Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
802/13.8TTVNF.P1.G1-A.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: ANA LUÍSA GERALDES
Descritores: DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
ADMISSIBILIDADE DA REVISTA
Data do Acordão: 01/28/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC
Decisão: INDEFERIDA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL LABORAL / RECURSOS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECLAMAÇÃO.
Doutrina:
- Alves Velho, no “Colóquio sobre o Novo Código de Processo Civil”, que teve lugar no S.T.J., em 6/07/2015, cujo texto se mostra publicitado em www.stj.pt .
- António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3.ª Edição, pp. 305 e ss., 316 e ss., 319 e ss., 331.
- Miguel Teixeira de Sousa, in artigo subordinado à temática da “Dupla Conforme e Vícios na Formação do Acórdão da Relação”, in Instituto Português de Processo Civil, em http://blogippc.blogspot.pt/ .
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): -ARTIGOS 640.º, 662.º, 671.º, 672.º, N.º2, ALÍNEAS A) A C).
CÓDIGO DE PROCESSO DO TRABALHO (CPT): - ARTIGO 87.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.

-DE 19/2/2015, PROC. Nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT .
-DE 28/5/2015 E DE 9/JULHO/2015, PROCS. NºS 1340/08.6TBFIG.C1.S1 E 542/13.8T2AVR.C1.S1, DISPONÍVEIS EM WWW.DGSI.PT
-DE 2/7/2015 E DE 8/10/2015, DISPONÍVEIS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 26/11/2015, PROC. Nº 136/14.OTTVNF.G1.S1.
Sumário :

I – Existe dupla conforme quando a Relação confirma, sem voto de vencido e com base em fundamentação substancialmente idêntica a decisão da 1ª instância.

II – A dupla conformidade exige, assim, que a questão crucial para o resultado declarado tenha sido objecto de duas decisões “conformes”.

III – Tal não ocorre nos casos em que é imputado ao Acórdão da Relação a violação de normas de direito adjectivo no que concerne à apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto proferida pela 1ª instância, nomeadamente as previstas nos arts. 640º e 662º, ambos do NCPC.

IV – Efectivamente, em tais circunstâncias, ainda que simultaneamente a Relação tenha confirmado a decisão recorrida no que respeita à matéria de direito, não se verifica uma situação de dupla conformidade no que concerne ao modo como foi reapreciada a matéria de facto.

Decisão Texto Integral:
Proc. Nº 802/13.8TTVNF.P1.G1-A.S1

Reclamação – 4ª Secção

ALG/RC/PH


ACORDAM, EM CONFERÊNCIA,
na
SECÇÃO SOCIAL do SUPREMO TRIBUNAL de JUSTIÇA


I – 1. AA instaurou requerimento visando a impugnação da decisão de despedimento proferida pela sua empregadora BB S.A., pedindo, em síntese, que seja declarada a prescrição do exercício do poder disciplinar pelo decurso de 1 ano, desde a data da prática de cada infracção, bem como a sua caducidade e, no demais, que seja, nomeadamente, reconhecida a existência de diferenciação de tratamento pela empregadora entre este trabalhador e outro por factos idênticos.
Deduziu, ainda, pedido reconvencional peticionando a sua reintegração e a condenação da Ré no pagamento de todas as retribuições que deixou de auferir, desde a data de despedimento até ao trânsito em julgado da decisão, e em indemnização por danos não patrimoniais resultante da cessação do contrato de trabalho, no valor que indica.

2. A empregadora Ré “BB”, por sua vez, alegou que o trabalhador não tem razão, porquanto se aproveitou do sistema de leituras de consumo por via do exercício da sua profissão e alterou as leituras reais existentes no sistema e relativas ao contrato de que era titular, de modo a proceder a um pagamento inferior ao que consumia em energia eléctrica, lesando patrimonialmente a empregadora, sem quaisquer escrúpulos. Por ser seu trabalhador, os factos praticados pelo Autor são até susceptíveis de consubstanciar crime de burla informática, furto ou falsidade informática, pelo que, o prazo prescricional invocado pelo Autor sempre será mais alargado.
Rebate, também, os restantes factos alegados pelo A.

3. Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença que, em síntese, declarou ilícito o despedimento efectuado pela Ré “BB”, por verificação de caducidade do procedimento disciplinar, condenando-a a reintegrar o trabalhador e a pagar a este as retribuições e demais quantias nos termos que constam da sentença.

4. Inconformada, a Ré “BB” interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães, que proferiu Acórdão, no qual julgou o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida.

5. Irresignada, a Ré interpôs recurso de revista, para a Secção Social deste STJ. Recurso que não foi admitido pelo Tribunal da Relação, por ter considerado existir dupla conforme entre a decisão proferida pela 1ª instância e o Acórdão exarado nos autos.

6. A Ré “BB” deduziu reclamação nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 641º nº 6 e 643º, ambos do CPC.
Alegou para tanto, a título conclusivo e em síntese, que:

1. Ao contrário do decidido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, o presente recurso é admissível, nos termos e para os efeitos do art. 671º, nºs 1 e 3, do CPC, porquanto não se pode falar de uma verdadeira confirmação da decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância, inexistindo dupla conforme.[1]
2. Com efeito, a BB, em sede de recurso para a Relação, pugnou pela inclusão, no ponto 6º da fundamentação de facto da sentença, de um conjunto de diligências de investigação que não haviam sido consideradas pelo Tribunal da 1ª instância.
3. Para tanto, a BB indicou prova documental e testemunhal constante dos autos e do processo disciplinar que demonstravam a efectivação das referidas diligências.  
4. A Relação recusou-se, contudo, a apreciar a prova indicada, considerando, por um lado, que a BB tinha apenas sustentado a sua impugnação em prova testemunhal e, por outro lado, que este meio de prova não era apto à demonstração da realização das referidas diligências no âmbito do procedimento disciplinar.
5. A Relação entendeu que, por força do disposto no art. 392º do CC e na cláus. 4ª, n.º 5 do Anexo VI do IRCT aplicável,[2] a prova das referidas diligências era vinculada, tendo de ser feita documentalmente (através de redução a escrito e rubrica de todos os actos processuais).     
6. Ora, para além de ter incorrido em nulidade por omissão de pronúncia, a Relação incorreu também em violação de lei substantiva e em ofensa a disposição expressa de lei que fixe a força de determinado meio de prova, nos termos e para os efeitos do art. 674º, n.º 1, al. a), e n.º 3, do CPC, conforme se detalhou em sede de fundamentação de recurso.
7. A Relação de Guimarães ao adoptar uma atitude meramente formalista, de absoluta recusa de análise de meios de prova submetidos à sua apreciação, com violação da lei substantiva e em ofensa a disposição expressa de lei que fixa a força de determinado meio de prova, tomou uma decisão com base em fundamentação jurídica nova/diferente que não pode deixar de ser submetida à apreciação de Tribunal Superior (neste caso o Supremo Tribunal de Justiça), sob pena de não se encontrar assegurado o duplo grau de jurisdição.     
8. Nesta sede, não pode deixar de ser novamente relevada a circunstância de, apesar de uma parte importante do recurso da BB para a Relação ter incidido sobre a fundamentação de facto da Sentença da 1ª instância, mais concretamente sobre erros na apreciação da prova produzida,
9. E do cuidado com que a BB fundamentou o seu recurso, indicando, conforme lhe competia, (i) os concretos pontos de facto que considerava incorrectamente julgados, (ii) os concretos meios de probatórios (prova documental e testemunhal), constantes do processo e da gravação realizada, que impunham decisão diversa, (iii) bem como a decisão que, no seu entender, devia ser proferida sobre as questões de facto impugnadas,   
10. O Tribunal da Relação ter-se eximido, sempre e em todos os casos, de analisar e reapreciar a prova indicada, com recurso a argumentos que, na verdade, consubstanciam verdadeiros obstáculos, injustificados, ao direito geral dos cidadãos de recorrerem das decisões judiciais que os afectem, unanimemente considerado como uma imanência do direito fundamental de acesso ao direito e de tutela jurisdicional efectiva, que, na nossa Constituição, tem consagração expressa no seu artigo 20º.
11. Termos em que é forçoso concluir-se pela admissibilidade do recurso de revista interposto do Ac. da Relação de Guimarães, devendo, por isso, ser recebida e apreciada a presente reclamação nos termos e para os efeitos do disposto no art. 82.º do CPT e do art. 643º do CPC.

7. O Autor apresentou resposta à Reclamação, a fls. 324 e segts, defendendo a improcedência da mesma.

8. A reclamação deduzida pela Ré foi deferida por decisão da ora Relatora, nos termos que os autos documentam, e onde ressalta a seguinte síntese conclusiva:

“A R., no recurso, suscitou uma série de questões que puseram em causa o modo como a Relação apreciou a impugnação da decisão da matéria de facto – cf. fls. 51 e segts.[3]

Além disso, constata-se que, do teor dessas alegações de recurso, os factos que a R. pretendia ver consignados na matéria de facto provada têm uma directa conexão com o início do prazo de caducidade que foi o motivo essencial pelo qual as instâncias acolheram a pretensão deduzida pelo A.

A R. imputa à Relação vícios decisórios, na medida em que não terá consignado determinados factos que, no seu entender, seriam decisivos para se obter uma resposta diversa quanto à caducidade do procedimento disciplinar.

Na sua perspectiva, se tais factos tivessem sido considerados provados, haveria uma conclusão diversa quanto à apreciação dessa caducidade.

Nesta estrita medida, uma vez que as questões foram suscitadas pela primeira vez perante a Relação, no âmbito do recurso de apelação, invocando a violação de preceitos de natureza adjectiva e de natureza substantiva no que concerne à delimitação dos factos provados e não provados, não se pode afirmar que, relativamente a esse segmento do acórdão recorrido, se verifique, para já, uma situação de dupla conformidade.

Ou seja, o recurso de revista que foi interposto pela Ré é de admitir na exclusiva medida em que nele é invocada a violação de lei adjectiva ou substantiva, no que concerne à impugnação da decisão da matéria de facto, matéria que naturalmente não está abarcada pela situação de dupla conformidade”.


9. O Autor, inconformado com esta decisão de admissão do recurso de revista interposto pela Ré, requereu a intervenção da Conferência, invocando, em resumo, os seguintes fundamentos:

A. O incumprimento das regras legais e processuais por parte da Ré,
     Por entender que esta, no recurso interposto, não identificou os motivos pelos quais considerava as decisões das instâncias distintas entre si, como lhe cabia;
B. A existência de dupla conforme, porquanto:
1. O Acórdão da Relação confirmou a decisão proferida pela 1ª instância, sem qualquer voto de vencido e com fundamentação essencialmente idêntica, ao contrário do que se refere na decisão proferida na Reclamação, aqui posta em crise.
2. Os factos que a Ré pretende ver consignados e que, na sua versão, constituem violação de preceitos de natureza adjectiva e substantiva, não foram vertidos nos factos provados e não provados, nem sequer alegados.
3. Havendo uma corroboração pela Relação de Guimarães da matéria assente na 1ª instância, os fundamentos pelos quais o fez não alteram o núcleo essencial da questão a resolver nos autos.
4. Tal como o facto de a Relação não ter apreciado a matéria de facto nos termos alegados pela Ré “BB”, não consubstancia um “enquadramento jurídico alternativo” que impeça a formação de uma dupla conforme entre as decisões, como sucedeu nestes autos.
C. A inexistência de fundamento para a revista:
A prova testemunhal é livremente apreciada pelo Tribunal, incluindo a Relação, mas já o STJ não o pode fazer, por se tratar de matéria excluída da sua competência, que só se justificará se tiver existido violação expressa da lei, e não erro na apreciação das provas com a consequente fixação dos factos materiais da causa.

10. A Ré “BB” respondeu defendendo a confirmação da decisão sob reclamação, com os argumentos que constam dos autos.

11. Cumpre Apreciar e Decidir.


II – Enquadramento Fáctico-Juridico:

1. Preceitua o Novo CPC, no seu art. 5º, nº 1, que este diploma legal, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, e com entrada em vigor no dia 1 de Setembro do mesmo ano, é imediatamente aplicável às acções declarativas pendentes.
E, em matéria de recursos, àqueles que forem interpostos de decisões proferidas a partir da sua entrada em vigor – que como se disse ocorreu no dia 1 de Setembro de 2013 – também se aplica o seu regime, salvo se as acções tiverem sido instauradas antes de 1 de Janeiro de 2008.[4]
Pelo que, não se suscitando dúvida sobre a aplicação ao caso sub judice das normas do Novo CPC, é com base nas suas disposições legais que deve ser dirimida a presente questão.

2. Na reclamação para a conferência, o Autor insurgiu-se contra a decisão singular proferida pela ora Relatora com base em três fundamentos:
A. O incumprimento das regras legais e processuais por parte da Ré que permitem a admissibilidade do recurso de revista;
B. A existência de dupla conforme, que sustenta a manutenção do despacho que indeferiu o recurso de revista; 
C. A inexistência de fundamento para a revista.

Vejamos cada uma das questões suscitadas.

3. Quanto ao alegado incumprimento das regras legais e processuais por parte da Ré, por o A. entender que aquela, ao interpor o recurso de revista, não demonstrou que não estava perante uma situação de dupla conforme, o que impedia desde logo a admissão do recurso, é conclusão que não podemos, de todo, sufragar.

Com efeito, tal como alerta a Recorrente nesta matéria, a aceitar-se a inadmissibilidade do recurso de revista com base nesse fundamento partir-se-ia do pressuposto que “existiria um ónus”, por parte da Ré/Recorrente, de identificação dos motivos pelas quais considerava que as decisões das instâncias proferidas nos autos eram distintas entre si.

Ora, a lei não impõe qualquer ónus nesta matéria, conforme resulta da análise do art. 671º do NCPC, ao contrário do que acontece, por exemplo, no que concerne à interposição do recurso de revista excepcional, em que o legislador impõe ao Requerente/Recorrente, nos termos preceituados nas alíneas a) a c), do nº 2, do art. 672º, do NCPC, o expresso dever de indicar as razões em que funda o recurso, sob pena de rejeição do mesmo.
Para além de a lei não deixar dúvidas sobre esta matéria, também Abrantes Geraldes as dissipa lapidarmente com este segmento argumentativo: “Mas, ao invés, do que ocorre com a generalidade dos recursos de revista submetidos a critérios objectivos de admissibilidade, a revista excepcional deve ser, por um lado, fundamentada e, por outro, filtrada pela formação prevista no nº 3 do art. 672º”. [5]

Não são, por isso, necessárias mais considerações para se julgar improcedente, nesta parte, a reclamação do A. para a conferência.
4. A (in)existência de dupla conforme:

4.1. O Autor discorda da decisão proferida pela ora Relatora, em sede de Reclamação, alegando, para tal e em síntese, que o Acórdão da Relação confirmou a decisão proferida pela 1ª instância, sem qualquer voto de vencido e com fundamentação essencialmente idêntica, pelo que, ao contrário do que se refere na decisão aqui posta em crise, existe dupla conforme.

Conclusão que não podemos sufragar, pelas razões já aduzidas na decisão reclamada e que se reiteram, na parte que consideramos relevante, face à insistência do Autor, aduzindo, complementarmente, novos fundamentos.
 

4.3. Em matéria de interposição de recurso de revista, somos confrontados com uma limitação imposta pelo legislador em situações de dupla conforme: com ressalva dos casos estatuídos na lei e sem prejuízo dos casos em que seja de admitir revista excepcional, não é admissível revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1ª instância” – cf. nº 3 do art. 671º do Novo CPC.

Quer isto dizer que o recurso de revista não é admissível desde que ambas as decisões – a da 1ª instância e a da Relação – decidam no mesmo sentido, confirmando o Tribunal da Relação a decisão proferida pela 1ª instância sem que seja lavrado voto de vencido e sem que a fundamentação seja essencialmente diferente.

Caso em que se verifica a situação jurídica que a jurisprudência e a doutrina denomina de “dupla conforme” e que impede a interposição de recurso para o STJ.

E que visou, na perspectiva do legislador, combater a banalização no acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, de modo a alcançar um acesso mais racional àquele Tribunal e a criar condições para lhe proporcionar um melhor exercício da sua função de orientação e uniformização da jurisprudência. Por outro lado, procurou-se desta forma obter também uma maior celeridade de decisão.[6]

A este propósito, explicitando o sentido e alcance da expressão fundamentação essencialmente diferente, refere Abrantes Geraldes:[7]

“A aferição de tal requisito delimitador da conformidade das decisões deve focar-se no eixo da fundamentação jurídica que, em concreto, se revelou crucial para sustentar o resultado declarado por cada uma das instâncias, verificando se existe ou não uma real diversidade nos aspectos essenciais. (…)

(…) “Sem embargo das críticas dirigidas a uma tal opção por determinados sectores”, … certo é que “não podem para o efeito, exponenciar-se as objecções dirigidas àquela opção legislativa, nem superar, por via de meros juízos valorativos, o pressuposto negativo representado pela dupla conforme, agora circunscrita aos casos em que a fundamentação jurídica seja essencialmente idêntica”.

E existirá um quadro de fundamentação essencialmente diferente nos casos em que “a uma determinada qualificação contratual se sucede uma outra distinta que implica um diverso enquadramento jurídico”, ou quando “uma eventual condenação tenha sido sustentada na aplicação das regras de determinado contrato, sendo confirmada pela Relação mas ao abrigo de normas que regulam os efeitos da nulidade do mesmo contrato”. (…)

Na realidade, sempre que o resultado final seja idêntico ou “conforme”, a diversidade do percurso acaba por nos revelar duas decisões substancialmente diversas, não se justificando, em tal caso, a ablação do terceiro grau de jurisdição.

Não assim, quando estivermos perante o contrário.

Ou seja: existirá dupla conforme quando não houver inovação ou modificação dos fundamentos jurídicos aduzidos no Acórdão recorrido relativamente aos utilizados na sentença apelada, com suporte no segmento decisório, no pedido e na causa de pedir.

E essa dupla conformidade não se consubstancia em qualquer regra de forma, tendo antes a ver com a substância das decisões proferidas nos autos, delimitando o acesso ao STJ, em revista normal, em função da identidade essencial das decisões e respectivos fundamentos, proferidas anteriormente nos autos, vedando o acesso a um terceiro grau de jurisdição nos casos em que a coincidência fundamental do decidido na 1ª instância e na Relação torna plausível a adequação e legalidade substantiva da solução normativa alcançada para o litígio.

Entendimento veiculado claramente no mesmo sentido pela mais recente Jurisprudência do STJ:

1. A alteração do conceito de dupla conformidade, enquanto obstáculo ao normal acesso em via de recurso ao STJ, operada pelo actual CPC (mandando atender a uma diferença essencial nas fundamentações que suportam a mesma decisão das instâncias), obriga o intérprete e aplicador do direito a – analisada a estruturação lógico argumentativa das decisões proferidas pelas instâncias, coincidentes nos respectivos segmentos decisórios – distinguir as figuras da fundamentação diversa e da fundamentação essencialmente diferente.

2. Não é qualquer alteração, inovação ou modificação dos fundamentos jurídicos do acórdão recorrido, relativamente aos seguidos na sentença apelada, qualquer nuance na argumentação jurídica por ele assumida para manter a decisão já tomada em 1ª instância, que justifica a quebra do efeito inibitório quanto à recorribilidade, decorrente do preenchimento da figura da dupla conforme.

3. Só pode considerar-se existente uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância – não preenchendo esse conceito normativo o mero reforço argumentativo levado a cabo pela Relação para fundamentar a mesma solução alcançada na sentença apelada. [8]

4.4. Não obstante a dupla conformidade existente entre decisões que apresentem as referidas “sintonias”, sem fundamentação inovatória, quer a doutrina, quer a jurisprudência, defendem que essa “coincidência” cede se a parte pretender reagir contra o não uso ou o uso deficiente dos poderes da Relação sobre a matéria de facto, v.g., quando “a Relação não tiver controlado a valoração da prova realizada na 1ª instância com o argumento de que a falta de imediação impede essa reapreciação”[9], ou quando rejeita a apelação por entender que o Recorrente não tinha cumprido os ónus exigidos para a impugnação da decisão sobre a matéria de facto – art. 640º do Novo CPC.

Nesta matéria Abrantes Geraldes é peremptório:

Em tais circunstâncias e noutras similares em que seja apontado à Relação erro de aplicação ou interpretação da lei processual e seja invocado no recurso de revista a violação de normas adjectivas relacionadas com a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, não existe dupla conforme.[10]

E compreende-se porquê: em substância o Acórdão da Relação ainda que seja coincidente com a decisão da 1ª instância quanto à aplicação do direito, aprecia, ex novo, questões de natureza adjectiva com directa influência na decisão da matéria de facto que, assim, se mantem inalterada.

Tem sido este, aliás, o entendimento defendido pelo STJ, conforme ressalta da comunicação efectuada por Alves Velho, no “Colóquio sobre o Novo Código de Processo Civil”, que teve lugar no STJ., em 6/07/2015, cujo texto se mostra publicitado em www.stj.pt., reforçada pela prolação de diversos Acórdãos do STJ, Relatados, nomeadamente, pelo Conferencista citado.

É o caso, por exemplo, do Acórdão de 14/05/2015, onde se pode ler que:

II – Quando o Tribunal da Relação é chamado a intervir para reapreciação das provas e da matéria de facto, nos termos dos arts. 640.º e 662.º do CPC, move-se no campo de poderes, próprios e privativos, com o conteúdo e limites definidos por este último preceito, que não encontram correspondência na decisão da 1ª instância sobre a mesma matéria.

III – Embora haja uma decisão sobre a matéria de facto da 1.ª instância e, uma outra, da Relação, que reaprecia o julgamento da matéria de facto, não poderá afirmar-se que, quando se questiona o respeito pelas normas processuais dos arts. 640.º e 662.º pela Relação, existe uma questão comum sobre a qual tenham sido proferidas duas decisões conformes.[11]

4.5. Posto isto, e reportando-nos ao caso sub judice, constata-se que:

4.5.1. A 1ª instância concluiu pela ilicitude do despedimento do Autor/Recorrido por verificação da excepção de caducidade do procedimento disciplinar.

Em consequência, condenou a Reclamante Ré “BB” a reintegrar o trabalhador, bem como a pagar ao mesmo as retribuições vencidas, desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão, nos termos que constam de fls. 47 e 48, do I Vol.

Na sua fundamentação de direito, a 1ª instância elencou como questão fulcral para a decisão “a licitude do despedimento realizado pela empregadora e que foi, por esta acção, impugnado pelo trabalhador” – cf. fls. 32.

E apreciou as seguintes questões suscitadas nos autos:

1. A violação do direito à prestação efectiva de trabalho – considerou que nesta matéria nada havia a decidir por estar em discussão noutras excepções invocadas pelo Autor/trabalhador;

2. A prescrição do exercício do poder disciplinar, pelo decurso de 1 ano – para concluir que não existiu qualquer prescrição nesta parte;

3. A caducidade/prescrição da acção disciplinar, considerando que o procedimento disciplinar se deve iniciar no prazo de 30 dias após o conhecimento do início da infracção – para concluir que tendo a empregadora/BB iniciado o procedimento disciplinar por decisão de 10-05-‑2013, e tendo notificado a nota de culpa apenas em 18/9/2013, a empregadora fez caducar o direito de agir disciplinarmente sobre o trabalhador – cf. fls. 38. Considerando que, nessa medida, o despedimento por facto imputável ao trabalhador é ilícito se tiverem decorrido os prazos estabelecidos nos nºs 1 e 3 do art. 329º do CT, ex vi art. 382º, nº 1;

4. Abordou também a questão da interrupção da caducidade referindo expressamente que: “ainda que se entendessem os factos praticados pela empregadora como diligências de inquérito, a sua condução não diligente não permitiria interromper o prazo de caducidade previsto no art. 329º, nº 2, do CT como resulta do art. 352º do mesmo diploma”;

5. A ineficácia da decisão de aplicação de sanção disciplinar por ter sido ultrapassado o prazo de 60 dias para conclusão do procedimento disciplinar – concluiu que “não existe vício de ineficácia de que cumpra conhecer”;

6. Quanto à alegação por parte do trabalhador da violação do direito de contraditório – considerou ser inexistente, pois as normas dos arts. 353º e 382º do CT não exigem que a empregadora indique em que normas fundamenta a justa causa que invoca, pois a nota de culpa não tinha de ser mais circunstanciada do que foi;

7. E apreciou a questão da justa causa para o despedimento, concluindo que:

- Não existe qualquer tratamento desigual deste trabalhador pela empregadora que cumpra sancionar;

- Relativamente à justa causa, “a conduta do trabalhador consubstancia clara justa causa de despedimento que permitia a cessação do vínculo contratual, sendo apenas ilícito o despedimento pelas razões formais” referidas – cf. fls. 45.

- Atenta a declaração da ilicitude do despedimento pelo não cumprimento do prazo de 30 dias, tem o trabalhador direito à sua reintegração;

- E tem direito às retribuições que deixou de auferir nos termos legais;

8. Quanto à indemnização por danos não patrimoniais – concluiu que não eram devidos, pois a gravidade da actuação do trabalhador justifica a exclusão desse direito e do dever da empregadora indemnizar o trabalhador – art. 570º do CC – cf. fls. 47.

Foi assim que julgou nos termos que constam dos autos.    

4.5.2. Por sua vez o Tribunal da Relação decidiu nos seguintes termos:

“Acorda-se em julgar:

a) O recurso independente improcedente e

b) O conhecimento do recurso subordinado prejudicado, pelo que se confirma a sentença”.

Na fixação das questões que integram o objecto do litígio e de que cumpre conhecer, o Tribunal da Relação, depois de apreciar e decidir as que denominou de “erro de julgamento da matéria de facto” (cf. fls. 214), fixou a matéria de facto, que considerou provada.

E na fundamentação jurídica exarou, logo de início, o seguinte:

“A alteração da matéria de facto tem como consequência a alteração da decisão de caducidade do procedimento disciplinar. Como expusemos, a impugnação da matéria de facto não mereceu acolhimento. Donde, também a questão acima elencada (da caducidade) improcede.

Vejamos, contudo, se, conforme pretende a Recorrente, ainda assim não há caducidade”.

Para concluir que:

…“ Bem andou o Tribunal “a quo” quando foi “buscar”, no âmbito da definição da regulação relevante ao nível do processo disciplinar, estas disposições do Código do Trabalho (neste caso o art. 353º, nº 3).  

E, contrariamente ao alegado, não será de admitir a inexistência do prazo para a referida fase de instrução prévia à nota de culpa, nem a não aplicabilidade do disposto no nº 3 do art. 353º do CT. A tanto se opõe a lei geral”…

“Por último não se pode concluir que a instrução realizada é, afinal, um procedimento prévio de inquérito. Este, nos termos do ACT aplicável tem características distintas, sendo o próprio instrumento regulador quem denomina de instrução a fase que precede a nota de culpa”.

Quanto ao subsídio de alimentação poder integrar ou não os salários intercalares, a Relação refere que, ao contrário do que a Recorrente pretende, este subsídio assume a característica de retribuição e remete até, nesta parte, para o que a sentença da 1ª instância decidiu, podendo ler-se expressamente que: “bem andou a sentença ao mencionar expressamente a inclusão do subsídio de refeição”… – cf. fls. 230. E concluiu pela improcedência do recurso também quanto a esta questão.

Ou seja: na matéria da aplicação do direito o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães confirmou, integralmente, e sem qualquer voto de vencido e, com fundamentação idêntica, a decisão proferida em primeira instância.

Idêntica quanto ao núcleo essencial da sua fundamentação jurídica, remetendo, inclusivamente, para o conteúdo da decisão da 1ª instância.

4.5.3. No caso concreto, apreciando as decisões no exclusivo segmento da aplicação do direito, verifica-se, conforme se referiu, que ambas as instâncias decidiram pela procedência da excepção de caducidade com base no mesmo enquadramento jurídico.

Não relevando para tal argumentos jurídicos marginais, a emissão de uma resposta não inteiramente coincidente a uma determinada questão jurídica ou a introdução de alguma questão que apenas sirva para reforçar o resultado alcançado.

Na verdade, conforme se extrai de tais decisões, ambas consideraram que procedia a excepção da caducidade e que o subsídio de alimentação era parte integrante das retribuições intercalares devidas ao trabalhador, com a consequente condenação da Recorrente.

Quer isto dizer que, o regime jurídico que serviu de suporte às decisões proferidas em ambas as instâncias é exactamente o mesmo, não se vislumbrando o tratamento de alguma questão que possa ser entendida como divergente nos termos do enquadramento jurídico que foi efectuado.

Mas sendo embora verdade tal questão, no que concerne à matéria de direito, já no que respeita à matéria de facto essa conformidade não existe.

E isto porque, conforme se expressou na decisão singular, a R. suscitou uma série de questões que puseram em causa o modo como a Relação apreciou a impugnação da decisão da matéria de facto – cf. fls. 51 e segts.

E requereu, em sede de recurso de apelação, a inclusão no ponto 6º da fundamentação de facto, da sentença proferida pela 1ª instância, de um conjunto de diligências de investigação que não haviam sido consideradas pelo Tribunal de 1ª instância.

Indicando, inclusivamente, prova documental e testemunhal constante dos autos e do processo disciplinar que, em seu entender, demonstravam a efectivação das referidas diligências. O que, de acordo com o alegado no recurso de revista, não teria sido considerado pela Relação.

Além disso, constata-se que, do teor das alegações de recurso de apelação, os factos que a R. pretendia ver consignados na matéria de facto provada têm uma directa conexão com o início do prazo de caducidade que foi o motivo essencial pelo qual as instâncias acolheram a pretensão deduzida pelo A.

A R. imputa à Relação vícios decisórios, na medida em que não terá consignado determinados factos que, no seu entender, seriam decisivos para se obter uma resposta diversa quanto à caducidade do procedimento disciplinar.

Na sua perspectiva, se tais factos tivessem sido considerados provados, haveria uma conclusão diversa quanto à apreciação dessa caducidade.

Nesta estrita medida, uma vez que as questões foram suscitadas pela primeira vez perante a Relação, no âmbito do recurso de apelação, invocando a violação de preceitos de natureza adjectiva e de natureza substantiva, no que concerne à delimitação dos factos provados e não provados, não se pode afirmar que, relativamente a esse segmento do Acórdão recorrido, se verificou uma situação de dupla conformidade.

Ou seja, o recurso de revista que foi interposto pela Ré é de admitir na medida em que nele é invocada a violação de lei adjectiva e substantiva, no que concerne à impugnação da decisão da matéria de facto, matéria esta que, conforme se explicitou em pontos anteriores, não está abarcada pela situação de dupla conformidade.

Termos em que improcede a reclamação também nesta parte.

5. Por fim, quanto à alegada inexistência de fundamento para a revista dir-se-á, também, que não assiste razão ao A.

Desde logo porque o que aqui se trata é do despacho liminar de admissão do recurso de revista e não da procedência deste recurso que, como se sabe, ainda nem sequer foi julgado.

Ora, os argumentos do A. reportam-se ao julgamento do mérito da revista que, como se disse, será matéria a versar apenas depois de ser ultrapassado o obstáculo que foi colocado quanto à admissibilidade da revista.
O STJ não está, ainda, a apreciar e a decidir se existiu ou não erro na apreciação da prova, nem tão pouco a pronunciar-se sobre a força probatória dos meios de prova apresentados, mas tão só a apreciar a reclamação contra a não admissão do recurso interposto, nos termos que a lei prevê no art. 641º, nºs 3 e segts do NCPC.

Pelo que, é infundada a presente reclamação para a conferência.

III – Decisão:

- Termos em que se acorda indeferir a presente reclamação para a conferência, confirmando-se o despacho proferido pela Relatora que admitiu o recurso de revista interposto pela Ré “BB”.

- Custas a cargo do Autor, parte vencida, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.

- Solicite, oportunamente, a remessa do processo principal.

Lisboa, 28. Janeiro de 2016.

Ana Luísa Geraldes (Relatora)

Ribeiro Cardoso

Pinto Hespanhol


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[1] Os sublinhados são nossos.
[2] Acordo Colectivo de Trabalho publicado no Boletim de Trabalho e Emprego, 1ª série, n.º 28, de 29 de Julho de 2000
[3] Os sublinhados são nossos.
[4] Com efeito, não obstante os recursos em matéria laboral terem de ser interpostos de acordo com as regras estatuídas no Código de Processo do Trabalho, são-lhe aplicáveis, subsidiariamente, e com as necessárias adaptações, as disposições do Código de Processo Civil que regulamentam o julgamento dos recursos de apelação e de revista, por força do estabelecido no art. 87º, nº 1, do CPT.
[5] Neste sentido, cf. António Santos Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2016, 3ª Edição, pág. 331. Sublinhado nosso.
[6] Neste sentido, cf. António Santos Abrantes Geraldes, ibidem, comentário complementado pelas referências aos trabalhos preparatórios e à análise da reforma efectuada ao regime de recursos de 2007 – 3ª Edição, 2016, fls. 305 e segts.
[7] Ibidem, 2016, 3ª Edição, págs. 316 e segts.
[8] Acórdãos do STJ, de 28/5/2015 e de 9/Julho/2015, Relatados por Lopes do Rego, no âmbito dos Procs. Nºs 1340/08.6TBFIG.C1.S1 e 542/13.8T2AVR.C1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt. Sublinhados nossos. Cf. tb., sobre esta matéria, o Acórdão proferido, em conferência, na Secção Social, datado de 26/11/2015, Relatado por Manuel Pinto Hespanhol, no âmbito do Proc. Nº 136/14.OTTVNF.G1.S1.
[9] Neste sentido, e para aprofundamento da questão, cf. Miguel Teixeira de Sousa, in artigo subordinado à temática da “Dupla Conforme e Vícios na Formação do Acórdão da Relação”, in Instituto Português de Processo Civil, blogippc.blogspot.pt. Sublinhado nosso.
Vide, também, Acórdão do STJ., de 19/2/2015, Proc. Nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, in www.dgsi.pt.
[10] Ibidem, 2016, 3ª Edição, págs. 319 e segts.
[11] Sublinhado nosso. Cf. tb, no mesmo sentido, os Acórdãos do STJ, datados de 2/7/2015 e de 8/10/2015, disponíveis no mesmo site.