Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
26916/18.0T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
EMPRESA
CONTRATO DE ADESÃO
AMBIGUIDADE
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
BOA FÉ
Data do Acordão: 01/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. A qualificação como seguro de grandes riscos não determina o afastamento do regime das CCG (DL n.º 446/85, de 25.10); este é aplicável aos contratos de seguro, incluindo aqueles que, como o dos autos, são celebrados entre empresas (cfr. art. 17.º), desde que revistam a natureza de contratos de adesão (art. 1.º, n.º 1) ou desde que o seu conteúdo, previamente elaborado, não possa ser influenciado pelo destinatário (art. 1.º, n.º 2).

II. O resultado da interpretação conjugada das duas cláusulas contratuais em causa não é claro, razão pela qual, de acordo com a norma sobre cláusulas ambíguas (art. 11.º, n.º 2) deve prevalecer a interpretação mais favorável à empresa segurada.

III. Quanto à questão da tempestividade da remessa da documentação solicitada pela seguradora, sufraga-se o entendimento do acórdão recorrido: nas circunstâncias factuais dadas como provadas, dúvidas não subsistem de que, à luz do princípio da boa fé no cumprimento dos contratos (art. 762.º do CC), é de entender ter a autora respeitado a obrigação de comunicação a que se encontrava contratualmente obrigada.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. FOO2EAR Indústria e Comércio de Calçado, S.A. intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra CESCE – Compañía Española de Seguros de Créditos à la Exportación, S.A., Compañía de Seguros y Reaseguros - Sucursal em Portugal.

Alegou, em síntese, que celebrou com a R. um contrato de seguro de crédito para cobrir a falta de pagamento total ou parcial dos créditos resultantes da sua actividade até ao limite de €50.000,00, relativamente à cliente F...; é titular de um crédito no valor de €213.254,72 sobre a F..., decorrente de fornecimento a esta última de artigos de calçado no mesmo valor; e participou à R. em 05/05/2016 essa falta de pagamento da sua cliente, reclamando o pagamento da quantia de €50.000,00, o que a R. recusou em 07/06/2016.

Terminou, pedindo a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de €57.000,00, acrescida de juros de mora vincendos, calculados à taxa comercial, a incidir sobre o capital de €50.000,00, até efectivo e integral pagamento, e, a título subsidiário, a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de €51.877,18, acrescida de juros de mora vincendos, calculados à taxa comercial, a incidir sobre o capital de €45.506,30, até efectivo e integral pagamento.

A R. contestou, defendendo a improcedência da acção. Para o efeito, invocou, em síntese: que a A. incumpriu as suas obrigações contratuais de enviar para a R. a documentação referente ao sinistro; que o crédito foi contestado pela devedora da A.; que consta do contrato de seguro a faculdade de suspensão da garantia do seguro até que seja obtido pela A. o reconhecimento por decisão judicial ou arbitral definitiva do seu crédito que foi contestado pela cliente.

A R. deduziu reconvenção pedindo que a A. seja condenada a aceitar e reconhecer a faculdade de suspensão da garantia do seguro, nomeadamente no que respeita à regulação do sinistro que lhe participou, até prova, mediante decisão judicial ou arbitral transitada em julgado, da existência de um crédito certo, líquido e exigível sobre a sua cliente F....

A A. apresentou réplica, contestando o pedido reconvencional.

Por sentença de 11 de Outubro de 2021 foi proferida a seguinte decisão:

«[J]ulga-se a acção procedente e a reconvenção improcedente e, em consequência, condena-se a Ré a pagar à A. a quantia de euros 50 000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal desde 9.8.2016, e absolve-se a A. do pedido reconvencional.».

Inconformada, a R. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, pedindo a revogação da sentença e a sua substituição por «uma outra que absolva a recorrente dos pedidos, ou, na hipótese de não se entender assim, que decrete a suspensão das garantias do seguro até que a recorrida faça prova da existência de um crédito certo, líquido e exigível mediante sentença transitada em julgado, Sempre reformando-se a sentença proferida».

Por acórdão de 26 de Abril de 2022 foi proferida a seguinte decisão:

«Pelo exposto, acordam as juízas desta ... Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em julgar a presente apelação parcialmente procedente, e, em consequência:

1º revogar a sentença recorrida na parte em que julgou procedente a acção, e na parte em que condenou a apelante nas custas da acção;

2º manter a sentença recorrida na parte em que julgou improcedente o pedido reconvencional, pese embora com fundamentação diversa, e na parte em que condenou a apelante nas custas desse pedido;

3º substituir a parte decisória da sentença recorrida pelo seguinte dispositivo:

“Decide-se julgar improcedente o pedido formulado pela Autora na petição inicial, e, em consequência, absolver a Ré do mesmo; e decide-se julgar improcedente o pedido reconvencional formulado pela Ré na contestação, e, em consequência, absolver a Autora do mesmo.».


2. Inconformada, veio a A. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«PRIMEIRA: Vem o presente recurso interposto do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa que, revogando a sentença da 1ª Instância, veio a julgar improcedente o pedido formulado pela autora, por considerar verificada a exceção perentória da suspensão da garantia de seguro.

SEGUNDA: Porém, da matéria de facto e dos documentos juntos aos autos (que o Tribunal deu como provados) não se verifica, desde logo, que todo o crédito tenha sido contestado ou impugnado pelo devedor.

TERCEIRA: Na verdade, o que se alcança do teor do documento n.º 6 junto pela ré na contestação (que o tribunal de 1ª Instância deu como provado nos pontos 28, 29 e 30) e que consistem nas comunicações trocadas entre a ré e o devedor, com junção de comunicações trocadas entre o devedor e a autora, é que o devedor, numa primeira instância, admite pagar 50% do valor das faturas e, por essa proposta ter sido recusada pela autora, alega, numa segunda instância, que o stock seria esgotado onde possível aos melhores preços possíveis.

QUARTA: Como tal, na parte correspondente ao crédito reconhecido, a obrigação da ré era a de indemnizar a autora e apenas quanto à parte restante do crédito impugnado é que assistiria à ré o direito de suspender a garantia do crédito.

QUINTA: Por outro lado, nos contratos de seguro de créditos, como assim acontece com o dos presentes autos, impõem-se ao segurado exigentes deveres de informação ao segurador, ao longo da vida do contrato, e de permissão de acesso à escrita e a documentação do segurado, cujo incumprimento é sancionado mais ou menos fortemente (cfr. no caso os pontos das condições gerais); e restringe-se ou exclui-se o poder de decisão do segurado, por ex. exigindo autorização ou concordância do segurador para a prática de certos atos.

SEXTA: Decorre do contrato celebrado entre autora e ré que a partir da comunicação do indício de um sinistro é a ré quem, de forma exclusiva e autónoma, passa a gerir e a tudo tratar quanto à cobrança da totalidade do crédito, renunciando, inclusive, o segurado ao exercício das ações que lhe caberiam contra o devedor.

SÉTIMA: Se assim era, e dispondo a ré da posição manifestada pelo devedor, era sua obrigação interceder junto do devedor e garantir a recuperação de, pelo menos, o valor do crédito por este reconhecido.

OITAVA: E se a ré não o fez, só ela pode ser responsabilizada pela omissão do poder-dever que o contrato lhe conferia, em especial na parte que para estes autos interessa e que tem que ver com a questão do crédito contestado/impugnado.

NONA: Subsidiariamente, e ainda que assim não fosse – o que apenas se admite sob a forma de raciocínio académico – seria manifesto o abuso de direito em que haveria de incorrer a ré ao invocar a suspensão da garantia de crédito.

DÉCIMA: Isto porque se era a ré quem tinha todos os poderes para cobrar e negociar a forma e modalidade de pagamento do crédito junto do devedor e, para além disso, dispunha de informação clara de que o devedor estava disposto a pagar metade desse valor, com o que lhe seria possível – sem que o fosse já à autora – tornar o crédito (ou parte dele) reconhecido e não contestado pelo devedor, constituiria manifesto e evidente abuso de direito o comportamento da ré em abster-se de tal faculdade ou poder e, vir mais tarde, invocar a suspensão da garantia do crédito.

DÉCIMA PRIMEIRA: De igual modo era a ré – e só ela – quem tinha poderes para, querendo, solicitar do devedor a devolução da mercadoria, com o que se consideraria recuperado o crédito e/ou contribuído para minimizar os prejuízos da autora.

DÉCIMA SEGUNDA: Também por isto se impõe que não seja reconhecida a verificação da suspensão da garantia por parte da ré, porquanto constituiria manifesto e evidente abuso de direito por parte da ré, uma vez que foi esta quem originou ou deu causa à previsão de tal suspensão.

DÉCIMA TERCEIRA: Ainda sem prescindir, e tal como alegado pela autora na resposta ao recurso de apelação que ofereceu, resulta de forma clara da cláusula acima transcrita que a autora, ao fazer a participação do sinistro à ré, renunciou ao exercício das ações que lhe caberiam contra o devedor e/ou garante e a ré obrigou-se a outorgar as necessárias procurações a favor da CESCE ou das pessoas que esta indicar.

DÉCIMA QUARTA: Na verdade, aquilo que qualquer declaratário normal retiraria do teor do ponto 8 das C. G. da apólice é que, a partir da participação do sinistro, tudo o que dissesse respeito à cobrança do crédito passou a ser da exclusiva competência da ré, tendo a autora renunciado ao exercício de qualquer ação contra o devedor.

DÉCIMA QUINTA: Perante isto, a única conclusão que se tira é que a autora após ter participado o sinistro estava totalmente impedida e impossibilitada do exercício de qualquer ação judicial contra o cliente final, por ter renunciado a tal direito em favor da ré.

DÉCIMA SEXTA: Pelo que, no seu entender, e no entender de qualquer declaratário normal, não era ela quem teria de diligenciar pela cobrança coerciva ou judicial do crédito, porquanto tinha renunciado a esse direito e tinha se obrigado a outorgar as procurações que fossem necessárias à ré para o efeito.

DÉCIMA SÉTIMA: Assim, como resulta do artigo 11º, n.ºs 1 e 2 do DL n.º 446/86, o sentido das cláusulas do contrato de seguro é determinado em função de um aderente (tomador de seguro) normal colocado na posição do aderente real, sendo que, em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalecerá o sentido mais favorável ao aderente.

DÉCIMA OITAVA: Logo, não pode a autora ser prejudicada no direito que lhe assiste por não ter intentado contra o devedor a competente ação judicial.

DÉCIMA NONA: Mas ainda sem prescindir, resulta dos autos que a ré, no âmbito dos poderes que, reconhecidamente, sabia assistir-lhe, advertiu o devedor de que iria iniciar uma ação judicial para cobrança do crédito.

VIGÉSIMA: Ora, depois da ré ter anunciado que iria avançar com uma ação judicial contra o devedor, não pode a mesma vir invocar a suspensão da garantia do crédito por o crédito não ter sido reconhecido por decisão judicial. – que é o que expressamente prevê a apólice.

VIGÉSIMA PRIMEIRA: Na verdade, se a ré manifesta, de forma expressa, que vai intentar uma ação judicial contra o devedor, através da qual veria reconhecido o crédito (ou parte dele) por decisão judicial transitada em julgado, não pode invocar a suspensão da garantia do crédito por inexistir essa decisão judicial.

VIGÉSIMA SEGUNDA: Pois está a incorrer em manifesto e evidente abuso de direito, e neste caso sem margem para dúvidas, na modalidade de venire contra factum proprium.

VIGÉSIMA TERCEIRA: E assim resultando esta concreta factualidade inserta nos autos, requer-se e impõe-se seja reconhecido o abuso de direito em que incorre a ré, na modalidade de venire contra factum proprium, ao vir invocar a suspensão da garantia do crédito, por inexistir uma decisão judicial transitada em julgado, depois da própria ter anunciado que iria intentar a competente ação judicial contra o devedor e não o ter feito.

VIGÉSIMA QUARTA: Por último e também sem prescindir, como se alcança dos autos, o único argumento que, no momento da participação do sinistro, a ré utilizou para declinar a sua responsabilidade foi o incumprimento das obrigações contratuais de colaboração por parte da ré.

VIGÉSIMA QUINTA: Sem que alguma vez, e ainda que a título subsidiário, tivesse advertido a autora ou alegado o que quer que fosse no sentido de que sempre lhe assistiria o direito de fazer uso da suspensão das garantias do seguro.

VIGÉSIMA SEXTA: Tal comportamento da autora de nada mencionar sobre a situação do reconhecimento do crédito por parte do devedor – quando ela própria sabia que o devedor tinha contestado uma parte do crédito – fez induzir a autora na convicção de que essa questão jamais se poria.

VIGÉSIMA SÉTIMA: Tanto mais que, como acima mencionado, resulta do ponto 8 das C.G da Apólice que, após a participação do sinistro, deixa a autora de ter quaisquer direitos inerentes à recuperação e cobrança do crédito.

VIGÉSIMA OITAVA: Daí que bem tinha andado o Tribunal de 1ª instância a quo ao concluir que o exercício deste direito potestativo por parte da ré excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico desse direito.

VIGÉSIMA NONA: E, de facto, citando os Acórdãos mencionados no corpo deste recurso, à figura do abuso de direito será de aplicar o princípio pelo qual o sujeito deve actuar como pessoa de bem, honestamente, com lealdade … todos devem actuar como pessoas de bem, num quadro de honestidade, correcção, probidade e lealdade de forma a não defraudar as legítimas expectativas e a confiança gerada nos outros;

TRIGÉSIMA: A boa-fé aqui em causa é, como resulta do exposto, a objetiva, que se concretiza em regras de atuação; é a consideração razoável e equilibrada dos interesses dos outros, a honestidade e a lealdade nos comportamentos e, designadamente na celebração e execução dos negócios jurídicos. (sublinhado nosso)

TRIGÉSIMA PRIMEIRA: De salientar também que assegurar expectativas e direccionar condutas são indubitavelmente funções primárias do direito (…) Ou seja: por um lado, assegurar desde logo a confiança fundada nas condutas comunicativas das “pessoas responsáveis”, fundada na própria credibilidade que estas condutas reivindicam, e, por outro lado, dirigir e coordenar dinamicamente a interacção social e criar instrumentos aptos a dirigir e coordenar essa interacção, por forma a alterar as probabilidades de certas condutas no futuro (…) E ambas as funções se relacionam com aquela “paz jurídica” que, ao lado da justiça, é R...ida como uma das expressões da própria “ideia de direito”.

TRIGÉSIMA SEGUNDA: O conflito de interesses e a subsequente necessidade de tutela jurídica apenas surgem quando alguém, estando de boa fé, com base na situação de confiança criada pela contraparte, toma disposições ou organiza planos de vida de onde lhe resultarão danos se a sua legítima confiança vier a ser frustrada.

TRIGÉSIMA TERCEIRA: Vertendo ao caso dos autos, não age como pessoa de bem, num quadro do assinalado, quem, sabendo da contestação de parte do crédito por parte do devedor, não informa o segurado de que tal situação sempre seria causa de suspensão da garantia do seguro.

TRIGÉSIMA QUARTA: Também não age como pessoa de bem, num quadro do assinalado, quem, tendo assumido a gestão do processo de cobrança e recuperação do crédito, e sabendo-o de forma exclusiva, não informa o segurado, ainda que a título subsidiário, que teria este de obter uma decisão judicial transitada em julgado.

TRIGÉSIMA QUINTA: De igual modo, não age como pessoa de bem, num quadro do assinalado, quem, tendo assumido a gestão do processo de cobrança e recuperação do crédito, e sabendo que o devedor havia reconhecido parte desse crédito, não age, nem negoceia no sentido de obter a cobrança do crédito ou parte do mesmo.

TRIGÉSIMA SEXTA: E também não age como pessoa de bem, num quadro do assinalado, quem, tendo assumido a gestão do processo de cobrança e recuperação do crédito, anuncia que vai intentar uma ação judicial contra o devedor e não o faz.

TRIGÉSIMA SÉTIMA: Assim, o que está em causa na figura do abuso de direito, e está em causa especificamente no caso em apreciação nos autos, é uma situação de confiança, traduzida numa boa fé subjectiva e que consistiu na convicção criada na autora de que a questão do reconhecimento do crédito e da obrigação de ser ela a intentar a competente ação judicial não se levantaria.

TRIGÉSIMA OITAVA: O que também está em causa é uma justificação para essa confiança, consistente no facto de a confiança ser fundada em elementos razoáveis, o que se aplica nos presentes autos atento a tudo quanto supra assinalado.

TRIGÉSIMA NONA: Um investimento de confiança, consistente no facto de a destruição da situação de confiança gerar prejuízos graves para o confiante, em virtude de ele ter desenvolvido atividades jurídicas em virtude dessa situação, o que também se verifica no caso dos presentes autos.

QUADRAGÉSIMA: E com relevo, atente-se que se a ré não tivesse utilizado o argumento da falta de colaboração da autora quanto à obtenção dos documentos (que reconhecidamente a ré usou de forma abusiva e infundada) sempre teria sido possível à autora – caso para isso fosse alertada pela ré – ter intentado, em tempo útil, a ação judicial do devedor para reconhecimento do seu crédito.

QUADRAGÉSIMA PRIMEIRA: Por isso, este comportamento da ré, de ter recusado a regularização do sinistro através de um argumento infundado, abusivo e inválido, também terá de ser tido em conta para efeitos de apreciação da aplicação do instituto do abuso de direito.

QUADRAGÉSIMA SEGUNDA: E, por isso é que, defende a ora recorrente, tal como assim entendeu o Tribunal de 1ª Instância, que a ré ao não ter invocado, ainda que subsidiariamente, que poderia vir a lançar mão da figura da suspensão da garantia do seguro, quando era ela quem geria, de forma exclusiva, o processo de cobrança do crédito, ao vir fazê-lo apenas na fase da contestação, fez incorrer a ré em manifesto e evidente abuso de direito, com prejuízos sérios para a autora.

QUADRAGÉSIMA TERCEIRA: Independentemente de estarmos perante a modalidade do venire contra factum proprium ou perante outra qualquer modalidade da figura do abuso de direito.

QUADRAGÉSIMA QUARTA: E se a esta situação particular, adicionarmos o abuso de direito que decorre do facto da ré não ter negociado com o devedor pelo reconhecimento do crédito ou parte dele; e bem assim do abuso de direito evidente e manifesto, e garantidamente na modalidade de venira contra factum proprium, que decorre do facto da ré ter anunciado que iria intentar a competente ação judicial contra o devedor e não o ter feito, e vir agora invocar a suspensão da garantia do seguro por inexistir essa ação judicial,

QUADRAGÉSIMA QUINTA: E se, a isto, acrescentarmos que, volvidos todos estes anos, esta concreta situação de discussão da suspensão da garantia do crédito persiste apenas porque a ré recusou-se a regularizar o sinistro usando um argumento infundado, abusivo e inválido,

QUADRAGÉSIMA SEXTA: Pensámos, sinceramente, não haver dúvidas de que a ré incorre em manifesto e evidente abuso de direito e ainda que é para este tipo de comportamento e condutas inaceitáveis que a figura do abuso de direito foi criada para suprir as insuficiências do sistema legal e judicial.».

Termina pedindo que o recurso seja julgado procedente, condenando-se a R. no pedido formulado pelo A..

A Recorrida contra-alegou, concluindo nos termos seguintes:

«Quanto à revista da recorrente

I - Ao contrário do que a recorrente diz nas suas alegações de revista quanto à impugnação da existência do crédito incluído na participação do sinistro, a única matéria que resultou provada, levada ao item 30 dos factos assentes, refere espessamente que a cliente da recorrente negou a existência do crédito desta.

II - Ainda que assim não fosse, a admissão pela cliente da recorrente de uma responsabilidade de 50% relativamente ao valor facturado nada permitiria concluir para efeitos do direito indemnizatório alegado no libelo.

III - A liquidação da indemnização obedece a critérios próprios - relacionados com as datas dos fornecimentos, o tipo de bens e materiais vendidos, o valor máximo de risco aceite e em vigor aquando das sucessivas vendas a crédito, o prazo de vencimento concedido para cada transacção, a verificação do agravamento de risco dessas vendas.. - sendo insuficiente, portanto, para o respectivo cálculo saber se o devedor reconhece 50% de determinado crédito, pois que seguras poderiam estar, apenas, as vendas relativas aos bens da parte não reconhecida.

IV - O caso da suspensão das garantias do seguro é regulado pelo previsto e estatuído no artigo 7., 7.1., das c.g.a., não de acordo com o disposto no artigo 8. das c.g.a..

V - O âmbito de aplicação do artigo 8. das c.g.a. é o da intervenção da ré junto do cliente faltoso no sentido de obter a cobrança e recuperação dos créditos - que é realidade distinta da contestação ou impugnação pelo cliente devedor da existência dos mesmos créditos.

VI - Em face da impugnação, documentalmente sustentada, acerca da existência do crédito do segurado, a seguradora não pode ser compelida a pagar uma indemnização relativa a um crédito que não é certo, líquido e exigível, como é condição indemnizatória estabelecida na apólice.

VII - É por causa da tensão que se estabelece entre os interesses díspares de seguradora e segurado que a norma do artigo 7., 7.1., a., das c.g.a. não regula definitivamente o sinistro, apenas suspende a garantia do seguro, confiando-se aos Tribunais a decisão definitiva do litígio.

VIII - Obtida pelo segurado sentença que declare a existência de um crédito certo, líquido e exigível, então, a regulação do processo de sinistro é retomada, satisfeita a indemnização, e, nos termos do disposto no artigo 8.º das c.g.a., diligenciará a ré seguradora pela cobrança do crédito, se necessário pela via judicial.

IX - Nunca a recorrida deu causa a qualquer expectativa da recorrente quanto à questão da suspensão das garantias do seguro pela simples razão que não abordou tal tema em fase pré-judicial.

X - Nunca existiu o exercício pela recorrida de uma posição jurídica em contradição com qualquer conduta que tivesse previamente assumido ou proclamado, ou em contradição directa com tal comportamento.

XI - Para que, in casu, pudesse falar-se em abuso do direito seria necessário que a recorrida tivesse anunciado, de forma expressa e positiva, a intenção de não exercer o direito correspondente à suspensão das garantias do seguro - e tal não está minimamente provado.

XII - Sem um comportamento positivo, claro e inequívoco anterior da recorrida, não se vê como pode preterir-se o exercício de um direito que seria declarado não fora o instituto do abuso do direito.

Quanto à ampliação do objecto do recurso

XIII - Quer o interstício de tempo previsto na apólice para comunicar a falta de pagamento, quer o prazo de 30 dias adicionalmente concedidos pela recorrida, eram razoáveis e largamente suficientes para cumprimento pela recorrente da obrigação de juntar todos os documentos necessários à regulação do sinistro.

XIV - Os documentos necessários à regulação do sinistro solicitados pela recorrida existiam e estavam emitidos desde as datas em que a recorrente vendeu, forneceu e transportou para a sua cliente os diversos bens da sua indústria - isto é, e o mais tardar, desde 18/Dezembro/2015.

XV - O regime previsto no DL. n.º 446/95, de 25/Outubro, não é de aplicação ao contrato de seguro de créditos, em atenção à sua natureza jurídica e ao facto de ter sido negociado e celebrado com intervenção de agente de seguros contratado pela recorrente.

XVI - A apólice celebrada entre a recorrente e a recorrida configura um seguro de grandes riscos, segundo a classificação feita nos artigos 5.º, n.º 2, 8.º, al. n), e 12.º, do Regime Jurídico de Acesso e Exercício da Actividade Seguradora e Resseguradora (R.J.A.S.R.), aprovado pela Lei n.º 147/2015, de 9/Setembro.

XVII - Nos seguros de grandes riscos não são imperativas as disposições, designadamente, dos artigos 17.º a 26.º e 100.º a 104.º do R.J.C.S., assim sendo derrogadas as imperatividades previstas em toda a Subsecção I, da Secção II, do Capítulo II, cuja epígrafe é Deveres de informação do segurador.

XVIII - No mesmo sentido, o artigo 22.º, n.º 4, do R.J.C.S. determina que o dever especial de esclarecimento que nele se prevê não é aplicável aos contratos relativos a grandes riscos ou em cuja negociação ou celebração intervenha mediador de seguros, e isso sem prejuízo dos deveres específicos que impendem sobre o mediador.

XIX - Mesmo que fosse de derrogar a disposição contratual em favor do que se prevê na lei geral, verifica-se que o artigo 100.º do R.J.C.S. determina que (i) o sinistro deve ser comunicado ao segurador, (ii) no prazo fixado no contrato ou, no máximo, em 8 dias, (iii) explicitando-se as circunstâncias, as causas e consequências desse mesmo sinistro, acrescendo (iv) a obrigação do segurado de prestar ao segurador todas as informações relevantes que este solicite - tudo objectivando o princípio de colaboração que a recorrente não observou.

XX - A interpretação sufragada pelo a quo viola as disposições contratuais dos artigos 1., 1.3., h., e 6., b., das c.g.a., bem como o disposto nos artigos 5.º, al. c), e 31.º, als. a), b) e e), do DL. n.º 144/2006, de 31/Julho, bem como as normas dos artigos 11.º, 12.º, 13.º, 18.º, 21.º, 22.º, 100.º e 102.º do R.J.C.S., e as disposições dos artigos 5.º, n.º 2, 8.º, al. n), e 12.º do Regime Jurídico de Acesso e Exercício da Actividade Seguradora e Resseguradora.

XXI - A condenação da aqui recorrida no pagamento à recorrente da quantia de EUR. 50.000,00€ configura erro de liquidação, pois que esse importe corresponde ao capital garantido pela apólice (ou limite de risco).

XXII - Fosse devida alguma indemnização à recorrente, e a mesma seria de 95% do limite de risco aceite pela recorrida - isto é, de EUR. 47.500,00€.

XXIII - No caso, é sobre o limite de risco aceite que é aplicada a percentagem máxima de cobertura de 95% prevista na cláusula 6. das condições particulares.

XXIV - Ao não decidir assim, a 1.ª instância desconsiderou os documentos juntos aos autos, nomeadamente das condições gerais e particulares e da acta adicional de classificação.

XXV - Parece, portanto, ser caso para se reformar a sentença, nos termos do disposto no artigo 616.º, n.º 2, al. b), do C.P.C., interpretado a contrario, sob pena de ser violado o disposto nos artigos 1., 1.1. e 1.2., b., 4., 4.1., a. e c., e 7., 7.1., b., das c.g.a., o teor da acta adicional de classificação e o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 183/88, de 24 de Maio - que estabelece o quadro geral do seguro de créditos.».

Termina pugnando pela improcedência do recurso da A. e, subsidiariamente, pelo conhecimento da matéria objecto da ampliação do recurso, com a consequente absolvição do pedido.


3. Vem provado o seguinte (mantêm-se a numeração e a redacção das instâncias):

1 - Com efeitos a partir de 1 de Novembro de 2015, entre Autora e Ré foi celebrado um contrato de seguro, titulado pela apólice nº ...4, com a cobertura contratada para créditos resultantes de vendas no mercado nacional e no mercado externo.

2 - Ficaram cobertos os riscos constantes no ponto 1.2 do Artigo 1., das Condições Gerais da apólice nº ...4:

1.2. Riscos Cobertos

a. INSOLVÊNCIA DEFINITIVA do DEVEDOR

a1. Para o caso de DEVEDORES e/ou GARANTES residentes em Portugal, a decisão definitiva de encerramento da respectiva actividade ou de liquidação da massa insolvente, no âmbito de processo de insolvência.

a2. Para o caso de DEVEDORES e/ou GARANTES não residentes em Portugal, as situações de insolvência ou equivalentes de acordo com a legislação aplicável, nas quais uma autoridade judicial ou administrativa comprovar e declarar por decisão definitiva a impossibilidade do DEVEDOR ou do GARANTE satisfazerem o pagamento das suas obrigações e isso, implicar a falta de pagamento total ou parcial do CRÉDITO.

a3. A redução ou quitação definitivas de créditos no âmbito do processo de insolvência do devedor ou em acordo judicial ou extrajudicial, se este tiver sido previamente aceite pela CESCE.

a4. A inexistência de bens suficientes para o pagamento dos créditos comprovada em processo de execução judicial ou fiscal.

a5. Qualquer outra situação em que o SEGURADO e a CESCE, de comum acordo, considerem o CRÉDITO incobrável.

b. INSOLVÊNCIA PROVISÓRIA do DEVEDOR: A manutenção do CRÉDITO em situação de falta de pagamento durante um prazo determinado, a contar do seu vencimento, seja o inicial ou o prorrogado em conformidade com o Artigo 5, de acordo com o previsto no Quadro de Liquidação constante das Condições Particulares da APÓLICE.

c. A recusa expressa ou tácita do COMPRADOR em levantar a mercadoria sem causa que o justifique, nos CONTRATOS COMERCIAIS referidos exclusivamente a operações com destino fora de Portugal.

3 - A Ré aceitou a cobertura do seguro para a cliente da Autora, com sede em Inglaterra, denominada “F...”, pelo limite estabelecido de 50.000,00€.

4 - Lê-se no artigo 6.º, al. b), das C.G. da apólice nº ...4 que:

“O SEGURADO fará acompanhar a comunicação de falta de pagamento do extracto da sua conta com o DEVEDOR, incluindo os movimentos contabilísticos dos créditos havidos com o mesmo, estejam ou não cobertos pela APÓLICE, e toda a documentação que justificar o seu direito à indemnização, sobretudo a relativa à VENDA e à existência e exigibilidade do CRÉDITO e, se for caso disso, da garantia.”

5 - Lê-se no artigo 6.º, al. b), das C.G. da Apólice nº ...4:

“A CESCE terá acesso aos livros e quaisquer outros documentos relativos ao CRÉDITO ou que eventualmente afectem o mesmo, podendo exigir cópias autenticadas dos originais e/ou a legalização dos documentos emitidos no estrangeiro com a respectiva tradução para português, assinada por um tradutor acreditado. O SEGURADO tem a obrigação de remeter a documentação e informação solicitada nos termos e prazos requeridos pela CESCE para a análise de cobertura da falta de pagamento, realização da gestão da cobrança e seguimento dos expedientes em situação de discussão comercial. O incumprimento do referido dever por parte do TOMADOR ou qualquer dos SEGURADOS exonerará a CESCE da sua obrigação indemnizatória sobre os CRÉDITOS afectados pela referida falta de cumprimento.”

6 - Lê-se no artigo 1.º, 1.3, al. h), das C.G. da apólice nº ...4, que estão excluídos da cobertura do seguro [o]s créditos que não sejam certos, líquidos e exigíveis perante o DEVEDOR e o GARANTE, os que não cumprirem os termos e condições da ACTA ADICIONAL DE CLASSIFICAÇÃO e dos demais termos da APÓLICE, os que se encontrarem afectados pela falta de cumprimento do TOMADOR ou dos SEGURADOS das obrigações estabelecidas na APÓLICE e aqueles que tiverem sido prejudicados por qualquer causa imputável ao TOMADOR/SEGURADOS.

7 - Lê-se no artigo 7.º, n.º 1, al. a), 2.º e 3.º parágrafos, das C.G. da Apólice nº ...4., que “ficam excluídos do previsto no parágrafo anterior os CRÉDITOS contestados ou impugnados pelo DEVEDOR ou os que não forem admitidos pelas autoridades competentes, no caso de processo de insolvência ou procedimento equivalente, nos termos da legislação aplicável”, e que “os referidos CREDITOS não perderão por este simples facto a cobertura da APÓLICE. A garantia do seguro ficará suspensa, e os CRÉDITOS não serão objecto de indemnização, até que o SEGURADO obtenha o reconhecimento do seu direito por decisão judicial ou arbitral definitiva. A CESCE poderá indemnizar provisoriamente estes CRÉDITOS, a solicitação do SEGURADO, contra a apresentação de uma garantia considerada bastante e suficiente pela CESCE.”

8 - No dia 16/10/2015, através da Factura nº. ...58, com vencimento em 15.11.2015, a Autora forneceu ao cliente “F...”:

- 202 pares de sapatos do modelo Banbury Oak/Bison, ao preço unitário de 46,00€

- 138 pares de sapatos do modelo Highgrove Oak/Bison, ao preço unitário de 46,00€ - 75 pares de sapatos do modelo Gatcombe Oak/Navy, ao preço unitário de 46,00€

- 108 pares de sapatos do modelo Gatcombe Oak/Bison, ao preço unitário de 46,00€ - 149 pares de sapatos do modelo Aldington Oak/Bison, ao preço unitário de 47,00€

- 2 pares de sapatos do modelo Highgrove Oak/Bison, ao preço unitário de 46,00€ (Desc.10%) - 2 pares de sapatos do modelo Banbury Oak/Bison, ao preço unitário de 46,00€ (Desc.10%)

- 2 pares de sapatos do modelo Gatcombe Oak/Bison, ao preço unitário de 46,00€ (Desc.10%) - 1 par de sapatos do modelo Aldington Oak/Bison, ao preço unitário de 47,00€ (Desc.10%)

- 3 pares de sapatos do modelo Leisure Rider Black (samples), ao preço unitário de 41,50€

9 - No dia 23/10/2015, através da Factura nº. ...59, com vencimento em 22.11.2015, a Autora forneceu ao cliente “F...”:

- 289 pares de sapatos do modelo Banbury Oak/Bison, ao preço unitário de 46,00€

10 - No dia 23/10/2015, através da Factura nº. ...60, com vencimento em 22.11.2015, a Autora forneceu ao cliente “F...”:

- 125 pares de sapatos do modelo Banbury Oak/Navy, ao preço unitário de 46,00€ - 70 pares de sapatos do modelo Sudbury Oak/Bison, ao preço unitário de 37,00€ - 45 pares de sapatos do modelo Westbury Peat, ao preço unitário de 47,00€

- 5 pares de sapatos do modelo Sudbury Oak/Bison, ao preço unitário de 37,00€ (Desc.10%)

11 - No dia 27/10/2015, através da Factura nº. ...61, com vencimento em 26.11.2015, a Autora forneceu ao cliente “F...”:

- 85 pares de sapatos do modelo Wincanton Chestnut/Chocolate, ao preço unitário de 37,00€ - 17 pares de sapatos do modelo Wincanton, ao preço unitário de 3,00€

- Transport (cartons)

12 - No dia 30/10/2015 através da Factura nº. ...62, com vencimento em 29.11.2015, a Autora forneceu ao cliente “F...”:

- 110 pares de sapatos do modelo Westbury Peat, ao preço unitário de 47,00€

- 70 pares de sapatos do modelo Gatcombe Oak/Bison, ao preço unitário de 46,00€ - 70 pares de sapatos do modelo Sudbury Oak/Bison, ao preço unitário de 37,00€

- 85 pares de sapatos do modelo Banbury Oak/Bison, ao preço unitário de 46,00€

- 5 pares de sapatos do modelo Westbury Peat, ao preço unitário de 47,00€ (Desc.10%)

13 - No dia 06/11/2015, através da Factura nº. ...63, com vencimento em 06.12.2015, a Autora forneceu ao cliente “F...”:

- 99 pares de sapatos do modelo Sudbury Oak/Navy, ao preço unitário de 37,00€

- 56 pares de sapatos do modelo Gatcombe Oak/Bison, ao preço unitário de 46,00€ - 66 pares de sapatos do modelo Gatcombe Oak/Navy, ao preço unitário de 46,00€ - 70 pares de sapatos do modelo Banbury Oak/Camel, ao preço unitário de 46,00€

- 95 pares de sapatos do modelo Wincanton Chestnut/Choco, ao preço unitário de 37,00€ - 95 pares de sapatos do modelo Wincanton Peat, ao preço unitário de 39,00€

- 4 pares de sapatos do modelo Gatcombe Oak/Navy, ao preço unitário de 46,00€ (Desc.10%) - 4 pares de sapatos do modelo Gatcombe Oak/Bison, ao preço unitário de 46,00€ (Desc.10%) - 15 pares de sapatos do modelo Clipper Chestnut, ao preço unitário de 19,50€

- 25 pares de sapatos do modelo Clipper Navy/Chestnut, ao preço unitário de 19,50€

- 20 pares de sapatos do modelo Clipper Oak/Chestnut, ao preço unitário de 19,50€

- 10 pares de sapatos do modelo Bermuda Navy/Magenta, ao preço unitário de 18,40€

- 10 pares de sapatos do modelo Bermuda Navy/Glacier, ao preço unitário de 18,40€

- 10 pares de sapatos do modelo Bermuda Navy/Sand, ao preço unitário de 18,40€

14 - No dia 13/11/2015, através da Factura nº. ...66, com vencimento em 13.12.2015, a Autora forneceu ao cliente “F...”:

- 317 pares de sapatos do modelo Country Rider Oak/Bison, ao preço unitário de 48,50€

- 3 pares de sapatos do modelo Country Rider Oak/Bison, ao preço unitário de 48,50€ (Desc.10%) - 59 pares de sapatos do modelo Atlantic Oak/Navy, ao preço unitário de 50,00€

- 1 par de sapatos do modelo Atlantic Oak/Navy, ao preço unitário de 50,00€ (Desc.10%) - 232 pares de sapatos do modelo Banbury Oak/Bison, ao preço unitário de 46,00€

- 3 pares de sapatos do modelo Banbury Oak/Bison, ao preço unitário de 46,00€ (Desc.10%) - 130 pares de sapatos do modelo Banbury Oak/Navy, ao preço unitário de 46,00€

- 68 pares de sapatos do modelo Wincanton Chestnut, ao preço unitário de 39,00€

- 7 pares de sapatos do modelo Wincanton Chestnut, ao preço unitário de 39,00€ (Desc.10%) - 6 pares de sapatos do modelo Country Rider (Samples), ao preço unitário de 48,50€

- 6 pares de sapatos do modelo Banbury (Samples), ao preço unitário de 46,00€ - 6 pares de sapatos do modelo Sudbury (Samples), ao preço unitário de 37,00€

- 3 pares de sapatos do modelo Wincanton (Samples), ao preço unitário de 39,00€

15 - No dia 20/11/2015, através da Factura nº. ...67, com vencimento em 20.12.2015, a Autora forneceu ao cliente “F...”:

- 160 pares de sapatos do modelo Banbury Oak/Navy, ao preço unitário de 46,00€

- 110 pares de sapatos do modelo Highgrove Oak/Bison, ao preço unitário de 46,00€ - 85 pares de sapatos do modelo Sudbury Oak/Bison, ao preço unitário de 37,00€

- 45 pares de sapatos do modelo Highgrove Oak/Navy, ao preço unitário de 46,00€ - 110 pares de sapatos do modelo Gatcombe Oak/Bison, ao preço unitário de 46,00€ - 95 pares de sapatos do modelo Banbury Oak/Bison, ao preço unitário de 46,00€

- 70 pares de sapatos do modelo Sudbury Oak/Navy, ao preço unitário de 37,00€

16 - No dia 27/11/2015, através da Fatura nº. ...69, com vencimento em 27.12.2015, a Autora forneceu ao cliente “F...”:

- 95 pares de sapatos do modelo Aldington Oak/Bison, ao preço unitário de 47,00€

- 70 pares de sapatos do modelo Leisure Rider Chestnut, ao preço unitário de 41,50€ - 100 pares de sapatos do modelo Sudbury Oak/Bison, ao preço unitário de 37,00€

- 105 pares de sapatos do modelo Banbury Oak/Bison ao preço unitário de 46,00€

- 135 pares de sapatos do modelo Banbury Oak/Navy, ao preço unitário de 46,00€

17 - No dia 04/12/2015, através da Factura nº. ...70, com vencimento em 03.01.2016, a Autora forneceu ao cliente “F...”:

- 129 pares de sapatos do modelo Banbury Oak/Bison, ao preço unitário de 46,00€ - 75 pares de sapatos do modelo Sudbury Oak/Navy, ao preço unitário de 37,00€

- 75 pares de sapatos do modelo Gatcombe Oak/Navy, ao preço unitário de 46,00€ - 139 pares de sapatos do modelo Banbury Oak/Navy, ao preço unitário de 46,00€ - 100 pares de sapatos do modelo Westbury Peat, ao preço unitário de 47,00€

- 70 pares de sapatos do modelo Leisure Rider Black, ao preço unitário de 41,50€

- 1 par de sapatos do modelo Banbury Oak/Navy, ao preço unitário de 46,00€ (Desc.10%) - 1 par de sapatos do modelo Banbury Oak/Bison, ao preço unitário de 46,00€ (Desc.10%)

18 - No dia 11/12/2015, através da Factura nº. ...71, com vencimento em 10.01.2016, a Autora forneceu ao cliente “F...”:

- 105 pares de sapatos do modelo Sudbury Oak/Bison, ao preço unitário de 37,00€

- 65 pares de sapatos do modelo Wincanton Chestnut/Choco, ao preço unitário de 37,00€ - 75 pares de sapatos do modelo Gatcombe Oak/Bison, ao preço unitário de 46,00€

- 15 pares de sapatos do modelo Highgrove Oak/Bison, ao preço unitário de 46,00€ - 50 pares de sapatos do modelo Banbury Oak/Bison, ao preço unitário de 46,00€

- 25 pares de sapatos do modelo Gatcombe Oak/Bison, ao preço unitário de 46,00€

19 - No dia 18/12/2015, através da Factura nº. ...73, com vencimento em 17.01.2016, a Autora forneceu ao cliente “F...”:

- 70 pares de sapatos do modelo Bermuda Navy/Magenta, ao preço unitário de 18,40€ - 75 pares de sapatos do modelo Bermuda Navy/Glacier, ao preço unitário de 18,40€

- 45 pares de sapatos do modelo Clipper Chestnut, ao preço unitário de 19,50€

- 25 pares de sapatos do modelo Clipper Navy/Chestnut, ao preço unitário de 19,50€ - 55 pares de sapatos do modelo Clipper Oak/Chestnut, ao preço unitário de 19,50€ - 1 Transport by TNT, no valor de 253€

20 - O preço constante das facturas acima referido não foi liquidado.

21 - A Autora em 05/Maio/2016 participou um sinistro à Ré, comunicando a falta de pagamento por parte da cliente “F...” do valor de € 213.254,72, instruindo essa participação com as facturas nºs ...58, ...59, ...60, ...61, ...62, ...63, ...66, ...67, ...69, ...71, mostrando-se em falta a n.º 2015/0070, e com cópia de um extracto de conta corrente.

22 - Por comunicações datadas de 12/Maio/2016, 17/Maio/2016 e 24/Maio/2016 dirigidas à Autora a Ré referiu:

“Relativamente ao processo de sinistro acima identificado , recordamos que ainda não recebemos toda a documentação solicitada , pelo que não é possível procedermos à respectiva análise de cobertura.

Documentação em falta: Cópia

Guias de remessa

...15.0058,       ...59,    ...60,    ...61, ...62, ...63, ...66, ...67, ...69, ...70, ...71

Documentação recebida: Cópia

Facturas:

...15.0058,       ...59,    ...60,    ...61, ...62, ...63, ...66, ...67, ...69, ...70, ...71

Guias de remessa ...3 Extracto de conta (…)

Tal como referido em comunicações anteriores, no dia 4/6/2016 termina o prazo para que nos seja enviada toda a documentação em falta relativa ao processo em causa. Ultrapassado este prazo, será prejudicado o direito à prestação indemnizatória, nos termos das Condições Gerais da Apólice”

23 - A Autora remeteu ao seu agente de seguros, em 27/Maio/2016 - que, por sua vez a fez chegar à Ré por e-mail datado de 03/Junho/2016 -, cópia dos documentos juntos de fls. 81-verso a 84, relativos às facturas ...70, ...71 e ...73.

24 - A Autora solicitou ao agente do transitário em Inglaterra os documentos comprovativos da entrega da mercadoria partir de 5.5.2016.

25 - Só no dia 9.6.2016 a Autora logrou obter do transitário os documentos solicitados e enviá-los à Ré.

26 - No dia 3 de Junho de 2016 dirigiu uma comunicação, via e-mail, à Ré, justificando a dificuldade que estava a ter em obter os documentos em falta, com cópia dos e-mails dirigidos ao transitário, e solicitou a prorrogação da data limite de apresentação de documentos.

27 - A Ré informou a Autora, por carta datada de 07/Junho/2016, que:

“Relativamente ao processo de sinistro acima identificado, apesar de já vos ter sido solicitado ainda não nos enviaram os documentos abaixo identificados, necessários para realizar a análise de cobertura.

Documentação não admitidos como válidos após análise: Doc. Classificados inválido após ser analisado:

Cópia

Guias de remessa

...15.58, ...15.59, ...15.60, ...15.61, ...15.62, ...15.63,...15.66,...15.67, ...15.69, ...15.70, ...15.71, ...15.73

Em comunicações anteriores, informámos que, uma vez ultrapassada a data limite para o envio à CESCE de toda a documentação solicitada, o processo de sinistro ficaria encerrado definitivamente por falta de colaboração.

Lamentamos comunicar que, ultrapassado o referido prazo sem que tenhamos recebido resposta aos nossos pedidos de documentação, o que constitui um incumprimento do vosso dever de colaboração previsto nas Condições Gerais da Apólice, esta Companhia considera-se exonerada da responsabilidade indemnizatória em relação a este processo de sinistro, por incumprimento das vossas obrigações contratuais de colaboração.”

28 - A Ré remeteu carta datada de 06/Maio/2016 solicitando à cliente da Autora o pagamento imediato de um saldo devedor no valor de € 213254,72 e/ou obter informações sobre os motivos da situação de incumprimento.

29 - A Ré remeteu carta datada de 26/Maio/2016 exigindo à cliente da Autora “a inescusável liquidação da dívida”, advertindo que “se no prazo de DEZ DIAS, a partir de hoje, não recebermos elementos de prova de que o assunto foi resolvido, iremos dar instruções aos nossos assessores jurídicos no Reino Unido para iniciar imediatamente uma ACÇÃO JURÍDICA.”

30 - “F...” enviou carta e recebida pela Ré em 02/Junho/2016 na qual consignou:

“Contestamos que haja qualquer valor em dívida para com o vosso cliente.

O vosso cliente está ciente de que produziu calçado de má qualidade para a nossa empresa, desadequado para o efeito. (…)

Os nossos advogados (…) comunicaram-lhes que, uma vez que não existia qualquer acordo, o stock defeituoso seria esgotado onde possível, aos melhores preços possíveis. Após um período de doze meses, que terminaria em Fevereiro de 2017, elaboraríamos uma conciliação das receitas provenientes das vendas efectuadas”.

31 - Lê-se no artigo 8.º, 8.1, al. a), das C.G. da Apólice que: “A comunicação de falta de pagamento constitui a instrução do SEGURADO à CESCE para que esta inicie as acções de cobrança e recuperação do crédito perante o DEVEDOR, assumindo a CESCE, a partir desse momento, a direcção da gestão da cobrança da totalidade dos créditos, incluindo a percentagem a cargo do SEGURADO e por rubricas acessórias ao CRÉDITO, quer estejam ou não seguras, renunciando o SEGURADO ao exercício das acções que lhe caberiam contra o DEVEDOR e/ou GARANTE”.


4. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Assim, o presente recurso tem como objecto as seguintes questões:

- Na parte correspondente ao crédito reconhecido pelo devedor, a R. tinha obrigação de indemnizar a A., tendo a R. incumprido a obrigação de diligenciar e garantir junto desse devedor a recuperação de, pelo menos, essa parte do crédito;

- Não há lugar à suspensão da garantia de crédito, uma vez que, feita a participação do sinistro, se devem interpretar as cláusulas das Condições Gerais no sentido de estar a A. impedida de intentar acção judicial contra o seu devedor; 

- Actua a R. em abuso do direito ao invocar a suspensão da garantia de crédito:

- Por ser a mesma R. quem se encontrava em condições de negociar e/ou cobrar o crédito (ou parte dele) sobre a devedora da A.;

- Por ter advertido a devedora de que iria iniciar um procedimento judicial para cobrança de créditos;

- Por se ter recusado a pagar a indemnização pedida pela A. sempre e apenas com base em falta de cumprimento dos deveres de comunicação do sinistro por parte da mesma A..

Esclareça-se que, embora enunciada em segundo lugar, a questão relativa ao invocado não funcionamento da cláusula contratual que prevê a suspensão da garantia de crédito precede logicamente a apreciação das demais questões, uma vez que, a proceder a pretensão da Recorrente a este respeito, teria a mesma direito a uma indemnização pela totalidade do crédito e não apenas por parte dele.

O pedido de ampliação do objecto do recurso, formulado pela R., que se admite ao abrigo do art. 636.º, n.º 1, do CPC, refere-se às seguintes questões:

- Desrespeito pela A. dos prazos de comunicação e entrega de documentos relativos ao sinistro;

- Aplicação do limite de indemnização contratualmente previsto.


5. Com a presente acção pretende a A. accionar o seguro de crédito contratado com a R. seguradora, pedindo, a título principal, que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de €57.000,00, acrescida de juros de mora vincendos, calculados à taxa comercial, a incidir sobre o capital de €50.000,00; e, a título subsidiário, que a R. seja condenada a pagar-lhe a quantia de €51.877,18, acrescida de juros de mora vincendos, calculados à taxa comercial, a incidir sobre o capital de €45.506,30.

Em sede de contestação invocou a R. os seguintes fundamentos para a improcedência da acção: (i) a A. incumpriu as suas obrigações contratuais de enviar para a R. a documentação referente ao sinistro; (ii) o crédito foi contestado pela empresa devedora, pelo que, de acordo com o previsto no contrato, há lugar a suspensão da garantia de crédito até que seja obtido pela A. o reconhecimento do seu crédito por decisão judicial ou arbitral definitiva.

A sentença da 1.ª instância considerou o primeiro fundamento improcedente; e, a respeito do segundo fundamento, entendeu que, não tendo sido invocado pela R. na fase extrajudicial, constituía exercício abusivo do direito vir invocá-lo em sede de acção judicial. Em consequência, julgou a acção procedente, condenando a R. a pagar à A. a quantia de €50.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal contados desde 09.08.2016.

Tendo a R. seguradora apelado, veio o Tribunal da Relação a decidir:

1.º) Ser aplicável a cláusula contratual de suspensão da garantia de crédito pelas razões assim sintetizadas:

«Em suma:

- de   acordo com  os factos apurados, estamos perante um crédito contestado/impugnado pela devedora da segurada/Autora;

- nos termos dos 2º e 3º parágrafos da Cláusula 7ª.1.a. das Condições Gerais do contrato dos autos é condição necessária para que a seguradora proceda à liquidação da indemnização de um crédito contestado/impugnado, que o segurado obtenha o reconhecimento de tal crédito por decisão judicial ou arbitral definitiva;

- a Autora não alegou nem provou nestes autos que o crédito (contestado/impugnado pela devedora) que invocou perante a Ré esteja reconhecido por decisão judicial ou arbitral definitiva, sendo certo que o respectivo ónus de alegação e prova lhe incumbia por aquele reconhecimento por decisão judicial ou arbitral definitiva consubstanciar facto constitutivo do seu direito, nos termos do art. 342º, nº 1 do Cód. Civil.».

2.º) Não existir exercício abusivo do direito da R. a invocar a suspensão da garantia de crédito pelas seguintes razões:

«Volvendo à situação dos autos, retome-se, em síntese, a dinâmica dos factos: após a participação do sinistro pela Autora e no âmbito da fase de instrução que levou a cabo, a Ré comunicou à Autora a sua decisão final de encerrar o processo de sinistro recusando a sua responsabilidade indemnizatória (“considera-se exonerada da responsabilidade indemnizatória em relação a este processo de sinistro”), fundamentando tal recusa no incumprimento das obrigações contratuais da Autora, máxime, do dever de colaboração previsto nas Condições Gerais da Apólice por ter sido ultrapassado o prazo concedido por aquela para a Autora enviar a documentação referente aos factos participados (cfr. Factos Provados sob o nº 27.).

Em sede deste processo, a Ré mantém esta pretensão de recusa da sua responsabilidade indemnizatória por violação de deveres contratuais por parte da Autora, invocando, para o caso de ser entendido judicialmente não se encontrar exonerada da sua responsabilidade indemnizatória por aquela razão, a previsão dos 2º e 3º parágrafos da 7ª.1.a. Cláusula das Condições Gerais do contrato, de suspensão da garantia do seguro até ser reconhecido, por decisão judicial ou arbitral definitiva, o direito da Autora perante a sua devedora.

Sendo este o enquadramento factual, não se colhem elementos factuais passíveis de justificar uma situação de abuso de direito, sob a perspectiva do venire contra factum proprium, pois que não se detectam os respectivos pressupostos acima delineados, máxime, a existência de um comportamento inicial da Ré que haja sido contrariado por um comportamento posterior, e a existência de um comportamento anterior da Ré susceptível de basear uma situação objectiva de confiança na Autora de que não se iria fazer prevalecer da faculdade contratual que lhe é conferida pela Cláusula 7.1.a. das Condições Gerais do contrato.».


6. Como se afirmou supra, importa começar por apreciar a correcção da decisão do tribunal a quo de aplicar ao caso dos autos a cláusula 7ª das Condições Gerais do contrato que prevê a suspensão da garantia de crédito.

Está em causa, essencialmente, a interpretação conjugada das seguintes cláusulas do contrato de seguro de crédito celebrado entre as partes, constantes da matéria de facto:

6 - Lê-se no artigo 1.º, 1.3, al. h), das C.G. da apólice nº ...4, que estão excluídos da cobertura do seguro [o]s créditos que não sejam certos, líquidos e exigíveis perante o DEVEDOR e o GARANTE, os que não cumprirem os termos e condições da ACTA ADICIONAL DE CLASSIFICAÇÃO e dos demais termos da APÓLICE, os que se encontrarem afectados pela falta de cumprimento do TOMADOR ou dos SEGURADOS das obrigações estabelecidas na APÓLICE e aqueles que tiverem sido prejudicados por qualquer causa imputável ao TOMADOR/SEGURADOS.

7 - Lê-se no artigo 7.º, n.º 1, al. a), 2.º e 3.º parágrafos, das C.G. da Apólice nº ...4., que ficam excluídos do previsto no parágrafo anterior os CRÉDITOS contestados ou impugnados pelo DEVEDOR ou os que não forem admitidos pelas autoridades competentes, no caso de processo de insolvência ou procedimento equivalente, nos termos da legislação aplicável”, e que os referidos CRÉDITOS não perderão por este simples facto a cobertura da APÓLICE. A garantia do seguro ficará suspensa, e os CRÉDITOS não serão objecto de indemnização, até que o SEGURADO obtenha o reconhecimento do seu direito por decisão judicial ou arbitral definitiva. A CESCE poderá indemnizar provisoriamente estes CRÉDITOS, a solicitação do SEGURADO, contra a apresentação de uma garantia considerada bastante e suficiente pela CESCE.”

31 - Lê-se no artigo 8.º, 8.1, al. a), das C.G. da Apólice que: A comunicação de falta de pagamento constitui a instrução do SEGURADO à CESCE para que esta inicie as acções de cobrança e recuperação do crédito perante o DEVEDOR, assumindo a CESCE, a partir desse momento, a direcção da gestão da cobrança da totalidade dos créditos, incluindo a percentagem a cargo do SEGURADO e por rubricas acessórias ao CRÉDITO, quer estejam ou não seguras, renunciando o SEGURADO ao exercício das acções que lhe caberiam contra o DEVEDOR e/ou GARANTE”.

Dando como assente que, de acordo com a cláusula 1.ª, 1.3, alínea h), das Condições Gerais do contrato de seguro de crédito, estão excluídos da cobertura do seguro os créditos que não sejam certos, líquidos e exigíveis, as partes divergem quanto ao sentido a retirar da interpretação conjunta das cláusulas 7.ª e 8.ª das referidas Condições Gerais.

Considera a A. que a cláusula 8.ª deve aplicar-se a todas as acções respeitantes ao reconhecimento, recuperação e cobrança do crédito, enquanto a R. entende que se deve distinguir: ao segurado cabe propor as acções declarativas cuja finalidade seja o reconhecimento do crédito; e à seguradora cabe propor as acções declarativas de condenação e as acções executivas cuja finalidade seja a recuperação e a cobrança do mesmo crédito.

O acórdão recorrido seguiu o segundo entendimento, que corresponde, no essencial, à posição assumida pela R. seguradora. Insurge-se a A, ora Recorrente, contra tal orientação, pugnando pela prevalência do primeiro sentido interpretativo.


7. A resolução do diferendo implica, antes de mais, que se identifiquem as regras interpretativas aplicáveis ao caso dos autos.

Reportando-se embora à resolução da questão da tempestividade da remessa da documentação relativa ao sinistro, ambas as instâncias subsumiram o contrato de seguro dos autos ao regime das Cláusulas Contratuais Gerais.

Contra, invoca a R., ora Recorrida, o seguinte: «O regime previsto no DL. n.º 446/95, de 25/Outubro, não é de aplicação ao contrato de seguro de créditos, em atenção à sua natureza jurídica e ao facto de ter sido negociado e celebrado com intervenção de agente de seguros contratado pela recorrente.»; «A apólice celebrada entre a recorrente e a recorrida configura um seguro de grandes riscos, segundo a classificação feita nos artigos 5.º, n.º 2, 8.º, al. n), e 12.º, do Regime Jurídico de Acesso e Exercício da Actividade Seguradora e Resseguradora (R.J.A.S.R.), aprovado pela Lei n.º 147/2015, de 9/Setembro.».

Quid iuris?


7.1. Verifica-se que, efectivamente, o seguro dos autos é qualificável como seguro de grandes riscos, não por aplicação das normas, invocadas pela Recorrida, dos arts. 5.º, n.º 2, 8.º, alínea n), e 12.º, do Regime Jurídico de Acesso e Exercício da Actividade Seguradora e Resseguradora, aprovado pela Lei n.º 147/2015, de 9 de Setembro – uma vez que o contrato em causa entrou em vigor em 1 de Novembro de 2015 (cfr. facto provado 1), enquanto aquelas normas legais apenas produziram efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2016 (cfr. art. 37.º da Lei n.º 147/2015) –, mas antes por aplicação do regime do art. 3.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 351/91, de 20 de Setembro (no qual se dispõe que «[o]s riscos que respeitem aos ramos de seguro referidos nos n.ºs 14) e 15) do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 85/86, de 7 de Maio, sempre que o tomador exerça a título profissional uma actividade industrial, comercial ou liberal e o risco se reporte a essa actividade.»), tendo em conta que o n.º 14) do Decreto-Lei n.º 85/86, de 7 de Maio se refere precisamente aos seguros de crédito.

Porém, a qualificação como seguro de grandes riscos não determina o afastamento do regime das Cláusulas Contratuais Gerais. Com efeito, o Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, é aplicável aos contratos de seguro – incluindo aqueles que, como o dos autos, são celebrados entre empresas (cfr. art. 17.º) – desde que revistam a natureza de contratos de adesão (art. 1.º, n.º 1) ou desde que o seu conteúdo, previamente elaborado, não possa ser influenciado pelo destinatário (art. 1º, n.º 2). Ora, no caso sub judice, não basta a R. seguradora vir invocar que o contrato foi «negociado e celebrado com intervenção de agente de seguros contratado pela recorrente» para afastar a aplicação do diploma das Cláusulas Contratuais Gerais, porque sempre faltaria provar que, ao celebrar o contrato de seguro de crédito, a empresa, aqui A., pôde influenciar o conteúdo do mesmo.

Conclui-se, assim, pela aplicabilidade do regime do DL n.º 446/85 ao contrato dos autos.


7.2. Em matéria de interpretação, o referido diploma legal dispõe o seguinte:

Artigo 10.º

(Princípio geral)

«As cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam.».

Artigo 11.º

(Cláusulas ambíguas)

«1 - As cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real.

2 - Na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente.

3 - O disposto no número anterior não se aplica no âmbito das acções inibitórias.».

Em virtude da remissão implícita da primeira parte do art. 10.º para a norma do art. 236.º do Código Civil, aplica-se ao caso dos autos o princípio de que «[a] declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele», ainda que, de acordo com o segundo comando ínsito na segunda parte do art. 10.º do DL n.º 446/85, a interpretação das cláusulas realiza-se «sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam».

No caso dos autos, tendo presente que, segundo a cláusula 1.ª, 1.3, alínea h), das Condições Gerais do contrato, se excluem da cobertura do seguro dos créditos que não sejam certos, líquidos e exigíveis, vejamos qual o sentido a retirar da interpretação conjunta das cláusulas 7.ª e 8.ª das Condições Gerais.

Na cláusula 7.ª, referindo-se aos «CRÉDITOS contestados e impugnados pelo DEVEDOR», prevê-se que «[a] garantia do seguro ficará suspensa, e os CRÉDITOS não serão objecto de indemnização, até que o segurado obtenha o reconhecimento do seu direito por decisão judicial ou arbitral definitiva». Enquanto na cláusula 8.ª se dispõe que «[a] comunicação de falta de pagamento constitui a instrução do SEGURADO à CESCE para que esta inicie as acções de cobrança e recuperação do crédito perante o DEVEDOR, assumindo a CESCE, a partir desse momento, a direcção da gestão da cobrança da totalidade dos créditos (...), renunciando o SEGURADO ao exercício das acções que lhe caberiam contra o DEVEDOR».

A conjugação de ambas as cláusulas é tudo menos clara. Se fizermos prevalecer o teor da cláusula 7.ª, em relação a créditos contestados pelo devedor – como sucede no caso dos autos (facto provado 30) – funcionará a suspensão da garantia do seguro até que o segurado (a aqui A.) obtenha, através de acção declarativa de simples apreciação, o reconhecimento do direito. Alcançado este objectivo, caberá então à seguradora propor a acção declarativa de condenação e a acção executiva de recuperação e cobrança do crédito. Se, diversamente, fizermos prevalecer o teor da cláusula 8.º, uma vez comunicada à seguradora a falta de pagamento do crédito, caberá exclusivamente à seguradora instaurar todas acções, sejam elas respeitantes ao reconhecimento, à condenação ou à recuperação e cobrança do crédito.

Ambos os resultados interpretativos são admissíveis. Razão pela qual – de acordo com a norma sobre cláusulas ambíguas prevista no n.º 2 do art. 11.º do DL n.º 446/85 («Na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente») – deve prevalecer o segundo resultado interpretativo

A prevalência deste resultado é também reforçada pelo comportamento das partes na fase de execução do contrato. Para o efeito, relevam os seguintes factos provados:

21 - A Autora em 05/Maio/2016 participou um sinistro à Ré, comunicando a falta de pagamento por parte da cliente “F...” do valor de € 213.254,72 (...)

28 - A Ré remeteu carta datada de 06/Maio/2016 solicitando à cliente da Autora o pagamento imediato de um saldo devedor no valor de € 213254,72 e/ou obter informações sobre os motivos da situação de incumprimento.

29 - A Ré remeteu carta datada de 26/Maio/2016 exigindo à cliente da Autora “a inescusável liquidação da dívida”, advertindo que “se no prazo de DEZ DIAS, a partir de hoje, não recebermos elementos de prova de que o assunto foi resolvido, iremos dar instruções aos nossos assessores jurídicos no Reino Unido para iniciar imediatamente uma ACÇÃO JURÍDICA.”

30 - “F...” enviou carta e recebida pela Ré em 02/Junho/2016 na qual consignou:

“Contestamos que haja qualquer valor em dívida para com o vosso cliente.

(...).”.

 Da factualidade dada como provada, extrai-se que, no dia imediatamente subsequente a ter recebido a participação do sinistro (a falta de pagamento do crédito de que a A. é titular), a R. seguradora iniciou o processo de cobrança do mesmo crédito junto da devedora; resulta também que, mesmo sem aguardar a recepção de toda a documentação relativa ao sinistro tida como relevante (cfr. factos provados 22 a 26), a mesma R. advertiu formalmente a devedora de que, no prazo de dez dias a contar da comunicação, instauraria uma acção judicial nos tribunais britânicos.

Este comportamento da R. seguradora indicia, de forma segura, que a mesma R. entendia competir-lhe a condução de todos os procedimentos judiciais, seja de reconhecimento, seja de condenação ou de recuperação e cobrança do crédito segurado. Entendimento que corresponde, afinal, ao resultado interpretativo defendido pela A..

Deste modo, conclui-se que o direito invocado pela A. não se encontra sujeito ao regime de suspensão da garantia de crédito contratualmente previsto.


8. Perante esta conclusão, fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pela A. (que correspondem a outros tantos fundamentos de procedência total ou parcial da acção), tornando-se, porém, necessário conhecer das questões que integram a ampliação do objecto do recurso requerida pela R., a saber:

- Do desrespeito pela A. dos prazos de comunicação e entrega de documentos relativos ao sinistro;

- Da aplicação do limite de indemnização contratualmente previsto.


9. Quanto à questão do invocado desrespeito pela A. dos prazos de comunicação e entrega de documentos relativos ao sinistro, relevam os seguintes factos provados:

21 - A Autora em 05/Maio/2016 participou um sinistro à Ré, comunicando a falta de pagamento por parte da cliente “F...” do valor de € 213.254,72, instruindo essa participação com as facturas nºs ...58, ...59, ...60, ...61, ...62, ...63, ...66, ...67, ...69, ...71                    , mostrando-se em falta a n.º 2015/0070, e com cópia de um extracto de conta corrente.

22 - Por comunicações datadas de 12/Maio/2016, 17/Maio/2016 e 24/Maio/2016 dirigidas à Autora a Ré referiu:

“Relativamente ao processo de sinistro acima identificado, recordamos que ainda não recebemos toda a documentação solicitada, pelo que não é possível procedermos à respectiva análise de cobertura.

(...)

Tal como referido em comunicações anteriores, no dia 4/6/2016 termina o prazo para que nos seja enviada toda a documentação em falta relativa ao processo em causa. Ultrapassado este prazo, será prejudicado o direito à prestação indemnizatória, nos termos das Condições Gerais da Apólice”

23 - A Autora remeteu ao seu agente de seguros, em 27/Maio/2016 - que, por sua vez a fez chegar à Ré por e-mail datado de 03/Junho/2016 -, cópia dos documentos juntos de fls. 81-verso a 84, relativos às facturas ...70, ...71 e ...73.

24 - A Autora solicitou ao agente do transitário em Inglaterra os documentos comprovativos da entrega da mercadoria partir de 5.5.2016.

25 - Só no dia 9.6.2016 a Autora logrou obter do transitário os documentos solicitados e enviá-los à Ré.

26 - No dia 3 de Junho de 2016 dirigiu uma comunicação, via e-mail, à Ré, justificando a dificuldade que estava a ter em obter os documentos em falta, com cópia dos e-mails dirigidos ao transitário, e solicitou a prorrogação da data limite de apresentação de documentos.

27 - A Ré informou a Autora, por carta datada de 07/Junho/2016, que:

“Relativamente ao processo de sinistro acima identificado, apesar de já vos ter sido solicitado ainda não nos enviaram os documentos abaixo identificados, necessários para realizar a análise de cobertura.

(...)

Em comunicações anteriores, informámos que, uma vez ultrapassada a data limite para o envio à CESCE de toda a documentação solicitada, o processo de sinistro ficaria encerrado definitivamente por falta de colaboração.

Lamentamos comunicar que, ultrapassado o referido prazo sem que tenhamos recebido resposta aos nossos pedidos de documentação, o que constitui um incumprimento do vosso dever de colaboração previsto nas Condições Gerais da Apólice, esta Companhia considera-se exonerada da responsabilidade indemnizatória em relação a este processo de sinistro, por incumprimento das vossas obrigações contratuais de colaboração.”.

Perante a factualidade dada como provada, o acórdão recorrido, sufragando, nesta parte, o entendimento da 1.ª instância, apreciou, de forma extensa e detalhada, a argumentação aduzida pela seguradora em sede de recurso de apelação, concluindo, no essencial, que, nas circunstâncias concretas dos autos, a segurada não desrespeitou os termos contratualmente fixados na cláusula 6.ª, alínea b), das Condições Gerais relativamente ao fornecimento da documentação solicitada pela seguradora.

Insurge-se a R. contra esta decisão, alegando o seguinte:

- Que as circunstâncias concretas dos autos não justificavam que a A. tivesse necessitado de ultrapassar o prazo de trinta dias que lhe fora assinalado pela seguradora para fornecer a documentação relativa ao sinistro;

- Que o regime previsto no DL. n.º 446/95, de 25 de Outubro, não é de aplicação ao contrato de seguro de créditos;

- Que, estando em causa um seguro de grandes riscos, não são imperativas as disposições dos arts. 17.º a 26.º e 100.º a 104.º do Regime Juridico do Contrato de Seguro, nem, por determinação do art. 22.º, n.º 4, do mesmo RJCS, é aplicável o dever especial de esclarecimento;

- Que, de qualquer forma, «o artigo 100.º do R.J.C.S. determina que (i) o sinistro deve ser comunicado ao segurador, (ii) no prazo fixado no contrato ou, no máximo, em 8 dias, (iii) explicitando-se as circunstâncias, as causas e consequências desse mesmo sinistro, acrescendo (iv) a obrigação do segurado de prestar ao segurador todas as informações relevantes que este solicite - tudo objectivando o princípio de colaboração que a recorrente não observou».

Vejamos.

No que respeita ao juízo acerca da remessa, pela A., da documentação relativa ao sinistro exigida pela seguradora cinco dias para além do prazo de trinta dias fixado unilateralmente pela mesma Seguradora, o acórdão recorrido entendeu essencialmente o seguinte: «(...) logo aquando da comunicação do sinistro à seguradora, a segurada enviou-lhe os documentos de que dispunha; por outro lado, no fixado prazo de trinta dias, a segurada entregou à seguradora todos os documentos por esta solicitados, com excepção de alguns deles cuja obtenção tinha solicitado a terceiros logo aquando da comunicação do sinistro; e por outro lado, ainda, estes últimos documentos que faltavam entregar chegaram ao poder da segurada e foram logo enviados à seguradora decorridos apenas cinco dias após o terminus do prazo de trinta dias fixado, sendo certo que, antes de tal terminus, a segurada tinha solicitado à seguradora a prorrogação do prazo para aquela junção, justificando – e comprovando - a dificuldade que estava a ter na obtenção dos documentos.».

Sufraga-se inteiramente o entendimento do acórdão da Relação. Com efeito, estando em causa um prazo (de trinta dias) assinalado unilateralmente pela R.; estando provado que a A. diligenciou no sentido de entregar os documentos obtidos dentro desse prazo; estando provado que apenas não logrou fazê-lo em relação a documentos dependentes de terceiros; estando provado que, avisando previamente a seguradora, veio a remeter os documentos em falta cinco dias após o termo do prazo que lhe fora assinalado; dúvidas não subsistem de que, à luz do princípio da boa fé no cumprimento dos contratos (art. 762.º do Código Civil), se deve entender ter a A. respeitado a obrigação de comunicação a que se encontrava contratualmente obrigada.

Alega ainda a R. que o diploma legal das CCG não é aplicável ao contrato de seguro dos autos. Vimos supra (ponto 7.1. do presente acórdão) que tal alegação carece de razão. Mas, ainda que, porventura, assim não fosse, e o contrato estivesse fora do âmbito de aplicação do DL n.º 446/85, ainda assim, sempre lhe seria aplicável o princípio da boa fé que preside à celebração (art. 227.º do Código Civil), interpretação (art. 239.º do CC) e cumprimento (art. 762.º do CC) da generalidade dos contratos.

Não se vislumbra, nem a Recorrida o concretiza, que o juízo acerca do respeito pelos deveres de comunicação a que a segurada se encontrava adstrita seja contrariado por qualquer das normas do RJCS enunciadas pela R., das quais decorrem especificidades, no domínio dos seguros de grandes riscos, quanto aos deveres de informação e de esclarecimento a cargo da seguradora e não quanto aos deveres de comunicação da segurada que é aquilo que aqui se discute.

Por fim, invoca a Recorrida o regime geral do art. 100.º do RJCS relativo à participação do sinistro, no qual se dispõe o seguinte:

«1 - A verificação do sinistro deve ser comunicada ao segurador pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo beneficiário, no prazo fixado no contrato ou, na falta deste, nos oito dias imediatos àquele em que tenha conhecimento.

2 - Na participação devem ser explicitadas as circunstâncias da verificação do sinistro, as eventuais causas da sua ocorrência e respectivas consequências.

3 - O tomador do seguro, o segurado ou o beneficiário deve igualmente prestar ao segurador todas as informações relevantes que este solicite relativas ao sinistro e às suas consequências.».

Ora, no caso dos autos, e como foi exaustivamente analisado pelo tribunal a quo, não está em discussão o cumprimento da obrigação de comunicação do sinistro (n.º 1), mas sim o cumprimento da obrigação de entrega da documentação solicitada pela R. seguradora (n.º 3). Sendo que o invocado regime legal tem natureza supletiva, e, como vimos, a articulação entre o respeito pela obrigação de comunicação do sinistro e o respeito pela obrigação de fornecimento ou entrega dos documentos requeridos pela seguradora, se encontra expressa e pormenorizadamente regulada na cláusula 6.ª, alínea b), das Condições Gerais do contrato de seguro dos autos.  

Conclui-se, assim, não assistir razão à R. quanto a esta questão.


10. Por fim, importa referir a segunda questão suscitada pela R. Recorrida em sede de ampliação do objecto do recurso: a ser julgado procedente o recurso de revista, repristinando-se a decisão da 1.ª instância, sempre o valor da indemnização a pagar à A. teria de ser reduzido para €47.500,00, por ser este o valor correspondente a 95% do limite do risco admitido pela seguradora (cláusula 6.ª das Condições Particulares).

Compulsado o processado, verifica-se que esta a questão foi suscitada pela primeira vez em sede de ampliação do recurso de revista, não tendo sido objecto de pronúncia pelas instâncias.

Desde logo, tratando-se de matéria de excepção, deveria ter sido invocada na contestação, nos termos previstos no art. 573.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ficando precludida a sua invocação em momento posterior.

Por outro lado, trata-se de questão nova, constituindo jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal que os recursos apenas visam a reapreciação ou reponderação da decisão de questões oportunamente suscitadas, salvo quando se trate de questões de conhecimento oficioso, o que não sucede no caso em apreço. Cfr., a título exemplificativo, e tendo em conta apenas decisões mais recentes, os acórdãos de 17.06.2021 (proc. n.º 4456/16.1T8VCT.G2.S1), de 22.06.2021 (proc. n.º 4158/17.1T8CBR.C1.S1), de 22.06.2021 (proc. n.º 6886/17.2T8VNG-E.P1-A.S1 ), de 06.10.2021 (proc. n.º 209/18.0T8ACB-B.C1.S1), de 12.01.2021 (proc. n.º 379/13.4TBGMR-B.G1.S1), de 23.02.2021 (proc. n.º 2442/19.9T8GMR-B.G1.S1), de 18.03.2021  (proc. n.º 214/18.7T8RMZ.E1.S1) e de 15.12.2022 (proc. n.º 125/20.6T8TND.C1-A.S1), todos consultáveis em www.dgsi.pt.

Conclui-se, deste modo, não haver lugar a pronúncia sobre a referida questão.


11. Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, condenando-se a Ré Compañía Española de Seguros de Créditos à la Exportación, S.A., Compañía de Seguros y Reaseguros - Sucursal em Portugal, a pagar à Autora FOO2EAR Indústria e Comércio de Calçado, S.A. a quantia de €50.000,00 (cinquenta mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal desde 09.08.2016.


Custas no recurso e na acção pela Ré.


Lisboa, 19 de Janeiro de 2023


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira