foram tomadas, não violam os princípios da confiança e segurança jurídicas resultantes do Estado de Direito Democrático (art. 2.º da CRP), nem o princípio da separação de poderes (art. 111.º, n.º 1, da CRP).

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL


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Relatório[1]

«AA, com os sinais dos autos, veio intentar, contra Banco BB, S.A. (BB), também com os sinais dos autos, execução sumária, alegando que:

1. Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 2ª Secção, no Processo nº333/09.0TVLSB.L2, proferido em 07.03.2014, foi o Réu e ora Executado, Banco BB, S.A, condenado a restituir à Exequente AA, o montante de 34.123.70 euros, correspondente a depósitos bancários indevidamente retirados da sua conta, acrescidos dos juros de mora, à taxa legal, desde a data de cada uma das transferências até efectiva reposição, que actualmente se cifram em 7.312,65 €, conforme cópia que se junta e que serve de título executivo à presente execução.

2. A Executada encontra-se actualmente em dívida para com a Exequente na quantia global de 41.436.35 euros, quarenta e um mil quatrocentos e trinta e seis euros e trinta e cinco cêntimos, valor a que acresce a quantia de 51,00 de taxa de justiça liquidada com a presente execução, juros de mora vencidos e vincendos até efectivo pagamento e honorários e despesas com Agente de Execução.

3. A dívida é certa, líquida e exigível.

4. A Executada não liquidou sequer parcialmente a quantia em dívida.


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Juntou com o requerimento executivo o mencionado Acórdão desta Relação, datado de 06-03-2014.

Em 24-04-2014, a Exequente veio, invocando um lapso na instauração da execução para pagamento de quantia certa, requerer a convolação para execução para prestação de facto e, consequentemente, fosse citado o Banco executado para restituir à Exequente os depósitos bancários e reconstituir os produtos financeiros contratados pela mesma, acrescidos dos juros, das despesas de transferências e penalizações ilicitamente aplicadas, bem como no pagamento dos juros de mora, à taxa legal, desde a data de cada uma das transferências até à efectiva reposição.

Foi proferido despacho a convidar a Exequente a juntar aos autos a sentença de 1ª Instância e o acórdão, o que fez, sendo, ademais, junto aos autos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que confirmou o Acórdão da Relação (fls. 129 e segs.).

A fls. 246 e segs., veio o Executado apresentar o seguinte requerimento:

«1. Por deliberação de 03 de agosto de 2014 (20h), o Banco de Portugal, ao abrigo da competência que lhe é conferida pela alínea b) do n.º 1 do artigo 145.º- C e do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aplicou ao Banco BB, S.A., uma medida de resolução, na modalidade de transferência parcial da sua atividade para um banco de transição, denominado BANCO CC, S.A. (Cfr. Deliberação que ora se junta como Doc. n.º 1 e se dá por integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais).

2. O regime aplicável ao banco de transição resulta do disposto nos artigos 145.º- G a 145.º- I do RGICSF, bem como do Aviso do Banco de Portugal n.º 13/2012.

3. Nos termos do disposto no n.º 9 do artigo 145.º- H do RGICSF, o BANCO CC, S.A. deve ser considerado, para todos os efeitos legais e contratuais, como sucessor nos direitos e obrigações transferidos do BB.

4. Aliás, o objeto social do BANCO CC, S.A. consiste na “administração dos ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão transferidos do Banco BB, SA, para o Banco CC, SA, e o desenvolvimento das atividades transferidas, tendo em vista as finalidades enunciadas no artigo 145.º-G do RGICSF, e com o objetivo de permitir uma posterior alienação dos referidos ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão para outra ou outras instituições de crédito” (Cfr. Certidão com o código de acesso 57…-3…-4…).

5. As medidas de resolução são instrumentos jurídicos ao dispor do Banco de Portugal que lhe permitem intervir em instituições de crédito, como é o caso do BB, com vista a acautelar o risco sistémico, salvaguardar a estabilidade do sistema financeiro, a confiança dos depositantes e os interesses dos contribuintes e do erário público (Cfr. artigo 145.º- A e 145.º- C do RGICSF).

6. Dito por outras palavras, o Banco de Portugal, no exercício da competência que lhe é conferida pelo n.º 1 do art.º 145.º-G do RGICSF, determinou a transferência de um conjunto de ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão do Banco BB, S.A. para o BANCO CC, S.A.

7. O artigo 145.º - H do RGICSF estabelece que a decisão de transferência produz efeitos independentemente de qualquer disposição legal ou contratual em contrário, sendo título bastante para o cumprimento de qualquer formalidade legal.

8. Por sua vez, o “texto consolidado do Anexo 2” da Deliberação do Banco de Portugal de 3 de agosto de 2014, constante da Deliberação da mesma entidade de 11 de agosto (17h), determinou que se transferiam para BANCO CC, S.A., todas as «responsabilidades do BB perante terceiros que constituam passivos» (Cfr. n.º 1, alínea (b) da Deliberação, que ora se junta como Doc. n.º 2 e se dá por integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais).

9. Excluindo, apenas, dessa transmissão os litígios tendo por objeto alguma das matérias expressamente excecionadas no próprio texto da Deliberação — como sucede, por exemplo, no n.º 1, alínea (b), subalínea (v) do Anexo 2 da Deliberação, a qual exceciona da regra geral sobre a transmissibilidade as eventuais responsabilidades emergentes de fraude ou violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais que resultem de fatos praticados antes de 3 de agosto de 2014.

10. Não está em causa, no presente litígio, matéria objeto das exceções contidas na referida Deliberação.

11. Sempre se diga que, para a Exequente, não é indiferente que o seu crédito venha a ser considerado passivo do BANCO CC, S.A., dada a supra referida situação atual do BB.

12. Assim, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 269.º n.º 2 do Código de Processo Civil, deverá o Banco BB, S.A. ser substituído pelo BANCO CC, S.A., assumindo este a posição processual de Executado.

Caso assim não se entenda, e sem conceder, sempre se dirá o seguinte,

13. Conforme estabelece o artigo 147.º do RGICSF, “quando for adotada uma medida de resolução, e enquanto ela durar, ficam suspensas, pelo prazo máximo de um ano, todas as execuções, incluindo as fiscais, contra a instituição, ou que abranjam os seus bens, sem exceção das que tenham por fim a cobrança de créditos com preferência ou privilégio”.

14. Deste modo, tendo sido aplicada uma medida de resolução ao Banco BB, S.A., deverá ser ordenada a suspensão da execução contra o Banco BB, S.A,

Nestes termos e nos melhores de Direito,

a) Deverá o BANCO CC, S.A. ser investido na posição processual anteriormente assumida pelo Banco BB, S.A.

b) Deverá o BANCO CC, S.A. ser notificado para constituir novo mandatário, por se afigurar necessário, atenta a existência de conflito de interesses; Ou caso assim não se entenda,

c) Deverá ser ordenada a suspensão da execução contra o Banco BB, S.A., nos termos do artigo 147.º do RGICSF.»


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A Exequente, na sequência do requerimento do Executado, veio, a fls. 281-282, requerer a substituição do Banco BB pelo Banco CC, S.A., como executado, com aproveitamento de todos os actos já praticados na execução.

O Executado (BB) veio, a fls. 299 e segs., apresentar outro requerimento, no qual concluiu:

«(…) considerando que, em virtude da medida de resolução, ainda em vigor, aplicada ao BB, aqui Executado, não lhe é exigível o cumprimento de quaisquer obrigações que não tenham sido transmitidas para a instituição de transição, até à revogação da autorização, deverá ser ordenada a suspensão da presente execução, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 269.º, n.º 1 alínea d) do Código de Processo Civil, e dos artigos 145.º-L, n.º 7 e artigo 147.º, n.º 1 ambos do RGICSF.

Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, cumprindo as determinações do Banco de Portugal, vem o ora EXECUTADO solicitar de V. Exas. que se dignem:

I. Ordenar a junção aos autos da Deliberação relativa a contingências e, bem assim, da Deliberação relativa ao perímetro; e

II. Ordenar a suspensão da presente execução nos termos das disposições conjugadas dos artigos 269.º, n.º 1, alínea d) do CPC, e dos artigos 145.º-L, n.º 7 e artigo 147.º, n.º 1 ambos do RGICSF, com efeitos a 3 de agosto de 2014.»


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A fls. 325 e segs., pronunciou-se a Exequente, insistindo na substituição do BB pelo Banco CC.

A fls. 337 e segs., veio o Executado requerer o levantamento das penhoras e a imediata suspensão do processo executivo, com fundamento na inexigibilidade das obrigações e reportando-se, ainda, ao facto de lhe ter sido suspensa, pelo Banco Central Europeu, a autorização para o exercício da actividade, medida que produz os efeitos da declaração da insolvência.

A isso se opôs, de novo, a Exequente (a fls. 344 e segs.).


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A fls. 396 e segs. foi proferida decisão, datada de 26-10-2016, na qual, além do mais (apreciou-se, numa segunda parte, o requerimento, feito pelo BB, a fls. 299 e segs., de suspensão da execução), se concluiu que o Banco CC, S.A., passava a ocupar a posição processual do Executado, com efeitos reportados a 4 de Agosto de 2014.

Essa decisão, na sua primeira parte, é do seguinte teor:

«Fls. 246 e ss. – Veio o Executado BB requerer que o Banco CC passe a ocupar a posição processual de executado, com os fundamentos que aqui se reproduzem. A exequente pronunciou-se pelo deferimento do requerido, nos termos de fls. 281.


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Cumpre decidir, já que a tal nada obsta.

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Da certidão da C.R.Comercial e dos documentos juntos a fls. 249 e ss. dos autos – acta da reunião extraordinária do Conselho de Administração do Banco de Portugal realizada em 3 de Agosto de 2014 -, verifica-se que foi deliberado pelo Banco de Portugal:

. a aplicação de uma medida de resolução do Banco BB, S.A., na modalidade de transferência parcial da sua actividade para um banco de transição, denominado Banco CC, S.A.;

. a constituição do Banco CC, ao abrigo do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Dec. Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro;

. a transferência para o Banco CC, S.A., nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 145º-H do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Dec. Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, dos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do Banco BB, S.A., que constam dos Anexos 2 e 3 daquela deliberação.

Lê-se, a propósito, no art. 145º- G, n.º 1 do do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF) que «o Banco de Portugal pode determinar a transferência, parcial ou total, de activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão de uma instituição de crédito para um ou mais bancos de transição para o efeito constituídos, com o objectivo de permitir a sua posterior alienação a outra instituição autorizada a desenvolver a actividade em causa».

Lê-se, ainda, no art. 145º-H, n.º 1, do RGICSF, que «o Banco de Portugal seleciona os activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão a transferir para o banco de transição no momento da sua constituição», sendo que «após a transferência prevista no n.º 1, deve ser garantida a continuidade das operações relacionadas com os activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão transferidos, devendo o banco de transição ser considerado, para todos os efeitos legais e contratuais, como sucessor nos direitos e obrigações transferidos da instituição de crédito originária» (n.º 9 do citado artigo).

E «a decisão de transferência prevista no n.º 1 produz efeitos independentemente de qualquer disposição legal ou contratual em contrário, sendo título bastante para o cumprimento de qualquer formalidade legal relacionada com a transferência» (n.º 10 do mesmo artigo).

Também de acordo com o n.º 5 do art. 145º-O, do mesmo diploma legal, «a decisão de transferência … produz, por si só, o efeito de transmissão da titularidade dos direitos e obrigações da instituição de crédito objecto de resolução para a instituição de transição, sendo esta considerada, para todos os efeitos legais e contratuais, como sucessora nos direitos e obrigações transferidos».

Por fim, nos termos do disposto no art. 118º, nº 1, al. a) do C.Soc.Com. «é permitido a uma sociedade destacar parte do seu património para com ela constituir outra sociedade».

Uma vez realizada, e inscrita no registo comercial, transmitem-se «os seus direitos e obrigações para a nova sociedade» (art. 112º e 120º do C. Soc. Com.).


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Concretizando, no caso em apreço, resulta da al. b) do n.º 1 do Anexo 2 da deliberação do Banco de Portugal de 3 de Agosto de 2014, que “as responsabilidades do BB perante terceiros que constituam passivos ou elementos extrapatrimoniais deste são transferidos na sua totalidade para o Banco CC, S.A.”, com excepção com daqueles que decorram, entre outras, de (v) «fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais».

Ora, a pretensão formulada pela Exequente na acção declarativa, e reconhecida no título que se executa, não se enquadra em qualquer uma das excepções ali referidas, designadamente a citada. Logo, executando-se na presente acção executiva uma decisão judicial condenatória, proferida em 06/03/2014, a posição que o BB, ali réu condenado, ocupava - como executado – nos presentes autos, transferiu-se para o Banco CC, S.A., sendo este considerado, para todos os efeitos legais, como sucessor nas obrigações transferidas.

E a assunção da posição de exequente pelo Banco CC opera automaticamente, fundando-se, com as devidas adaptações, no preceituado no art. 269º, n.º 2, do N.C.P.C., não carecendo de ser objecto de habilitação ou de decisão constitutiva dessa substituição.

Pelo exposto, entende-se que o Banco CC passou a ocupar a posição processual de executado, com efeitos reportados a 4 de Agosto de 2014.»

Na segunda parte da decisão, exarou-se o seguinte:

«Fls. 299 e ss. – Veio o BB requerer que seja ordenada a suspensão da presente execução nos termos das disposições conjugadas dos art. 269.º, n.º 1, al. d) do C.P.C., e dos art. 145.º-L, n.º 7 e 147.º, n.º 1 ambos do RGICSF, com efeitos a 3 de Agosto de 2014, com os fundamentos que aqui se dão por reproduzidos.

A Exequente pronunciou-se pelo indeferimento da pretensão formulada, nos termos de fls. 325 e seguintes.

Sucede que a apreciação da pretensão formulada mostra-se prejudicada, uma vez que a medida de resolução foi aplicada ao BB, tendo o Banco CC passado a ocupar a posição processual de executado, em substituição daquele, como se deixou acima explicitado.

Acresce que a deliberação do Banco de Portugal de 29/12/2015, relativa à “Clarificação e retransmissão de responsabilidades e contingências definidas como passivos excluídos nas subalíneas (v) a (vii) da alínea (b) do n.º 1 do Anexo 2 à Deliberação do Banco de Portugal de 3 de agosto de 2014 (20 horas), na redacção que lhe foi dada pela Deliberação do Banco de Portugal de 11 de agosto de 2014 (17 horas)”, junta a fls. 302 e ss., nos termos da qual “não foram transferidos do BB para o Banco CC quaisquer passivos ou elementos extrapatrimoniais do BB que às 20:00 horas do dia 3 de Agosto de 2014, fossem contingentes ou desconhecidos (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais», em particular as identificadas na al. B) da dita deliberação e que são objecto dos processos descritos no Anexo I, carece de valor suficiente, quando, como se deixou acima referido, “a Deliberação do Banco de Portugal de Agosto de 2014 pretendeu transferir para [o banco de transição] a globalidade da actividade que era desenvolvida pelo [BB] (com alguma excepções, nas quais não se enquadra a hipótese em apreço)”.

Na verdade, a pretensão formulada pela Exequente na acção declarativa n.º 333/09.0TVLSB, e reconhecida no acórdão que se executa, proferido em 06/03/2014, não se enquadra nas situações definidas na clarificação – “quaisquer passivos ou elementos extrapatrimoniais do BB que às 20:00 horas do dia 3 de Agosto de 2014, fossem contingentes ou desconhecidos” -, e a sua mera identificação numa listagem não basta nem é vinculativa para proceder à sua retransmissão para o BB.

Note-se que “a solução adoptada é aquela que melhor interpreta não só o espírito da deliberação do Banco de Portugal [de 3 de Agosto de 2014] mas também o seu conteúdo.

Como decorre daquela Deliberação o banco de transição, …, é o sucessor da actividade que era desenvolvida pelo [BB] pelo que, sendo a regra, a de que a responsabilidade segue a actividade apenas seria necessário a substituição dos representantes (nos termos daquele n.º 2 do artigo 269 citado)” - Ac. do TRP de 16/11/2015, disponível em www.dgsi.pt...»

Inconformado, recorreu o Banco CC, S.A., arguindo a nulidade da citação e pedindo a revogação do despacho que ordenou a substituição processual.

Apreciando a apelação o tribunal da Relação de Lisboa, considerou não se verificar a nulidade da citação da Banco CC e concluiu pela revogação da decisão de substituição processual do BB, SA pelo Banco CC S.A « por não carecer o Banco CC de legitimidade para a execução, já que se entende não ter ocorrido a transferência da responsabilidade em causa.»


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Inconformada com esta decisão veio a autora interpor recurso de revista tendo rematado as suas alegações com as seguintes


Conclusões:

I. «Bem andou o acórdão recorrido ao aparentemente negar provimento à alegação de nulidade da citação do despacho que determinou a substituição processual nos presentes autos.

II. E dizemos aparentemente, pois o acórdão omite o dispositivo, no que a esta matéria concerne, não proferindo sequer uma decisão.

III. Ao omitir este elemento essencial do acórdão, o mesmo incorre numa nulidade por violação do disposto no art.º 615.º/1 al. c) e d) do CPC.

IV. Esta falta de decisão consubstancia igualmente uma violação do disposto no art.º 8.º, n.º 1 do CC, atingindo o âmago da função jurisdicional e de aplicação da justiça, previstos no art.º 202.º da CRP.

V. Para mais, o acórdão condena a apelada, aqui recorrente, na totalidade das custas processuais, quando existe um decaimento por parte da apelante, aqui recorrida.

VI. Ao condenar a apelada na totalidade das custas, o Tribunal a quo violou o princípio victus victori, ínsito no art.º 527.º, n.º 1 do CPC.

VII. Porém, mal andou o acórdão ora recorrido ao considerar o recurso como o meio processual adequado à defesa da executada nos presentes autos.

VIII. Quando o fundamento que a faz discordar do referido despacho se prende com uma questão processual que, na ótica da executada, obsta ao prosseguimento da instância.

IX. Argumento este que deve, outrossim, ser deduzido em sede de embargos de executado.

X. Tal não tendo acontecido, seria forçoso concluir que precludiu a defesa da executada à referida substituição processual, tendo-se esta estabilizado na ordem jurídica.

XI. Por assim não entender, o acórdão a quo violou o caso julgado (colidindo com o disposto no art.º 619.º do CPC), bem como o art.º 856.º, n.º 1 do mesmo diploma, devendo, por isso, merecer a censura deste Egrégio Tribunal

XII. Considera o acórdão ora recorrido que a contingência dos presentes autos foi retransmitida pelo Banco de Portugal para o BB, não devendo a executada permanecer nessa posição.

XIII. Isto com base na deliberação “Contingências” do Banco de Portugal de 29 de dezembro de 2015, onde são exercidos os poderes de retransmissão conferidos pelos artigos 145.º-O, n.º 1 e 145-Q, n.º 4, todos do RGICSF.

XIV. Porém, as normas contidas nestas disposições legais encontram-se feridas de inconstitucionalidade por violação do princípio da confiança e segurança jurídica, integrantes do conceito de Estado de Direito Democrático presente no art.º 2.º da CRP e princípio da separação de poderes.

XV. A análise da violação da confiança e segurança jurídica passa pela aferição do grau de afetação – se esta se verificar ser insuportável para os agentes, então terá de ser considerada violadora destes princípios.

XVI. A retransmissão com efeitos retroativos, um ano e quatro meses após a primeira transmissão é insuportável para a ordem jurídica e agentes que nela se movimentam.

XVII. Veja-se que uma deliberação que visa, supostamente, “clarificar” pontos constantes da deliberação de 03 de agosto de 2014, reporta-se detalhadamente não só às ações judiciais que estavam pendentes à data, mas a todas a que entraram após aquela data e todas as que venham a ser intentadas.

XVIII. Verdade é que, com tais poderes, o Banco de Portugal faz o papel de Deus Omnipresente e Omnipotente: não só tem poderes legislativos (conferidos pelo RGICSF), como tem poderes judiciais ao resolver casos concretamente definidos, apontando aos Tribunais a decisão a tomar, ignorando a tão necessária independência. Em suma, é a entidade que define as regras e arbitra o jogo – algo que o princípio da separação de poderes ancorado no sistema de checks and balances quis evitar.

XIX. As normas vertidas nos artigos 145.º-O, n.º 1 e 145-Q, n.º 4, todos do RGICSF, bem como nos pontos A); B) e C) da deliberação “Contingências” do Banco de Portugal de 29 de dezembro de 2015 encontram-se feridas de inconstitucionalidade por violação dos princípios da confiança e segurança jurídica resultantes do Estado de Direito Democrático (art.º 2.º da CRP) e do princípio da separação de poderes, vertido no art.º 111.º, n.º 1 da CRP, na interpretação de que o poder de retransmissão aí previsto tem o condão de ser aplicado retroativamente às ações judiciais que se encontrem em curso.

XX. Ao decidir com base em normas feridas de inconstitucionalidade, o acórdão ora recorrido violou as disposições constitucionais acima referidas, bem como princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa.

XXI. Atentando, por conseguinte, contra o art.º 204.º da CRP.

Nestes termos e nos mais de Direito deve:

I. Ser declarada a nulidade da parte da sentença que não inclui dispositivo;

II. Ser alterada a condenação em custas, devendo as partes suportar as custas correspondentes a proporção do seu decaimento.

III. Ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado o acórdão ora recorrido, mantendo-se na íntegra o despacho que ordena a substituição processual nos presentes autos


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Não houve resposta do Banco CC.


Na perspectiva da delimitação pelo recorrente[2], os recursos têm como âmbito as questões suscitadas nas conclusões das alegações (art.ºs 635º nº 4 e 639º do novo Cód. Proc. Civil)[3], salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 608º do  novo Cód. Proc. Civil).

Das conclusões acabadas de transcrever decorre que são duas as questões objecto do recurso:

- Saber se ocorre a nulidade do acórdão recorrido, por ambiguidade e omissão de pronúncia;

- Saber se o meio processual próprio de reagir contra o despacho de substituição eram os embargos de executado e não o recurso;

- Saber se as normas vertidas nos artigos 145.º-O, n.º 1 e 145-Q, n.º 4, todos do RGICSF, bem como nos pontos A); B) e C) da deliberação “Contingências” do Banco de Portugal de 29 de dezembro de 2015 encontram-se feridas de inconstitucionalidade por violação dos princípios da confiança e segurança jurídica resultantes do Estado de Direito Democrático e da separação de poderes.


Dos factos

Com interesse para a apreciação das questões suscitadas na revista, importa referir a factualidade que resulta dos autos e que é a seguinte:

Por despacho datado de 26 de Outubro de 2016, o Tribunal a quo decidiu a substituição processual do Banco BB, S.A. pelo Banco CC, S.A..

Esta decisão foi notificada ao Banco CC, ao mesmo tempo que foi notificado da realização da penhora a que se reporta o auto de fls. 434-435.

No acto de “notificação após penhora”, indicam-se como documentos anexos “Cópia integral do requerimento e título executivo, decisão judicial, autos de penhora” (cf. fls. 449 v.).

O Banco CC reconhece que foi, nesse acto, notificado do despacho, tendo interposto recurso de apelação, que nessa parte foi julgado procedente e revogou a referida decisão de substituição. Nesse acórdão decidiu-se também pela improcedência do pedido de rejeição do recurso, com fundamento em que o meio processual próprio para impugnar a decisão de substituição seriam os embargos de executado e não o recurso.

Deste acórdão vem a presente revista.


Do Direito


Das alegadas nulidades do acórdão

A recorrente veio arguir a nulidade do acórdão recorrido, alegando o seguinte:

«l. Bem andou o acórdão recorrido ao aparentemente negar provimento à alegação de nulidade da citação do despacho que determinou a substituição processual nos presentes autos.

II. E dizemos aparentemente, pois o acórdão omite o dispositivo, no que a esta matéria concerne, não proferindo sequer uma decisão.

III. Ao omitir este elemento essencial do acórdão, o mesmo incorre numa nulidade por violação do disposto no art.º 615. al. c) e d) do CPC.

IV. Esta falta de decisão consubstancia igualmente uma violação do disposto no art.º 8.º, n.º 1 do CC, atingindo o âmago da função jurisdicional e de aplicação da justiça, previstos no art.º 202.º da CRP.

V. Para mais, o acórdão condena a apelada, aqui recorrente, na totalidade das custas processuais, quando existe um decaimento por parte da apelante, aqui recorrida.

VI. Ao condenar a apelada na totalidade das custas, o Tribunal a quo violou o princípio victus victori, ínsito no art.º 527.º, n.º 1 do CPC.»

Apreciando estas arguições o Tribunal recorrido pronunciou-se pelo seu indeferimento com a seguinte argumentação:

«Na definição do objecto do recurso, exarou-se no acórdão recorrido o seguinte:

«Sendo o objecto dos recursos definido pelas conclusões de quem recorre, para além do que for de conhecimento oficioso, haverá que, in casu, apreciar a questão prévia da falta/nulidade da citação e, em seguida, desde que ultrapassado esse obstáculo, a questão de saber se, diversamente do decidido, não ocorreu a transferência para o Banco CC da responsabilidade em causa na execução, não podendo, por isso, operar-se a substituição processual do BB pelo Banco CC

Importa recordar o que se escreveu no acórdão sobre a matéria da invocada nulidade:

«O Apelante levantou, em primeiro lugar, a questão prévia da falta/nulidade de citação, o que reflectiu nas conclusões das alegações do seguinte modo:

«i. Foi o ora Executado Banco CC, S.A., notificado pelo Exrno. Sr. Agente de Execução da penhora efectuada a saldos bancários da titularidade do Executado.

ii. Dessa notificação apenas consta o despacho datado de 26 de Outubro de 2016, no qual o Tribunal a quo decidiu a substituição processual do Banco BB, S.A. pelo Banco CC, S.A ..

iii. Sucede que, somente agora o Banco CC, S.A. com a notificação para a oposição à penhora, tomou conhecimento do teor do referido despacho.

iv. Do qual, não teve oportunidade de reagir, por dele não ter tido conhecimento, pelo que tal despacho padece de nulidade, por falta de citação.

v. De facto, o despacho que decidiu a substituição processual do Banco BB, SA pelo Banco CC, S.A., deveria ter sido devidamente notificado ao Banco CC, SA, pessoa colectiva autónoma e distinta do Banco BB, S.A, tal como prescreve o artigo 249.º e o artigo 219.º ambos do CPC.

vi. Ora, a omissão afiançada e cometida configura a nulidade da notificação, que equivale a citação, nos termos do artigo 188º do CPC, que deverá ser declarada e ser o Banco CC, S.A., devidamente notificado do despacho ora em crise, o que desde já se requer

Vejamos:

Verifica-se que a decisão impugnada, datada de 26-10-2016, foi notificada ao Banco CC, ao mesmo tempo que foi notificado da realização da penhora a que se reporta o auto de fls. 434-435.

No acto de "notificação após penhora", indicam-se como documentos anexos "Cópia integral do requerimento e título executivo, decisão judicial, autos de penhora" (cf. fls. 449 v.).

O próprio Recorrente reconhece que foi, nesse acto, notificado do despacho. Sucedendo que a execução em apreço é sumária, preceitua art. 856º, nºl, do CPC, que a citação para a execução é simultânea com a notificação da penhora.

O Banco CC, S.A. pôde interpor recurso do despacho, do qual tomou conhecimento directo, bem como poderia ter exercido outros direitos conferidos por Lei.

Como refere o Tribunal a quo, nos termos do n. 2 1 do art. 191 º do CPC, a arguição da nulidade de citação (a arguição vai, na verdade, além da simples falta de citação) só deve ser atendida quando prejudique a defesa do citado, o que não se demonstra, in casu.

Sendo assim, entende-se não haver motivo para nova notificação do despacho em causa, do qual - repete-se - o Banco CC teve oportunidade de interpor recurso, que foi admitido e que ora se aprecia.»

Prosseguiu-se, depois, ultrapassado o obstáculo a que se aludira na definição do objecto do recurso, com a apreciação do mais que se impunha conhecer.

Salvo o devido respeito, o trecho citado é suficientemente claro quanto ao indeferimento (embora não se tenha usado este termo) da arguição em causa, razão por que se entende não se verificarem as nulidades suscitados nas alegações do recurso de revista.

No que concerne a custas (resulta das conclusões pretender a Recorrente a reforma do acórdão quanto a esse aspecto), importará ter em atenção que o Banco CC, SA visava, com o seu recurso, a revogação do despacho que determinou que passasse a ocupar a posição do BB. Ora, o Recorrente viu satisfeita a sua pretensão.

Conforme se concluiu no Ac. do STJ de 06-12-2017 (Rel. Tomé Gomes), Proc. nº 1509/13.lTVLSB.Ll.S1, publicado em www.dgsi.pt:

«I. O juízo de procedência ou improcedência da pretensão recursória não é aferível em função do decaimento ou vencimento parcelar respeitante a cada um dos seus fundamentos, mas da respetiva repercussão na solução jurídica dada em sede do dispositivo final sobre essa pretensão.»

Ora, face ao que decidiu a final, revogando a decisão que determinou a substituição do BB pelo Banco CC, S.A., não havia, salvo melhor opinião, motivo para não condenar, na íntegra, nas custas do recurso, a Apelada, que se batera, nas contra-alegações, pela manutenção dessa decisão.

II

Pelo que se deixou dito, entende-se que o acórdão não padece das invocadas nulidades - nada havendo, em consequência, a suprir -, nem se impõe a sua reforma quanto a custas».

Ora esta deliberação não merece qualquer censura. Com efeito e como bem se demonstra no trecho acabado de citar não existe qualquer dúvida de que o Tribunal recorrido não acolheu a tese do Banco CC quando à arguida falta de citação e daí que tivesse apreciado a questão de fundo suscitada na apelação, coisa que não sucederia se tivesse concluído pela falta de citação do Banco CC. O facto de não constar no dispositivo não gera qualquer dúvida sobre a improcedência do argumento nem tão pouco a efectiva apreciação da questão suscitada, pelo que é óbvia a inexistência das alegadas nulidades.

Quanto à reforma do acórdão quanto à condenação em custas também não merece reparo, porquanto a recorrente obteve o resultado que pretendia (ser excluída da causa) e a recorrida decaiu no objectivo contrário.


*

Do erro no meio processual de impugnação do despacho de substituição processual


A segunda questão suscitada pela recorrente consiste em saber se o despacho que determinou a substituição processual do BB pelo Banco CC só poderia ser impugnado através de embargos de executado e não por via de recurso. Foi uma questão já levantada nas contra-alegações da apelação. Como é evidente trata-se de uma questão de natureza processual ou seja uma questão interlocutória. 

O tribunal recorrido considerou que o despacho recorrido era passível de impugnação por via de recurso e apreciou os fundamentos desse recurso. Esta decisão versando uma questão de natureza eminentemente processual, não é passível de recurso de revista, excepto se se verificar alguma das situações previstas nas al. a) e b) do nº 2 do art.º 671º do CPC. A recorrente não invoca nenhuma dessas situações e os autos não revelam a sua existência. Assim sendo a questão em causa não pode ser apreciada por este Tribunal, por estar definitivamente decidida no acórdão da Relação.


*

Dos Factos


O Banco CC, S.A. foi constituído por deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal tomada em reunião extraordinária de 3 de Agosto de 2014, nos termos do n.° 5 do artigo 145°-G do Regime Legal das Instituições de Créditos e Sociedades Financeiras, como uma nova sociedade, habilitada a desenvolver a actividade bancária, completamente autónoma e independente do Banco BB, S.A. (BB).

Conforme é referido pelo Tribunal recorrido, resulta da al. b) do n.º 1 do Anexo 2 da deliberação do Banco de Portugal de 3 de Agosto de 2014, que “as responsabilidades do BB perante terceiros que constituam passivos ou elementos extrapatrimoniais deste são transferidos na sua totalidade para o Banco CC, S.A.”, com excepção com daqueles que decorram, entre outras, de (v) «fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais».

Sucede que, no dia 29 de Dezembro de 2015, as subalíneas (v) a (vii) da alínea B) do nº1 do Anexo 2 à deliberação de 3 de Agosto de 2014 foram objeto de clarificação, deliberando o Conselho de Administração do Banco de Portugal (entre o mais e com destaques nossos):

«A) Clarificar que, nos termos da alínea (b) do número 1 do Anexo 2 da deliberação de 3 de Agosto, não foram transferidos do BB para o Banco CC quaisquer passivos ou elementos extrapatrimoniais do BB que, às 20:00 horas do dia 3 de Agosto de 2014, fossem contingentes ou desconhecidos (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais), independentemente da sua natureza (fiscal, laboral, civil ou outra) e de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do BB;

 B) Em particular, desde já se clarifica não terem sido transferidos do BB para o Banco CC os seguintes passivos do BB:

[…]

(v) Todos os créditos e indemnizações relacionados com a alegada anulação de determinadas cláusulas de contratos de mútuo, em que o BB era o mutuante;

(vi) Todas as indemnizações e créditos resultantes de anulação de operações realizadas pelo BB enquanto prestador de serviços financeiros e de investimento; e

(vii) Qualquer responsabilidade que seja objeto de qualquer dos processos descritos no Anexo I.

C) Na medida em que, não obstante as clarificações acima efetuadas, se verifique terem sido efetivamente transferidos para o Banco CC quaisquer passivos do BB que, nos termos de qualquer daquelas alíneas e da Deliberação de 3 de agosto, devessem ter permanecido na sua esfera jurídica, serão os referidos passivos retransmitidos do Novo Banco para o BB, com efeitos às 20 horas do dia 3 de agosto de 2014».

 Através dessa deliberação mais deliberou o BdP clarificar não ter sido transferida qualquer responsabilidade que fosse objeto de qualquer dos processos descritos no respetivo Anexo I, onde se compreende o presente processo nº Proc. nº 333/09.0TVLSB, da 3ª Vara Cível de Lisboa .

Nos considerandos (“Enquadramento”) da mesma deliberação o BdP expôs, entre o mais, o seguinte:

“9. Importa clarificar que o Banco de Portugal, enquanto autoridade pública de resolução, decidiu e considera que todas as responsabilidades contingentes e desconhecidas do BCC (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais), independentemente de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do BCC, estão abrangidas pelas subalíneas (v) a (vii) da alínea (b) do n.º 1 do Anexo 2 da Deliberação, não tendo sido, portanto, transferidas para o DD.

10. Alguns tribunais solicitaram ao Banco de Portugal que este lhes comunicasse o seu entendimento, enquanto entidade de resolução, sobre a não transferência de responsabilidades e contingências do BCC para o DD, ao abrigo das subalíneas (v) a (vii) da alínea (b) do n.º 1 do Anexo 2 da deliberação de 3 de agosto.

11. Esses pedidos não foram efetuados na maior parte dos processos pendentes em tribunal, que se relacionam com responsabilidades ou contingências não transferidas para o DD.

12. Se o número de processos pendentes nos tribunais judiciais e a diferente orientação nas decisões até hoje tomadas conduzirem a que, de modo significativo, não venha a ser reconhecida adequadamente a seleção efetuada pelo Banco de Portugal (enquanto autoridade pública de resolução) dos ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão transferidos do BCC para o DD (decisão sobre o «perímetro de transferência»), pode ficar comprometida a execução e a eficácia da medida de resolução aplicada ao BCC, a qual, entre outros critérios, se baseou num critério de certeza quanto ao perímetro de transferência.

13. Foi esse critério de certeza que permitiu calcular as necessidades de capital da instituição de transição, o DD, e foi com base nesse cálculo que o Fundo de Resolução realizou o capital da instituição de transição.

14. Caso viessem a materializar-se na esfera jurídica do DD responsabilidades e contingências por força de sentenças judiciais, o DD seria chamado a assumir obrigações que de modo algum lhe deveriam caber e cuja satisfação não foi pura e simplesmente tida em consideração no montante do capital com que aquele banco de transição foi inicialmente dotado.

15. Este risco pode materializar-se ainda antes do trânsito em julgado das decisões judiciais se, de acordo com as regras contabilísticas, for entendido que, não obstante a decisão do Banco de Portugal, aquela materialização é provável.

16. Nos termos da lei, a decisão do Banco de Portugal sobre o perímetro de transferência só pode ser alterada através dos meios processuais previstos na legislação do contencioso administrativo, de acordo com o artigo 145.º-AR do RGICSF (correspondente ao artigo 145.º-N do RGICSF, em vigor à data de aplicação da medida de resolução ao BCC).

17. Questionar o referido perímetro de transferência fora do contencioso administrativo constitui um desvio à competência dos tribunais administrativos, legalmente estabelecida, e impede que o Banco de Portugal exerça a prerrogativa que a lei lhe confere de afastar, por motivo de interesse público, a execução de sentenças desfavoráveis, iniciando-se de imediato o procedimento tendente à fixação da indemnização de acordo com os trâmites definidos no Código do Processo nos Tribunais Administrativos.

18. Decisões de tribunais judiciais que, direta ou indiretamente, ponham em causa o perímetro de transferência neutralizam este mecanismo contencioso (e compensatório), legalmente previsto, de impugnação das decisões do Banco de Portugal, enquanto autoridade pública de resolução, e comprometem a execução e a eficácia da medida de resolução.”

Na lista de processos constante do Anexo I surge, em primeiro lugar, o Proc. nº 333/09.0TVLSB, da 3ª Vara Cível de Lisboa (cf. fls. 305).

Trata-se da acção declarativa de que resultou o título executivo da execução em apreço, importando referir que o trânsito em julgado do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que confirmou o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, ocorreu em 02-10-2014 (fls. 128), ou seja, após a aludida data de 3 de Agosto de 2014.

Do acórdão que serve de título à presente execução decorre que o executado BB foi condenado na sequência de fraude bancária praticada por um seu funcionário em prejuízo da exequente.

A execução foi instaurada em 15/4/2014, ou seja antes de operada a resolução do BB.

É esta a factualidade que decorre dos autos e que influiu na tomada da decisão recorrida.


Do Direito

Nos termos do art. 39º da Lei Orgânica do Banco de Portugal, «Dos actos praticados pelo governador, vice-governadores, conselho administração e demais órgãos do Banco, ou por delegação sua, no exercício de funções públicas de autoridade, cabem meios de recurso ou acção previstos na legislação própria do contencioso administrativo, incluindo os destinados a obter a declaração de ilegalidade de normas regulamentares».

Não cabe, pois, aos Tribunais da jurisdição comum competência material para apreciação da legalidade das deliberações do Banco de Portugal e, sequer, do Fundo de Resolução.

As deliberações do Banco de Portugal constituem actos normativos regulamentares que só podem ser impugnados na jurisdição administrativa.

Neste sentido se pronunciou o Ac. do STJ de 30-03-2017 (Rel. Salazar Casanova), Proc. nº 725/14.3TBLSD-A.P1.S1, publicado em www.dgsi.pt, e que apreciou-se uma situação similar à dos presentes autos tendo-se concluído, além do mais, o seguinte:

«I - O Banco de Portugal dispõe, por força da lei, do poder de transferência parcial ou total de direitos e obrigações de uma instituição de crédito, que constituam ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão, produzindo a decisão de transferência efeitos independentemente de qualquer disposição legal ou contratual em contrário (arts. 139.º, 140.º, e 145.º-O do RGICSF, aprovado pelo DL n.º 298/92, de 31-12).

II - Atuando o Banco de Portugal no exercício dos poderes que lhe estão conferidos por lei enquanto entidade supervisora, que é autoridade pública de resolução, as suas decisões, salvo se afastadas por via de decisão judicial para a qual é competente o contencioso administrativo, são vinculativas para os seus destinatários».

Esta decisão reflecte o entendimento uniforme deste Supremo Tribunal[4].

Nos termos do art.145º-AR do RGICSF, as decisões do Banco de Portugal que apliquem medidas de resolução estão sujeitas aos meios processuais previstos na legislação do contencioso administrativo.

Assim, e em conjugação com o disposto no art.4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, facilmente se conclui que a competência para apreciar a título principal a nulidade das referidas Deliberações do Banco de Portugal, decorrente da sua inconstitucionalidade ou da inconstitucionalidade de alguma norma do RGICSF (nomeadamente do art.145º-H n.5, como alega o recorrente) cabe aos tribunais administrativos e não aos tribunais judiciais. Conhecedora deste regime a recorrente não pede formalmente a declaração de nulidade das deliberações do Banco de Portugal de 29 de Dezembro de 2015, mas imputa-lhes o vício de inconstitucionalidade e pede que seja recusada a sua aplicação, pelo que incidentalmente pode e deve conhecer-se das questões de inconstitucionalidade suscitadas, uma vez que é imperativo constitucional (art.º 204º da CRP).

Sustenta a recorrente que as normas vertidas nos artigos 145.º-O, n.º 1 e 145-Q, n.º 4, todos do RGICSF, bem como nos pontos A); B) e C) da deliberação “Contingências” do Banco de Portugal de 29 de dezembro de 2015 encontram-se feridas de inconstitucionalidade por violação dos princípios da confiança e segurança jurídica resultantes do Estado de Direito Democrático (art.º 2.º da CRP) e do princípio da separação de poderes, vertido no art.º 111.º, n.º 1 da CRP.

Alega que «fazendo uso prudente de uma análise sintética, considera o acórdão ora recorrido que a Banco CC, S.A. não é parte legítima nos presentes autos, porquanto a deliberação do Banco de Portugal de 29 de dezembro de 2015 – Contingências - “clarificou” o conteúdo das subalíneas (v) a (vii) da alínea B) do n.º 1 do Anexo 2 à deliberação de 03 de agosto de 2014 no sentido de excluir expressamente o processo declarativo que deu origem à presente execução do perímetro de contingências que foram transferidos do BB para o Banco CC.

De facto, é inegável que o disposto no ponto A); B) e C) da referida deliberação Contingências opera a retransmissão das responsabilidades decorrentes deste processo declarativo para o BB – quando, à data de 03 de agosto de 2014, as mesmas encontravam-se na esfera do Banco CC.

É também conhecida a fonte de legitimidade para tal retransmissão – conforme referido no considerando 4 da mencionada deliberação, essa fonte radica no chamado “Poder de Retransmissão”, conferido pelo art.º 145.º-Q, n.º 4 (no caso que nos ocupa, em especial, a al. c)) do Regime Geral das Instituições de Crédito e demais Sociedades Financeiras (RGICSF).

Não é despiciente recordar que, à data da medida de resolução aplicada pelo Banco de Portugal ao BB (03 de agosto de 2014), a aqui recorrente encontrava-se a aguardar o aresto deste mesmo Egrégio Tribunal – aresto esse que viria a dar vencimento total à pretensão da então autora – sendo perfeitamente claro já nesse momento, que a constituição de um depósito a prazo era uma obrigação decorrente da atividade bancária (que, recorde-se, foi transmitida para o Banco CC).

Em momento algum, o preceito acima referido do RGICSF confere poderes ao Banco de Portugal para operar uma retransmissão com efeitos retroativos – ainda que travestida numa “clarificação”, que mais não é do que uma interpretação autêntica do disposto na deliberação de 03 de agosto de 2014. Também não se alcança como pode retirar-se da leitura do RGICSF o poder do Banco de Portugal para escolher um rol de ações em curso para lhes aplicar uma decisão ad hoc, num ato profundamente violador do princípio da confiança e estabilidade jurídica.

Do aqui exposto, resulta claro que o Tribunal ora recorrido alicerçou a sua decisão em normas que se encontram feridas de inconstitucionalidade, não podendo produzir efeitos na ordem jurídica portuguesa.

Pois que das duas uma: ou se considera que a deliberação extrapolou os seus poderes, não encontrando acolhimento legal e, assim, não podendo alicerçar uma fundamentação do Tribunal a quo com vista à revogação do despacho que determinou a substituição processual ou as normas que conferem poderes de retransmissão ao Banco de Portugal são inconstitucionais na interpretação de que tal retransmissão pode ser operada com efeitos retroativos e com o poder de atingir processos judiciais em curso.

Em primeiro lugar, urge analisar as normas em questão – vertidas nos artigos 145.º-O, n.º 1 e 145-Q, n.º 4, todos do RGICSF à luz dos princípios constitucionais da segurança jurídica e proteção da confiança, extraídos do conceito de Estado de Direito Democrático, presente no art.º 2.º da CRP.

Seguindo de perto a formulação deste Egrégio Tribunal no acórdão de 27-03-2007 (Proc. 07A760, Rel. Sebastião Póvoas), disponível em www.dgsi.pt, “O principio da confiança postula uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, razão pela qual é inconstitucional a norma que, por sua natureza, obvie de forma intolerável ou arbitrária àquele mínimo de certeza e segurança que os cidadãos, a comunidade e o direito têm de respeitar.” (sublinhado nosso).

Mas também se reveste de utilidade o conceito oferecido pelo Supremo Tribunal Administrativo de 13-11-2007 (Proc. 0164A/04, Rel. São Pedro), disponível em www.dgsi.pt): “Os citados princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança assumem-se como princípios classificadores do Estado de Direito Democrático, e que implicam um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado.”

A verificação, assim, de uma norma que atente contra os referidos princípios terá de passar pela desconstrução do que é inadmissível de tolerar. Para tanto, munimo-nos dos critérios oferecidos pelo Tribunal da Relação de Coimbra de 22-09-2015 (Proc. 2604/15.8T8VIS.C1, Rel. António Carvalho Martins), disponível em www.dgsi.pt: “afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, desde a 1.ª revisão).

Parece relativamente claro no presente caso que estamos perante uma afetação de uma expectativa criada em agosto de 2014 e que foi gorada em dezembro de 2015 (cerca de um ano e meio depois!), sendo a duração do período em que a expectativa foi mantida um fator relevante para a jurisprudência constitucional na aferição de uma afetação violadora do princípio da confiança.

Sem olvidarmos que estamos perante uma retroatividade agravada – realidade que, por si só, consubstancia uma presunção de violação da confiança e segurança jurídica.

Esta confiança ancorou-se, ao longo deste ano e meio, em diversos fatores. Dúvidas não havia e não há de que o Banco CC sucedeu ao Banco BB no exercício da atividade bancária, ficando com o capital que foi arrecadado nos negócios bancários, mas também com todas as obrigações.

Isso mesmo foi garantido, urbi et orbi, no próprio dia da resolução, induzindo-se a ideia de que o Banco CC era o mesmo banco..., mas mais forte.

Confiança reforçada pelo facto de a causa de pedir nos presentes autos encontrar-se já decidida por decisão judicial proferida em 06/03/2014.

Salvo melhor entendimento, o teor desta deliberação, mormente quanto ao perímetro de responsabilidades que são transferidas e assumidas pelo R. NB, bem como as que são retransmitidas para o R. BB, em nada afetam ou respeitam à matéria em discussão nos presentes autos.

É notório que a deliberação de 29 de dezembro foi escrita cirurgicamente com vista a proteger não qualquer interesse público, mas sim a proteção exclusiva do R. Banco CC e do próprio Banco de Portugal na conclusão do seu processo de venda.

Mas a circunstância mais atentatória que resulta do deliberado pelo Banco de Portugal prende-se com a possibilidade (a vingar a interpretação de que as normas do RGICSF conferem poderes de tal magnitude) de escolher qual o enquadramento jurídico aplicável a um processo judicial em curso.

Veja-se que uma deliberação que visa, supostamente, “clarificar” pontos constantes da deliberação de 03/08/2014, reporta-se detalhadamente não só às ações judiciais que estavam pendentes à data, mas a todas a que entraram após aquela data e todas as que venham a ser intentadas.

Conhecendo os argumentos de que os lesados lançaram mão para defenderem os seus direitos, ao abrigo da legislação portuguesa e através dos meios judiciais competentes cujo acesso lhes é garantido pela Constituição da República Portuguesa, o Banco de Portugal toma a iniciativa de, um ano e quatro meses depois, “clarificar” retroativamente a deliberação inicialmente tomada, intencional e cirurgicamente construindo uma nova deliberação potencialmente geradora de uma situação de ilegitimidade passiva do Banco CC ou de inexequibilidade de qualquer decisão judicial que o condenasse.

O Banco de Portugal realizou, por via desta deliberação, uma manobra visando a “capitalização” do Banco CC e exonerando-o de quaisquer obrigações que forem declaradas pelos tribunais.

A escolha unilateral por parte do Banco de Portugal do desfecho de ações judiciais em curso, através da mudança das regras do jogo a meio, para além de atentatório do princípio da confiança e segurança jurídicas, viola frontalmente o princípio da separação de poderes, presente no art.º 111.º da CRP.

Verdade é que, com tais poderes, o Banco de Portugal faz o papel de Deus Omnipresente e Omnipotente: não só tem poderes legislativos (conferidos pelo RGICSF), como tem poderes judiciais ao resolver casos concretamente definidos, apontando aos Tribunais a decisão a tomar, ignorando a tão necessária independência. Em suma, é a entidade que define as regras e arbitra o jogo – algo que o princípio da separação de poderes ancorado no sistema de checks and balances quis evitar.

Pelo exposto, as normas vertidas nos artigos 145.º-O, n.º 1 e 145-Q, n.º 4, todos do RGICSF, bem como nos pontos A); B) e C) da deliberação do Banco de Portugal “Contingências” de 29 de dezembro de 2015 encontram-se feridas de inconstitucionalidade por violação dos princípios da confiança e segurança jurídica resultantes do Estado de Direito Democrático (art.º 2.º da CRP) e do princípio da separação de poderes, vertido no art.º 111.º, n.º 1 da CRP, na interpretação de que o poder de retransmissão aí previsto tem o condão de ser aplicado retroativamente às ações judiciais que se encontrem em curso».

Quanto à alegada violação do princípio da confiança e da segurança jurídica resulta do trecho acabado de transcrever que a mesma assenta no pressuposto não demonstrado de que a deliberações de 29 de Dezembro sobre contingências e perímetro, por força da sua natureza interpretativa, terão procedido a uma retransmissão do crédito da autora do Banco CC para o BB, violando assim a expectactivas criadas aquando da resolução do BB e da instituição do Banco CC, para quem, no entender da autora, tinha sido transferido o passivo de que era credora.

Ora acontece que analisando o teor das 1ª das deliberações de 3/8/2014 e da tomada em 11/8/14 e tendo em conta a natureza do direito da A. (responsabilidade civil decorrente de fraude bancária) e a sua não consolidação na ordem jurídica (ainda não tinha havido trânsito em julgado da decisão final) ressalta de imediato que o crédito da autora nunca chegou a ser transferido para o Banco de transição, porquanto estava expressamente excluído na subalínea (v) da al. b) daquela primeira deliberação tanto na redacção originária, como na que lhe foi dada pela deliberação de 11/8 (acima transcritas). As deliberações de 29/12, no tocante ao crédito da autora nada inovaram nem nada alteraram, limitaram-se a consignar na lista de processos que foi anexa, aquilo que já resultava das deliberações anteriores ou seja que a acção donde resultava o crédito da autora estava excluída do passivo que transitava do BB para o Banco CC. Não se vislumbra, pois, como pode a autora invocar violação do principio da confiança e da segurança jurídica, quando desde o inicio do processo de resolução e em particular das deliberações do Banco de Portugal, nunca se pode inferir sequer uma simples expectativa jurídica do crédito da autora transitar para o passivo do Banco CC. Na verdade, pela origem e natureza do crédito e pela contingência do mesmo (decisão de condenação não era definitiva) tal crédito sempre cairia na previsão da subalínea (v) da al. b) do anexo 2 da deliberação de 3/8/2014 e consequentemente, desde a primeira hora, sempre esteve excluído de transmissão para o Banco de transição.

 As deliberações em causa, em particular as de 29/12/2014 e as normas do RGICSF, ao abrigo da qual foram tomadas, não violam qualquer dos referido princípios constitucionais.


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Quanto à alegada violação do princípio da separação de poderes também não assiste razão à recorrente.

Como já se decidiu no ac. deste Tribunal de 22/5/2018, proc. Nº 31476/15.0T8LSB.L1.S, disponível in www.dgsi.pt, se é «certo que a deliberação clarificadora em causa deve ser vista como fazendo parte (integrando-se) da deliberação clarificada, e esta reconduz-se a um ato administrativo, na medida em que se traduz numa estatuição autoritária relativa a um caso concreto, emergente de um sujeito de direito administrativo[5] agindo o exercício de poderes jurídico-administrativos e destinada a produzir efeitos jurídicos externos (v. art. 148º do CPA). É verdade também que, nos termos da alínea a) do nº 1 do art. art. 161º, nº 1, do CPA, são nulos os atos administrativos viciados de usurpação de poder. Diz-nos Mário Aroso de Almeida (Teoria Geral do Direito Administrativo, 4ª ed., p. 294) que “A usurpação de poderes corresponde à prática, por um órgão da Administração Pública, de um ato de natureza legislativa ou jurisdicional. É o caso quando a Administração se arrogue o poder de definir por ato administrativo matéria que só um tribunal pode dirimir através de sentença. Configurando uma violação do próprio princípio da separação de poderes (…)”.

Contudo, não vemos que se esteja aqui perante qualquer invasão do espaço próprio da decisão jurisdicional. Efetivamente, do que se trata e sempre é apenas da clarificação do pensamento ou intenção do BdP subjacente à deliberação de 3 de Agosto de 2014, e essa clarificação é tão legítima quanto o é a produção da deliberação clarificada. Claro que no plano dos princípios se pode duvidar da maior ou menor felicidade em se ter vindo especificar processos judiciais concretos, quando o que interessava era simplesmente clarificar os termos genéricos ou abstratos da anterior deliberação quanto ao perímetro de transferência. Mas se essa clarificação foi ao ponto de especificar processos judiciais, isso apenas tem a ver com a particularização (detalhe) que o BdP entendeu dar à sua clarificação, e nada mais».

Na verdade não é por se indentificar num anexo da deliberação de 29/1272014, os processos judiciais que o Banco de Portugal considera abrangido pelas exclusão de transmissão do passivo, que os tribunais ficam impedidos de verificar a legalidade e conformidade desse enquadramento à luz da norma reguladora. Ora no caso sub judicio não restam dúvidas de que o crédito da autora cai no âmbito do passivo que o Banco de Portugal, no uso dos poderes de autoridade de Resolução Bancária, decidiu excluir da transição para o banco de transição. Não se verifica pois a alegada inconstitucionalidade.


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Concluindo


Pelo exposto, acorda-se na improcedência da revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Notifique.

Lisboa, em 19 de junho de 2019

José Manuel Bernardo Domingos (Relator)

João Luís Marques Bernardo

António Abrantes Geraldes

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[1] Parcialmente transcrito do acórdão recorrido.
[2] O âmbito do recurso é triplamente delimitado. Primeiro é delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na 1.ª instância recorrida. Segundo é delimitado objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (art.º 684º, n.º 2 2ª parte do Cód. Proc. Civil antigo e 635º nº 2 do NCPC) ou pelo fundamento ou facto em que a parte vencedora decaiu (art.º 684º-A, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil, hoje 636º nº 1 e 2 do NCPC). Terceiro o âmbito do recurso pode ser limitado pelo recorrente. Vd. Sobre esta matéria Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa –1997, págs. 460-461. Sobre isto, cfr. ainda, v. g., Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra – 2000, págs. 103 e segs.
[3] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56.
[4] Cfr. Entre outros os seguintes arestos do STJ: de 26/9/2017, relator Ana Paula Boularot, de 1373/2018, relator Cabral Tavares e de 22/3/2018, relator maria do Rosário Morgado e de 10/5/2018 Relator Fonseca Ramos, todos disponíveis in www.dgsi.pt..
[5] Ainda que a exata natureza jurídica do BdP se possa prestar a discussões (v. a propósito Menezes Cordeiro, Direito Bancário, 6ª ed., p. 1011 e seguintes; o autor refere-se-lhe como “instituto público anómalo”, p. 1033), é inequívoco que o BdP é (nos termos da respetiva Lei Orgânica) uma pessoa coletiva de direito público, tem a natureza de entidade administrativa independente (v. Luiz Cabral de Moncada, ob. cit., p. 53; Mário Aroso de Almeida, Teoria Geral do Direito Administrativo, 4ª ed., p. 45), integrando, nessa medida, a Administração Pública (v. art. 2º, º 4, alínea c) do CPA)