Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
721/17.9T8GMR-H.G2.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LUÍS ESPÍRITO SANTO
Descritores: COMPRA E VENDA
TRANSMISSÃO DE PROPRIEDADE
AÇÕES
VALORES MOBILIÁRIOS
FORMALIDADES
DOCUMENTO ESCRITO
REGISTO
INTERMEDIÁRIO
APREENSÃO
MASSA INSOLVENTE
RESTITUIÇÃO DE BENS
INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 02/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I – O contrato de compra e venda de acções nominativas só fica perfeito, operando a transmissão da propriedade sobre tais bens, quando tenham sido devidamente cumpridas, pela entidade responsável, as formalidades especialmente exigidas pelo artigo 102º, nº 1, do Código de Valores Mobiliários, concretamente quando exista declaração escrita de transmissão inscrita no título, a favor do transmissário, seguida de registo junto do emitente ou junto de intermediário financeiro que o represente, ou seja, o denominado modo.
II – Sem tais formalidades essenciais, legalmente estabelecidas pela legislação de natureza especial que regula juridicamente o regime dos valores mobiliários (o Código de Valores Mobiliários), a declaração negocial gerará efeitos de natureza obrigacional, consubstanciados no direito do transmissário à exigência da prossecução das condutas idóneas à perfeição do negócio (declaração no título e diligências para o registo junto da emitente), sob pena de integral ressarcimento, no plano indemnizatório, dos prejuízos causados, a ter lugar nos termos gerais, mas não efeitos de natureza real, o que constitui um desvio ao regime regra consignado no artigo 408º, nº 1, 1ª parte, do Código Civil.
III – Não se encontrando devidamente cumprido o modo relativo ao contrato transmissivo de acções nominativas ao tempo da declaração de insolvência do vendedor, e encontrando-se estas na carteira de títulos do credor pignoratício, é lícita e válida a sua apreensão para a massa insolvente realizada pelo administrador da insolvência, tendo em conta do disposto no artigo 81º, nº 1, do CIRE, segundo o qual“a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência”.
IV – Improcede, portanto, a acção de restituição instaurada pelo comprador, ao abrigo do disposto no artigo 146º, nº 1, do CIRE, em negócio de compra e venda de acções nominativas em que não foi cumprido o modo, face à não transmissão em seu favor do direito de propriedade sobre estas, que teria de produzir-se até ao momento em que o alienante poderia validamente dispor dos valores mobiliários em causa.
Decisão Texto Integral:



Processo nº 721/17.9T8GMR-H.G2.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção).

I - RELATÓRIO.  

Unilec, S.A., sociedade de direito francês, instaurou, com fundamento no disposto no artigo 146º, nº 1, do CIRE e por apenso à insolvência de AA, decretada em 9 de Fevereiro de 2017 (transitada em julgado), a presente acção para restituição de bens contra a Massa Insolvente de AA, representada pela administradora da insolvência, os credores do insolvente e o devedor/insolvente, AA.
Essencialmente alegou:
Em 16 de Abril de 2013, celebrou com o devedor/insolvente AA um acordo, nos termos do qual este cedeu-lhe 25.500 acções nominativas da categoria B, de valor nominal de € 1,00 (um euro) cada, do capital social da sociedade L..., S.A., mediante o preço de € 127.500,00 (cento e vinte e sete mil euros), que pagou.
Aquando da celebração do contrato, a Caixa Económica Montepio Geral (CEMG) detinha um penhor sobre as referidas acções, como garantia de todas as responsabilidades assumidas pela L..., S.A., em dois contratos de abertura de crédito em conta corrente, com um valor global de € 5.300.000,00 (cinco milhões e trezentos mil euros).
Apesar da validade e da eficácia do referido contrato de cessão das acções não ficarem dependentes de qualquer autorização por parte da CEMG, a A. informou-a desse negócio por e-mails de 16 de Abril de 2013 e 17 de Abril de 2013 e, nessa sequência, a CEMG emitiu, em 30 de Maio de 2017, declaração em como teve conhecimento atempado do contrato de cessão de acções, celebrado em 16 de Abril de 2013, e nada ter a opor à referida cessão das acções.
A transmissão das acções em causa foi devidamente registada, por via informática, no livro de registo de acções da L....
Acontece que, aquando da declaração da insolvência de AA, em 9 de Fevereiro de 2017, as acções encontravam-se depositadas numa carteira de títulos em nome do identificado AA (ora insolvente), facto esse que era do total desconhecimento da Autora e que apenas se deveu à falta de diligência por parte da CEMG, que não encetou os procedimentos necessários para a correcção de tal situação, após lhe ter sido comunicada a cessão das ações para a Autora.
Em 18 de Abril de 2017, a administradora da insolvência remeteu carta registada à L... e à Autora, onde deu nota de ter tido conhecimento da celebração do contrato de cessão de acções, ocorrido em 16 de Abril de 2013, mas alegando desconhecer se esse negócio foi ou não ratificado pela CEMG e solicitando que lhe fosse remetida cópia do contrato definitivo celebrado.
Por carta registada datada de 26 de Abril de 2017, a Autora prestou à administradora da insolvência todas as informações solicitadas e concretizou os termos em que havia ocorrido o negócio de cessão das acções.
Seguiram-se outras cartas entre a Autora e a administradora da insolvência, até que, por carta de 29 de Novembro de 2018, a administradora da insolvência informou a Autora que, como era do conhecimento desta, aquela tinha procedido à apreensão das acções a favor da massa insolvente.
Acontece que essa afirmação da administradora da insolvência é falsa, dado que a Autora apenas teve conhecimento da apreensão das acções em 3 de Janeiro de 2019, na sequência dos documentos que lhe foram remetidos pela própria administradora da insolvência.
Sucede que, mesmo ciente de que as acções não eram propriedade do devedor/insolvente AA, mas antes da Autora, tantas foram as insistências da administradora da insolvência que a CEMG acabou por transferir as acções para a Massa Insolvente, sendo que esta recusa-se a devolvê-las à Autora.
Conclui pedindo que se declare a Autora como legítima proprietária das acções apreendidas e se condene os requeridos a restituírem-lhe as acções, que se encontram incorrectamente apreendidas.
A Ré Massa Insolvente de AA contestou defendendo-se por excepção e por impugnação.
Invocou a excepção dilatória da litispendência, sustentando que, no âmbito do apenso G, a Autora instaurou incidente em que deduziu os mesmos pedidos, com fundamento na mesma causa de pedir que formula nos presentes autos.
Invocou a exceção peremptória da caducidade do direito de acção da Autora, alegando que esta tomou conhecimento, pelo menos, em Agosto de 2017, do pedido efectuado pela administradora da insolvência junto da CEMG para que procedesse à transferência das acções a favor da massa insolvente de AA; acresce que a transferência das acções pela CEMG para a conta da massa insolvente veio a ser judicialmente ordenada já no decurso do ano de 2018.
Assim, tendo em conta que a Autora só em 7 de Dezembro de 2018 lançou mão do incidente do art. 144º do CIRE; que só em 21 de Março de 2019, lançou mão da presente acção; que as acções foram efectivamente transferidas/apreendidas para a massa insolvente em 12 de Setembro de 2018 e o prazo de 30 dias fixado para a reclamação de créditos na sentença declaratória da insolvência, na sua perspectiva, o prazo de cinco dias, posteriores à data da apreensão de acções previsto no art. 144º, n.º 1 do CIRE, para a Autora exercer o direito de restituição das ações, já se encontrava precludido, por caducidade, quando aquela instaurou o incidente que corre termos pelo apenso G.
Excepcionou alegando que o registo das acções em suporte informático invocado pela Autora não cumpre os pressupostos da al. e), do n.º 2 do art. 2º da Portaria n.º 290/2000, na medida em que esse pretenso registo não se encontra certificado electronicamente, nomeadamente, por entidade credenciada e certificadora, não possui qualquer menção à chave, nem certificado ou oposição de qualquer assinatura digital.
Excepcionou sustentando que, nos termos da cláusula 5ª, n.º 4 do termo de penhor, este só se extinguirá pela extinção das responsabilidades da sociedade mutuária, o que não é o caso e, bem assim, que a alegada transmissão das acções para a Autora por via do pretenso contrato de cessão de ações nominativas, não se mostra perfectibilizado, porquanto, à data da insolvência e aquando das diligências tendentes à apreensão das ditas acções a favor da massa, aquelas não se mostravam acompanhadas da declaração de transmissão escrita no título, além de que, para que se opere a transmissão das acções para a Autora, não basta a existência do negócio de cessão, mas é preciso o endosso das ações e o registo da transmissão das mesmas para a Autora, o que não sucedeu.
Impugnou parte da facticidade alegada pela Autora, expendendo que esta e a CEMG sempre tiveram conhecimento que as acções foram apreendidas a favor da massa insolvente; que tal apreensão só foi possível devido ao facto de, após a declaração de insolvência de AA, em 9 de Fevereiro de 2017, as acções encontrarem-se na posse e na titularidade do insolvente; que a administradora da insolvência só teve conhecimento da existência do alegado contrato de cessão das ditas acções após a declaração da insolvência de AA; que nenhum facto confirma essa pretensa cessão das ações a favor da Autora; que estando as referidas ações empenhadas junto da CEMG desde 21 de Maio de 2008, a cessão daquelas sempre estaria sujeita a autorização/ratificação pelo credor pignoratício, a CEMG, a qual, à data da alegada cessão das ações, não deu a sua autorização à celebração do negócio de cessão destas invocado pela Autora, nem dele teve conhecimento, e só já no decurso do processo de insolvência e aquando do pedido de transferência das acções para a conta de títulos da massa insolvente, tomou conhecimento desse pretenso contrato de cessão de acções; a CEMG, em março de 2017, reclamou os seus créditos na parte garantida pelo penhor das acções nos autos de insolvência e apenas em 30/05/2017, já após a declaração da insolvência de AA, ratificou o alegado negócio, datado de 16 de Abril de 2013, o que consubstancia má fé e abuso do direito por parte da CEMG que, ao reclamar os seus créditos em março de 2017, deduziu uma pretensão de pagamento e graduação de créditos ilegal, pretendendo receber da insolvência um crédito que sabe não lhe ser devido pelo insolvente e/ou pela massa insolvente, mas pela Autora, caso se entenda que esta é a legítima proprietária das acções sobre as quais a CEMG pode exercer os seus direitos de penhor.
Terminou pedindo, a título principal, que se julgassem procedentes as excepções da litispendência e da caducidade e, em todo o caso, se julgasse a acção improcedente.
O devedor/insolvente AA contestou, defendendo-se por excepção e por impugnação.
Invocou a exceção dilatória da litispendência e, bem assim, a exceção peremptória da caducidade basicamente com os mesmos fundamentos que foram deduzidos pela Ré massa insolvente.
Excepcionou invocando a anulabilidade do contrato de cessão de ações celebrado com a Autora, alegando que apenas assinou esse contrato por ter sido pressionado e coagido pelos representantes da Autora e com medo desses representantes, que o agarraram pelo braço, forçaram-no a sentar-se numa das cadeiras e a assinar o contrato de cessão das ações, o que fez, sem nunca ter a intenção de o assinar e sem que o teor deste correspondesse à sua vontade real.
Mais excepcionou alegando que, a partir do momento da assinatura do contrato de cessão de quotas, ficou plenamente convencido que a Autora assumiria todas as responsabilidades daquele perante terceiros, na qualidade de fiador e/ou de avalista da L..., entendimento esse que retirou, e se retira, do teor da cláusula 3ª, n.ºs 3 e 4 do aludido contrato, pelo que o negócio de cessão das ações está condicionado à assunção por parte da Autora das obrigações decorrentes dos avais e fianças que prestou à L... perante terceiros e à correspetiva exoneração do devedor/insolvente de tais responsabilidades, o que nunca aconteceu.
Impugnou parte da facticidade alegada pela Autora, invocando essencialmente a mesma defesa apresentada pela massa insolvente e sustentou que o invocado contrato de cessão de acções não traduz qualquer contrato definitivo de cessão de acções, mas antes um contrato promessa em que se obrigou a celebrar com a Autora um contrato mediante o qual cederia à última as acções objeto dos autos.
Concluiu pedindo que se julgasse a acção improcedente.
A Autora respondeu às excepções invocadas pelos Réus, concluindo pela improcedência das excepções da litispendência e da caducidade por eles invocadas.
Por decisão proferida em 7 de Outubro de 2019, a 1ª Instância julgou improcedente a exceção dilatória da litispendência invocada pelos Réus, mas suspendeu a instância até ser decidido o incidente que corre termos no apenso G, com fundamento de que existe um nexo de prejudicialidade entre o objeto desse incidente e o objeto da presente ação, e indeferiu o pedido da Autora para que se procedesse à imediata restituição àquela das acções.
Inconformados com a decisão que julgou improcedente a exceção dilatória da litispendência e que suspendeu a instância, os Réus AA e Massa Insolvente interpuseram recurso dessa decisão, tendo, por acórdão desta Relação, proferido em 23 de Janeiro de 2020, transitado em julgado, a apelação sido julgada improcedente e, em consequência, confirmado o despacho recorrido.
Por acórdão proferido por esta Relação em 6 de Fevereiro de 2020, transitado em julgado, foi julgado extinto o incidente deduzido pela aqui Autora ao abrigo do disposto no art. 144º do CIRE, a correr termos no apenso G, com fundamento que o direito nele exercido pela aí Requerente (aqui Autora) se encontrava extinto, por caducidade.
Realizada audiência final, foi proferida sentença julgando a acção procedente e declarando que a Autora é legítima proprietária das acções apreendidas pela administradora de insolvência e condenando a Ré Massa Insolvente a restituir à Autora as ditas acções.
Interpuseram AA e Massa Insolvente de AA recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão datado de 20 de Outubro de 2022, julgado procedente a apelação e, consequentemente, julgado improcedente a presente acção.
Veio a A. Unilec, S.A., interpor recurso de revista, apresentando as seguintes conclusões:
I.    Discute-se na doutrina e na jurisprudência se a transmissão de ações ocorre por mero efeito do contrato, nos termos do art. 408.º do Código Civil Português, ou se depende da observância das formalidades exigidas pelo art. 102.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários, não existindo, no nosso ordenamento jurídico, um tratamento unívoco.
II.   Para a maioria da doutrina portuguesa, quer a tradicional, quer a mais recente, a transmissão da propriedade das acções decorre diretamente do contrato.
III.  Na medida em que, o contrato de compra e venda assume-se, na maioria da doutrina portuguesa, como um contrato real quoad effectum, isto é, entende-se que, vigora no nosso ordenamento jurídico o sistema do título conexo com um princípio de consensualidade e de causalidade, pelo que a compra e venda constitui um negócio suficiente para a transferência da propriedade e que não é necessário outro negócio que opere essa transferência.
IV. Relativamente aos valores mobiliários titulados fora de sistema centralizado, caso sejam ao portador, a lei exige no artigo 101.º do Código dos Valores Mobiliários a entrega do título ao adquirente ou ao depositário por ele indicado e, caso sejam nominativos, a lei contempla, no artigo 102.º do Código dos Valores Mobiliários, a declaração de transmissão, escrita no título, a favor do transmissário, seguida de pedido de registo junto do emitente ou junto de intermediário financeiro que o represente.
V.  Assim, no caso dos contratos de compra e venda de acções, a legislação contempla algumas especificidades que suscitam dúvidas sobre o exacto alcance da sua eficácia -real ou meramente obrigacional.
VI. Pelo que, na doutrina e na jurisprudência discute-se se a compra e venda de valores mobiliários, tal como a compra e venda comum, assenta numa compra e venda real, que obedece ao chamado “sistema do título” (ou seja, a propriedade ou a titularidade do direito transmitem-se automaticamente por mero efeito do contrato, não carecendo de outro acto, pois basta o acordo de vontades – a consensualidade – para que se verifique que o efeito translativo – a causalidade) ou antes ao chamado “sistema do título e do modo – registo”.
VII. A doutrina portuguesa tradicional e ainda sustentada na doutrina portuguesa, tem defendido que o contrato de compra e venda de acções terá, tal como a compra e venda comum, eficácia real, de acordo com as normas gerais do Código Civil, sendo os actos subsequentes exigidos pelo Código dos Valores Mobiliários, nomeadamente, o registo na conta do adquirente, nas acções escriturais ou nas acções tituladas integradas em sistema centralizado (artigo 80.º), a entrega, nas acções tituladas ao portador (anterior artigo 101.º), ou a declaração de transmissão, seguida de registo, nas acções tituladas nominativas (artigo 102.º), meros requisitos de legitimação do adquirente para o exercício dos respectivos direitos sociais.
VIII. Rejeita-se a tese da eficácia meramente obrigacional do contrato de compra e venda de acções, segundo a qual, o Código dos Valores Mobiliários, sendo lei especial e ao não se bastar com a celebração do contrato de compra e venda de acções para a transmissão das mesmas, exigindo ainda o registo (nas acções escriturais), a entrega do título (nas acções tituladas ao portador), e a declaração de transmissão e o registo (nas acções tituladas nominativas), teria estabelecido uma verdadeira excepção ao princípio da eficácia real da compra e venda consagrado no artigo 408.º, n.º 1 do Código Civil.
IX. Na medida em que, a prática dos actos jurídicos previstos no Código dos Valores Mobiliários (registo na conta, entrega do título, endosso ou declaração de transmissão e pedido de registo) – que constituem aquilo que pode ser designado por “modo” – teriam, assim, que acrescer ao negócio transmissivo ou causa final, com vista à transmissão das acções.
X.  Ou seja, as exigências formuladas no Código dos Valores Mobiliários seriam, não um mero pressuposto formal para a transmissão, mas um verdadeiro pressuposto material ou constitutivo da transmissão das acções e, em todo o caso, não apenas exigível para o exercício dos direitos titulados pelas acções: a própria transmissão dos direitos estaria constitutivamente dependente do cumprimento daquelas formalidades.
XI. Se assim fosse, daqui decorreria então que, a mera celebração de um contrato de compra e venda de acções, por si só, nunca faria surgir, na esfera jurídica do respectivo adquirente, o direito de propriedade sobre as acções, não sendo assim a mera celebração do contrato entre o transmitente e o adquirente, desacompanhada do “modo”, suficiente para fazer operar a transferência para o adquirente da propriedade (ou titularidade) das acções.
XII. A tese da eficácia meramente obrigacional confunde, por um lado, a componente da titularidade das acções, que se transmite com a mera celebração do negócio de compra e venda, com a componente da legitimação dos direitos sociais, que pressupõe o cumprimento do respectivo modo ou formalidade.
XIII. Contrariamente aos contratos reais quoad constitutionem, o contrato de compra e venda de acções – tal como a compra e venda de coisa – não exige, seja qual for a modalidade de acções em causa, a prática de actos jurídicos (nomeadamente a entrega ou traditio das acções) para a perfeição do negócio ou seu processo formativo.
XIV. Numa compra e venda comum, a titularidade de uma coisa ou de um direito sobre uma coisa não está dependente da entrega da coisa, sendo a aquisição da propriedade da coisa ou da titularidade do direito uma mera decorrência da celebração do respectivo negócio.
XV.  Ora, o mesmo deverá suceder em relação à compra e venda de acções, uma vez que não se encontra actualmente nada na lei substantiva que estabeleça que a transmissão da propriedade das acções seja afectada na sua validade e eficácia em caso de incumprimento de formalidades legalmente previstas, tal como também não se prevê que a transmissão possa vir a ser imposta na falta de um negócio capaz de funcionar como relação fundamental subjacente e causa transmissiva dos direitos que as acções representam.
XVI. Como afirma Vaz Serra, seguindo Alberto dos Reis, apesar de poderem ser identificadas soluções diferentes noutros ordenamentos jurídicos e de as normas então vigentes do Código das Sociedades Comerciais e, mais tarde, também do CMVM, exigirem o cumprimento de um conjunto de formalidades para a transmissão de acções, tais formalidades deveriam ser entendidas apenas como exigências que teriam de ser respeitadas com vista ao exercício dos direitos já transmitidos por mero efeito do contrato, tendo tal posição sido seguida por outros autores comercialistas mais recentes, nomeadamente por Vasco Lobo Xavier, Osório de Castro e Paula Costa e Silva.
XVII. Pedro de Albuquerque, mais recentemente, através de uma análise minuciosa da evolução histórica e da noção, forma e formalidades, classificação e elementos essenciais da compra e venda no sistema do Código Civil vigente, veio também defender que, os elementos examinados permitem hoje concluir que “também no domínio dos valores mobiliários não lugar para uma compra e venda meramente obrigacional. A compra e venda, entre nós, tem sempre eficácia real”, contrapondo cada um dos argumentos esgrimidos a favor da tese da eficácia obrigacional da compra e venda de acções:
a) Os seus defensores baseiam-se muitas vezes numa comparação com o Direito espanhol insuficientemente aprofundada;
b) A tentativa de incluir as exigências do Código dos Valores Mobiliários nas próprias excepções do artigo 408.º, n.º 1 do Código Civil, como sugerem alguns partidários da tese da eficácia obrigacional, esquece que as excepções habitualmente incluídas respeitam a situações de alienação que são conformes com o sistema do título e não representam cedências ou aproximações aos sistemas do modo ou do título e do modo;
c) Os valores mobiliários, não comportam duas realidades (a titularidade e a legitimação), como existem inclusive dados no próprio Código dos Valores Mobiliários que demonstram que as situações podem efectivamente não coincidir, podendo, por exemplo, uma das realidades ser inválida e, ainda assim, a outra subsistir;
d)  A circunstância de poder ocorrer a transmissão da titularidade das acções desacompanhada da possibilidade de exercício de direitos sociais não torna, contrariamente ao que alguns partidários da tese da eficácia obrigacional querem fazer crer, o direito do adquirente das acções desprovido de conteúdo ou o adquirente desprovido de quaisquer faculdades, pois o direito representado mantém-se sempre no plano substantivo apesar da representação.
XVIII. Enquanto no ordenamento jurídico alemão a compra e venda integra sempre um contrato totalmente obrigacional, “pois em caso algum deixa de existir a obrigação de entregar a coisa, ou se efectua, pelo contrato e em vez da dita obrigação, a transmissão da propriedade da coisa”, o mesmo não sucede no ordenamento jurídico português, na medida em que, “a transmissão das acções opera, em princípio, por força do contrato transmissivo, típico ou atípico, que tenha sido concluído entre as partes”, tanto mais que – conforme refere Menezes Cordeiro – trata-se “de regra tradicional dos países latinos, genericamente consagrada no artigo 408.º/1 do Código Civil”.
XIX. Como explica Oliveira Ascensão, “Vigora no nosso direito o princípio da consensualidade. Os contratos produzem o seu efeito por mero acordo das vontades (art. 408/1). Ainda que tenham por objecto uma coisa, não reclamam para a sua perfeição a entrega da coisa (ou o registo, tratando-se de coisa registável). Mas em certos casos, limitados embora, a lei exige ainda um acto formal, como determinante da transmissão. (…) Esta situação, repare-se, nada tem que ver com a situação, estranha a nossos olhos, vigente nos direitos germânicos. Nestes supõe-se, além do contrato obrigacional, a Einigung, que seria o acordo transmissivo do direito real; a que se seguiria então a entrega ou o registo. Seria um acto abstracto, porque independente da valia do negócio obrigacional de transmissão. Não é o que se passa nas ordens latinas, em que a valia da transmissão continua dependente da valia do negócio-base (compra e venda, por exemplo), mesmo quando se exige ainda um negócio que      corresponda  à traditio romana para a transmissão da propriedade.
XX. Ademais, a defesa do critério dos formalismos de forma automática e enceguecida do Direito dos Valores Mobiliários como validade e eficácia da transmissão das acções em derrogação dos institutos civis previstos no Direito Privado, no qual a doutrina tradicional entende que caberá o próprio Direito dos Valores Mobiliários, implica uma solução contrária à tutela dos interesses dos adquirentes de acções e favorável ao alienante que tenha incumprido as exigências previstas no Código dos Valores Mobiliários, favorecendo assim o prevaricador.
XXI. Ora, no caso sub judice, está provado que existe um contrato válido celebrado no dia 16 de Abril de 2013, entre a A. Unilec e o insolvente AA, denominado “Contrato de Cessão de Acções e Acordo”, nos termos do qual, o requerido AA cedeu 25.500 (vinte e cinco mil e quinhentas) ACÇÕES NOMINATIVAS da categoria B, de valor nominal de € 1,00 (um euro), cada uma, do capital social da sociedade L..., S.A., à sociedade Requerente e, como contrapartida, o R. AA recebeu, à data, o valor de € 127.500,00, nunca tendo colocado o negócio em causa até à apreensão dessas acções pela Sra. A.I.
XXII. Está igualmente provado que, à data da referida cessão, a CEMG detinha um penhor sobre as referidas acções para garantia de todas as responsabilidades no valor global de € 5.300.000,00 e, que, por esse motivo, estavam depositadas na referida instituição bancária nunca podendo estar na posse da transmissária Unilec, a fim de cumprir quaisquer formalidades.
XXIII. Não obstante, a Unilec, S.A. solicitou à CEMG, por diversas vezes, que procedesse ao averbamento da transmissão das acções objecto de cessão, embora não fosse sua obrigação, esta tudo fez para que o credor pignoratício, que estava na posse das mesmas, procedesse ao referido acto material de forma devidamente atempada e oportuna.
XXIV. O Tribunal da Relação de Guimarães com base na matéria dada como provada confirma a validade do negócio, mas coloca, erradamente, em causa a eficácia do mesmo, pela falta de cumprimento do “modo”, das formalidades previstas no art. 80.º, 101.º e 102.º, n.ºs 1 e 2 do CVM, adotando a tese de efeito meramente obrigacional do contrato de compra e venda.
XXV. Sucede que, a legitimidade para requerer o registo das acções impendia, no caso em concreto, unicamente sobre a CEMG, por ser junto desta que as acções se encontravam depositadas na carteira de títulos titulada por AA, a quem igualmente competia apor a declaração escrita de transmissão, nessas acções, a favor da Unilec, S.A, conforme aliás decorre do próprio acórdão recorrido.
XXVI. Impendia sobre a CEMG a obrigação de lavrar a declaração de transmissão das acções para a Unilec, processando-se essa declaração de transmissão por escrito, aposta nas próprias ações, uma vez que era depositária das acções objeto de transmissão inter vivos, (al. a) do n.º 2 do art. 102.º do CVM).
XXVII. Então, se o averbamento das acções competia, por um lado, ao transmitente AA e, em sua substituição, no caso em concreto, ao credor pignoratício, CEMG, nos termos do art. 102.º do CVM, não se vislumbra como é que a transmissária Unilec, S.A., deveria e, acima de tudo, poderia ter cumprido as formalidades que constituem o “modo” defendido pela tese do efeito meramente obrigacionista do contrato de compra e venda.
XXVIII.   O acórdão recorrido entra também em contradição quando diz que o registo das acções deveria ter sido promovido também pela CEMG, na qualidade de credor pignoratício, mas acaba por concluir pela inexistência de registo das acções por falta de prova pela transmissária, quando não seria ela incumbida de fazer esse registo, nos termos do teor do acórdão.
XXIX.  Contudo, a este respeito, sempre se dirá que, ao contrário do entendimento do acórdão recorrido, a transmissão das acções em causa foi devidamente registada, conforme consta do livro de registo das ações da L..., onde na sua página 23, com os números de ordem de registo ...7 a ...4, se encontra devidamente inscrita e identificada a transmissão das ações do R. Insolvente AA a favor da Unilec. em suporte informático, pelo que o livro de registo não carece de ser assinado, cumprindo todos os demais pressupostos legais exigidos pela Portaria 290/2000, de 25 de maio.
XXX. Pelo que, esteve bem o tribunal de 1.ª instância em considerar o documento junto para prova da facticidade da alínea R) como relevante e atendível, até porque o mesmo pertence à sociedade emitente L... e não à Unilec o que é mais uma razão para o mesmo seja positivamente valorado.
XXXI. O documento em causa resulta precisamente de ficheiros informáticos/anexos aprovados no modelo de registo da emissão de valores mobiliários junto do emitente, previsto no artigo 43.º do Código dos Valores Mobiliários, em suporte informático, decorrente do n.º 4 da referida Portaria.
XXXII. Mais, o registo e o acesso informático aos documentos em causa é feito nos termos do n.º 2 da Portaria, mas naturalmente que a A. não pode expor os acessos/passwords para o efeito, nem divulgar a cópia de segurança, subvertendo precisamente a questão de segurança informática, nem os Recorrentes assim o solicitaram ao tribunal, pelo que o tribunal de 1.ª instância, no âmbito do principio da livre apreciação da prova valorou o documento como prova suficiente, considerando como provado os factos decorrentes da al R).
XXXIII.  Se o registo não estivesse efetuado e demonstrado, a CEMG não teria procedido ao averbamento das ações em nome da transmissária Unilec.
XXXIV. Todavia, mesmo que assim não se considere, não há qualquer invalidade ou inexistência do negócio pelo facto de eventualmente não estarem cumpridas as formalidades integrantes do modo.
XXXV. Efetivamente, no caso sub judice estão em causa acções tituladas nominativas, sendo-lhes aplicável o regime do art. 102º do CVM, o que no caso autos, oneraria assim o Insolvente transmitente AA e não a transmissária (nem a sociedade emitente), com o cumprimento do modo, conforme já referido.
XXXVI. Não deixa de ser notório, tendencioso e pouco sério o timing em que surge a alegação de negócio inválido e ineficaz pelo R. AA, decorridos mais de 4 anos após a celebração do negócio e tão só após estar declarado insolvente e, sem nunca, em momento anterior, o ter colocado em causa.
XXXVII. Donde, a referida alegação pelo transmitente AA, não deveria ser sequer tutelável pelo direito, atento o disposto no art. 334º do CC, sendo esta alegação um caso grosseiro de pleno abuso de direito.
XXXVIII. Note-se que, na situação em apreço, quer a transmissária Unilec, quer a sociedade emitente, L..., quer o credor pignoratício, CEMG, todos com intervenção, de forma direta e indireta, nestes autos vieram pugnar pela validade do negócio de transmissão das acções.
XXXIX. É o Insolvente transmitente que põe em causa tal negócio e somente após a apreensão das ações pela Sra. A.I. no processo de insolvência e, esta última, com o total desrespeito pelos direitos tutelados da Unilec, numa visão puramente oportunista de aproveitamento indevido da alegada falta de cumprimento de formalismos.
XL. E, conforme já explanado, à Unilec estava vedada a possibilidade de cumprimento do formalismo do averbamento das ações, na medida em que, as acções estão depositadas, não num cofre da sociedade emitente, como é habitual, mas sim numa conta de valores mobiliários constituída pela CEMG, porque se encontravam dadas de penhor para garantir um financiamento à sociedade emitente. Sendo que, quem deu as ações em penhor foi o próprio Insolvente AA, enquanto administrador da sociedade emitente.
XLI. Ora, se o credor pignoratício, detentor das acções, não procede à alteração do titular, mesmo depois de conhecer e ratificar a transmissão (factos provados), não se vislumbra como pudessem a transmissária Unilec, S.A. ou a sociedade emitente – que não têm os títulos – inscrever nos títulos o nome do novo titular.
XLII. E se a prestação é impossível por facto não imputável ao devedor (foram os transmitentes que colocaram as acções no Banco), ela extingue-se (art. 790º do CC).
XLIII. Por outro lado, não poderá permitir-se que quem deu causa à impossibilidade venha agora colher disso benefício. Como afirma WEBBER, apud MENEZES CORDEIRO, in: Da Boa Fé No Direito Civil, pág. 754, «[n]inguém pode exercer um direito ou tomar uma posição jurídica com consequências, em contradição com o comportamento anterior, quando este justifique a conclusão de que não iria fazer e ele, nessa ocasião, tenha despertado na outra parte uma determinada confiança».
XLIV. A proibição de venire contra facto proprium representa, pois, um modo de exprimir a reprovação por exercícios inadmissíveis de direitos e posições jurídicas.
XLV. Perante comportamentos contraditórios, a ordem jurídica não visa a manutenção do status gerado pela primeira actuação, que o direito não reconheceu, mas antes a protecção da pessoa que teve por boa a actuação em causa.
XLVI. Ou seja, mesmo que se entendesse que o registo e o averbamento nos títulos eram determinantes para a concretização da transmissão das acções – respeito pelo “modo”-, considerando que foi o próprio transmitente AA quem entregou as acções ao Banco, em virtude do penhor, e que as mesmas nunca poderiam estar na posse da transmissária Unilec, as razões justificativas do não registo e da não inscrição do novo titular obstariam à recusa da validade e eficácia do negócio com esse fundamento.
XLVII. Assim, não se pode aceitar o entendimento do Tribunal da Relação no sentido de não ter operado a transferência da propriedade das ações por falta de cumprimento do modo, quando as formalidades que constituem esse modo não eram da incumbência da Recorrida e não estavam ao seu alcance.
XLVIII. Decorre ainda do acórdão que o averbamento das ações foi efetuado antes da apreensão das ações pela Sra. A.I., o que significa que, aquando da apreensão das ações já constavam das mesmas outros titulares inscritos que não o insolvente AA, o que juntamente com o contrato de compra e venda oportunamente enviado à Sra. A.I. deveria ser motivo suficiente para a não apreensão das ações.
XLVIII. Pelo que, salvo o devido respeito, entende-se que existe mais uma incoerência na decisão do acórdão.
L. Se, aquando da data da apreensão das ações, inclusivamente já estaria cumprido pelo credor pignoratício uma das formalidades que integra a própria tese do título e o modo (ponto S com aditamento do ponto AB), a Sra. Administradora de Insolvência não teria qualquer fundamento legal para apreender as ações .
LI.  Pelo que, independentemente da tese defendida, a verdade é que, as ações à data da apreensão estavam já averbadas em nome dos atuais titulares e proprietários, sendo a apreensão ilegal e manifestamente abusiva, por falta de fundamento legal.
LII. Como ainda se constata que, afinal, o “modo” estará cumprido.
LIII. Todavia, mesmo que se considere a não existência do cumprimento das formalidades inerentes ao “modo”, a verdade é que existe um contrato válido de compra e venda de ações nominativas, que integra no ordenamento jurídico português - tal como a compra e venda comum -, um verdadeiro contrato real quoad effectum, tendo-se operado, assim, a transmissão da titularidade das acções por mero efeito da celebração do contrato (artigos 408.º e 879.º do Código Civil).
LIV. É certo que, em face do teor do artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil, o julgador tem o dever de tomar em consideração os casos que mereçam tratamento análogo, com vista a obter uma interpretação e aplicação uniformes do Direito.
LV. Porém, não se pode dizer que, nesta matéria, o entendimento que tem vindo a ser adoptado em algumas decisões corresponda à tese maioritária e preponderante na doutrina.
LVI. Aliás, muitas vezes, o referido entendimento não integra sequer a via de solução adequada para o problema jurídico concretamente suscitado, o que não pode deixar de colocar fundadas reservas quanto à sua bondade na medida em que as soluções concretas para os problemas trazidos aos tribunais são e devem ser procuradas a partir da realidade e não a partir de conceitos abstractos.
LVII. Não podemos deixar de salientar que, com base numa tese que se fundamenta num formalismo, o acórdão recorrido acabe por beneficiar de forma injusta, a parte que cedeu as ações validamente em 2013 (!), recebeu o preço acordado e durante mais de 4 anos nunca colocou o negócio em causa, estando o mesmo mais do que consolidado, e vendo agora a transmissária as suas expetativas negociais e comerciais completamente frustradas e defraudadas por motivos que nem sequer lhe são imputáveis.
LVIII. Entendemos que, com o acórdão recorrido, existe uma violação clara da proteção e da segurança jurídica da transmissária das ações.
LIX. Entendemos ter demonstrado argumentos teóricos e fatuais que, embora desconsiderados por alguns setores da doutrina e da jurisprudência, se mostram decisivos para recusar a aplicação no caso em concreto da tese da eficácia meramente obrigacional.
LX. A este douto tribunal, a quem cabe a missão de relevo e destacada na interpretação e aplicação do Direito, mas da Justiça também, pede-se uma intervenção criadora no direito do caso em concreto que decide, e que não compactue com situações claras de aproveitamento nítido de um formalismo discutível.
LXI. A este propósito, cita-se as palavras de Manuel de Andrade: “A aplicação das leis compete principalmente aos juízes, aos magistrados e funcionários administrativos e também, de certa maneira, aos advogados. Mas os juízes é que têm nisto a «parte suprema»; eles é que estão no primeiro plano e com grande relevo, porque as suas decisões têm força vinculativa. Por isso terei em vista, acima de tudo, a aplicação judiciária das leis. Claro que o juiz não pode prescindir dos resultados da ciência jurídica. Tem mesmo de realizar actividade científica, embora socorrendo-se dos trabalhos dos juristas doutrinários até onde puder ser. Tem de realizá-la, desde logo, quando o caso, como tantas vezes sucede entre nós, ainda não esteja tratado ou esteja pouco tratado na literatura jurídica. E tem de realizá-lo sempre como controlo dos resultados fornecidos pela jurisprudência teórica. Para aplicar devidamente a lei ao caso proposto é-lhe sempre indispensável, por consequência, de' nir, melhor ou pior, as suas próprias conclusões científicas; e bem pode ser que, pela sua experiência, como que directa, das realidades práticas e pela necessidade de talhar na carne viva dos interesses humanos, ele seja levado, acertadamente, a conclusões diversas das sugeridas pela doutrina.”.
LXII. Com isto, pretende-se sobretudo evidenciar junto deste Tribunal a necessidade de ser tomada uma decisão que possa ser considerada justa em face das coordenadas do sistema jurídico aplicáveis em matéria de compra e venda de acções, mas também das circunstâncias concretas do caso sub judice.
LXIII. O Tribunal a quo efetuou uma conscienciosa ponderação dos elementos trazidos aos autos, bem como das circunstâncias que os envolveram, conduzindo a uma decisão objetiva, justa e material sobre o mérito da causa.
LXIV. Em suma, a sentença de 1.ª instância não padece de qualquer erro de direito ou de julgamento, e deve, por isso, manter-se e, por conseguinte,
LXV. Declarar-se a A. Unilec como legitima proprietária e titular das ações apreendidas pela Sra. A.I. no processo de Insolvência de AA e, condenar-se a Massa Insolvente a restituir à Unilec as ações que se encontram apreendidas.
Contra-alegaram ambas as RR. pugnando pela improcedência do recurso de revista.
Apresentaram as seguintes conclusões:
1 - A bem estruturada e melhor fundamentada decisão colegial proferida pelos Exmos. Juízos Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães, não merece qualquer reparo ou censura, pelo que é expressamente aqui secundada pelo Recorrido.
2 – Não existe contradição entre o Acórdão proferido nos autos, com o Acórdão da Relação de Lisboa, de 07.03.1995, processo 0083011 (Pais do Amaral), nem com o Acórdão da Relação de Coimbra, de 03.06.2014, proc. 1156/05.1TBVIS-A.C1 (Barateiro Martins), ambos disponíveis em www.dgsi.pt, porquanto, o primeiro, foi proferido antes da entrada em vigor do DL 486/99 de 13 de Novembro (Aprova o novo Código dos Valores Mobiliários), que revogou os artigos 326º (Transmissão de acções nominativas) e 327.º (Transmissão de acções ao portador) do CSC e, o segundo, reporta-se a acções tituladas ao portador, no âmbito de um processo de inventário, discutindo-se a questão do ónus da prova, acções, estas, que inexistem no nosso ordenamento jurídico por força da revogação do artigo 101.º do CVM operada pela Lei 15/2017, de 3 de Maio (cfr. art. 6.º do diploma).
3 - A Recorrente para refutar a decisão que sindica apoia-se em teses doutrinárias e jurisprudenciais emanadas antes da entrada em vigor do novo código dos valor mobiliários, seja na sua versão original, quer com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei 15/2017 de 03.05, que, assim, que se tornaram desajustadas face ao regime jurídico vigente.
4 - Tivesse o legislador entendido manter o regime que se encontrava em vigor antes da entrada do DL 486/99 de 13 de Novembro, é inequívoco que teria mantido inalterado o teor dos artigos 327º e 327º do CSC ou reproduzido o mesmo transpondo-o para o novo diploma – o que não aconteceu.
5 - Assim, ao abrigo do novo regime estatuído para a transmissão de acções tituladas nominativas (CVM), quando o contrato de compra e venda tenha por objecto valores mobiliários titulados nominativos, a sua transmissão só se efectiva quando as formalidades essenciais forem cumpridas, ou seja, para além de existir o negócio jurídico, tem de se verificar a declaração de transmissão nas ações tituladas (1ª parte do n.º ... do art. 102.º do CVM), efetuada por uma das entidades referidas nos n.º 2 e 3 do 102.º do CVM (no caso dos autos, a CEM, devendo, posteriormente, tal transmissão ser registada (2ª parte do n.º 1 do CVM).
6 – O contrato de compra e venda de acções tituladas nominativas não é um contrato quod effectum, por força das disposições conjugadas da parte final do n.º 1 do artigo 408º do Código Civil e do n.º 1 do artigo 102º do CVM, sendo requisitos constitutivos da transferência da propriedade sobre tais ações tituladas nominativas, a declaração de transmissão escrita no título e o registo dessa transmissão junto da entidade emitente dessas ações.
7 – Destarte, tendo resultado provado nos autos que - a “declaração de transmissão escrita nas ações, a que se alude em S) dos factos provados, que consta de fls. 73, 75 verso e 78 dos autos, foi nelas aposta em data posterior ao dia 09/06/2017 e antes do dia 12/09/2018”; que a declaração da insolvência do Recorrente AA, foi proferida em 09/02/2017 e as acções em causa faziam parte de uma carteira de títulos daquele; que as ações em causa foram apreendidas para a Massa Insolvente de AA em 12/09/2018, quando continuavam empenhadas junto da CEMG; e, por outro lado, não resultando provado que a transmissão das ações em causa foi registada informaticamente - então tal transmissão não operou.
8 – Sem prescindir, ainda que se considerasse que as referidas normas do CVM não consagram uma exigência formal para a transmissão, enquanto condição de validade, outrossim de um requisito de produção de efeitos, então, ainda assim, a alegada transmissão não produziu efeitos perante a sociedade, nem perante terceiros, sendo ineficaz perante o Tribunal, a Administradora da Insolvência e perante os credores do insolvente
9 – A recorrente veio, a final, arguir Abuso de Direito, adução que não pode ser atendida ou conhecida, porquanto e sem mais, nunca foi por aquela alegada nos seus articulados.
10 – Ainda que assim não se entendesse, tal excepção teria de improceder, desde logo porque o “beneficiário” da douta decisão colegial em crise é a massa insolvente, sendo certo que, por força da declaração de insolvência o insolvente ficou privado dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa, poderes estes, que passaram a competir ao administrador da insolvência (art. 81.º n.º 1 do CIRE).
I.    A Autora/recorrente, na mesma linha do entendimento preconizado pelo Tribunal de 1ª instância, defende, relativamente à questão decidenda, sobre a validade e eficácia do negócio da cessão das ações, objecto dos presentes, ocorrido em 2013, entre o Insolvente e a Autora, que a transmissão das ações opera APENAS por mero efeito do contrato;
II.  Sucede que, tal tese, seguida pela Autora/Recorrente e, também, pelo Tribunal de 1ª instância, está longe de ser, e não é, seguida pela jurisprudência maioritária dos tribunais superiores, que vêm defendendo que a transmissão das ações só opera por força decontrato válido e do modo;
III. Foi, pois, esta tese e consequente entendimento maioritário, da doutrina e da jurisprudência, que, em sede de recurso, acabou por ser validade pelo Tribunal recorrido, ao caso dos autos, tendo o mesmo decidido, sobre tal questão, o que, sumariamente, se transcreve:
1- O registo da transmissão, inter vivos, fora do mercado bolsista, de ações tituladas nominativas junto da entidade emitente dessas ações, previsto no art. 102º, n.ºs ... e ..., al. a) do CVM, tem de ser provado através de certidão emitida pela entidade registadora (cfr. art. 78º, n.º 1 do CVM). Trata-se de uma formalidade ad probationem, pelo que a falta de certidão comprovando a existência desse registo apenas pode ser substituída pelos meios de prova estabelecidos no art. 364º, n.º 2 do CC.
2- Na sequência da entrada em vigor do CVM, à transmissão de ações escriturais (que são necessariamente nominativas) ou tituladas (que até à entrada em  vigor, em 04 de maio de 2017, da Lei n.º 15/2017, de 03/05, que procedeu à revisão do CVM, podiam ser nominativas ou ao portador), por ato inter vivos e fora do mercado bolsista, não basta à transmissão dessas ações para a propriedade do transmissário a existência de título válido de transmissão celebrado entre transmitente e transmissário, mas ainda é necessário o “modo” prescrito nos arts. 80º, 101º e 102º do CVM para os vários tipos de ações, os quaissão requisitosespeciaisconstitutivosdatransferênciadapropriedadedas ações para o transmissário, sem cuja prova a propriedade das ações não se transfere para o transmissário. Logo, para além do título é necessário o “modo”paraque atransmissão dapropriedadedasaçõesseopere paraaesfera jurídico-patrimonial do transmissário.
3- A transmissão de ações tituladas nominativas, por ato inter vivos, fora do mercado bolsista, depende de título válido de transmissão celebrado entre transmitente e transmissário (compra e venda, doação, permuta, etc.) e do “modo”, isto é, de declaração de transmissão, escrita no título, a favor do transmissário, mas também do registo da transmissão junto do emitente ou do intermediário financeiro que o represente.
4- O“modo”não érequisito devalidadedo “título”, o qual, sem“modo”éválido, mas opera efeitos meramente obrigacionais, não operando a transferência da propriedade das ações dele objeto para o transmissário.
5- Por conseguinte, estando apurado que, por acordo escrito, celebrado em 16/04/2013, o recorrente declarou vender determinado número de ações tituladas nominativas à recorrida, que lhas declarou comprar e cujo preço pagou, que se encontravam então empenhadas a favor de uma instituição bancária, junto de quem se encontravam depositadas, tendo, entretanto, o recorrente (transmitente das ações) sido declarado insolvente, sem que, à data da declaração da insolvência, a entidade bancária (depositante das ações) tivesse lavrado a declaração de transmissão, escrita nas ações, a favor da recorrida (transmissária e compradora das ações) e sem que tivesse sido provado o registo dessa transmissão das ações junto da entidade emitente, a propriedade de tais ações permaneceu na titularidade do transmitente (recorrente), pelo que integra a massa insolvente deste.
IV. No mesmo sentido, veja-se:
Acórdão do STJ de 15-05-2008, proferido no processo 08B153, que considerou, a tal propósito, o que se transcreve:
1. A transmissão das acções tituladas e escriturais, fora do mercado bolsista, só fica perfeita com a entrega (acções tituladas ao portador), a declaração de transmissão escrita no título (acções tituladas nominativas), ou o registo em conta (acções escriturais); mas estes actos – que integram e traduzemo modo – não bastam, só por si, para operar a transmissão, que exige que eles se apoiem num título válido, num negócio jurídico, o negócio causal subjacente.
2. Tal significa que a transmissão não se opera por mero efeito do contrato, nem apenas e só por efeito do modo, só se efectuando por força do contrato e do modo.
3. A compra e venda de acções não é um contrato real quoad effectum – é um contrato com efeitos imediatos meramente obrigacionais, como os contratos do mesmo tipo tendo por objecto títulos de crédito em papel, para cuja transmissão se exige a tradição, o endosso ou acto equivalente.
4. Os actos exigidos por lei, e que integram o modo, não se referem ao contrato, mas sim à transmissão da propriedade das acções: são actos essenciais para a transmissão destas, mas não contendem com a validade formal do contrato.
5. Assim, um contrato de compra e venda de acções ao portador não deixa de ser válido pelo facto de o transmitente não ter feito entrega, ao adquirente, dos títulos representativos das acções; e este pode requerer judicialmente o cumprimento do contrato, a entrega das acções.
(Acórdão do TRC, datado de 15-11-2016, no proc. 2355/11.2TBPBL.C1, que considerou o que se transcreve:
2. - A transmissão das acções tituladas e escriturais, fora do mercado bolsista, só fica perfeita com a entrega (acções tituladas ao portador), a declaração de transmissão escrita no título (acções tituladas nominativas), ou o registo em conta (acções escriturais); mas estes actos – que integram e traduzemo modo – não bastam, só por si, para operar a transmissão, que exige que eles se apoiem num título válido, num negócio jurídico, o negócio causal subjacente.
3.- A compra e venda de acções não é um contrato real quoad effectum – é um contrato com efeitos imediatos meramente obrigacionais, como os contratos do mesmo tipo tendo por objecto títulos de crédito em papel, para cuja transmissão se exige a tradição, o endosso ou acto equivalente.
4.- Os actos exigidos por lei, e que integram o modo, não se referem ao contrato, mas sim à transmissão da propriedade das acções: são actos essenciais para a transmissão destas, mas não contendem com a validade formal do contrato.
5. -Um contrato de compra e venda de acções ao portador não deixa de ser válido pelo facto de o transmitente não ter feito entrega, ao adquirente, dos títulos representativos das acções).
V.  Ora, ao contrário da conclusão XXVIII, defendida pela da Autora/Recorrente, não existe qualquer contradição do acórdão recorrido, uma vez que, o que vem entendido pelo Tribunal Recorrido é que:
•     sobre a CEMG impendia a obrigação legal, nos termos do disposto no art. 102º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CVM, de lavrar a declaração de transmissão, escrita nas ações, a favor da transmissária (Unilec) e de promover o respetivo registo de transmissão junto da “L...”, emitente dessas ações,
Mais,
•     a CEMG não lavrou o título de transmissão, escrita nas ações, a favor da Unilec, aquando da declaração de insolvência, em 09/02/2017, razão pela qual as ações em causa faziam parte de uma carteira de títulos de AA, ondeforamapreendidaspara a MassaInsolvente em 12/09/2018;
Considerou, ainda, o Tribunal recorrido que,
•     a CEMG só lavrou o título de transmissão escrito daquelas ações, a favor da Unilec, após 09/06/2017, ou seja, já após a declaração da insolvência do transmitente AA, e antes de 12/09/2018, isto é, antes dessas ações terem sido apreendidas para a Massa Insolvente (cfr. alíneas E, G, Z e AB dos factos apurados).
VI. Tal factualidade,dadacomo provadapelo Tribunal Recorrido,em nadacolide ou contradiz o facto de, ao mesmo tempo, o Tribunal recorrido ter entendido que a Autora/recorrente não logrou fazer prova e era seu ónus fazer, nos termos do disposto no art. 342º, n.º 1 do CC, que na sequência do acordo escrito de cessão das ações ( 16 Abril de 2013) e antes da insolvência existia, quer a declaração de transmissão, escrita no título, a favor da transmissária Unilec, no caso de transmissão de ações tituladas nominativas por ato inter vivos, quer o registo dessa transmissão junto da entidade emitente dessas ações (a “L...”);
VII. Pelo que, também, ao contrário das conclusões XXIX,  XXXI e XXXII da Autora/Recorrente, e como bem entendeu o Tribunal recorrido, o registo da transmissão das ações em causa não se mostra realizado/provado, como se transcreve:
“(...)O registo de valores mobiliários junto do emitente encontrava-se, à data da transmissão das ações para a apelada Unilec (e contina atualmente), regulado na Portaria n.º 290/2000, de 25/05, a qual veio substituir o livro de registo de ações a que se reportava o art. 305º do Cód. Soc. Comerciais (CSC), revogado pelo DL. n.º 486/99, de 13/11, que aprovou o CVM, passando essa matéria a estar prevista no art. 43º deste último Código.
Optando o emitente pelo registo em suporte informático: a) uma cópia de segurança do registo é guardada em local distinto; b) a utilização do ficheiro do registo depende de código de acesso (password) reservado a pessoas previamente determinadas; c) existem planos de contingência para a proteção do registo em casos de força maior; d) são assegurados níveis de inteligibilidade, de durabilidade e de autenticidade equivalentes aos certificados no registo em suporte de papel; e e) aplicam-se as regras legais e regulamentares relativas à certificação de elementos eletrónicos, nomeadamente no que respeita à intervenção de autoridades credenciadoras, à emissão de chaves e certificados, bem como à aposição de assinatura digital (art. 2º, n.º 2 da Portaria).
Por sua vez, nos termos do disposto no art. 3º do D.L. n.º 290-D/99, de 02/08, que regula a validade, eficácia e valor probatório dos documentos eletrónicos e da assinatura digital, os documentos eletrónicos satisfazem o requisito legal da forma escrita quando o seu conteúdo seja suscetível de representação como declaração escrita (n.º 1) e, sem prejuízo do disposto no seu n.º 4 (não aplicável aos autos), quando neles seja aposta uma assinatura digital certificada por uma entidade credenciada e com requisitos previstos neste diploma, e os documentos eletrónicos contenham o conteúdo referido no n.º 1, estes têm força probatória de documento particular assinado, nos termos do art. 376º do CC (n.º 2); já tratando-se de documentos eletrónicos cujo conteúdo não seja suscetível de declaração escrita, mas em que conste a assinatura digital certificada por uma entidade credenciada e com os requisitos previstos neste diploma, tais documentoseletrónicos têm a força probatória prevista nos arts. 368º do CC e 167º do CPP (n.º 3). Finalmente, os documentos eletrónicos aos quais não seja aposta uma assinatura digital certificada por uma entidade credenciada e com os requisitos previstos neste diploma, ficam sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova (n.º 5).
Já optando o emitente pelo registo em suporte de papel, nos termos do disposto no art. 3º da dita Portaria n.º 290/2000, os termos de abertura e encerramento do registo são assinados por quem vincule o emitente e por um titular do órgão de fiscalização, tendo do termo de abertura do registo de constar a identificação do emitente e a data das assinaturas e do termo de encerramento do registo tem de constar referência ao número de páginas que compõem o registo e a data das assinaturas.
Por último, estabelece o art. 78º, n.º 1 do CVM que o registo se prova por certidão emitida pela entidade registadora.
Decorre do exposto que a prova do registo da transmissão das ações tituladas nominativas feita pelo apelante AA para a apelada Unilec, S.A., em 16 de abril de 2013, tinha de ser feita, por imposição legal, através de certidão emitida pela entidade emitente das ações, isto é, pela L.... Está-se perante uma formalidade ad probationem, em que a ausência da certidão do registo da transmissão das ações apenas pode ser substituída por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contanto que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório (n.º 2 do art. 364º do CC).
No caso dos autos, compulsado e analisado o documento de fls. 19 a 30, verifica-se que o mesmo não consubstancia qualquer certidão emitida pela L....
Acresce que, contrariamente ao que foi alegado pela apelada e foi julgado provado pela 1ª Instância, esse documento não comprova que o registo da transmissão das ações tituladas nominativas que AA declarou, em 16 de abril de 2013, transmitir, por venda, à apelada Unilec, tivesse sido efetuado informaticamente, uma vez que, conforme consta do próprio teor do documento em referência, trata-se de um “suporte em papel que foi elaborado nos termos e para os efeitos estabelecidos na Portaria n.º 290/2000, de 25 de maio”.
Ora, tendo o registo das ações sido efetuado em suporte de papel e não tendo nesse suporte em papel sido observadas as formalidades legais prescritas no art. 3º da Portaria n.º 290/2000, dado que dos termos de abertura e de encerramento desse registo nem sequer constam as assinaturas legalmente prescritas, não podia a 1ª Instância, por um lado, ter concluído, conforme concluiu, pela prova em como “a transmissão das ações em causa foi registada informaticamente, conforme consta de fls. 19 e ss.”, uma vez que o próprio teor do documento em causa afasta a possibilidadedo registo datransmissão das ações tersido realizado informaticamente, e, por outro, também não podia concluir que o registo em suporte de papel da transmissão das ações tenha sido validamente efetuado, por faltarem a esse registo os requisitos de validade prescritos no art. 3º.
Nesta conformidade, na procedência do fundamento de recurso acabado de enunciar, conclui-se pela não prova da facticidade constante da alínea R) dos factos provados na sentença, determinando-se que esta transite para o elenco dos factos nela julgados não provados.
(...)”
VIII.  Do que se acaba de expor, resulta, absolutamente inequívoco que, ao contrário do alegado e concluído pela Autora/Recorrente, o registo da transmissão das ações não se mostra provado, pelo que, o documento junto pela Autora/Recorrente, para prova de tal factualidade, não identifica ou faz alusão a qualquer suporte informático, antes refere suporte em papel, o qual, também, não se mostra assinado por quem vincule o emitente e por um titular do órgão de fiscalização, não cumprindo, ademais, os pressupostos legais exigidos pela Portaria 290/2000, de 25 de Maio;
IX.  Acresce que, mesmo a inusitada conclusão XXXII, apresentada pela autora/Recorrente, apenas, em sede de Revista, não tem qualquer sentido, pois, quisesse, e não quis,  a Autora/Recorrente afastar a alegação de falsidade ou falta de autenticidade de documento ... junto por si com a P.I., invocada pela Ré/Recorrida, como referida em 18º supra, teria a Autora/Recorrente procedido à simples junção de certidão emitida pela entidade emitente das ações, isto é, pela L... e/ou, com menor força probatória, procedido à junção de cópia certificada/autenticada do documento de registo (informático e/ou em papel) de ações;
X.   Não existindo, em qualquer caso, como falsamente        defende a Autora/Recorrente, qualquer necessidade de revelação de informação confidencial, designadamente, códigosde acesso e/ou passwords,até porque a certificação de assinatura digital, por entidade competente, não pressupõe a divulgação de informação confidencial!
XI. No que toca à conclusão XXXIV, referida pela Autora/Recorrente, está, a mesma, em sintonia com a decisão recorrida, pois, resulta, até, do sumário do acórdão recorrido, nos pontos 3 e 4, vem assente que:
3 - a transmissão de ações tituladas nominativas, por ato inter vivos, fora do mercado bolsista, depende de título válido de transmissão celebrado entre transmitente e transmissário (compra e venda, doação, permuta, etc.) e do “modo”, isto é, de declaração de transmissão, escrita no título, a favor do transmissário, mas também do registo da transmissão junto do emitente ou do intermediário financeiro que o represente.
4 - o “modo” não é requisito de validade do “título”, o qual, sem “modo” é válido, mas opera efeitos meramente obrigacionais, não  perando a transferência da propriedade daoperando a transferência da propriedade das ações dele objeto para o transmissário.
XII. Também, a conclusão XXXV, apresentada pela Autora/recorrente, vem defendida no acórdão recorrido, como referido na conclusão V. do presente articulado;
XIII.  Sucede, porém, que por no caso dos autos não estarem cumpridas as formalidades de “modo”, a validade do negócio produz, apenas, efeitos obrigacionais entre a Autora, Unilec, e o Insolvente transmitente, não sendo tais efeitos oponíveis a terceiros, como o são, no caso, a Massa Insolvente e os Credores do Insolvente;
XIV. E, por ser assim, podia e devia, a Massa Insolvente, aqui, Recorrida, por em causa, como o fez, nos presentes, a validade e/ou eficácia plenas do negócio da cessão de ações, datado de 16 de Abril de 2013, celebrado entre o Insolvente e a Autora, Unilec;
XV. Nesta sequência, as conclusões XXXVI a XLVII, apresentadas pela Autora/Recorrente, não são aplicáveis à Recorrida, Massa Insolvente, pelo que, quanto esta, a revista, nessa parte, sempre seria, como é, improcedente, sem qualquer alteração do sentido final do acórdão recorrido;
XVI. Quanto às conclusões XLVIII e XLIX, apresentadas pela Autora/Recorrente, também, resulta evidente que, ao contrário do que vem defendido por esta, não existe qualquer incoerência na decisão do acórdão recorrido;
XVII. A tal respeito, o que vem decido no acórdão recorrido é o que, uma vez mais, se transcreve:
“(...) dado que, na altura da declaração de insolvência ainda não tinha sido lavrada pela CEMG, depositária dessas ações, a declaração de transmissão, escrita nesses títulos, a favor da Unilec, e nem sequer tinha sido efetuado o registo dessa transmissão a favor desta junto da sociedade emitente de tais ações – a “L...” (o qual permanece por demonstrar ter sido efetuado), resulta do que se vem dizendo que, ao apreender as ditas ações para a Massa Insolvente de AA, a Administradora da Insolvência não incorreu em nenhuma ilegalidade, antes padecendo a sentença recorrida, ao julgar procedente a presente ação e ao declarar que a apelada Unilec, S.A. é legítima proprietária de tais ações e ao condenar a apelante Massa Insolvente a restituí-las àquela, de erro de direito, impondo-se a sua revogação e a absolvição dos Réus do pedido. (...)”
XVIII.   Assim, relativamente       às  conclusões L a LII, apresentadas pela Autora/Recorrente, as mesmas, são despiciendas relativamente ao sentido da decisão final do acórdão recorrido, porquanto, o momento decisivo para aferir o cumprimento de todas as formalidades que integram a tese do titulo e modo, defendida no acórdão recorrido, e, bem assim, concluir-se pela legalidade, ou não, da apreensão das ações pela Sra. Administradora da Insolvência, respeita ao momento em que é declarada a insolvência, não ao momento em que as ações são, efetivamente, apreendidas, como, erradamente, defendido pela Autora/Recorrente;
XIX. Sendo certo que, no momento em que é declarada a insolvência, as ações não estavam, e não podiam estar, averbadas em nome dos atuais titulares, não resultando, assim, cumprido o “modo”;
XX.           Relativamente ao endosso, ou transmissão inscrita nos títulos/ações, o Tribunal dá como provado a matéria do ponto S da sentença proferida pela 1ª instância;
XXI. Porém, o Tribunal recorrido, acrescenta, como facto provado, que a declaração de transmissão escrita nas ações, a que se alude em S) dos factos provados, que consta de fls. 73, 75 verso e 78 dos autos, foi nelas apostaemdataposterior ao dia 09/06/2017 e antesdodia 12/09/2018
XXII. Para assim decidir, o Tribunal recorrido considerou o que se transcreve:
“(...) tal como decorre do teor do mail junto aos autos a fls. 32, em 20/08/2014, a ilustre mandatária da Unilec comunicou à depositária das ações ser “necessário proceder ao averbamento da transmissão nos títulos que se encontram empenhados junto da CEMG”, do que decorre que, o título de transmissão escrito que se encontra aposto nas ações a73, 75 verso e78 dos autos, em20/08/2014 aindanão seencontrava nelas aposto.
Acresce que, apenas em 30 de maio de 2017, a CEMG emitiu a declaração a que se alude na alínea F) dos factos provados, declarando ter tido conhecimento atempado do contrato de cessão das ações celebrado em 16/04/2013, entre a apelada (Unilec) e o apelante AA, mediante o qual este cedeu as ações à primeira, e em que declara nada ter a opor a essa cessão (alínea F) dos factos provados).
Por outro lado, conforme se extrai do teor do documento junto aos autos a fls. 651 verso e 652, apenas em 09/06/2017, a CEMG autorizou “a emissão de declaração nos termos da minuta anexa (pág. 3/3)”.
Ora, do cotejo dos elementos de prova que se acabam de identificar, decorre que apenas após 09/06/2017 (mas necessariamente antes de 12/09/2018, data em que  título detransmissão escrito das ações afavordaapeladaquenelas se encontraaposto, conforme fls73, 75 verso e 78 dos autos, uma vez que não se antolha como razoável aceitar-se que esse título de transmissão escrito tivesse sido nelas aposto antes da CEMG ter emitido a declaração de autorização de 09/06/2017, (...)”
XXIV. A Ré/recorrente, relativamente à questão a decidir, a saber: A validade e eficácia do negócio da cessão das acções referido na petição inicial em 2013 para a sociedade U..., S.A., discorda da tese seguida pelo tribunal recorrido, nos termos da qual, a transmissão das acções opera apenas por mero efeito do contrato.
XXV.        Pois, se por um lado não se pode ignorar que, também, ela “beneficia” com a douta decisão colegial, ora, posta em crise,
XXVI.       Por outro lado, não pode deixar de reconhecer-se que, atenta a toda a factualidade dada como provada e não provada no acórdão recorrido, em particular, a falta de prova atinente ao cumprimento dos formalismos legais relativos ao “modo” para a transmissão valida e eficaz das ações, a Sra. AI no cumprimento das obrigações decorrentes da declaração de insolvência não podia deixar de apreender, como apreendeu, as acções que se mantinham na titularidade do insolvente;
XXVII.  Daí que, entende a Recorrida que, o acórdão recorrido não merece reparo, julgando-se, em consequência, o presente recurso de revista totalmente improcedente, por não provado.
 
II – FACTOS PROVADOS.
Encontra-se provados nos autos que:
A) No dia 16 de Abril de 2013, A. e o insolvente celebraram um contrato, denominado “Contrato de Cessão de Ações e Acordo”, nos termos do qual, o requerido AA cedeu 25.500 (vinte e cinco mil e quinhentas) ACÇÕES NOMINATIVAS da categoria B, de valor nominal de € 1,00 (um euro), cada uma, do capital social da sociedade L..., S.A., à sociedade Requerente.
B) Como contrapartida pela cessão das ações, o Requerido AA recebeu, à data, da Requerente, o valor de € 127.500,00 (cento e vinte e sete mil e quinhentos euros) através de cheque.
C) Valor este que o insolvente aceitou, após negociação, e dele dispôs.
D) Em 16 de Abril de 2013, a Caixa Económica Montepio Geral detinha um penhor sobre as referidas ações como garantia de todas a responsabilidades emergentes e assumidas pela L..., S.A. em dois contratos de financiamento e em dois contratos de abertura de crédito em conta corrente, com um valor global de € 5.300.000,00 (cinco milhões e trezentos mil euros).
E) A CEMG foi informada do negócio em causa, mas não previamente à sua realização.
F) Em Maio de 2017 a CEMG emitiu uma declaração onde refere que " (…) declara, para os devidos e legais efeitos, na qualidade de Credora Pignoratícia e Custodiamente dos valores mobiliários titulados objeto de penhor, ter tido atempado conhecimento do Contrato de Cessão de Ações e Acordo, celebrado em 16 de abril de 2013, nos termos do qual foram cedidas à sociedade UNILEC S.A., sociedade de direito francês, registada no registo Comercial e das Sociedades de ... sob o número ...32, 25.500 (vinte e cinco mil e quinhentas) acções representativas de 51% do capital da sociedade L... S.A. (…) nada tendo a opor à referida cessão".
G) À data da declaração da insolvência do Requerido AA, em 9 de Fevereiro de 2017, as acções em causa faziam parte de uma carteira de títulos daquele, e por isso foram apreendidas pela Sra. Administradora da Insolvência, visto que a Credora Pignoratícia não encetou os procedimentos necessários para a correção de tal situação após a comunicação da cessão.
H) Nos termos do artº 10.1 do documento de fls. 71 verso, refere que o acionista-oferente que pretende transmitir, parcial ou totalmente, as suas acções obriga-se, previamente a esse acto, a propor a sua venda, por escrito, em carta registada com aviso de receção, a enviar ao Presidente do Conselho Geral à sociedade, em primeiro lugar, e em segundo lugar, aos acionistas não cedentes.
I) Nos termos do artº 11.1 a) do documento de fls. 72 verso a transmissão de ações da sociedade entre acionistas não depende de autorização da sociedade, mas fica condicionada ao exercício do direito de preferência dos acionistas não cedentes na proporção das ações que ao tempo possuírem.
J) Nos termos do artº 12.1 do documento de fls. 72 verso o acionista que pretenda transmitir, por qualquer título, gratuito ou oneroso, ou por qualquer forma, onerar uma parte ou a totalidade das suas ações, deve comunicar o seu propósito à sociedade, por carta dirigida ao Conselho Geral, na pessoa do seu Presidente, na qual indicará o adquirente ou beneficiário e o número de ações a transmitir ou a onerar, o respetivo preço e condições, nomeadamente de pagamento ou, tratando-se de transmissão a título gratuito, o valor atribuído.
K) No documento complementar ao contrato de sociedade, junto a fls. 599 v e ss. prevê ainda o procedimento de transmissão de ações nos artºs. 10º e 11º.
L) Independentemente do acordo negocial referido sob A) havia um contrato promessa que previa que a saída do grupo como administrador implicava a venda das ações, isto com o objetivo de proteção da marca, mas permitindo que o aderente não entrasse em estado de insolvência ou o encerramento da loja.
M) Resulta da Cláusula 5ª, nº 4 do Termo de Penhor de fls. 286, que o penhor só se extinguirá pela extinção das responsabilidades da sociedade mutuária.
N) A A. injetou cerca de 9 milhões de euros durante a administração desse ponto de venda pelo insolvente, visto que durante a gestão do insolvente registaram-se perdas de cerca daquele valor.
O) Nas contas de 2013 os resultados líquidos são negativos, sendo que segundo as IES na ordem dos 4 milhões de euros, mas no relatório de gestão e contas, na ordem de 1 milhão e 800 mil euros, por força da contabilização de abonos da Unilec e imparidades.
P) Em face dos resultados negativos de 2013, o que já sucedia desde 2007 e sucedeu até 2018, o valor das ações à data da transmissão seria de 0,00 euros.
Q) A escolha do aderente ao Grupo L..., não é baseada exclusivamente com base em fatores económicos mas inclui fatores pessoais e de confiança, sendo fiscalizado no seu desempenho.
(…)
S) Tal transmissão mostra-se acompanhada da declaração de transmissão escrita no título.
T) Com a comunicação a cessão de acções a A. pediu a CEMG pediu uma alteração dos garantes/avalistas das obrigações da L..., sendo que do ponto de vista da A. tais garantias seriam extintas com essa transmissão.
(…)
V) Após a saída do insolvente, a A. realizou uma injeção de capital para reconstituir os capitais próprios, injeção que o insolvente não teria capacidade para fazer.
W) Além do valor referido em b), o insolvente ficou ainda com o veículo pertencente à A. que utilizava enquanto administrador, englobado nessa negociação.
X) O insolvente realizou ainda investimentos na ordem de 11 milhões de euros sendo que a A. apenas teria assentido num valor de 7 milhões de euros.
Z) As acções identificadas em A) foram apreendidas para a Massa Insolvente de AA em 12 de Setembro de 2018.
AA) Aquando dessa apreensão, tais acções continuavam empenhadas junto da CEMG para garantia das responsabilidades identificadas em D).
AB) A declaração de transmissão escrita nas acções, a que se alude em S) dos factos provados, que consta de fls. 73,75 verso e 78 dos autos, foi nelas apostas em data posterior ao dia 9 de Junho de 2017 e antes do dia 12 de Setembro de 2018.

III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.
Acção de restituição de bens apreendidos para a massa insolvente, interposta ao abrigo do artigo 146º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (vulgo CIRE). Transmissão de acções nominativas através de contrato de compra e venda intitulado “Contrato de Cessão de Acções e Acordo”. Permanência destas na carteira de títulos do vendedor junto do credor pignoratício da emitente. Inexistência, à data da declaração de insolvência do vendedor, de qualquer declaração de transmissão nas acções nominativas, bem como do respectivo registo. Subsequente apreensão das acções para a massa insolvente.  Preenchimento das formalidades consignadas no artigo 102º, nº 1, do Código de Valores Mobiliários (o modo). Consequências da sua omissão. Discussão doutrinária quanto aos efeitos reais imediatos do contrato de compra e venda de acções nominativas em confronto com as particularidades do regime vigente no Código de Valores Mobiliários.
Passemos à sua análise:
Os factos apurados nos autos podem sinteticamente descrever-se da seguinte forma:
 A A. Unilec, S.A., e AA celebraram, entre si, no dia 16 de Abril de 2013, um contrato de transmissão das acções nominativas de que o segundo era titular no capital social da sociedade L..., S.A.
Sobre tais acções nominativas incidia um penhor constituído como garantia das responsabilidades assumidas pela L..., S.A., perante a Caixa Económica Montepio Geral, na sequência da realização de financiamentos e de dois contratos de abertura de crédito em conta corrente.
A Caixa Económica Montepio Geral, credora pignoratícia, foi informada da celebração daquele negócio em data posterior à sua efectivação, havendo declarado ter do mesmo conhecimento, através do escrito datado de Maio de 2017, acrescentando no texto que “nada tinha a opor”.
Acontece que AA, interveniente como vendedor no referido contrato de compra e venda de acções nominativas, veio a ser declarado insolvente por sentença de 9 de Fevereiro de 2017, que transitou em julgado.
Nessa altura, as mencionadas acções nominativas faziam parte de uma carteira de títulos em nome de AA junto da Caixa Económica Montepio Geral, credor pignoratício, e, por isso mesmo, foram apreendidas pelo administrador da insolvência em favor da massa insolvente.
Aquando da declaração de insolvência de AA (em 9 de Fevereiro de 2017) não constava das acções nominativas qualquer declaração de transmissão ou registo da entidade emitente ou de intermediária financeira que a representasse.
Posteriormente, foi aposta pela Caixa Económica Montepio Geral, na qualidade de depositária, a declaração de transmissão escrita nas acções, o que foi feito em data posterior à declaração de insolvência (em 9 de Junho de 2017) e anterior à sua apreensão em favor da massa insolvente (em 12 de Setembro de 2018).
Apreciando:
A A. Unilec, S.A., invocando em seu benefício o efeito translativo imediato (de natureza real) – isto é, quoad effectum - do contrato de compra e venda de acções nominativas celebrado com AA, pede nos presentes autos, na pressuposição da adquirida qualidade de adquirente e legítimo proprietário, a sua imediata restituição, a efectuar pelo administrador da insolvência, que as havia, entretanto, apreendido – a seu ver incorrectamente - para a massa insolvente.
Em sentido oposto, entendem os RR. contestantes que não se chegou a produzir o efeito translativo do direito de propriedade sobre as ditas acções nominativas dado que não foram preenchidas as formalidades consignadas no artigo 102º, nº 1, do Código de Valores Mobiliários, isto é, não foi cumprido o denominado modo.
Logo, entendem ter sido perfeitamente lícita e válida a apreensão dessas acções nominativas para a massa insolvente, que deverá assim manter-se.
Vejamos:
Dispõe o artigo 102º, do Código de Valores Mobiliários, sob a epígrafe: “Transmissão de valores mobiliários titulados nominativos”:
“1 - Os valores mobiliários titulados nominativos transmitem-se por declaração de transmissão, escrita no título, a favor do transmissário, seguida de registo junto do emitente ou junto de intermediário financeiro que o represente.
2 - A declaração de transmissão entre vivos é efectuada:
a) Pelo depositário, nos valores mobiliários em depósito não centralizado, que lavra igualmente o respectivo registo na conta do transmissário;
b) Pelo funcionário judicial competente, quando a transmissão dos valores mobiliários resulte de sentença ou de venda judicial;
c) Pelo transmitente, em qualquer outra situação.
3 - A declaração de transmissão por morte do titular é efectuada:
a) Havendo partilha judicial, nos termos da alínea b) do número anterior;
b) Nos restantes casos, pelo cabeça-de-casal ou pelo notário que lavrou a escritura de partilha.
4 - Tem legitimidade para requerer o registo junto do emitente qualquer das entidades referidas nos n.os 2 e 3.
5 - A transmissão produz efeitos a partir da data do requerimento de registo junto do emitente.
6 - Os registos junto do emitente, relativos aos títulos nominativos, são gratuitos.
7 - O emitente não pode, para qualquer efeito, opor ao interessado a falta de realização de um registo que devesse ter efectuado nos termos dos números anteriores”.
A actual redacção do preceito foi introduzida pelo Decreto-Lei nº 489/89, de 13 de Novembro, que aprovou o Novo Código dos Valores Mobiliários, que entrou em vigor em 1 de Março de 2020 (cfr. artigo 2º), substituindo, por revogação, o Código do Mercado dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142-A/91, de 10 de Abril, e alterado pelos Decretos-Leis nºs 89/94, de 2 de Abril,186/94, de 5 de Junho, 204/94, de 2 de Agosto, 196/95, de 29 de Julho, 261/95, de 3 de Outubro, 232/96, de 5 de Dezembro (rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 4-E/97, de 31 de Janeiro), 178/97, de 24 de Julho, e 343/98, de 6 de Novembro, com excepção dos artigos 190.º, 192.º, 194.º a 263.º e 481.º a 498.º; o Decreto-Lei n.º 408/82, de 29 de Setembro, alterado pelos Decretos-Leis nºs. 198/86, de 19 de Julho, 243/89, de 5 de Agosto, e 116/91, de 21 de Março; o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de Setembro; o nº º 9 do artigo 279.º, artigos 284.º, 300.º, 305.º, 326.º, 327.º e 330.º a 340.º e n.º 4 do artigo 528.º, todos do Código das Sociedades Comerciais e o Decreto-Lei n.º 73/95, de 19 de Abril.
(Recentemente, o Código de Valores Mobiliários foi objecto das alterações introduzidas pela Lei nº 99-A/2021, de 31 de Dezembro).
Como se assinalou supra, a Unilec, S.A., estriba-se fundamentalmente na tese doutrinária segundo a qual a transmissão de acções nominativas ocorre por mero efeito do contrato, nos termos gerais do artigo 408.º, nº 1, 1ª parte, do Código Civil Português, não dependendo portanto, para a produção dos seus efeitos de natureza real, da observância das formalidades exigidas pelo artigo 102.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários, na medida em que, o contrato de compra e venda assume-se como um contrato real quoad effectum.
O que significa, segundo esta tese, que a compra e venda constitui um negócio suficiente para a transferência da propriedade, não sendo necessário outro que opere essa mesma transferência.
 No que concerne aos valores mobiliários titulados fora de sistema centralizado, como sucede in casu, a lei contempla, no artigo 102.º do Código dos Valores Mobiliários, a obrigatoriedade da declaração de transmissão, escrita no título, a favor do transmissário, seguida de pedido de registo junto do emitente ou junto de intermediário financeiro que o represente.
Contudo, segundo afirma a A. Unilec, S.A., o contrato de compra e venda de acções nominativas terá igualmente, tal como a compra e venda comum, eficácia real, de acordo com as normas gerais do Código Civil, constituindo os actos subsequentes exigidos pelo Código dos Valores Mobiliários, nomeadamente, o registo na conta do adquirente, nas acções escriturais ou nas acções tituladas integradas em sistema centralizado (artigo 80.º) a declaração de transmissão, seguida de registo, nas acções tituladas nominativas (artigo 102.º), meros requisitos de legitimação do adquirente para o exercício dos inerentes direitos sociais.
Seguindo este entendimento, a ausência do cumprimento do modo não obstaria, portanto, à normal aquisição pela A. Unilec, S.A., do direito de propriedade sobre as mencionadas acções nominativas, que, desse modo, não deveriam ter sido apreendidas pelo administrador da insolvência e têm agora ser imediatamente restituídas à sua legítima proprietária, nos termos do artigo 146º, nº 1, do CIRE.
  Na doutrina, podemos referenciar os seguintes autores que perfilham este entendimento jurídico relativamente à produção de efeitos reais quoad effectum do contrato de compra e venda de acções nominativas, independentemente do cumprimento do modo exigido pelo artigo 102º, nº 1, do Código de Valores Mobiliários.
- Vaz Serra, in “Acções Nominativas e Acções ao Portador”, publicado in Boletim do Ministério da Justiça nº 176, Maio de 1968, páginas 66 a 81, onde o autor salienta que “O nosso direito não exige, para a transferência da propriedade de coisas móveis, a tradição, ao contrário do que faz o Código alemão: elas transmitem-se por efeito do contrato (Código Civil, artigo 408º) e não parece haver razão bastante para submeter os títulos ao portador a outro regime. Desde que o portador do título celebre com outrem um contrato de alienação do título, a propriedade deste ou a titularidade do direito nele incorporado transfere-se para o adquirente. O que este não pode, antes da entrega, é exercer o direito cartular, de sorte que a entrega é somente um requisito de legitimação do adquirente para o exercício dos direitos emergentes do título.”.
- Almeida e Costa e Evaristo Mendes, in “Transmissão da Acções Tituladas Nominativas”, in “Estudos dedicados ao Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes”, Volume III, Universidade Católica Editora, 2011, páginas 41 a 48, onde os autores salientam que, a páginas 45 a 46:
“(…) a forma especial decorrente da titulação de acções (artigo 102º do Código de Valores Mobiliários) acresce à transmissão de direito comum. Acrescenta-se que a mesma prevalece sobre ela, em caso de conflito, salvo excepcionais situações de abuso evidente (“fraude” ou consciência de prejudicar”) por parte do beneficiário de um procedimento translativo formal e completo. A favor da subsistência de uma transmissão, entre as partes e perante terceiros em geral, por mero efeito do contrato, militam várias razões. Em primeiro lugar, é a regra geral. Em segundo lugar, o próprio artigo 483º do Código Comercial admite a cessão como meio de transmissão dos títulos nominativos, embora, no caso das acções, o primitivo artigo 168º estabelecesse como requisito especial de eficácia da mesma, perante a sociedade e terceiros – adicional inscrição no livro de acções. Em terceiro lugar, as duas formas de transmissão mostram-se conciliáveis, sem prejudicar a eficácia das transmissões formais e, portanto, sem entravar nem afectar a segurança do tráfico cartular-registral das acções. Em quarto lugar, dada essa possível conciliação, a circulação de acções sai reforçada, uma vez susceptível de se processar por ambas as vias e não apenas pelo procedimento exigente do artigo 102º do Código de Valores Mobiliários. Em quinto lugar, visando a cartulização favorecer a circulação fácil e seguro das acções, desde que se respeite este objectivo, seria contrária à sua razão de ser a eliminação de uma outra maneira de a concretizar.
Acresce um último argumento. Por um lado, como se assinalou, o registo mencionado no artigo 102º do Código de Valores Mobiliários respeita ao momento do exercício dos direitos sociais e à correspondente legitimação, ou seja, a uma hipótese particular de eficácia da transmissão nas relações com a sociedade. Por outro lado, a declaração de transmissão aí referida também só pode entender-se, não como verdadeira forma, mas como uma formalização da mesma, necessária para a tornar eficaz perante a corporação. Com efeito, ela é devida quer nas transmissões contratuais inter vivos, quer nas transmissões que se produzem por efeito da morte e outras equiparáveis, em relação às quais se torna patente a sua ocorrência num momento posterior à verificação do efeito translativo”.
- António Menezes Cordeiro, in “Manual de Direito das Sociedades”, Volume II, Das Sociedades Em Especial”, Almedina, 2006, páginas 663 a 665, onde o autor sublinha que: “a transmissão das acções opera, em princípio, por força do contrato transmissivo, típico ou atípico, que tenha sido concluído entre as partes. Trata-se de regra tradicional dos países latinos, genericamente consagrada no artigo 408º, nº 1, do Código Civil. Razões de segurança levam o Direito das Sociedades a prever, seja formas específicas para a validade da transmissão, seja formalidades subsequentes necessárias para que a mesma se torne eficaz ou, pelo menos, produza todos os seus efeitos.
De todo o modo, concluído o acordo transmissivo, desencadeiam-se os seus efeitos inter partes”.
- Pedro de Albuquerque, in “Direito das Obrigações. Contratos em Especial”. Volume I, 2ª edição, Almedina 2019, páginas 93 a 107, onde afirma peremptoriamente: “Conclua-se, pois, em definitivo, também dos valores mobiliários não há lugar para uma compra e venda meramente obrigacional. A compra e venda, entre nós, tem sempre eficácia real”, louvando-se seguidamente no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Março de 1995 (relator Pais do Amaral) e no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3 de Junho de 2014 (relator Barateiro Martins), no sentido de que “a transmissão da titularidade das acções ocorre com o negócio subjacente, segundo as regras de Direito civil (artigo 408º do Código Civil), produzindo efeitos entre as partes, mas a sua oponibilidade à sociedade e a legitimação para efeitos de exercício dos direitos inerentes fica dependente da lei da circulação, da entrega das acções”.
- Rui Soares Pereira in “Ainda a eficácia (real) da compra e venda de acções”, in “O Direito”, 149º (2017), III, páginas 575-601, onde o autor sublinha a confusão em que incorre, a seu ver, a tese oposta ao não atender à distinção entre “a titularidade das acções (transmitidas com a celebração do contrato) e a componente de legitimação de direitos sociais)”, invocando em seu abono as vozes de Alberto dos Reis, Vaz Serra, Raul Ventura, Vasco Lobo Xavier, Carlos Osório de Castro e Nuno Pinheiro Torres.
- António Pereira de Almeida, in “Sociedades Comerciais, Valores Mobiliários, Instrumentos Financeiros e Mercados”, Volume II, 7ª edição, Coimbra Editora, 2013, a página 37.
- Cláudia Pereira de Almeida, in “Relevância da Causa na Circulação das Acções das Sociedades Anónimas Fora do Mercado Regulamentado”, Coimbra Editora, 2007, páginas 133 a 134.
- Evaristo Mendes in “Nota sobre o princípio da consensualidade na transmissão de acções valores mobiliários – anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Fevereiro de 2019, processo nº 95/14.0T8BGC.G1.S1”, publicado em “Cadernos de Direito Privado”, nº 70, Abril/Junho de 2020, a páginas 32 a 51, onde o autor salienta que “a ideia chave é a da legitimação, cartular ou escritural, ou legitimidade formal, conferida pela título ou pelo registo, que faz presumir a legitimidade material de quem dela beneficia, isentando esses beneficiários do ónus de prova desta, e permite uma especial tutela da sociedade emitente perante quem os direitos sociais são exercidos, em caso de eventual falta de legitimidade material de quem se apresenta a exercer um direito formalmente legitimado (artigo 56º do CVM). Aquilo que o Código de Valores Mobiliários regula é uma forma de transmissão legitimadora ou tendencialmente legitimadora”.
- Paula Costa e Silva, “A Transmissão de Valores Mobiliários fora do Mercado Secundário”, in “Direito dos Valores Mobiliários”, I, Coimbra Editora, página 234.
Na jurisprudência vide, neste sentido:
- o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Março de 1995 (relator Pais do Amaral), proferido no processo 0083011, sumariado in www.dgsi.pt.
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Março de 2017 (relator Fonseca Ramos), proferido no processo nº 427/13.8TVLSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt, no sentido em que incide sobre a situação particular em que se questionava a possibilidade de execução-específica de um contrato promessa de acções ao portador, sendo, depois de abordadas as questões relativas ao modo, o veredicto favorável à pretensão do promitente comprador.
Conclui-se nesse mesmo aresto:
“A circunstância de a Ré não ter entregado à Autora os títulos representativos das acções não contende, minimamente, com a validade formal de tal negócio jurídico, podendo a Autora, em qualquer altura, requerer judicialmente o cumprimento do contrato, isto é, requerer judicialmente, nos termos do artigo 827º do Código Civil, a entrega das acções que a Ré se obrigou a transmitir-lhe.”
Sendo o contrato em apreciação passível de execução específica e valendo a decisão judicial como declaração de vontade, assim suprida, do Réu, promitente-comprador das acções, o negócio jurídico translativo das acções tem causa, que é o contrato de compra e venda, o contrato prometido, pelo que opera a transmissão da propriedade das acções para o recorrido.
Segundo Coutinho de Abreu, obra citada, a exigência de uma causa para a transmissão de acções é pressuposta nos arts. 80º, nº1, 101º, nºs 1 e 2, e 102º do CVM.
De todo o modo, a execução específica de um contrato de compra e venda opera os efeitos translativos do contrato – arts. 874º e 879º do Código Civil – mesmo tendo por objecto acções tituladas ao portador, transmissão que ocorre fora do mercado bolsista, ficando o negócio a produzir os seus efeitos independentemente de não ocorrer simultaneidade entre o pagamento do preço e a entrega dos títulos”.
- o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3 de Junho de 2014 (relator Barateiro Martins), proferido no processo nº 1156/05.TBVIS-A.C1, publicado in www.dgsi.pt.
- o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Fevereiro de 2010 (relator Vieira e Cunha), proferido no processo nº 736/2002.P1, publicado in www.dgsi.pt. (na perspectiva de que a entrega do título e a respectiva posse representam apenas condições de legitimação necessárias para o exercício de direitos sociais, à luz do que dispõe o artigo 104º do Código de Valores Mobiliários).
Em sentido adverso, sustentando que os efeitos reais da transmissão só se produzem após o cumprimento do modo e por via dele, podem referenciar-se os seguintes autores:
- Coutinho de Abreu, in “Curso de Direito Comercial, Das Sociedades”, Volume II, 7ª edição, Almedina, páginas 362 a 379.
- Soveral Martins, in “Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, coordenação de Coutinho de Abreu, Volume V, 2ª edição, Almedina, páginas 551 a 563.
- Vera Eiró, in “A Transmissão de Valores Mobiliários – As acções especiais”, publicado in “Themis”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, ano VI, nº 11, 2005, página 145 a 181.
- Paulo Câmara, in “Manual do Direito dos Valores Mobiliários”, 2ª edição, Almedina 2011, página 328.
- Alexandre Brandão da Veiga in “Transmissão de Valores Mobiliários”, Almedina 2010, páginas 51 a 52 e 65 a 66.
- Maria João Mimoso e Ricardo Alexandre Cardoso Rodrigues, in “Reconfiguração do Consensualismo Contratual: As Acções Tituladas Nominativas e os Limites à Transmissão”, in “Cadernos do Mercado dos Valores Mobiliários”, Volume 48 (2014), nº 1.
- Margarida Costa Andrade in “Transmissão inter vivos de acções tituladas e eventuais conflitos entre a titularidade, legitimação e posse”, in “Diálogos com Coutinho de Abreu”, Almedina 2020, página 649.
- Carlos Ferreira de Almeida in “Registo de Valores Mobiliários” integrado nos “Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos”, Almedina 1995-2005, a páginas 926 a 931.
- Ana Afonso, in “Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Das Obrigações em Geral”, Universidade Católica Portuguesa, Dezembro de 2018, a página 71.
- Rui Pinto Duarte, in “Curso de Direitos Reais”, Editora Pincipia, 2ª edição, a página 58.
Esta última corrente doutrinária veio a merecer o acolhimento claramente maioritário por parte da jurisprudência nacional.
Neste sentido, vide (para além do acórdão recorrido, ora em análise):
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Dezembro de 1995 (relator Almeida e Silva), proferido no processo 96B248, sumariado in www.dgsi.pt.
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Maio de 2008 (relator Santos Bernardino), proferido no processo nº 08B153, publicado in www.dgsi.pt, onde se afirmou:
“A compra e venda de acções não é, assim, um contrato real quoad effectum – é um contrato com efeitos imediatos meramente obrigacionais, como os contratos do mesmo tipo tendo por objecto títulos de crédito em papel, para cuja transmissão se exige a tradição, o endosso ou acto equivalente.
É certo que, como refere CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, no nosso direito o contrato de compra e venda é, por regra, um contrato real quoad effectum. Mas, como também adverte o mesmo autor, nem sempre assim sucede, porque nem sempre os efeitos reais se produzem imediatamente e nem sempre prescindem de um outro facto jurídico.
(…)Os actos exigidos por lei, e que integram o modo, não se referem ao contrato, mas antes à transmissão da propriedade das acções: são actos essenciais para a transmissão das acções, mas não contendem com a validade formal do contrato”.
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Março de 2007 (relator Sebastião Póvoas), proferido no processo nº 07A379, publicado in www.dgsi.pt, onde se salientou:
“ (…) ao contrário do regime geral do Código Civil, onde, em regra (artigo 408º) a transferência da propriedade se dá por mero efeito do contrato, aqui não é liquido que a transmissão da propriedade plena seja consequência directa do contrato. Haverá a necessidade de conjugar o contrato com determinados actos dele independentes. É a intervenção do chamado “modo” (cf. Dr.ª Vera Eiró – “A transmissão de valores mobiliários – As acções em especial”, in “Themis – Revista da Faculdade de Direito da UNL” – VI, 11, 2005, p. 145 e ss; Prof. Antunes Varela, “Ensaio sobre o conceito de modo”, 1955). Mas ainda que se apelasse apenas para o citado artigo 408º da lei civil, sempre se diria que as partes podem condicionar que a transmissão da propriedade fique dependente de um evento acordado. (cf. v.g, Drªs Assunção Cristas e Mariana Gouveia – “Transmissão da propriedade de coisas móveis e contrato de compra e venda”, in “Transmissão de propriedade e contrato”, 2001, 129). Ora, se assim é no âmbito da liberdade contratual, por maioria de razão o será quando o legislador determinar, em certos casos (v.g. acções), que a transmissão da propriedade plena (na sua globalidade de “utendi, fruendi ac abutendi”) não resulte, imediatamente, e apenas, do contrato (cf. o regime regra – artigos 874º e 879º do Código Civil, no seu cotejo com a parte final do nº 1 do artigo 408º e artigos 80º nº1, 101º, 102º e 105º do CVM). Seria, pois, uma compra e venda que, excepcionalmente, não teria eficácia real, ou por vontade expressa das partes ou por determinação de norma especial”
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Fevereiro de 2019 (relator Paulo Sá), proferido no processo nº 95/14.0T8BGC.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt.
- acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15 de Novembro de 2016 (relator Carvalho Martins), proferido no processo nº 2355/11.2TBPBL.C1, publicado in www.dgsi.pt.
- acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16 de Março de 2010 (relator Artur Dias), proferido no processo nº 2033/09.2TBLRA.C1, publicado in www.dgsi.pt.
- acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 4 de Fevereiro de 2020 (relator António Barateiro Martins), proferido no processo nº 2960/19.9T8VIS.C1, não publicado (onde o relator terá revisto a posição anteriormente assumida sobre o tema).
- acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24 de Outubro de 2013 (relatora Helena Melo), proferido no processo nº 3770/12.0TBBRG-C.G1, publicado in www.dgsi.pt.
- acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16 de Janeiro de 2018 (relatora Isabel Fonseca), proferido no processo nº 14649/17.9T8SNT-A.L1, publicado in www.dgsi.pt.
- acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29 de Novembro de 2011 (relator Manuel Marques), proferido no processo nº   5734/09.1TVLSB.L1, publicado in www.dgsi.pt.
- acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de Julho de 2007 (relator Torres Vouga), proferido no processo nº 2794/2007, publicado in www.dgsi.pt.
- acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16 de Junho de 2005 (relator Ataíde das Neves), proferido no processo nº 0532116, publicado in www.dgsi.pt.
- acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18 de Janeiro de 2011 (relatora Cecília Agante), proferido no processo nº 2703/08.2TBMTS.P1, publicado in www.dgsi.pt.
- acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18 de Setembro de 2008 (relator Carlos Portela), proferido no processo nº 0831973, publicado in www.dgsi.pt.
- acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23 de Fevereiro de 2021 (relatora Cristina Coelho), proferido no processo nº 936/16.1T8LSB.L1, publicado in www.dgsi.pt.
- acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19 de Fevereiro de 2013 (relator Henrique Antunes), proferido no processo nº 894/11, publicitado in www.jusnet.pt.
- acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13 de Setembro de 2018 (relatora Margarida Almeida Fernandes), proferido no processo nº 95/14, publicitado in www.jusnet.pt.
- acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29 de Abril de 2014 (relator Caimoto Jácome), proferido no processo nº 776/09.0TBMDL.P1, publicado in www.dgsi.pt.
Analisando agora os termos da controvérsia jurídica:
Importa, em primeiro lugar, deixar registados os principais argumentos esgrimidos por cada uma das teses em confronto.
Tese da produção de efeitos reais imediatos do contrato de compra e venda de acções nominativas, sem necessidade do cumprimento do modo para que se dê a aquisição do direito de propriedade pelo transmissário:
1º - O sistema jurídico português caracteriza-se, histórica e tradicionalmente, por ser, por sua natureza, consensualista, assentando nos princípios da causalidade e da consensualidade, constituindo o encontro de vontades (na compra e venda) causa idónea à transferência do direito de propriedade sobre a coisa transmitida, sem a necessidade de realização de qualquer outro facto ou negócio adicional.
As excepções a estes princípios são muito limitadas (casos da hipoteca, penhor) e não desvirtuam o princípio geral adoptado pelo nosso ordenamento jurídico.
Nesse sentido, o contrato de compra e venda tem sempre carácter real, havendo o legislador nacional consagrado, em termos gerais, o princípio de que a transmissão do direito se dá solo consensu, sendo o acordo firmado entre as partes a causa dessa transmissão, embora em determinadas circunstâncias possa efectivamente não existir coincidência temporal entre o momento da celebração do contrato de compra e venda e o momento da transferência da propriedade (e mesmo aí o contrato de compra e venda não deixa de se encontrar dotado de eficácia real).
2º - As acções nominativas, enquanto valores mobiliários, traduzem uma forma de riqueza ou uma modalidade de bens (em sentido amplo), que se encontram, tal como os demais, subordinados, quanto ao efeito produzido pelo contrato de compra e venda, à regra geral consagrada no artigo 408º, nº 1, do Código Civil, sendo certo, contudo, que a produção dos efeitos reais imediatos pressupõe a normal verificação de determinados pressupostos gerais, os quais não bulem com a sua natureza.
3º - Não pode negar-se que o Código de Valores Mobiliários impõe, sem dúvida, que a transmissão de valores mobiliários para ter eficácia plena dependa do cumprimento do modo, tal como exigido pelo artigo 102º do Código de Valores Mobiliários.
Porém, essa circunstância não significa necessariamente que sem o modo a transmissão da propriedade entre os celebrantes não possa produzir-se, nem sequer que o modo seja suficiente para a operar, afastando assim o princípio da consensualidade.
4º - Concretamente, o artigo 102º do Código de Valores Mobiliários constitui a formalização de uma transmissão que obedece aos princípios gerais de direito, pelo que, neste sentido, o Código de Valores Mobiliários deve ser integrado com o princípio da causalidade, que não está no texto, não devendo ainda confundir-se as formalidades que acompanham o conjunto regulativo previsto no artigo 102º, nº 1, do Código de Valores Mobiliários com as exigências de forma do negócio e existindo plena compatibilidade entre este regime especial e o princípio geral consagrado no artigo 408º, nº 1, 1ª parte, do Código Civil.
 5º - Em paralelo, nas transmissões de acções escriturais em mercado regulamentado, entende-se que, face ao disposto no artigo 80º, nº 2, do Código de Valores Mobiliários, a transmissão se dá pelo simples encontro entre uma ordem de compra e uma ordem de venda, independentemente do registo em conta.
Este aspecto, de ordem sistemática, concorre no sentido da aceitação neste especial domínio da regra geral da consensualidade.
6º - Aquando da elaboração do Código de Valores Mobiliários, já se alimentava, há muito, a presente controvérsia, sendo que, na altura, a doutrina maioritária perfilhava a tese consensualista, sem que o texto da lei (não obstante a presença na comissão que elaborou o respectivo anteprojecto (incluindo o presidente) de dois membros que eram desfavoráveis à tese da consensualidade – Carlos Ferreira de Almeida e Amadeu Ferreira -), houvesse tomado expressa posição sobre esta discussão, resolvendo definitivamente o diferendo jurídico, que cada vez mais se tem adensado.
7º - Acresce que não se vê que o Código de Valores Mobiliários se mostre incompatível, na sua aplicação, com o princípio geral constante do artigo 408º, nº 1, do Código Civil.
Assim sendo, ao adquirente que não cumpriu o modo assistirá legitimidade material para alienar ou onerar os valores mobiliários adquiridos, independentemente da impossibilidade do exercício dos direitos sociais inerentes e não obstante dificuldades (com que se defrontará) na formalização desses actos (que constituem problemas exclusivamente seu e não do sistema legal).
Ou seja, haverá que não confundir a titularidade das acções, que resulta da celebração do contrato de compra e venda que as tem por objecto, com a componente de legitimação do exercício dos direitos sociais.
Aliás, tratar-se-á muitas vezes de uma mera situação provisória assumida pelo comprador das acções nominativas que conta mais tarde cumprir as formalidades exigidas na lei (declaração de transmissão e registo), circunscrita às partes no negócio e seus sucessores.
Assim, o modo não pode ser erigido à condição de pressuposto material ou constitutivo da transmissão de acções.
8º - Em qualquer caso, em termos de teleologia da interpretação das normas legais em causa, sempre é preferível dar prevalência à posição doutrinária que conduz à maior protecção da posição do adquirente que, num contexto contratual consensual e de boa fé, realizou o pagamento do preço acordado, do que a do alienante que manifestou a intenção deliberada de desfazer-se, a título oneroso, desses bens, abrindo mão das faculdades que resultavam da sua anterior posição de proprietário, não diligenciando pelo cumprimento do modo, como lhe competia exclusivamente.
9º - Acresce que o modo só opera a transmissão da propriedade se assentar num título válido.
Mostrando-se viciado o negócio base ou causal, ou faltar mesmo, mas ainda assim tiver sido efectivado o modo, temos duas realidades não coincidentes: a titularidade substancial do título dos direitos pertence a uma pessoa e, enquanto não for desfeita, a legitimidade aparente a outra.
Logo, quem pode votar ou participar em deliberações sociais não será nesse caso o titular do direito de fundo.
As exigências relacionadas com o registo situam-se no plano da legitimidade para o exercício dos direitos sociais, mas distanciam-se da realidade substantiva do direito de propriedade sobre as acções.
As duas realidades (o título e o exercício dos direitos sociais) podem não coincidir conforme se encontra demonstrado no artigo 56º do Código de Valores Mobiliários.
Tese que sustenta que a produção dos efeitos reais decorrentes de um contrato de compra e venda de acções nominativos dependem do prévio cumprimento do modo:
1 – O artigo 408º, nº 1, do Código Civil, consagra tão somente um regime regra que, não obstante, em conformidade com a segundo segmento da previsão normativa, comporta várias excepções que haverá que tomar em consideração.
Constitui tal princípio, no panorama jurídico português actual, mais um mito do que uma realidade que deva ser considerada.
(Neste sentido, vide o artigo de Carlos Ferreira de Almeida subordinado ao título “Transmissão Contratual da Propriedade – Entre o Mito da Consensualidade e a Realidade de Múltiplos Regimes”, publicado in Themis, Vol. 11 (2005), Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, onde se refere, a páginas 12 e 13:
“A compra e venda meramente obrigacional é, por um lado, uma necessidade, quando, por força da lei, o contrato seja inábil para, por si só, produzir efeitos reais, dependendo estes de um acto posterior que o vendedor se obriga a praticar.
Assim sucede na venda de títulos de crédito em papel (v.g., livranças, acções, obrigações, conhecimentos de carga) em que a transmissão do título e do direito nele incorporado exigem, no mínimo, a entrega do título pelo transmitente ao transmissário ou ao depositário (títulos do portador) e, adicionalmente, o endosso ou a declaração de transmissão, se os títulos forem à ordem ou nominativos.
Assim sucede também nos valores mobiliários e equiparados, quando, na falta de documento bastante, a transmissão depende de registo (constitutivo), a lavrar com base em ordem escrita ou verbal do disponente.
Assim sucede ainda na venda de coisa alheia – seja de coisa alheia assumida pelas partes como tal seja na venda de coisa alheia como própria – em que o vendedor se obriga a praticar os actos necessários a legitimar a transmissão, conforme resulta tanto do artigo 467º, nº 2, do Código Comercial, como do artigo 897º do Código Civil.
A compra e venda meramente obrigacional é, por outro lado, uma possibilidade, quando, por acordo das partes, a transmissão da propriedade depende de acto posterior que o vendedor se obriga a praticar. É o que sucede na venda com reserva de propriedade, sempre que o evento transmissivo consista num acto devido pelo devedor, designadamente a entrega de coisa ou o registo da propriedade a favor do comprador”.
2 – O regime estabelecido pelo Código de Valores Mobiliários, mormente o disposto no artigo 102º, consagra precisamente um regime especial quanto à transmissão das acções nominativas que supõe, para a transferência da propriedade, como conditio sine qua non, o cumprimento do modo, por questões relacionadas com a certeza e segurança neste tipo de transacções, obviando a situações imprevistas e surpreendentes quanto à sua titularidade, proporcionando inclusive casos de fraude.
Sendo a vigência do citado artigo 102º do Código de Valores Mobiliários posterior ao Código Civil afastará naturalmente, por revogação, as regras no mesmo contido e que consagrem um regime jurídico diverso, o que sucede com o disposto no regime regra consagrado no artigo 408º, nº 1, do Código Civil, interpretado como consagrando um princípio geral de consensualidade extensivo a todos os contratos de compra e venda.
Sobre este ponto, vide Vera Eiró, in “A Transmissão de Valores Mobiliários – As acções em especial”, publicado in Themis, Outubro de 2005, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, onde se conclui, a página 161:
“Ora, o artigo 408º do Código Civil expressamente dispõe que a lei pode determinar excepções à eficácia real do contrato de compra e venda.
(…) O Código de Valores Mobiliários regula exaustivamente a questão da transmissão de valores mobiliários e, tendo em conta a proximidade da realidade a regular e tratando-se de regra especial, deverá aplicar-se primordialmente face ao regime consagrado no Código Civil.
Por isso, e embora consideremos que as acções são coisas móveis corpóreas, devemos atender, em primeiro lugar às normas do Código de Valores Mobiliários para determinarmos como estas são, a final, transmitidas”.
3 – Não podendo, indiscutivelmente, o adquirente de acções nominativas que não cumpriu o modo exercer qualquer direito social com as mesmas relacionados, não poderá, em consequência, aliená-las ou onerá-las, nem retirar delas qualquer benefício ou utilidade.
O que significa que a aquisição desse direito de proprietário se apresentaria, nas circunstâncias propugnadas pela tese doutrinária em confronto, completamente vazio de conteúdo, sem qualquer real e prática função sócio-económica, o que constituiria um paradoxo, difícil de aceitar e compreender.
4 – O artigo 102º, nºs 1 e 5, do Código de Valores Mobiliários são absolutamente taxativos ao fixar o exacto momento da transmissão das acções nominativas, afastando neste ponto, de forma expressa, o princípio da consensualidade.
Neles se diz expressamente: “Os valores mobiliários titulados nominativos transmitem-se por declaração de transmissão, escrita no título, a favor do transmissário, seguida de registo junto do emitente ou junto de intermediário financeiro que o represente” e “A transmissão produz efeitos a partir da data do requerimento de registo junto do emitente”, cuja leitura, pela clareza e univocidade do texto, não deixa espaço a que se procure, em contrário com o que ali se afirma, ficcionar momentos de transmissões da propriedade das acções nominativas diversos e com eles logicamente incompatíveis.
5 – Por outro lado, o artigo 80º, nº 1, do Código de Valores Mobiliários, prevê que a transmissão dos títulos se realize com o registo na conta, o que significa que o registo é aqui, sem dúvida alguma constitutivo (sem ele não é transferida a titularidade das acções).
Tomando posição:
Reconhecendo as dúvidas e as dificuldades que envolve a abordagem da questão jurídica que constitui o thema decidendum na presente lide, e cuja complexidade é manifesta, adiantamos ser, a nosso ver, de perfilhar a interpretação da lei que considera que o negócio (a compra e venda) só ficará perfeito, operando a transmissão da propriedade sobre acções nominativas, quando haja sido devidamente cumprida a formalidade especialmente exigida no artigo 102º, nº 1, do Código de Valores Mobiliários, ou seja, quando exista declaração escrita de transmissão inscrita no título, a favor do transmissário, seguida de registo junto do emitente ou junto de intermediário financeiro que o represente, cumprindo-se assim o denominado modo (caracterizado como o conjunto dos actos autónomos previstos especialmente por lei para a transmissão de acções).
O que significa consequentemente que, sem o cumprimento dessas formalidades essenciais, estabelecidas pelo legislação de natureza especial que regula juridicamente os valores mobiliários (o Código de Valores Mobiliários), a declaração negocial gerará unicamente efeitos de natureza obrigacional, consubstanciados no direito do transmissário à exigência da prossecução das condutas idóneas à perfeição do negócio, sob pena do seu integral e justificado ressarcimento no plano indemnizatório, a ter lugar nos termos gerais.
Estas conclusões encontram-se justificadas por força do seguinte conjunto de argumentos que entendemos ponderáveis e prevalecentes:
1º - A natureza especial do regime jurídico previsto no Código de Valores Mobiliários. Sua natureza, características e desideratos.
O regime jurídico que regula as acções nominativas (incluindo a sua transmissividade fora do mercado regulamentado), reveste natureza especial, cobrindo e servindo particularidades específicas, que impõem soluções próprias, por vezes alheias e adversas ao quadro jurídico comum, generalista e tradicional.
Conforme consta do preâmbulo do Preâmbulo do Decreto-lei nº 486/99, de 13 de Novembro, que aprova o Código de Valores de Mobiliários (seguindo as linhas gerais de orientação constantes do despacho do Ministro das Finanças de 27 de Maio de 1997):
“Procurou-se manter em código o corpo central da legislação sobre valores mobiliários, com a finalidade de facilitar a tarefa do aplicador e a inserção dessas normas no sistema jurídico, continuando assim uma tradição que tem dado bons resultados. Apesar da rigidez que um código sempre acarreta, admitiu-se serem superiores os ganhos de segurança, credibilidade, de simplificação e de integração sistemática que o mesmo propicia. (…) A intenção codificadora revela-se também no cuidado de integração harmoniosa do diploma no conjunto do sistema jurídico, de acordo com uma relação de especialidade”.
Na parte que nos interessa, importa enfatizar que o sistema consagrado no Código dos Valores Mobiliários prossegue nitidamente o objectivo primordial de permitir conhecer, a todo o tempo, a identidade dos titulares de valores mobiliários, conforme resulta dos artigos 43º (sujeição da emissão a registo), 44º, nº 1, alínea f) (menção no registo da emissão da data da primeira inscrição registral da titularidade e a identificação do respectivo titular, ou do intermediário financeiro com quem o titular celebrou contrato para registo dos valores mobiliários), 85º, nº 1, alínea c), (dever de prestação de informação pelas entidades registadoras dos elementos relevantes para a identificação dos respectivos titulares ou para o exercício de direitos inerentes aos mesmos) e 97º, nº 1, alínea c) (menção obrigatório no título da identificação do titular), do Código dos Valores Mobiliários.
(Nesse mesmo sentido, o Decreto-lei nº 15/2017, de 3 de Maio, veio a proibir a emissão de valores mobiliários ao portador, conforme resulta do disposto no artigo 53º do Código de Valores Mobiliários – sobre esta temática da conversão das acções ao portador e validade dos actos a praticar no período de transição concedido pelo legislador, vide o importante acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Março de 2022 (relator Ricardo Costa), proferido no processo nº 10300/18.8T8SNT.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt.
Sobre este ponto, vide outrossim Margarida Costa Andrade in obra citada supra, a páginas 626 a 627, onde a autora refere que:
“Bem sabemos que todas as acções ao portador desapareceram do panorama societário desde que o legislador, pelo artigo 2º da Lei nº 15/2017, de 3 de Março, expressando aquela “progressão do anónimo e sem rasto para o documentado e inscrito, identificado por Carolina Cunha – in Valores Mobiliários vs Letras e Livranças: virtudes de um confronto pouco usual, in “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, AAVV, Almedina, Coimbra 2011, página 699 -, proibiu a sua emissão e obrigou as sociedades a converter as existentes em acções (tituladas ou escriturais) nominativas”).
 Nos termos do artigo 55º do Código dos Valores Mobiliários a legitimação para o exercício dos direitos sociais depende de o seu titular se encontrar registado ou constar como tal do título.
 Compreende-se assim a particular importância conferida pela lei à imperiosa necessidade que impõe, justificando, a inscrição no título da declaração escrita de transmissão e o registo dos titulares e/ou adquirentes dos valores mobiliários titulados, que permitem identificar a pessoa do respectivo titular (excluindo, portanto, as situações em que as acções possam pertencer, com desconhecimento da sociedade emitente ou mesmo de forma encapotada, a outrem que não aquele ao qual assiste formalmente, perante o ente societário, a necessária legitimidade para se apresentar como único accionista conhecido, usufruindo desse modo de todo o inerente estatuto).
Esta solução não pode deixar de encontrar-se ainda relacionada com a exigência de segurança e certeza na transmissibilidade das acções nominativas, que abre a porta de entrada a novos sujeitos com participação no capital social da sociedade anónima e, em particular, ao exercício dos correspectivos direitos sociais, matéria muito relevante e que pode inclusive interessar significativamente a futuros e novos investidores/accionistas.
Por isso mesmo, o direito de propriedade sobre as acções deve ser conferido apenas ao comprador quando sejam devidamente cumpridas (por iniciativa e responsabilidade do alienante ou depositário) tais formalidades, as quais constituem garantias de transparência e segurança do tráfego dos valores mobiliários.
De resto, não faria sentido que o regime respeitante à transmissibilidade não se preocupasse com a vital importância de possibilitar obter, em todos os casos, a (salutar e aconselhável) correspondência/coincidência entre a identidade do sujeito adquirente de acções e a sua qualidade de accionista, enquanto único titular do exercício, em plenitude, dos direitos sociais correspondentes.
Neste contexto, a lei procura deliberadamente estabelecer que a titularidade destas acabe por ser absolutamente inseparável da qualidade de accionista, única que proporciona a possibilidade de participação activa e responsável na vida societária.
Estas características e desideratos, de natureza geral, subjacentes à aprovação e vigência do Código de Valores Mobiliários permitem compreender a razão de ser e a justeza da solução jurídica adoptada pelo legislador quanto às condicionantes impostas relativamente ao acto transmissivo das acções nominativas e seus efeitos.
2º - Elemento literal na interpretação jurídica. Efeitos jurídicos típicos inerentes à aquisição da titularidade sobre acções e que se mostra fortemente condicionada na interpretação que desconsidera neste tocante a necessidade de cumprimento do modo.
A afirmação de que a transmissão do direito de propriedade sobre as acções nominativas só ficará perfeita através da inscrição da declaração de transmissão escrita no título a favor do transmissário, seguida de registo junto do emitente ou junto de intermediário financeiro que o represente, encontra especial conforto nos termos em que a letra do artigo 102º, nº 1, do Código de Valores Mobiliários, obrigou, imperativamente, ao cumprimento dessas formalidades,  acrescentando sintomaticamente no nº 5 da mesma disposição legal que A transmissão produz efeitos a partir da data do requerimento de registo junto do emitente”.
(sublinhado nosso).
Ou seja, a norma em referência é portanto clara ao estabelecer que transmissão só produz os seus efeitos – tornando-se eficaz – a partir da data do requerimento de registo junto do emitente, o que pressupõe logicamente a existência de um negócio causal e subjacente, mas que não opera nos termos gerais do artigo 408º, nº 1, 1ª parte, do Código Civil.
 Havendo o legislador tido a especial e deliberada de preocupação de definir e fixar o momento a partir do qual se opera efectivamente o efeito transmissivo, não se compreende como seja possível tentar estabelecê-lo de forma diversa (e necessariamente antagónica) daquela que se encontra prevista na disposição legal transcrita.
Reforça esta ideia a sintomática circunstância do artigo 102º do Código de Valores Mobiliários se encontrar sistematicamente enquadrado na secção III, subordinada precisamente à epígrafe “Transmissão, constituição e exercício de direitos”.
Revemo-nos, por conseguinte, no pensamento de Coutinho de Abreu quando, na obra citada supra, a página 363, o autor afirma:
“As acções títulos (bem como as acções escriturais) estão sujeitas a regras próprias de circulação. E a lei marca ou acentua exactamente as especialidades dessa circulação. Omite (porque pressuposta) a necessidade do acordo entre as partes (circulação entre vivos) e explicita a necessidade de declaração de transmissão escrito no título (acções tituladas), ou no registo da conta (acções escriturais). Estas formalidades são essenciais para que a transmissão das acções se efective. O mero acordo entre o transmitente e o transmissário só produz efeitos entre as partes – mas não produz, por si, a transmissão das acções”.
Note-se que não se consegue extrair da interpretação deste normativo legal (ou de outro pertinente ao Código de Valores Mobiliários) a (invocada e pretensa) distinção teórica que, segundo a tese adversa, o artigo 102º (implicitamente) consagraria entre as exigências nele previstas – o cumprimento do modo –, reportadas, exclusiva e limitadamente, ao âmbito interno do exercício dos direitos sociais (accionista versus sociedade), isto é, no plano da legitimação pelo do adquirente desse exercício associado à qualidade de sócio, e a matéria concernente aos pressupostos da aquisição substantiva ou material da propriedade sobre o bem vendido, não regulada por esta disposição legal (e que, no fim de contas, nada teria rigorosamente a ver com o que a norma a este propósito dispõe).
Tal especificação sustentada pelos autores que defendem o efeito real imediato do contrato de compra e venda de acções nominativas é algo que a leitura da disposição legal em causa – ou de qualquer outro pertinente ao Código de Valores Mobiliários - não comporta, nem de forma alguma sugere.
De resto, sem o indispensável cumprimento do modo, o transmissário das acções nominativas (denominação que visa frisar a necessidade do titular das acções ser clara e necessariamente identificado e associado “pelo nome”) não só não pode exercer direito social algum, cujo legitimação lhe falta em absoluto, como nenhum efectivo elo mantém com a própria sociedade anónima, em cujo capital pretende participar.
Nesse pressuposto, o adquirente deteria uma participação no capital da sociedade sem a menor correspondência prática com a figura do accionista, nenhum direito lhe competindo decorrente dessa qualidade e a nenhum dever para com o ente societário se encontrando verdadeiramente adstrito.
 Tal sujeito (adquirente das acções sem cumprimento do modo) não estaria legalmente em condições de exercer, no plano prático, qualquer direito subjectivo ou potestativo ligado a essa pretensa titularidade das açcões nominativas (a que falte o modo).
A afirmação salientada pelo Supremo Tribunal de Justiça em acórdãos datados de 2007 e 2008, e posteriormente em 2019 – conforme se referenciou supra – no sentido de que, aceitando-se a tese adversa à que se perfilha,  tal direito de propriedade sobre as acções nominativas não passaria “de um direito vazio de conteúdo e que não serve qualquer função económica e social” não deixa afinal de ser absolutamente verdadeira e de traduzir, por estes motivos, a verdadeira caracterização da posição desse comprador quando não se cumpre – como é suposto ter de se cumprir – o modo.
O distanciamento total que entre a sua condição de adquirente (sem o cumprimento do modo) e a qualidade de accionista/participante no capital social é equivalente, no plano prático, ao que igualmente o afasta praticamente de todos os benefícios concretos que lhe deveriam, em geral, ser conferidos enquanto verdadeiro titular sobre o bem incorpóreo em causa (e o não são).
A conclusão da produção de efeitos reais imediatos por força da celebração do contrato de compra e venda, sem o necessário cumprimento do modo, gera, como se viu, a paradoxal situação de o pretenso proprietário/adquirente deste bem e que o considera seu (por efeito do contrato) não poder, uma vez reconhecido como tal, desfrutar das utilidades básicas e essenciais resultantes dessa sua (nova) condição jurídica.
Admitindo, por hipótese de raciocínio, que se dá o efeito real imediato adveniente da celebração deste encontro de vontades quanto à transmissão das acções nominativas, seria sempre altamente problemática, nestas circunstâncias, a possibilidade de alienação ou oneração por sua parte das ditas (para quem não o admita – como é o nosso caso -, a conclusão será a de que não pode mesmo, em circunstância alguma, alienar ou onerar as acções nominativas, que só poderão vir a ser transmitidas após o cumprimento do modo).
(Evaristo Mendes, in obra citada supra (Cadernos de Direito Privado, nº 70, a página 50, reconhece abertamente tais dificuldades, argumentando, não obstante, que se trata de “um problema dele (adquirente das acções) e não da lei”).
Simultaneamente, não poderia o comprador – sem se cumprir o modo - exercer qualquer direito social com elas conectado (receber dividendos, juros ou rendimentos, participar na vida social, votar), enquanto o accionista/transmissário, aparente detentor de todos os poderes respeitentes aos exercícios dos direitos sociais, nada teria afinal a ver com a sociedade, embora fosse o único reconhecido, registado e aceite por esta...
Continuaria, dessa forma, o primeiro a ser um perfeito estranho para a sociedade emitente dos títulos, enquanto o segundo, o accionista (re)conhecido, a quem competiria exercer todos os ditos direitos sociais na sociedade anónima, não teria, segundo esta tese, qualquer titularidade sobre as acções nominativas, numa duplicidade e ambiguidade de posições dificilmente compreensível.
Acresce outrossim o facto de nenhum outro benefício prático poder usufruir que justifique minimamente essa qualidade jurídica inerente à da figura do proprietário de um bem (que, ao abrigo do preceituado em termos gerais no artigo 1305º, nº 1, do Código Civil, deveria poder, à partida, usar, fruir e abusar desse bem).
Como se compreende dificilmente se pode conceber um proprietário com poderes de facto assim tão limitados e condicionados, de quase nula utilidade a prática, do ponto de vista do leque de faculdades que seria suposto poder livremente dispor.
Acrescenta-se, por fim, que o próprio artigo 58º, nº 1, do Código de Valores Mobiliários, segundo o qual: “Ao adquirente de um valor mobiliário que tenha procedido de boa fé não é oponível a falta de legitimidade do alienante, desde que a aquisição tenha sido efectuada de acordo com as regras de transmissão aplicáveis” reforça o acerto das considerações e opções que supra desenvolvemos na medida em que, em tese, verificando-se a boa fé do adquirente, a norma legal atribui ao cumprimento do modo (declaração da transmissão inscrita no título e regime) a aptidão jurídica para, por si, operar a transmissão das acções nominativas, ainda que o alienante não seja o seu verdadeiro titular.
(sublinhado nosso).
3º - Princípio da consensualidade consagrado na 1ª parte do artigo 408º, nº 1, do Código Civil. Da sua relatividade. Natureza do direito objecto de transmissão no contrato de compra e venda de acções nominativas.
Sendo indiscutível que o contrato de compra e venda produz efeitos entre as partes celebrantes – não constituindo as exigências consignadas no artigo 102º, nº 1, do Código de Valores Mobiliários, condição ou pressuposto da validade do negócio em causa – verifica-se, contudo, que para operar juridicamente a transmissão da propriedade sobre as acções nominativas torna-se indispensável e obrigatório, por imperativo legal, o escrupuloso cumprimento do modo.
Este – uma vez cumprido - acaba no fundo por constituir, de facto, pressuposto material ou constitutivo da transmissão das acções nominativas.
Conforme salienta Paulo Câmara, in obra citada supra, a página 328:
“Fora do mercado, o efeito translativo apenas de desencadeia no cumprimento das formalidades essenciais enunciadas (declaração de transmissão e apresentação a registo). Antes da sua observância, a pessoa legitimada pelo negócio subjacente apenas é investida no direito a promover o registo transmissivo”.
Pela celebração do contrato de compra e venda de acções nominativas o transmissário passa a ser titular do direito, de natureza meramente obrigacional, a exigir do transmitente o cumprimento das formalidades inerentes à efectivação do modo.
O que equivale a recusar que, na ausência (objectiva) do cumprimento destas – impostas imperativamente por lei – se possa considerar, desde logo, consumada a transferência da propriedade sobre os mencionados títulos, em estreita consonância com a mencionada disposição legal.
A situação em análise não constitui, aliás, qualquer tipo de anormalidade no nosso sistema jurídico na medida em que, não obstante a generalidade associada, tradicionalmente, ao princípio consagrado no artigo 408º, nº 1, do Código Civil, segundo o qual “a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato”, são conhecidas as variadas situações em que o contrato não produz efeitos reais imediatos, necessitando inclusive da conjugada realização de um outro facto jurídico.
 O próprio princípio da consensualidade referenciado na primeira parte do preceito como regime regra, comporta significativos desvios (compra e venda com reserva de propriedade; compra e venda de bens alheios; venda de bens futuros, doação manual, etc.) naturalmente permitidos pelo sistema jurídico nacional através da previsão constante do segundo segmento da norma (…“salvas as excepções previstas na lei”).
De resto, da leitura conjugada dos artigos 408º e 409º do Código Civil resulta que a transmissão, com efeitos reais, da coisa objecto do contrato de compra e venda está sujeita à liberdade de estipulação dos celebrantes que os habilita, sem peias ou entraves, a estabelecer, se assim o entenderem, regime diverso (para além da diversidade de regimes que decorrem, avulsamente, de disposições legais em que regime regra é postergado).
(Sobre esta concreta matéria, vide Assunção Cristas e Mariana França Gouveia in “Transmissão da Propriedade de Coisas Móveis e Contrato de Compra e Venda”, Almedina, Março de 2001). 
Ora, um dos desvios a tal regime regra sucede precisamente quando o contrato de compra e venda tem por objecto valores mobiliários, em conformidade com o que se encontra previsto no artigo 102º, nºs 1 e 5, do Código de Valores Mobiliários, disposição legal esta que, sendo muito posterior à norma do Código Civil de 1966, confere um regime jurídico próprio e especial que obviamente se lhe impõe, definindo os termos especiais a que deverá obedecer à transmissão de valores mobiliários.
Não se compreende, pois, a razão pela qual, perante a ampla possibilidade aberta aos sujeitos e ao legislador de optar criteriosamente por um regime oposto ao que resulta do artigo 408º, nº 1, 1ª parte, do Código Civil (não se dando a transferência de propriedade por mero efeito do contrato), se insiste, enquanto fundamento argumentativo quase primordial, em querer impor, contra a letra da lei, a produção de efeitos reais imediatos, como se se tratasse de um regime legal imperativo e incontornável (que manifestamente não é).
A questão da compatibilidade entre os dois regimes (o do artigo 102º, do Código de Valores Mobiliários e o do artigo 408º, nº 1, 1ª parte, do Código Civil) constitui a nosso ver, e salvo o devido respeito, um erro de análise.
O artigo 408º, nº 1, do Código Civil (conjugado com o artigo 409º do mesmo diploma legal) faz expressa menção à abertura que a norma concede relativamente à possibilidade de criação de novos regimes específicos diversos e contrários ao regime regra que consagra.
O artigo 102º do Código de Valores Mobiliários integra-se de pleno no âmbito (excepcional) da 2ª parte do nº 1 do artigo 408º, do Código Civil.
Logo, não há, em termos lógicos, que forçar, ficcionar ou tentar descobrir qualquer tipo de compatibilidade entre as duas normas como forma de evitar o reconhecimento de que o preceituado no artigo 102º do Código dos Valores Mobiliários traduz uma excepção ao princípio da consensualidade.
Quando o nº 5 do artigo 102º do Código de Valores Mobilidades prevê que “A transmissão produz efeitos a partir da data do requerimento de registo junto do emitente” isto significa que esta norma está claramente a fugir da regra da 1ª parte do nº 1 do artigo 408º do Código Civil e não a aceitar (ou a procurar) compatibilizar-se com ela.
Acresce que sendo o negócio subjacente (a compra e venda) de natureza meramente obrigacional, encontra-se sujeito ao princípio da liberdade de forma prevista, em termos gerais, no artigo 219º, tomando-se em especial consideração que as diligências respeitantes ao modo não constituem requisitos de forma do contrato.
4º - Efeito constitutivo do registo de acções. Afastamento do argumento de ordem sistemática pretensamente demonstrativo efeito real do contrato de compra e venda de acções nominativas.
Alegam os defensores da tese oposta à que se perfilha que o nº 2 do artigo 80º do Código de Valores Mobiliários contém um elemento de ordem sistemática que concorre para reforçar a posição doutrinária que sustentam.
Vejamos: 
Dispõe o artigo 80º, do Código de Valores Mobiliários, relativamente à transmissão dos títulos mobiliários escriturais:
Os valores mobiliários escriturais transmitem-se pelo registo na conta do adquirente” (nº 1).
A compra em mercado regulamentado e em sistema de negociação multilateral ou organizado de valores mobiliários escriturais confere ao comprador, independentemente do registo e a partir da realização da operação, legitimidade para a sua venda nesse mercado” (nº 2).
Ora, afigura-se-nos que do nº 1 do artigo 80º do Código dos Valores Mobiliários resulta, com toda a clareza, a natureza constitutiva do registo na transmissão dos valores mobiliários a que se referem.
  Já o nº 2 do mesmo preceito constitui efectivamente uma excepção à regra fixada no nº 1 que, nessa mesma medida, a confirma, sendo que a aplicação da mesma se circunscreve à transmissão dos valores mobiliários realizada em mercado regulamentado, o que se compreende perfeitamente pela oficiosidade do respectivo registo prevista no artigo 69º, nº 1, do Código de Valores Mobiliários.
Conforme refere, a este propósito, Alexandre Soveral Martins, in “Código das Sociedades Comerciais Anotado”, Volume V, a páginas 553 a 554:
“A emissão de acções está sujeita a registo junto do emitente. O regista da emissão tem ainda “a função de registo dos valores mobiliários titulados nominativos que não tenham sido integrados em sistema centralizado nem aqueles em que a emissão seja representada por um só título”. O registo das acções tituladas nominativas será um registo não só de emissão, como também de transmissões: é o que se passa quanto às transmissões que estão sujeitas ao disposto no artigo 102º, nº 1, do CVM.
Depois de efectuado o registo de emissão, o registo das transmissões de acções tituladas nominativas exigido pelo artigo 102º, nº 1, do CVM, compete ao emitente ou ao intermediário que o represente.
(…) Por sua vez, o artigo 102º, nº 5, do CVM ao estabelecer que “a transmissão produz efeitos a parte da data do requerimento do registo junto do emitente, também não permite dizer que a transmissão se dá com o requerimento do registo ou que “o momento em que se opera a transmissão é o do requerimento do registo no emitente”. O que se passa é que a transmissão se dá com o registo, mas a lei faz retroagir os efeitos dessa transmissão ao momento em que foi requerido o registo junto do emitente: efectuado o registo, a transmissão produz efeitos a partir da data do requerimento de registo junto emitente. Se o registo apenas foi requerido mas não chegou a ser efectuado, não se pode dizer que a transmissão tenha ocorrido sequer e, por isso, não há efeitos que retroajam à data do requerimento do registo. O momento decisivo é o do registo e não o do requerimento do registo.
O elemento histórico da interpretação dá-nos um outro estímulo para sustentarmos que sem registo não tem lugar a transmissão das acções nominativas tituladas sujeitas ao disposto no artigo 102º, nº 1, do CVM. Vimos qual era o teor do parágrafo 1 do artigo 168º do Código Comercial de 1888. Ora, se ali se estabelecia que a falta do averbamento no livro de registo de acções tinha apenas como consequência a ineficácia da transmissão relativamente à sociedade e a terceiros, pensamos que o legislador, se queria continuar a limitar nos mesmos termos a consequência da falta de registo, teria utilizado técnica legislativa semelhante à que já era conhecido, pelo menos, em final do século XIX.
Nos estudos sobre acções da autoria de Vaz Serra também se pode ver que, relativamente à cláusula de consentimento, estava expressamente previsto que as acções transmitidas sem que tivesse lugar o “assentimento” da sociedade não se considerariam “transmitidas em relação a esta”. No CSC e depois no CVM não se utilizou expressão semelhante para limitar as consequências da falta de registo, o que dá apoio à leitura que por nós foi feita de tais normas.
(…) Ao dizermos que o registo é necessário para que tenha lugar a transmissão das acções não estamos a defender que o registo produza só por si a transmissão. Não é isso. Daí que possa constar do registo como titular quem não o é efectivamente. Até porque o registo de transmissão não sana vícios do negócio de transmissão.
A exigência do registo para a transmissão da acções nominativas tituladas significa que aquela transmissão apenas se dá com um acto de colaboração da sociedade. Não se trata, na verdade, de um outro contrato entre o adquirente e a sociedade emitente ou de uma aquisição orginária por parte do transmissário inscrito.
Mais uma vez, a leitura que preferimos não pode ser afastada pelo princípio da consensualidade relativamente às transmissões entre vivos voluntárias. Como vimos, o artigo 408º, nº 1, Código Civil, admite excepções previstas na lei. Uma dessas excepções está prevista no artigo 102º, nº 1, do CVM.”.
Sobre esta mesma temática, explica, com clarividência, Paulo Câmara, in obra citada supra, a páginas 364 a 365:
“Uma ponderação global obriga a distinguir a transmissão fora do mercado regulamentado e a transmissão realizada em mercado regulamentado (…). Quanto à primeira, independentemente da apreciação que se perfilhe no plano do direito a constituir – o sistema a transmissivo é assumidamente formal e repousa no carácter constitutivo do registo (…) Fora do mercado, o efeito translativo apenas se desencadeia no cumprimento das formalidades transmissivas enunciadas. Antes da sua observância, a pessoa legitimada pelo negócio subjacente apenas é investida num direito a promover o registo transmissivo.
A transmissão em mercado regulamentado, contudo, sofre orientação diversa, dado o regime de oficiosidade na promoção do registo transmissivo (artigo 69º, nº 1). Assim se explica que, na transmissão em mercado, a lei confira ao adquirente legitimidade para transmitir a partir da data do negócio, independentemente do registo (artigo 80º, nº 2). Em congruência com este traço do regime, os direitos patrimoniais inerentes pertencem ao adquirente desde a data da operação (e não do registo: artigo 210º). Trata-se, contudo, de normas excepcionais, que não valem para fora do seu âmbito aplicativo. Concluímos, assim, que na transmissão mobiliária, o princípio do consensualismo (artigo 408º do Código Civil) apenas é acolhido na transmissão em mercado”.
 Esclarece igualmente Carlos Ferreira de Almeida, in “Registo de Valores Mobiliários”, inserido em “Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos”, Almedina, Setembro de 2005, a páginas 928 a 929:
“O artigo 80º, nº 2, aplicável numa situação em que o comprador ainda não é titular dos bens mas já é credor da transmissão da propriedade, limita-se a conferir legitimidade para alienar, em contrato também obrigacional, valores comprados no mesmo mercado onde o comprador os pretende vender. A venda comercial de coisa alheia é em geral permitida – o que aliás frequentemente se esquece - mas, em relação a valores mobiliários, há razões prudenciais para restringir a short selling, que não se justificariam quando o vendedor, não sendo ainda proprietário, já tem o direito a ser proprietário e tal direito é facilmente controlável.
(…) Do ponto de vista dogmático, não constitui sequer antecipação parcial do direito de propriedade que pudesse ser vista como restrição do efeito constitutivo do registo, porquanto se apresenta mais como uma abertura aos limites especiais de venda de bens alheios do que como afloramento da eficácia real solo consensu”.
Em suma, no âmbito da transmissão das acções nominativas o registo reveste natureza constitutiva (e não meramente declarativa), sem, contudo, sanar os vícios que eventualmente inquinem o negócio de transmissão que lhe está subjacente.
Nesse mesmo sentido é de afastar o argumento aduzido pelos defensores da tese adversa à que se perfilha de que o nº 2 do artigo 80º do Código de Valores Mobiliários constituiria, em termos sistemáticos, um elemento revelador de que a aquisição da legitimidade para a venda, na generalidade dos casos, poderia assistir ao adquirente das acções independentemente do seu registo.
Não é manifestamente assim no que se refere à transmissão fora do mercado regulamentado (que é do que trata a situação sub judice) em que não se verifica a garantia fornecida ao sistema pela oficiosidade do registo, nem é tão facilmente controlável e assegurada a titularidade desse direito, como acontece no âmbito do funcionamento do mercado regulamentado.
5º - Elemento teleológico da interpretação jurídica. Equilíbrio na protecção legal concedida ao adquirente e ao alienante.
Dir-se-á ainda que, de um ponto de vista teleológico, esta interpretação da lei, contrariamente ao defendido pelo ora recorrente, não desprotege injustamente o adquirente das acções nominativas em favor do alienante que não diligencia, como lhe competia, o cumprimento do modo.
Conforme elucida Carlos Ferreira de Almeida, in “Registo de Valores Mobiliários”, inserido em “Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos”, Almedina, Setembro de 2005, a página 926:
“(…) por mero efeito do contrato, (os transmissários) adquirem o direito ao registo e, perante a outra parte, o direito à sua (eventual e necessária) colaboração para a transmissão da titularidade e o direito à omissão de alienar a outrem e de onerar o direito que foi objecto do contrato. Estes direitos em face da contraparte não são, todavia, faculdades de um direito absoluto, que ainda não está formado, mas antes direitos de crédito”.
Com efeito, o transmissário de valores mobiliários, atendendo à natureza muito especial dos bens que adquire e às particularidades do regime legal em vigor quanto à sua transmissibilidade, terá necessariamente que estar atento e ser (activamente) escrupuloso em assegurar-se, verificando, se são (ou não) efectivamente cumpridas (pelo responsável) as formalidades expressamente exigidas pelo artigo 102º, nº 1, do Código de Valores Mobiliários (que nunca poderá alegar desconhecer e com as quais terá sempre e em cada circunstância que contar).
Esta obrigatoriedade legal – sem a qual não se opera a transferência da propriedade sobre os valores mobiliários em causa – acaba por concorrer para a pronta e segura clarificação destas operações junto da sociedade emitente dos títulos e de terceiros, consolidando decisivamente a transparência e a certeza das transacções no mercado dos valores mobiliários.
A interpretação que fazemos da questão jurídica em análise promove, por outro lado, persuasivamente, o rigor e o cuidado na identificação dos intervenientes e milita no sentido da certeza do negócio transmissivo da acções nominativas, competindo sempre ao adquirente assegurar-se do cumprimento atempado pelas entidades responsáveis das formalidades essenciais imposta pela lei, sem o que não poderá considerar-se titular dos valores mobiliários que negociou.
Não se trata, de modo algum, de um sistema que aceite ou admita penalizar (injustamente) o adquirente das acções nominativas, perante a censurável omissão das diligências de cumprimento do modo a cargo de outrem (transmissário, emitente ou depositário).
Noutro plano, completamente diverso, o que o sistema jurídico português verdadeiramente prossegue é o princípio de transparência e segurança no tráfego dos valores mobiliários, permitindo que a sociedade emitente conheça a cada momento a identificação dos seus accionistas, únicos que podem exercer os correspectivos direitos sociais, evitando situações de indefinição, confusão e mesmo fraude (um dos sujeitos – o alienante - actuaria como único accionista perante a sociedade, influenciando o respectivo giro, não sendo, substantivamente, titular das acções que justificam essa condição; o outro – o adquirente - já seria o seu único e soberano titular, mas nada poderia fazer no domínio societário que justificasse essa sua qualidade, não podendo sequer ser reconhecido como tal pela emitente dos valores mobiliários).
Neste sentido, não existe cabimento algum para a invocação pelo recorrente, nas suas alegações de recurso do disposto no artigo 790º do Código Civil.
Não interessa, no que aos presentes autos diz respeito, discutir a quem compete a responsabilidade pelo facto de o modo não haver sido devidamente cumprido (isso relevará apenas para uma eventual acção de responsabilidade contratual movida pelo comprador lesado pela incúria do alienante na prossecução das diligências respeitantes ao modo).
Independentemente dessa questão, o âmago da questão jurídica abordada reside, essencialmente, no apuramento e definição do momento, fixado pela lei, em que se dá a transferência, com efeitos reais, das acções nominativas que, como se deixou assinalado, implica o indispensável cumprimento das formalidades consubstanciadas no modo (ainda que o transmissário nada tenha podido fazer para evitar a não aquisição dos valores mobiliários pelo qual pagou ao alienante a respectiva contrapartida monetária).
De todo o modo, aquilatando do equilíbrio razoável entre os interesses tutelados pelo sistema jurídico (do alienante das acções em contraposição com os do adquirente), a solução que se propugna – tratar-se o contrato de compra e venda dos valores mobiliários sem cumprimento do modo de um contrato meramente obrigacional -, não deixa o comprador desprotegido ou desprovido de direitos.
O mesmo beneficia, indiscutivelmente, da tutela indemnizatória tendente a cobrir integralmente os prejuízos sofridos pela não transferência culposa da propriedade das acções nominativas, de modo a repor a situação que existia quando se decidiu a celebrar este negócio.
Existindo – como é normal acontecer, entre agentes de boa fé que actuem segundo os ditames da lisura negocial – efectiva correspondência entre os valores mobiliários em causa e o preço por eles efectivamente pago pelo adquirente (subordinada à regra da oferta e da procura), este último estará sempre em condições legais para recuperar o seu investimento (podendo ainda auferir um montante superior ao da contrapartida entregue ao vendedor – designadamente por danos emergentes ou lucros cessante, nos termos dos artigos 564º e 566º do Código Civil, e, eventualmente, por danos morais, nos termos do artigo 496º, nº 1, reunidos que se encontrem os respectivos pressupostos), sendo seguro que quanto à possibilidade do exercício dos direitos sociais é absolutamente pacífico e indiscutível que o não cumprimento do modo a inviabiliza completa e inexoravelmente.
Logo, se o adquirente sabe que nada pode fazer de concreto com base na sua qualidade de accionista sem o indispensável cumprimento do modo (não riscando para a vida societária), facilmente entenderá que, deixando de cuidar do preenchimento dessas formalidades, nada lhe vale, logicamente, arrogar-se como titular de uma qualidade jurídica de proprietário puramente formalista e totalmente artificial, por materialmente vazia de conteúdo e omissa quanto à sua verdadeira utilidade prática.
E não será assim por inadvertido acaso ou capricho do destino que a jurisprudência nacional acabou por acolher de forma largamente maioritária, a tese que agora igualmente se perfilha, o que vem acontecendo de forma firme e esclarecida há décadas.
Em suma, o adquirente do contrato de compra e venda de acções nominativas sem que se verifique o cumprimento do modo, não deixa, por isso mesmo, de ser titular de um conjunto significativo de direitos, de natureza obrigacional, relativamente à contraparte no negócio, a começar pelo direito a que esta prosseguia as diligências necessárias a que se por dá a transmissão daquelas para a sua esfera jurídica e acabar no direito ao completo e integral ressarcimento de todos os prejuízos causados pela conduta culposa e ilícita de vendedor e/ou do depositário dos títulos, uma vez demonstrados, em sede própria, os respectivos pressupostos.
6º - Invocada possibilidade de cisão entre a titularidade material do direito e a legitimação para o exercício de direitos sociais como explicação para a produção de efeitos reais imediatos (sem o cumprimento do modo) da compra e venda de acções nominativas.
Alega-se, em sentido adverso ao por nós propugnado, que o modo só opera a transmissão da propriedade se assentar num título válido; mostrando-se, por hipótese, viciado o negócio base ou causal, ou faltar mesmo, mas ainda assim tiver sido efectivado o modo, temos duas realidades não coincidentes: a titularidade substancial do título dos direitos pertence a uma pessoa e, enquanto não for desfeita, a legitimidade aparente a outra.
Neste caso, quem pode votar ou participar em deliberações sociais não será nesse caso o titular do direito de fundo, o que significaria que as exigências relacionadas com o registo situar-se-iam no plano da legitimidade para o exercício dos direitos sociais, mas distante da realidade substantiva do direito de propriedade sobre as acções.
Insiste-se ainda em que a própria lei, no artigo 58º do Código de Valores Mobiliários, evidencia que os valores mobiliários comportam duas realidades diversas, porventura não coincidentes (o documento e os direitos inerentes), apresentando-se como a prova final (de que as duas realidades podem não coincidir) o que se dispõe no artigo 58º do Código dos Valores Mobiliários, segundo o qual: “ao adquirente de um valor mobiliário que tenha procedido de boa fé não é oponível a falta de legitimidade do alienante, desde que a aquisição tenha sido efectuada de acordo com as regras de transmissão aplicáveis” (nº 1) e “o disposto é aplicável ao titular de quaisquer direitos de garantia sobre valores mobiliários” (nº 2).
(sobre esta temática, vide Pedro de Albuquerque, in obra citada supra, a página101).
Apreciando:
Não se nos afigura convincente nem decisiva esta argumentação.
O Código de Valores Mobiliários privilegia em especial, como se demonstra supra, a ligação/coincidência entre a titularidade substantiva do valor mobiliário e o exercício dos inerentes direitos sociais, que têm por base a essencial qualidade de accionista da sociedade emitente.
Este é o paradigma que o Código de Valores Mobiliários afirma e prossegue.
Dispõe, precisamente, o artigo 55º, nº 1, do Código de Valores Mobiliários, sob a epígrafe “Legitimação activa”, que:
“Quem, em conformidade com o registo ou com o título, for titular de direitos relativos a valores mobiliários está legitimado para o exercício dos direitos que lhes são inerentes”.
Daí a compreensível preocupação da lei em condicionar a titularidade do direito adquirido em mercado não regulamentado ao estrito e integral cumprimento de formalidades (o modo) que, publicitando-o e permitindo a identificação da pessoa do adquirente, acabam por se configurar como conditio sine qua non da sua condição jurídica de proprietário das acções nominativas objecto do negócio translativo.
Dito por outras palavras, não encontramos no sistema jurídico próprio respeitante à transmissão das acções nominativas qualquer vestígio relevante da distinção (cisão) entre o título e os direitos sociais inerentes, no sentido de valorar e extrair consequências jurídicas e práticas da eventual não coincidência entre as duas realidades, de modo a considerar-se, com esse fundamento, que o adquirente que não cumpre o modo pode, mesmo assim, ser reconhecido pelo ordenamento como seu proprietário.
No citado artigo 56º do Código de Valores Mobiliários o que está em causa é a protecção do emitente do título que, agindo de boa fé, realiza qualquer prestação em favor do titular deste que consta do registo, o que apenas quer significar que o desiderato da lei é o de conceder, para além do mais, ao registo uma função de legitimação activa e passiva.
Em termos práticos, quem constar como titular das acções nominativas no registo é o único sujeito habilitado a exercer os direitos sociais inerentes, desonerando a sociedade (emitente) de qualquer responsabilidade relativamente às vicissitudes relacionadas com vício na forma como ocorreu a transmissão do título.
Precisamente no mesmo sentido, e forma absolutamente peremptória, dispõe, em termos inequívocos, o artigo 104º, nº 2, do Código de Valores Mobiliários que:
 “Os direitos inerentes aos valores mobiliários titulados nominativos não integrados em sistema centralizado são exercidos de acordo com o que constar no registo do emitente”.
 Outrossim não encontramos razões que afastem o entendimento perfilhado com base nas situações em que quem cumpre o modo não é verdadeiramente o titular do direito substantivo subjacente, ou dito de outro modo, em que o modo é exercido por não detém legitimidade substantiva e material para o efeito.
De resto, não só artigo 55º do Código de Valores Mobilares desonera a sociedade emitente de qualquer tipo de responsabilidade neste tocante, interessando-lhe apenas a pessoa que constar como titular no seu registo, como o artigo 58º do mesmo diploma legal admite a possibilidade (agindo o adquirente de boa fé) de o modo operar a transferência da propriedade sobre as acções ainda que o alienante não seja o seu verdadeiro titular.
A situação anómala e patológica da eventual falta de coincidência entre a titularidade substantiva das acções e a legitimação para o exercício dos direitos sociais, decorrente do registo, poderá conduzir precisamente, uma vez demonstrados, em sede própria, todos os requisitos necessários para o efeito, à anulação desse registo, com a regularização e formalização, nesse pressuposto, da desejada coincidência entre as duas condições (que é a única que verdadeiramente interessa e releva).
O registo das acções nominativas junto da sociedade emitente não tem a virtualidade de sanar os vícios do negócio de transmissão que lhe está subjacente, devendo ser naturalmente corrigido/modificado em conformidade com a prova que o adquirente interessado faça acerca da titularidade substantiva e material dos valores mobiliários em causa.
Debruçando-nos agora sobre a situação sub judice:
Face à interpretação jurídica adoptada relativamente aos efeitos meramente obrigacionais do contrato de compra e venda de acções nominativas, à luz do que dispõe o artigo 102º, nºs 1 e 5, do Código de Valores Mobiliários (não se dispensando o cumprimento do modo como elemento essencial e decisivo para a transmissão da sua titularidade), cumpre afirmar que a A. Unilec, S.A., embora tenha firmado com AA o presente contrato de compra e venda das acções nominativas de que este é titular, pagando a integralidade do preço acordado, não chegou não obstante a adquirir o direito de propriedade sobre as citadas acções nominativas, em consequência da sua ineficácia em termos de transmissão do direito real de propriedade, por referência ao momento da declaração de insolvência do transmitente, e tendo em especial consideração o preceituado no artigo 81º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (vulgo CIRE), segundo o qual “a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência”.
Tal como refere Luís Menezes Leitão em “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Almedina 2021, 11ª edição, a página 158:
“A declaração de insolvência tem como efeito retirar ao insolvente os poderes de administração e disposição da massa insolvente, que passam a ser atribuídos ao administrador da insolvência. Caso o insolvente celebre negócios sobre os bens da massa, estes são considerados ineficazes em relação a ela, passando a mesma a responder apenas nos termos do enriquecimento sem causa apenas em relação a terceiros de boa fé, e desde que não se trate actos susceptíveis de resolução incondicional”.
Ou seja, tal contrato produziu efeitos entre os celebrantes, mas que se restringem ao plano meramente obrigacional, não havendo por via dele passado a A. Unilec, S.A, a ser a legítima titular das acções nominativas em causa.
A circunstância de não ser imputável à A. Unilec, S.A., a omissão do prosseguimento das diligências conducentes ao cumprimento do modo não releva no sentido de, por esse motivo, esta passar a ser titular do direito de propriedade sobre as ditas acções nominativas, o que aconteceria em condições irrefutavelmente (a nosso ver) violadoras do preceituado, em termos imperativos, no artigo 102º, nºs 1 e 5, do Código de Valores Mobiliários.
A lisura do procedimento da compradora (e mesmo que se verifique, por hipótese e em contrapartida, a má fé do alienante) apenas importa no âmbito da responsabilização no plano obrigacional da incumpridora faltosa que responderá pelos prejuízos que tenha causalmente provocado para a esfera jurídica da contraparte, com recurso inclusivamente, a título subsidiário, caso seja necessário, ao instituto do enriquecimento sem causa genericamente previsto no artigo 473º do Código Civil.
Em matéria da transmissão do direito (real) de propriedade sobre acções nominativas prevalece o sistema jurídico específico que o Código de Valores Mobiliários entendeu por bem consagrar (e que difere, como se viu, do regime regra previsto no artigo 408º, nº 1, 1ª parte, do Código Civil).
Note-se ainda que na própria cláusula 1ª, nº 3, do contrato sub judice ficou sintomaticamente previsto que:
 “O presente contrato será utilizado como requerimento junto da entidade emitente dos títulos representativos das acções da sociedade, nos termos e para os efeitos previstos no número 5 do artigo 102º do Código de Valores Mobiliários”.
 O que denuncia, a nosso ver, a consciência de ambos celebrantes de que a transmissão do direito (real) de propriedade sobre as ditas acções nominativas só se produziria com o efectivo cumprimento daquela formalidade absolutamente essencial, sabendo-se que o vendedor (ou o depositário dos títulos) ficaria, para esse preciso efeito, obrigado a prosseguir as indispensáveis diligências que constituem o modo (sem que nenhum sentido ou utilidade teria a deliberada inclusão desta cláusula contratual).
(Como afirma Carlos Ferreira de Almeida, in obra citada supra, a página 928:
“Apesar do princípio geral do artigo 408º do Código Civil, ninguém consegue, mesmo no direito português, transferir a propriedade por mero efeito do contrato, quando este tenha como objecto valores mobiliários.
Por não se terem apercebido disto é que muitos advogados celebram contratos promessa, quando deviam celebrar contratos definitivos (como sucede in casu) meramente obrigacionais em que o vendedor se obriga a transmitir a propriedade no tempo e outras circunstâncias previstas no contrato”).
Logo foi absolutamente lícita e, nessa medida, plenamente válida a apreensão destas para a massa insolvente, nos termos em que foi concretizada pelo administrador da insolvência, uma vez que no momento da declaração de insolvência do devedor (a partir do qual este ficou impedido da prática de qualquer acto dispositivo do seu património) as acções, perante o não cumprimento do modo, não se haviam ainda transmitido a terceiro (em particular e em concreto à A. Unilec, S.A.).
Nem se vê, nestas circunstâncias, como poderia o administrador da insolvência, agindo funcionalmente em benefício da massa e devendo nessa mesma qualidade zelar pela satisfação máxima (possível) dos interesses dos credores do insolvente, deixar de actuar como o fez (permitindo injustificadamente o não engrandecimento do conjunto dos bens que deveriam integrar a massa insolvente).
Por outro lado, não faz aqui o menor sentido a avocação da figura do abuso do direito, genericamente prevista no artigo 334º do Código Civil, como meio de tutela dos interesses do adquirente das acções nominativas.
Com efeito, não se verificou, na situação sub judice, qualquer actuação qualificável como abusiva relativamente ao exercício de um direito, que tivesse ultrapassado manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico deste.
Do que se trata apenas, a montante e não a jusante, é da discussão em torno da produção – ou não - de determinado efeito jurídico, directamente associado a um comando legal de natureza imperativa (o artigo 102º, nºs 1 e 5, do Código de Valores Mobiliários).
E, de todo o modo, sempre poderá o transmissário prejudicado socorrer-se dos meios judiciais ao seu alcance para ser devidamente indemnizado pelos danos que lhe forma ilicitamente infligidos, designadamente pelo valor que despendeu a título de preço pela compra das ditas acções nominativas (e que deverá, obviamente, ser-lhe restituído), bem como do ressarcimento de todos os prejuízos imputáveis à conduta faltosa e culposa da contraparte no negócio, com o não prosseguimento das diligências referentes ao modo.
Alega ainda a recorrente Unilec que:
“A transmissão das acções em causa foi devidamente registada, conforme consta do livro de registo das ações da L..., onde na sua página 23, com os números de ordem de registo ...7 a ...4, se encontra devidamente inscrita e identificada a transmissão das ações do R. Insolvente AA a favor da Unilec. em suporte informático, pelo que o livro de registo não carece de ser assinado, cumprindo todos os demais pressupostos legais exigidos pela Portaria 290/2000, de 25 de Maio” e que “O documento em causa resulta precisamente de ficheiros informáticos/anexos aprovados no modelo de registo da emissão de valores mobiliários junto do emitente, previsto no artigo 43.º do Código dos Valores Mobiliários, em suporte informático, decorrente do n.º 4 da referida Portaria.  O registo e o acesso informático aos documentos em causa é feito nos termos do n.º 2 da Portaria, mas naturalmente que a A. não pode expor os acessos/passwords para o efeito, nem divulgar a cópia de segurança, subvertendo precisamente a questão de segurança informática, nem os Recorrentes assim o solicitaram ao tribunal, pelo que o tribunal de 1.ª instância, no âmbito do principio da livre apreciação da prova valorou o documento como prova suficiente, considerando como provado os factos decorrentes da al R). Aliás, se o registo não estivesse efetuado e demonstrado, a CEMG não teria procedido ao averbamento das ações em nome da transmissária Unilec.”
Vejamos:
O acórdão recorrido debruçou-se exaustivamente sobre esta concreta questão suscitada pela A. Unilec, S.A. (alegado cumprimento do modo exigido pelo artigo 102º, nº 1, do Código de Valores Mobiliários – que a ser verdadeiro e efectivo dispensaria então, in casu, toda a longa discussão travada em torno do efeito real ou obrigacional do contrato de compra e venda de acções nominativas, como é óbvio).
Fê-lo nos seguintes termos:
O registo de valores mobiliários junto do emitente encontrava-se, à data da transmissão das ações para a apelada Unilec (e continua atualmente), regulado na Portaria n.º 290/2000, de 25/05, a qual veio substituir o livro de registo de ações a que se reportava o art. 305º do Cód. Soc. Comerciais (CSC), revogado pelo DL. n.º 486/99, de 13/11, que aprovou o CVM, passando essa matéria a estar prevista no art. 43º deste último Código.
O art. 2º, n.º 1º do CVM prevê que o registo de valores mobiliários titulados nominativos junto do emitente pode ser feito em suporte de papel ou em suporte informático.
Optando o emitente pelo registo em suporte informático: a) uma cópia de segurança do registo é guardada em local distinto; b) a utilização do ficheiro do registo depende de código de acesso (password) reservado a pessoas previamente determinadas; c) existem planos de contingência para a proteção do registo em casos de força maior; d) são assegurados níveis de inteligibilidade, de durabilidade e de autenticidade equivalentes aos certificados no registo em suporte de papel; e e) aplicam-se as regras legais e regulamentares relativas à certificação de elementos eletrónicos, nomeadamente no que respeita à intervenção de autoridades credenciadoras, à emissão de chaves e certificados, bem como à aposição de assinatura digital (art. 2º, n.º 2 da Portaria).
Por sua vez, nos termos do disposto no art. 3º do D.L. n.º 290-D/99, de 02/08, que regula a validade, eficácia e valor probatório dos documentos eletrónicos e da assinatura digital, os documentos eletrónicos satisfazem o requisito legal da forma escrita quando o seu conteúdo seja suscetível de representação como declaração escrita (n.º 1) e, sem prejuízo do disposto no seu n.º 4 (não aplicável aos autos), quando neles seja aposta uma assinatura digital certificada por uma entidade credenciada e com requisitos previstos neste diploma, e os documentos eletrónicos contenham o conteúdo referido no n.º 1, estes têm força probatória de documento particular assinado, nos termos do art. 376º do CC (n.º 2); já tratando-se de documentos eletrónicos cujo conteúdo não seja suscetível de declaração escrita, mas em que conste a assinatura digital certificada por uma entidade credenciada e com os requisitos previstos neste diploma, tais documentos eletrónicos têm a força probatória prevista nos arts. 368º do CC e 167º do CPP (n.º 3).
Finalmente, os documentos eletrónicos aos quais não seja aposta uma assinatura digital certificada por uma entidade credenciada e com os requisitos previstos neste diploma, ficam sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova (n.º 5).
Já optando o emitente pelo registo em suporte de papel, nos termos do disposto no art. 3º da dita Portaria n.º 290/2000, os termos de abertura e encerramento do registo são assinados por quem vincule o emitente e por um titular do órgão de fiscalização, tendo do termo de abertura do registo de constar a identificação do emitente e a data das assinaturas e do termo de encerramento do registo tem de constar referência ao número de páginas que compõem o registo e a data das assinaturas.
Por último, estabelece o art. 78º, n.º 1 do CVM que o registo se prova por certidão emitida pela entidade registadora.
Decorre do exposto que a prova do registo da transmissão das ações tituladas nominativas feita pelo apelante AA para a apelada Unilec, S.A., em 16 de abril de 2013, tinha de ser feita, por imposição legal, através de certidão emitida pela entidade emitente das ações, isto é, pela L....
Está-se perante uma formalidade ad probationem, em que a ausência da certidão do registo da transmissão das ações apenas pode ser substituída por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contanto que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório (n.º 2 do art. 364º do CC).
No caso dos autos, compulsado e analisado o documento de fls. 19 a 30, verifica-se que o mesmo não consubstancia qualquer certidão emitida pela L....
Acresce que, contrariamente ao que foi alegado pela apelada e foi julgado provado pela 1ª Instância, esse documento não comprova que o registo da transmissão das ações tituladas nominativas que AA declarou, em 16 de abril de 2013, transmitir, por venda, à apelada Unilec, tivesse sido efetuado informaticamente, uma vez que, conforme consta do próprio teor do documento em referência, trata-se de um “suporte em papel que foi elaborado nos termos e para os efeitos estabelecidos na Portaria n.º 290/2000, de 25 de maio”.
Ora, tendo o registo das ações sido efetuado em suporte de papel e não tendo nesse suporte em papel sido observadas as formalidades legais prescritas no art. 3º da Portaria n.º 290/2000, dado que dos termos de abertura e de encerramento desse registo nem sequer constam as assinaturas legalmente prescritas, não podia a 1ª Instância, por um lado, ter concluído, conforme concluiu, pela prova em como “a transmissão das ações em causa foi registada informaticamente, conforme consta de fls. 19 e ss.”, uma vez que o próprio teor do documento em causa afasta a possibilidade do registo da transmissão das ações ter sido realizado informaticamente, e, por outro, também não podia concluir que o registo em suporte de papel da transmissão das ações tenha sido validamente efetuado, por faltarem a esse registo os requisitos de validade prescritos no art. 3º”.
Ora, sobre esta matéria, o Tribunal da Relação de Guimarães explicitou, no acórdão recorrido, com todo o desenvolvimento, rigor e clareza o regime legal aplicável e demonstrou à evidência que a transmissão das acções nominativas em causa não fora afinal devidamente registada, em estrita conformidade com os termos legalmente exigidos, ao tempo da declaração de insolvência do adquirente, não satisfazendo, de todo, os ditames impostos pela Portaria nº 290/2000, de 25 de Maio.
Outrossim não se provou que, ao tempo da declaração de insolvência do alienante, existisse a inscrição nos títulos da transmissão em favor da compradora.
Não se cumpriu, por conseguinte, o modo conforme resulta plenamente demonstrado no aresto em análise.
Logo, nada cumpre acrescentar neste tocante, o que se revelaria absolutamente inútil por supérfluo.
Com a fundamentação nele aduzida está devidamente comprovado que a A. Unilec, S.A., não produziu a necessária prova – que à mesma incumbia – da inscrição da declaração de transmissão no título e do registo dessa transmissão das acções nominativas.
De resto, a explicação supra exposta pelo Tribunal a Relação de Guimarães conduziu, nos termos do conhecimento (e procedência) da impugnação de facto apresentada pelo ora recorrida, ao abrigo do disposto no artigo 640º, do Código de Processo Civil, à eliminação da alínea R) fixada na sentença de 1ª instância – com o seguinte teor:
“A transmissão das acções foi registada informaticamente, conforme consta de fls. 19 e seguintes”.
Nesse mesmo âmbito – conhecimento (e procedência) da impugnação de facto – o Tribunal da Relação de Guimarães determinou ainda o aditamento do seguinte facto:
“AB) A declaração de transmissão escrita nas acções, a que se alude em S) dos factos provados (onde se consignou que “ tal transmissão mostra-se acompanhada da declaração de transmissão escrita no título”), que consta de fls. 73,75 verso e 78 dos autos, foi nelas apostas em data posterior ao dia 9 de Junho de 2017 e antes do dia 12 de Setembro de 2018”.
Ora, o recorrente não invocou a violação de norma de direito probatório material, nem o incorrecto uso pelo Tribunal da Relação de Guimarães dos poderes que se lhe encontram conferidos pelo artigo 662º, do Código de Processo Civil.
(Não assentou aliás neste fundamento concreto a estruturação imprimida às presentes alegações de revista).
E como é sabido, a valoração da prova por parte do Tribunal da Relação que introduza as alterações que considera justificarem-se, dando razão à impugnante em matéria de facto, escapa, por sua natureza, ao controlo por parte deste Supremo Tribunal de Justiça, vocacionado apenas para a apreciação de matéria de direito, conforme directamente resulta do disposto nos artigos 682º, nº 2, 1ª parte, 674º, nº 3,  do Código de Processo Civil.
(Sobre esta temática, vide, Abrantes Geraldes, in “Recursos em Processo Civil”, Almedina, 2022, páginas 503 a 504 ; na jurisprudência vide, entre muitos outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Novembro de 2022 (relator António Barateiro), proferido no processo nº 23994/16.0T8LSB.F.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt); acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Dezembro de 2022 (relator Cura Mariano), proferido no processo nº 6913/18.6T8BRG.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt); acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Dezembro de 2022 (relator Oliveira Abreu), proferido no processo nº 524/20.3T8BJA.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt); acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Novembro de 2022 (relator Fernando Batista), proferido no processo nº 2603/19.0T8PDL.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt); acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Novembro de 2022 (relator Jorge Arcanjo), proferido no processo nº 46/08.0TBMIR.C2.S1, publicado in www.dgsi.pt).
Assim sendo, por todos os motivos expostos e em concordância com o acórdão recorrido, a presente acção terá fatalmente de improceder.
Nega-se a revista.


IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) negar a revista.
Custas pela recorrente.
                                
Lisboa, 15 de Fereveiro de 2023


Luís Espírito Santo (Relator)                                   
Ana Resende                                   
Maria José Mouro.


V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.