Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1742/09.0TBBNV-H.E1.S1
Nº Convencional: 6ª. SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
NEGLIGÊNCIA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 09/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS - INSTÂNCIA / INCIDENTES DA INSTÂNCIA / SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA / EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA.
Doutrina:
- Abílio Neto, Novo “Código de Processo Civil” Anotado, 3.ª ed., 344.
- António Júlio Cunha, Direito Processual Civil Declarativo, 2.ª ed., 52-54, 56, 89.
- Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 3.ª ed., 124 e 125, 157 e 158, 183.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 3.º, N.ºS 1, 5.º, 6.º, N.º 1, 281.º, N.º 1, 293.º, N.º 1, 351.º, N.º 1, 353.º, N.º 1, 672.º, N.º 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

-DE 2 DE FEVEREIRO DE 2015, PROCESSO Nº 990/14.6T8BRG.G1.

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

-DE 2 DE FEVEREIRO DE 2015, PROCESSO Nº 4178/12.2TBGDM.P1.

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

-DE 26 DE FEVEREIRO DE 2015, PROCESSO Nº 2254/10.5TBABF.L1-2;
-DE 9 DE SETEMBRO DE 2014, PROCESSO Nº 211/09.

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TODOS DISPONÍVEIS EM WWW.DGSI.PT
Sumário :
I. Limitando-se a Autora a fazer juntar ao processo uma certidão de habilitação notarial dos herdeiros de réu falecido, nada promovendo em termos de incidente de habilitação de sucessores, não cumpre o ónus de impulso processual necessário a fazer cessar a suspensão da instância que havia sido declarada.

II. Não competia ao tribunal providenciar oficiosamente, com base em tal certidão, pela habilitação judicial dos sucessores.

III. Não constituindo a dita junção qualquer requerimento inicial, não podia o tribunal convidar ao seu aperfeiçoamento.

IV. Deixando a Autora de impulsionar o processo, por mais de seis meses, através da dedução do processo incidental de habilitação de sucessores, nem tendo apresentado dentro desse período de tempo qualquer razão impeditiva da não promoção, estamos perante uma omissão de impulso a qualificar necessária e automaticamente como negligente, e que implica a deserção da instância.

V. A negligência a que se refere o nº 1 do art. 281º do CPC não é uma negligência que tenha de ser aferida para além dos elementos que o processo revela, pelo contrário trata-se da negligência ali objetiva e imediatamente espelhada (negligência processual ou aparente).

VI. Tal negligência só deixa de estar constituída quando a parte onerada tenha mostrado atempadamente estar impossibilitada de dar impulso ao processo.

VII. Inexiste fundamento legal, nomeadamente à luz do princípio do contraditório, para a prévia audição das partes no contexto da deserção da instância com vista a aquilatar da negligência da parte a quem cabe o ónus do impulso processual.

Decisão Texto Integral:                                  

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

AA intentou oportunamente, pelo Tribunal Judicial de Benavente, ação declarativa contra BB e Outros (entre estes CC), pretendendo a declaração de nulidade das transmissões dos imóveis que descreve.

Seguindo o processo seus termos, veio ao conhecimento dos autos que o Réu CC havia falecido, razão pela qual foi proferido despacho (datado de 27 de janeiro de 2015) a declarar a suspensão da instância.

Em 28 de julho de 2015 a Autora atravessou papel mediante o qual fez simplesmente juntar ao processo uma certidão de escritura de habilitação de herdeiros do Réu. Nada mais disse ou requereu.

Em 3 de novembro de 2015 foi proferido despacho onde se julgou deserta a instância.

Argumentou-se, a propósito, que a Autora, que se encontrava devidamente patrocinada por advogado, havia negligenciado por mais de seis meses a promoção do competente incidente de habilitação dos sucessores do falecido, sendo que a simples junção da referida escritura era insuficiente para caracterizar tal promoção.

Inconformada com o assim decidido, apelou a Autora.

Fê-lo sem sucesso, pois que a Relação de Évora, por unanimidade e subscrevendo inteiramente o ponto de vista da decisão recorrida, julgou improcedente o recurso.

Ainda inconformada, interpôs a Autora revista excecional, invocando a propósito a alínea b) do nº 1 do art. 672º do CPC (interesses de particular relevância social).

A formação de juízes a que alude o nº 3 do art. 672º do CPCivil entendeu que não se registava um caso de dupla conformidade decisória das instâncias, e, como assim, que não havia fundamento para a revista excecional, determinando a distribuição do recurso como revista normal.

Da respetiva alegação extrai a Recorrente as seguintes conclusões:

I. A presente revista excecional fundamenta-se, nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 672º do CPC, porque estão em causa interesses de particular relevância social.

II. Interesses esses que se reconduzem à Justiça que qualquer cidadão pretende obter por parte dos Tribunais, através de um processo equitativo e em prazo razoável, nos termos n.o 4 do art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa e, art.º 6.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

III. Pois, estamos perante uma situação em que, por questões meramente formais, uma acção judicial intentada há mais de cinco anos atrás (19/11/2010), na qual ainda nem sequer se encontra finda a fase dos articulados, é extinta, por alegada negligência da Autora em promover o andamento do processo.

IV. O que, com o devido respeito, não corresponde à verdade, pois a Apelante juntou aos autos, para os devidos efeitos legais, em 28 de Julho de 2015, a documentação necessária para o incidente de habilitação de herdeiros, a saber: Escritura Pública de Habilitação de Herdeiros do R. CC, assim como, o Assento de Óbito da R. DD e, os Assentos de Nascimento dos seus respetivos sucessíveis.

V. Toda a documentação junta, constitui documentos autênticos, pelo que fazem prova plena dos respectivos factos, cfr. arts. 370.° e 371.º do CC, não tendo sido objecto de oposição, quer pelas contrapartes, quer pelo Tribunal.

VI. Assim, a qualidade de herdeiro encontra-se reconhecida naqueles documentos, pelo que, nos termos do art.º 353.º CPC, deve o incidente ser processado nos próprios autos da causa principal, correndo contra as partes sobrevivas e contra os sucessores do falecido que não forem requerentes, já devidamente identificados na PI como RR.

VII. Acrescendo ainda que, dada a modalidade de apoio judiciário que foi deferido à Apelante, não havia que proceder ao pagamento de qualquer taxa de justiça.

VIII. Ora, entendendo-se que o requerimento da Apelante é insuficiente para deduzir, formalmente, o incidente em causa, deveria ter sido convidada a aperfeiçoá-lo, nos termos dos art.º 6.º, 7.º, 411.º e 590.º CPC, com vista ao apuramento da verdade material e à justa composição do litígio.

IX. Dado que, não tendo a Apelante praticado qualquer ato inútil, deveria o Tribunal interpretar a vontade desta, no sentido de que diligenciou pela obtenção e junção aos autos dos documentos autênticos, com vista ao prosseguimento dos autos, cfr. arts. 236.º e 238.º CC.

X. Não o tendo feito, proferiu o Tribunal de 1ª Instância despacho de deserção, acarretando a extinção da instância, sem que à Apelante tenha sido possibilitado o exercício do contraditório, nos termos do n.º 3 do art.º 3.º do CPC.

XI- Pelo que, o que está em causa, é um apelo à consciência ético-social, que deve prevalecer sobre um excesso de formalismo que é exigido, apenas, à Apelante - bem sabendo que o requisito previsto na alínea b) do n.º 1 do art.o 672.º CPC é vago e genérico, havendo que se reconduzir ao caso concreto.

XII. E, quanto à questão em apreço, temos um excesso de formalismo em detrimento da verdade material dos factos - pois, ainda que o requerimento da Apelante seja insuficiente, em termos meramente formais (não obstante o princípio da economia processual) não é verdade que não se retira do mesmo a vontade da Apelante em prosseguir com os autos, ainda que imperfeitamente deduzido.

XIII. Pois, desde 19 de Novembro de 2010 que a Apelante, por se sentir lesada, intentou ação judicial cujo mérito da causa incide sobre imóveis da família que foram vendidos "ao desbarato", tendo a Apelante sido, inclusivamente, forçada a abandonar a sua casa de morada de família, tudo em sede de Processo de Insolvência.

XIV. E desde então, não houve evolução nos presentes autos, não estando sequer finda a fase dos articulados, por razões que são desconhecidas à Apelante.

XV. Vindo agora o Tribunal invocar que a Apelante foi negligente em promover o andamento do processo, é algo que, com o devido respeito, não se pode concordar.

XVI. Reitera-se que, dado os moldes do incidente em questão, a Apelante fez prova mais que suficiente dos respectivos herdeiros do falecido R., tudo com vista à sua vontade quanto ao prosseguimento do processo - nenhuma ilação diferente se pode tirar das diligências efetuadas pela Apelante.

XVII. Assim, deveria ter sido a Apelante convidada a adequar o requerimento ao formalismo que se pretende, pois, em 28 de Julho de 2015, a Apelante juntou aos autos toda a matéria e prova suficiente para que fosse processado o incidente de habilitação referente ao R. CC, nos termos dos artigos 351.°, 352.º e 353.º CPC.

XVIII. Em vez de se ignorar o seu conteúdo, decidindo pela deserção da instância face apenas ao tempo decorrido, sem conferir à Apelante o exercício do direito ao contraditório, pois a deserção não opera pelo simples decorrer do tempo, mas, quando esse tempo decorra por negligência das partes - o que não foi o caso.

XIX. Face ao exposto, deve o despacho em causa ser revogado, substituindo-se por outro a convidar a Apelante a aperfeiçoar os Requerimentos apresentados em 28 de Julho de 2015, em prazo a fixar, com vista ao processamento do incidente de habilitação.

                               

A Ré Massa Insolvente de BB contra alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

                                            

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                                    

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

São questões a conhecer:

- As isoladas abaixo sob o item Plano Jurídico-conclusivo.

                       III - FUNDAMENTAÇÃO

Plano Factual:

Dão-se aqui por reproduzidas as incidências fáctico-processuais acima referidas.

Plano Jurídico-conclusivo:

Em breve nota importa dizer que o que consta das conclusões relativamente aos fundamentos da revista excecional está definitivamente ultrapassado ou prejudicado, visto que a formação de juízes a que alude o nº 3 do art. 672º do CPCivil (o órgão competente para aferir da admissão excecional da revista) entendeu que não se registava uma situação de dupla conformidade decisória das instâncias e, como assim, que não havia fundamento para a revista excecional. Parece que este juízo da formação deve ainda ser tido como definitivo (rectius vinculativo) à luz do espírito da citada norma, pelo que, concordando ou não com ele, consideramos arrumada pela positiva a questão da admissibilidade (por inexistência de dupla conformidade decisória das instâncias) da presente revista normal.

Quanto ao mais:

a) Entende a Recorrente (se não expressamente, pelo menos implicitamente), e em primeira linha, que com a junção da certidão da habilitação de herdeiros do falecido Réu fez o que tinha a fazer em termos de impulso processual, e daqui que nada negligenciou em termos processuais.

Mas não pode subscrever-se um tal ponto de vista.

A habilitação de sucessores constitui um incidente da instância. Ora, como resulta claro do nº 1 do art. 293º do CPCivil (“No requerimento em que suscite o incidente…”), terá a parte que suscitar formalmente o incidente. Sem o fazer não existe o incidente.

Acresce que do nº 1 do art. 351º (“A habilitação dos sucessores…pode ser promovida…”) e nº 1 do art. 353º (“…sendo requerida…nos próprios autos da causa…”), ambos do CPCivil, resulta que não há oficiosidade em matéria de habilitação dos sucessores. Quem na habilitação tiver interesse (v. art. 351º nº 1), a começar naturalmente pelo demandante, é que tem o ónus de a promover formalmente. E essa promoção passa por um requerimento onde se proceda à indicação de quem são os sucessores, seguindo-se depois a abertura do contraditório dos factos alegados, e havendo lugar inclusivamente ao pagamento prévio da devida taxa de justiça (sem prejuízo da sua dispensa em hipótese de apoio judiciário, como sucederia no caso vertente).

E como bem se aponta no acórdão recorrido, uma coisa é a simples junção de uma escritura notarial de habilitação de herdeiros, que se resume a um documento que pode acompanhar o requerimento tendente à abertura do incidente, outra coisa, muito diferente, é um requerimento tendente à dedução do incidente.

No caso, a Autora limitou-se a fazer juntar ao processo uma certidão de habilitação notarial dos herdeiros do Réu falecido, nada tendo promovido ou requerido em termos de incidente de habilitação de sucessores. Note-se, entretanto, que herdeiro e sucessor não se equivalem necessariamente, e que no processo judicial o que importa é habilitar os sucessores no direito e não propriamente fazer saber quem são os herdeiros.

Incumpriu assim a Autora o dever de promoção necessário à retoma do andamento normal do processo, cuja instância estava suspensa por falecimento do referido Réu CC, dever esse que, com as devidas adaptações, emerge também do nº 1 do art. 3º e do nº 1 do art. 5º, ambos do CPCivil.

E cabendo às partes o ónus do impulso processual, nada podia o tribunal promover em ordem à dita retoma (v. nº 1 do art. 6º do CPCivil: “…sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes…”). Como nos diz Lebre de Freitas (Introdução ao Processo Civil, 3ª ed., pp. 157 e 158), a partir da propositura da ação cabe ao juiz providenciar pelo andamento do processo, mas podem preceitos especiais impor às partes o ónus de impulso subsequente, mediante a prática de determinados atos cuja omissão impeça o prosseguimento da causa, exemplificando precisamente com o caso da habilitação dos sucessores. Ou como afirma António Júlio Cunha (Direito Processual Civil Declarativo, 2ª ed., p. 56), “Após a demanda cabe ao juiz, atento o seu poder de direção (art. 6º nº 1), providenciar pelo andamento regular e célere da ação, mas ainda assim importa ter em conta que determinados preceitos impõem às partes certos ónus de impulso subsequente como, por exemplo, o ónus de requerer a habilitação dos sucessores da parte falecida (…)”

Ora, contrariamente à ideia que a Recorrente quer fazer passar, continua a vigorar no processo civil atual o princípio da autorresponsabilização das partes (estreitamente ligado ao princípio da preclusão). Como se diz no acórdão da Relação de Guimarães de 2 de fevereiro de 2015 (processo nº 990/14.6T8BRG.G1) em caso paralelo ao vertente, “Atribui-se (…) ao juiz o poder de direção do processo, deferindo-lhe a competência para, em superação da omissão da parte, providenciar pelo suprimento dos pressuposto processuais susceptíveis de sanação e convidar as partes a praticar os actos necessários à modificação subjectiva da instância, quando isso se torne necessário, reforçando-se o princípio do dispositivo. Não obstante, nem por isso se eliminou o princípio da auto-responsabilidade das partes”. A inércia processual das partes (seja por inépcia ou impreparação sua em termos técnico-processuais, seja intencionalmente em função de uma certa interpretação do direito aplicável) produz consequências negativas (desvantagens ou perda de vantagens) para elas, só havendo lugar à desvalorização do princípio da sua autorresponsabilização mediante a intervenção tutelar, assistencial ou corretiva do tribunal quando a lei o preveja, e não é o caso. E como nos diz ainda Lebre de Freitas (ob. cit., p. 183), em asserção em torno precisamente dos princípios da preclusão e da autorresponsabilidade das partes, a omissão continuada da atividade da parte, quando a esta cabe um ónus especial de impulso processual subsequente, tem efeitos cominatórios, que podem consistir, designadamente, na deserção da instância. De igual forma, António Júlio Cunha (ob. cit., p. 89) aduz que “As partes, em regra, não se encontram obrigadas a adotar certos comportamentos, mas se o não fizerem não obterão determinadas vantagens ou daí poderá decorrer um prejuízo. Mas se assim é (…) são as mesmas que respondem pelos resultados negativos (para os seus próprios interesses) da sua conduta”.

Do que fica dito resulta que a Autora incumpriu o seu dever de promoção processual, sendo-lhe por isso imputáveis, e não ao tribunal, as respetivas consequências. Se o fez, prevenida ou desprevenidamente, por esta ou aquela razão, sibi imputat.

Improcede assim a questão aqui em causa.

b) Mais se queixa a Recorrente contra uma indevida omissão de convite ao aperfeiçoamento do seu “requerimento”, bem como de uma pretensa violação do princípio do contraditório, citando a propósito os art.s 6º, 7º, 411º, 590º, nº 2, alínea b) e 3,º nº 3, todos do CPCivil

Mas também aqui carece de razão.

Vejamos:

No que tange ao convite ao aperfeiçoamento, vale inteiramente o que se aduz no acórdão recorrido: não se concebia um aperfeiçoamento de um requerimento inicial virtual, ou seja, de um requerimento inicial que de todo em todo não foi apresentado. Efetivamente, nada havia sido requerido pela Autora, por imperfeito que fosse, senão simplesmente feito juntar um documento. Não é suscetível de aperfeiçoamento o ato processual que pura e simplesmente não chegou a ser deduzido.

E as normas legais citadas pela Recorrente não têm, nem pela sua letra nem pelo seu espírito, qualquer aplicação ao caso. Pois que o dever de gestão processual, a atuação do princípio da cooperação, a atuação do princípio do inquisitório e o convite ao aperfeiçoamento dos articulados são incumbências judiciárias que estão subordinadas à atividade prévia de promoção da causa e seus incidentes por banda das partes, mas dá-se o caso de que é precisamente esta ausência de promoção que está aqui em questão.

No que respeita ao contraditório, sustenta a Recorrente que havia de ter sido chamada a pronunciar-se sobre a possibilidade da instância ser julgada deserta, sendo que a verificação da negligência da parte sempre é legalmente exigida para a deserção da instância.

Ora, apontando de novo para Lebre de Freitas (ob. cit., pp 124 e 125) e para António Júlio Cunha (ob. cit., pp. 52, 53 e 54), podemos dizer que o princípio do contraditório refere-se ao direito de influenciar a decisão no que tange aos factos, provas e questões de direito que se encontrem em ligação com o objeto dialético controvertido entre as partes. Mais propriamente, e como nos diz concisamente António Júlio Cunha (p. 52), o princípio “tem em vista garantir que a cada uma das partes seja dada a possibilidade de contestar e controlar a atividade da outra; bem que o tribunal só decida depois de a ambas as partes ser facultada a real possibilidade de se pronunciarem sobre a questão a decidir”. Particularizando, podemos dizer que no plano da alegação dos factos e da produção das provas, o princípio traduz-se na faculdade conferida a cada uma das partes de se pronunciar sobre os factos alegados pela contraparte e de impugnar a admissibilidade e força probatória das provas e de intervir na sua produção; no plano do direito (subsunção dos factos às soluções previstas na lei), o princípio consubstancia-se na exigência de que às partes seja facultada a discussão dos aspetos jurídicos em que a decisão se venha a fundamentar, visando-se assim afastar a denominada decisão-surpresa, ou seja a decisão que se funda numa perspetiva não suscitada ou antevista pelas partes. Afirma ainda António Júlio Cunha (p. 54), a propósito deste último item, que “Não tendo nenhuma das partes suscitado uma determinada questão de direito material (que o tribunal possa conhecer oficiosamente) em que o julgador pretenda basear a sua decisão, este deverá, previamente, convidar ambas as partes a, querendo, manifestar a sua posição sobre a mesma (art. 3º, nº 3). Pretende-se que tanto quanto possível as decisões sejam previsíveis”.

Constituindo o que vem de dizer-se o exato sentido do princípio do contraditório exarado na lei, logo se vê que a decisão ora em causa (declaração da deserção da instância por ausência de impulso processual) não atenta contra a sua (do princípio) razão de ser. Pois que tratando-se na declaração de deserção simplesmente de fazer atuar um efeito processual que, associado a certo comportamento omissivo da parte, está diretamente estabelecido na lei e que em nada se resolve numa questão de facto, numa questão de prova nem numa questão de direito material suscitada pela contraparte, nem tão-pouco numa decisão-surpresa, nada há a contraditar. Isto só não seria assim se acaso a lei determinasse que nenhum despacho relativo aos termos do processo poderia ser proferido sem uma prévia audição das partes. Mas não determina, estando ela própria recheada de hipóteses em que ao silêncio ou inação das partes se segue imediatamente (isto é, sem prévia audição das partes) a declaração judicial do efeito processual cominatório que lhe está associado.

É certo, não se duvida, que o art. 281º do CPCivil exige, para que a instância seja julgada deserta, que exista negligência da parte onerada com o ónus do impulso processual. O que significa que a decisão que julgue deserta a instância tem de conter um juízo que aponte para a negligência da parte em termos de impulso processual.

E por isso há quem observe que a deserção da instância não se verifica automaticamente pelo decurso do prazo de seis meses ali fixado, devendo o tribunal ouvir previamente as partes, de forma a aquilatar da negligência ou não negligência da parte omissa (assim, Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 3ª ed., p. 344; Ac. da RP de 2 de fevereiro de 2015, processo nº 4178/12.2TBGDM.P1; Ac. da RL de 26 de fevereiro de 2015, processo nº 2254/10.5TBABF.L1-2; Ac. da RL de 9 de setembro de 2014, processo nº 211/09, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Mas não parece de subscrever este entendimento em toda a sua extensão.

Claro que a deserção não se verifica automaticamente pelo decurso do prazo. Pelo contrário, demanda também uma decisão judicial e um juízo acerca da existência de negligência da parte.

Simplesmente, a negligência de que fala a lei é necessariamente a negligência retratada ou espelhada objetivamente no processo (negligência processual ou aparente). Se a parte não promove o andamento do processo e nenhuma justificação apresenta, e se nada existe no processo que inculque a ideia de que a inação se deve a causas estranhas à vontade da parte, está apoditicamente constituída uma situação de desinteresse, logo de negligência.

De outro lado, em sítio algum estabelece a lei qualquer “audição” das partes (seja ou não a expensas do princípio do contraditório) em ordem à formulação de um juízo sobre essa negligência (aliás, mais do que ouvir as partes ou atuar o contraditório, tratar-se-ia então de um autêntico “incidente”, por isso que, dentro da lógica subjacente, as partes teriam que ser admitidas a demonstrar as razões que as levaram a não promover o andamento do processo, isto é, a sua não negligência). Ao invés, à parte onerada com o impulso processual é que incumbe (aliás à semelhança do que sucede no caso paralelo do justo impedimento, art. 140º do CPCivil), e ainda como manifestação do princípio da sua autorresponsabilidade processual, vir atempadamente ao processo (isto é, antes de se esgotar o prazo da deserção) informar e mostrar as razões de facto que justificam a ausência do seu impulso processual, contrariando assim a situação de negligência aparente espelhada no processo. E é em função desta atividade da parte que o tribunal poderá formular um juízo de não negligência. O que a lei pretende é que a parte ativa no processo não seja penalizada em termos de extinção da instância quando a razão do não andamento da causa lhe não seja imputável. E, repete-se, o nº 3 do art. 3º do CPCivil não importa ao caso, visto que não se trata aqui do direito de influenciar a decisão (em termos de factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto dialético da causa, nem tão-pouco é configurável uma decisão-surpresa, antes trata-se simplesmente de fazer atuar uma consequência processual diretamente associada na lei à omissão negligente da parte tal como retratada objetivamente no processo.

Tem assim razão o acórdão recorrido aí onde aduz que “Ao interessado no prosseguimento do processo cabe deduzir o incidente de habilitação (…). E das duas uma: ou deduz esse incidente, porque nele tem interesse, ou não deduz, optando por manter o processo suspenso. A escolha é da parte mas acarta as respectivas consequências.

Se a parte não quer impulsionar o processo, se a parte deixa decorrer o prazo da suspensão sem que deduza o incidente obrigatório para o prosseguimento do processo - que se pode chamar a isto senão negligência em impulsionar os autos? (…)

Como escrevem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, se «a habilitação não tiver lugar, por não ser requerida ou ser julgada improcedente, observa-se o art.º 281-1 (deserção da instância)» (Cód. Proc. Civil Anotado, vol. 1.º, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2014, p. 681).”

Acresce dizer que o pretendido contraditório tendente a aquilatar da negligência ou não negligência da ora Recorrente não faria in casu qualquer sentido, resolvendo-se num ato claramente inútil ou dilatório (e, como tal, proibido: art. 130º do CPCivil). Pois que, como se logra inferir do teor da alegação do recurso, a falta do impulso processual em causa (habilitação dos sucessores) não foi motivada por qualquer razão impeditiva da prática desse ato, mas sim por se ter representado que a simples junção do documento de habilitação notarial de herdeiros seria suscetível de cumprir esse impulso. Portanto, do que se trata não é de qualquer escolho compreensivelmente impeditivo do ato, mas sim de uma opção de direito (sem dúvida muito respeitável, mas que não merece acolhimento). Opção de direito essa que, para o bem e para o mal, terá as suas consequências. Ora, não sendo a perspetiva de direito defendida pela Autora validada ou sufragada pelo tribunal, é apodítico que fica então constituída uma situação de injustificada inação imputável à Autora, que assim não poderá deixar de arcar com as inerentes consequências processuais. Consequências que são precisamente a deserção da instância.

Aliás, afigura-se que a própria Recorrente aparenta não depositar muita confiança na bondade do que aduz em termos da alegada violação do princípio do contraditório, na medida em que o que pretende realmente (v. conclusão XIX) é um convite de aperfeiçoamento do seu ato de junção da certidão de habilitação de herdeiros (de forma a transmudá-lo num requerimento inicial de habilitação de sucessores), e não ser chamada a exercer qualquer contraditório.

Improcedem assim as questões aqui em causa.

Pelo que fica dito resta concluir que o acórdão recorrido não é passível das censuras que a Recorrente lhe endereça, improcedendo, no que vão contra o que vem de ser dito, as conclusões do recurso.

Improcede pois a revista.

IV. DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Regime de custas:

A Recorrente é condenada nas custas da revista.

               

Lisboa, 20 de Setembro de 2016

José Rainho (Relator)

Nuno Cameira

Salreta Pereira