Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
44450/04.3YYLSB-A.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: SERRA BAPTISTA
Descritores: EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
TÍTULO EXECUTIVO
ACORDO PARASSOCIAL
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
Apenso:  
Data do Acordão: 09/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
DIREITO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS - CONTRATO DE SOCIEDADE
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO EXECUTIVO
Doutrina: - Amâncio Ferreira, Curso do Processo de Execução, p. 21.
- Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. I, p. 333.
- Lebre de Freitas, A Acção Executiva, p. 26.
- Lebre de Feitas e outros, CPC Anotado, vol. 1.º, p. 92.
- Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, p. 26.
- P. Lima e A. Varela, CC Anotado, vol. I, p. 410.
- Rui Pinto Duarte, Tipicidade e Atipicidade dos Contratos, p. 65.
- Vaz Serra, RLJ Ano 102.º, p. 168.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, N.º1, 238.º, N.º1, 434.º, N.º1, 458.º.
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 2.º, 17.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 45.º, N.º1, 46.º, AL. C), 1ª PARTE.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 4/5/1999, BOL. 487, P. 242;
-DE 31/3/2009, Pº 08B3886, IN WWW.DGSI.PT ;
-DE 18/6/2009, Pº 246/09.6YFLSB, WWW.DGSI.PT .

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:
-DE 26/1/2010, Pº 1782/08.7TBGRD.C1, IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :
1. Para que possa ser pedida a realização coactiva de uma prestação, o dever de prestar respectivo tem de, desde logo, constar de um título – estando a sua enumeração legal (art. 46.º do CPC ) submetida a uma regra da tipicidade (nullus titulus sine lege) - que extrinsecamente condiciona a exequibilidade do direito, na medida em que lhe confere um grau de certeza que o sistema reputa suficiente para a admissibilidade da acção executiva.

2. A al. c) do citado art. 46.º confere exequibilidade aos documentos particulares assinados pelo devedor, entre os quais se encontram os de reconhecimento de dívida (art. 458.º do CC).

3. Na interpretação do acordo de accionistas (“S........A..........”), expressamente previsto no art. 17.º do CSC, não obstante a estreita redacção do art. 2.º deste mesmo diploma legal, sobre o direito subsidiário a aplicar, deve observar-se o regime geral dos contratos e do negócio jurídico, recorrendo-se às normas da interpretação da declaração negocial.

4. Constituindo matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, em sede de interpretação dos negócios jurídicos, o apuramento da vontade psicologicamente determinável das partes, sendo matéria de direito a fixação do sentido juridicamente relevante da vontade negocial, isto é, a determinação do sentido a atribuir à declaração negocial em sede normativa, com recurso aos critérios fixados nos arts 236.º, nº 1 e 238.º, nº 1, ambos do CC.

5. Deve entender-se que, na falta de outros elementos seguros, resolvido validamente o acordo de accionistas, com efeitos reportados a 31 de Outubro de 2001, a promessa de pagamento e respectivo reconhecimento de divida que ali constava, a vencer-se em 31 de Dezembro seguinte, deixou de subsistir, tendo ficado destruído pela dita e eficaz resolução.
Decisão Texto Integral:

                ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

                AA S.A., nos autos de execução que lhe move BB, S.A., veio deduzir oposição, pedindo que seja considerada procedente a arguida invalidade do título executivo, devendo, em consequência, ser declarada extinta a instância. E, assim não se entendendo, deverá a oposição ser julgada procedente, com a sua consequente absolvição do pedido.

                Alegando, para tanto, e em suma:

                O título executivo é inválido/inexequível.

                Com efeito, a cláusula 4.3 do Acordo Parassocial celebrado entre os accionistas da então sociedade T.....- Comunicações Interactivas, S.A, pela exequente oferecido como título executivo, não consubstancia uma confissão de dívida, tendo as partes acordado, expressa e deliberadamente, submeter a obrigação de pagamento de determinada quantia, decorrente de uma alegada aquisição de acções por parte da executada, a uma série de regras e condições. Tratando-se, não de um reconhecimento de dívida, mas de um acordo bilateral, sujeito a diversas cláusulas, obrigações e condições.

                Em caso de incumprimento do acordo celebrado, obrigavam-se as partes a notificar a inadimplente e, caso esta não cumprisse, seria notificado no prazo de 30 dias o Presidente dos Accionistas, podendo ser resolvido o contrato, caso, ainda assim, a obrigação não fosse cumprida.

                Em 31 de Outubro de 2001, data em que alegadamente a obrigação de pagamento da executada deveria ser cumprida, já o Acordo estava resolvido, tendo deixado de produzir efeitos entre as partes.

                Não há, assim, dívida judicialmente exigível.

                Também a executada nunca foi interpelada para pagar a quantia reclamada, não podendo ser condenada em juros.

                A exequente veio contestar.

                Alegando, também em síntese:

                Ao contrário do que refere a opoente, a exequente apresenta como título executivo, ao abrigo do disposto no art. 46.º, nº 1, al. c) do CPC, a obrigação de pagamento, por aquela assumida, expressa na cláusula 4 do Acordo Parassocial junto aos autos.

                No mais, impugna os factos pela opoente alegados e que contrariam a sua pretensão.

                Foi proferido despacho saneador-sentença, o qual, na procedência da oposição, julgou a execução extinta.

                Inconformada, veio a exequente interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, por acórdão de fls 283 e ss, na sua improcedência, confirmou a decisão recorrida.

                Ainda irresignada, veio a exequente pedir revista para este Supremo Tribunal de Justiça, formulando, na sua alegação, as seguintes conclusões:

                1ª - Na sequência do incumprimento pela AA de um contrato de compra e venda de acções celebrado entre as partes, a BB foi forçada a apresentar contra a AA uma acção executiva para pagamento de quantia certa cujo montante corresponde ao remanescente do preço ainda em dívida.

                2ª - Para o efeito, a BB ofereceu à execução um documento denominado pelas partes de "S........A.........." que se encontra assinado pela Recorrida.

                3ª - Na qualidade de accionistas da T....."pretenderam estabelecer as regras e princípios pelos quais se devem reger as suas relações como Accionistas da T........, no âmbito do disposto nos Estatutos da T......." (cfr. considerando (C) do "S........A..........").

                4ª - De forma voluntária, a AA reconheceu em 9 de Março de 2000 (data da assinatura do "S........A..........") que, pela compra de 5.000 (cinco mil) acções representativas do capital social da T...... ainda devia à BB o remanescente do preço, ou seja, Esc. 96.548.760$00 (noventa e seis milhões, quinhentos e quarenta e oito mil, setecentos e sessenta escudos).

                5ª - Ainda de acordo com a cláusula 4. do "S........A.........." a AA comprometeu-se a pagar esta dívida até ao dia 31 de Dezembro de 2001 o que não cumpriu.

                6ª - Sucede que a decisão recorrida julgou totalmente improcedente o recurso interposto pela Recorrente, mantendo a decisão do Tribunal de 1ª instância, que julgou procedente a oposição à execução deduzida pela AA por ter considerado que a BB deu à execução dos presentes autos um documento cujos efeitos se extinguiram na ordem jurídica.

                7ª - Contudo, o Tribunal a quo tomou a sua decisão sem ponderar que o "S........A.........." regula a relação entre os accionistas da T.....e que, tal regulação, é totalmente alheia da assunção das dívidas à Exequente na sequência da celebração de contratos de compra e venda de acções.

                8ª - Ou seja, o contrato que a AA resolveu - e posteriormente foi confirmado por sentença arbitral - foi o "S........A.........." e não o contrato de compra e venda das acções celebrado com a BB do qual resulta a dívida reconhecida no documento dado à execução.

                9ª - No título dado à execução não só a AA reconhece a dívida à BB como se constitui na obrigação de pagar o remanescente do preço pela aquisição das acções até 31 de Dezembro de 2001.

                10ª- Isto significa que o "S........A.........." que a BB ofereceu à execução preenche os requisitos cumulativos para que seja qualificado como título executivo válido ao abrigo do citado artigo 46.º do Código de Processo Civil

                11ª- E que a resolução unilateral pela AA do acordo que regula as relações entre as accionistas não pode colidir com a sua declaração voluntária de reconhecimento da dívida à BB e que foi expressa nesse documento.             

                12ª- Por outro lado, na tomada desta decisão recorrida o Tribunal a quo não analisou da forma devida as cláusulas 19.3 e 20.2 do "S........A..........', de acordo com as quais as partes quiseram ressalvar os efeitos constitutivos até aí produzidos mesmo em caso de "rescisão" e qualquer que fosse a sua causa.

                13ª- As cláusulas acordadas entre as partes de não atribuir efeitos retroactivos à resolução não foram mais que a aplicação da parte final do n.º 1 do artigo 434.° do Código Civil.

                14ª- Ora, uma das cláusulas que as partes não podem considerar extinta - ao contrário do que foi entendido pelo Tribunal da Relação de Lisboa - por força da resolução do "S........A..........' pela AA é exactamente a sua cláusula 4. que regula a "Propriedade das Acções" e contém o reconhecimento da dívida exequenda.

                15ª- Nessa medida, considerar como fez o Tribunal a quo que a resolução unilateral do "S........A.........." pela AA extingue o reconhecimento da dívida e a obrigação assumida pela Recorrida de efectuar o pagamento do remanescente do preço ofende, para além do previsto no artigo 458.° do Código Civil, aquilo que as partes convencionaram.

                16ª- Donde, sendo a obrigação assumida pela AA de efectuar o pagamento do preço à BB uma obrigação certa, líquida e exigível que se encontra reconhecida num documento particular assinado pela AA, o artigo 46.° do Código de Processo Civil confere exequibilidade a esse documento.

                17ª- Deste modo, verificados os pressupostos para qualificar o documento dado à execução como título executivo não se afigura necessário e pertinente, ­atendendo ao princípio da economia processual, o recurso à acção declarativa para que a AA seja condenada a pagar o remanescente do preço que, em momento anterior, reconheceu ser devedora.

                18ª- Em suma, a decisão recorrida violou os artigos 236.°, 397.°, 405.°, 434.°, 458.° e 817.° do Código Civil e o artigo 46.° do Código de Processo Civil.

                 A recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão.

                Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.

São, como é bem sabido, as conclusões da alegação do recorrente que delimitam o objecto do recurso – arts 684º, nº 3 e 690º, nº 1 e 4 do CPC, bem como jurisprudência firme deste Supremo Tribunal.

Sendo, pois, as questões atrás enunciadas e que pela recorrente nos são colocadas que cumpre apreciar e decidir.

As quais se podem resumir à de saber se o documento dado à execução deve ser tido como título executivo

                Vem dado como PROVADO:

                1 - Foi dada à execução um documento particular denominado "Acordo Parassocial" subscrito pela exequente e executada onde esta se compromete a pagar à F...... o "montante estabelecido na Cláusula 4.2 (de 96,548,760) em 31.12.2001, ou numa data anterior que seja fixada em confor­midade com os parágrafos seguintes".

                                2 - Na cláusula 19.3 alínea a) do mesmo acordo, refere-se que "Os accionistas lesados podem, em qualquer altura a partir dessa data, rescindir o Acordo com o Accionista Infractor, com efeitos a contar da data da notificação escrita enviada ao Accionista Infractor para tal efeito".

                3 - Em 31.10.2001, a executada/Oponente enviou à exequente/Embargada, e esta recebeu, a carta que consta a fls. 43 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, onde consta, além do mais, "nos termos da cláusula 19.3 (a) consideramos cessados os efeitos do Acordo Parassocial relativamente a V. Exas.".

                4 - No âmbito de uma acção julgada em tribunal arbitral com base no mesmo Acordo Parassocial, foi a exequente condenada a pagar à executada a quantia de 500.000,00 Euros;

                5 - Por carta registada com aviso de recepção, datada de 19.03.2004 a exequente comunicou à exe­cutada/oponente a extinção parcial, por compensação, desse crédito que sobre a mesma detinha.

                Podendo, ainda, dar-se como assente, tendo em conta o documento dado à execução, cuja cópia (traduzida para a língua portuguesa) se encontra junta de fls 230 a 262) – arts 373.º, 374.º e 376.º do CC e 729.º, nº 2 do CPC:

                “19. Incumprimento (do acordo de accionistas)

                  19.1 Se algum dos Accionistas (o “Accionista Infractor”) não cumprir qualquer uma das suas obrigações ao abrigo do presente Acordo e não conseguir resolver, tal incumprimento no prazo de 30 dias a contar da data da recepção de uma notificação escrita, enviada por qualquer dos outros Accionista (s) Lesado (s), notificando-o do incumprimento e requerendo a resolução do mesmo, os direitos do Accionista Infractor ao abrigo deste Acordo (mas não as suas obrigações ao abrigo do mesmo) deverão ser suspensos a partir da data em que termina o período para resolução fixado acima e a menos que, e até que, esse incumprimento tenha sido efectivamente resolvido.

                19.2 O (s) Accionista (s) Lesado (s) e o (s) Accionista (s) Infractor (s) comprometem-se a, numa data não posterior ao termo do prazo de 30 dias do período de resolução acima estabelecido, submeter a questão do incumprimento a aprovação e resolução pelo Presidente desses Accionistas, o qual disporá de um novo período de trinta dias para decidir quanto ao mesmo, decisão essa que será vinculativa para os respectivos Accionistas.

                ……………………………………………………………………………………………………………………………).           20.2 A rescisão do presente Acordo, qualquer que seja a sua causa, deverá decorrer sem prejuízo de quaisquer obrigações ou direitos de quaisquer Accionistas que se tenham juntado aos anteriores antes da rescisão e não deverá afectar qualquer cláusula do presente Acordo que já se encontre expressamente em vigor, ou que venha implicitamente a entrar em vigor, ou ainda que se mantenha em vigor após a referida rescisão ”.

                                Vejamos, então:

                Como vem dado como provado, sem censura das partes, foi dado à execução um documento particular, aqui denominado “Acordo Parassocial”[1] subscrito entre a executada e a exequente, pelo qual, e alem do mais, aquela se comprometeu a pagar, em 31/12/2001, ou numa data anterior que seja fixada em conformidade com os parágrafos seguintes (da cláusula 4.2), a quantia de 96 548 760$00.

                A exequente, ora recorrente, entende que o documento que apresenta como título executivo – o tal “Acordo Parassocial” [2] – assinado pela executada, alegada devedora, consubstancia, em si mesmo, a constituição ou o reconhecimento de uma obrigação pecuniária, preenchendo, assim, todos os pressupostos de um título executivo, que, nos termos do art. 46.º, al. c), 1ª parte, do CPC, pode servir de base à execução.

                Tendo a executada reconhecido dever à exequente o montante pedido, obrigando-se, consequentemente – e unilateralmente - a pagar o mesmo.

                Obrigação essa que, a seu ver, não é prejudicada pela resolução do contrato operada em 31 de Outubro de 2010, com efeitos a partir de então, julgada válida por decisão transitada do tribunal arbitral[3].

                Pois ficavam ressalvados os efeitos (constitutivos) até aí produzidos (cláusula 19.3.a) e art. 434.º, nº 1 do CC), mormente, no que ora importa, a obrigação de pagamento assumida em 9/3/2000 (data da assinatura do acordo).

                Ora bem:

Estamos, in casu, perante a oposição a uma acção executiva, fundada num documento particular, assinado, alem do mais, pela executada/recorrida.

                                Ora, toda a execução, como é bem sabido, tem por base um título executivo[4], pelo qual se determina o seu fim e limites – art. 45º, nº 1 do CPC.

                                De facto, para que possa ser pedida a realização coactiva de uma prestação, o dever de prestar respectivo tem de, desde logo, constar de um título, que extrinsecamente condiciona a exequibilidade do direito, na medida em que lhe confere um grau de certeza que o sistema reputa suficiente para a admissibilidade da acção executiva[5].

                Não bastando alegar a existência do título, sendo antes necessário exibi-lo, sendo sempre indispensável que ele tenha força executiva.

                                Cumprindo o título executivo uma função constitutiva, na medida em que atribui exequibilidade a uma pretensão, possibilitando que a correspondente prestação seja realizada através das medidas coactivas impostas ao executado pelo Tribunal[6].

                A exequibilidade extrínseca da pretensão é, pois, conferida pela sua incorporação num título executivo, num documento que formaliza por via legal “a faculdade de realização coactiva da prestação não cumprida”.

                O título executivo é, assim, pressuposto ou condição geral de qualquer execução, sua condição necessária e suficiente. Não havendo acção executiva sem título.

                Os títulos executivos são os indicados na lei como tal (art. 46º do CPC), estando a sua enumeração legal submetida a uma regra de tipicidade – nullus titulus sine lege – sem possibilidade de quaisquer excepções criadas ex voluntate, estando, assim, vedado às partes não só a atribuição de força executiva a um documento a que a lei não reconheça eficácia de título executivo, como ainda a recusa de um título legalmente qualificado como executivo[7]

Conferindo a al. c) do citado art. 46º exequibilidade aos documentos particulares assinados pelo devedor[8].

Exigindo-se, como requisito de fundo, para que tais documentos constituam título executivo, que os mesmos formalizem a constituição de uma obrigação, isto é, que sejam fonte de um direito de crédito, ou que neles se reconheça a existência de uma obrigação já anteriormente constituída.

Encontrando-se, neste caso, o reconhecimento de dívida (art. 458.º do CC)[9].

Mas, será, então, que o documento dado à execução constitui título executivo?

As instâncias, como já vimos, consideraram que não, pois, não obstante o compromisso assumido pela ora executada, de pagar o montante de 96 548 760$00, em 31/12/2001, a resolução operada em 31/10/2001, com efeitos a partir de então, cessados que foram os efeitos do acordo antes celebrado, fez com que, sem se vislumbrar referência a qualquer salvaguarda[10], o acordo deixasse de produzir efeitos jurídicos.

Pelo que, à data do vencimento da dívida assumida, já o referido acordo parassocial tinha deixado de produzir efeitos.

Assim cessando a obrigação do pagamento antes prometido

Cremos que a razão está com as instâncias.

Com efeito, e na falta de elementos seguros - que os não há nos autos - sobre se a comprovada resolução do acordo de accionistas, com efeitos reportados a 31 de Outubro de 2001, atingiu ou não o compromisso de pagamento pela executada unilateralmente assumido – promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida[11] - a vencer-se apenas em 31 de Dezembro seguinte, há que decidir–se pela afirmativa, ou seja, que o falado reconhecimento da dívida, a vencer-se (apenas) em 31 de Dezembro de 2001, foi destruído pela dita e efectiva resolução.

Tanto mais, como diz a Relação, que não se evidencia que tal promessa e reconhecimento possa subsistir, se o Acordo deixou de produzir efeitos em momento anterior ao do vencimento da dívida, resultante da promessa unilateral de cumprimento, e consequente efectivação do prometido[12].

Na verdade, foi nestes termos que a Relação – tal como a 1ª instância - interpretou o clausulado em 20.2 quanto aos efeitos não retroactivos da resolução do acordo de accionistas em apreço.

Devendo-se, na interpretação de tal acordo expressamente previsto no art. 17.º do CSC, e não obstante a estreita redacção do seu art. 2.º sobre o direito subsidiário a aplicar, observar o regime geral dos contratos e do negócio jurídico, recorrendo às normas da interpretação da declaração negocial[13].

Sendo certo que, em sede de interpretação dos negócios jurídicos, constitui matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, o apuramento da vontade psicologicamente determinável das partes, sendo matéria de direito a fixação do sentido juridicamente relevante da vontade negocial, isto é, a determinação do sentido a atribuir à declaração negocial em sede normativa, com recurso aos critérios fixados nos arts 236.º, nº 1 e 238.º, nº 1 do CC[14].

Podendo, assim, este STJ exercer censura sobre o resultado interpretativo das instâncias sempre que, tratando-se de situações previstas no citado art. 236.º, nº 1, tal resultado não coincida com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, pudesse deduzir do comportamento do declarante ou, tratando-se da situação contemplada no também aludido art. 238.º, nº 1, não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso[15].

Não se vislumbrando violado qualquer um destes mencionados preceitos.

Concluir se tem, pois, por tudo isto, e sem necessidade de mais, que o documento dado à execução não tem, em si mesmo, a virtualidade de servir de título executivo.

Face a todo o exposto, acorda-se neste Supremo Tribunal de Justiça em se negar a revista, assim se confirmando o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 22 de Setembro de 2011

Serra Baptista (Relator)

Álvaro Rodrigues

Fernando Bento

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[1] E não, como bem diz a recorrida, qualquer eventual contrato de compra e venda de acções que também entre as partes tivesse sido celebrado.
[2] Tal acordo, que as partes denominaram de “Acordo de Accionistas” (“S........A..........”) – pags 194 a 227 - expressamente previsto no art. 17.º do CSC, é em princípio válido, não sendo sequer a sua não admissibilidade colocada pelas partes em causa.
Sendo ainda certo que a qualificação do acordo feita pelas partes, não sendo decisiva, releva enquanto um dos elementos a ter em conta na fixação do seu conteúdo e, por consequência, na sua qualificação pelo julgador (Rui Pinto Duarte, Tipicidade e Atipicidade dos Contratos, p. 65).
[3] Se bem que a decisão do aludido Tribunal devesse ser comprovada por certidão, a recorrente admite, na sua contestação, que o acordo foi validamente resolvido com efeitos a partir daquela data.
[4] Pode definir-se o título executivo, meio de demonstração do direito do exequente, perfilhando o ensinamento de Castro Mendes, como o documento que, por oferecer demonstração legalmente bastante da existência de um direito a uma prestação, pode, segundo a lei, servir de base à respectiva execução – Direito Processual Civil, vol. I, p. 333.
[5] Lebre de Freitas, A Acção Executiva, p. 26.
[6] Ac. do STJ de 4/5/99, Bol. 487, p. 242.
[7] Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, p. 26 e Amâncio Ferreira, Curso do Processo de Execução, p. 21.
[8] Com a reforma do processo civil de 1995/96, foi alterada a redacção do art. 46º, al. c), a qual, anteriormente, previa que podiam servir de título executivo, alem de outros, as letras. Agora, prevêem-se na mesma alínea, de forma genérica, “Os documentos particulares assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 805º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto”. Dispensando assim o uso do processo declarativo de condenação quando não há verdadeira controvérsia sobre a existência de obrigações pecuniárias cujo montante seja determinado ou determinável
[9] Lebre de Feitas e outros, CPC Anotado, vol. 1.º, p. 92.
[10] O Acordo prevê, na cláusula 20.2, que a sua rescisão, qualquer que seja a causa, não afectará qualquer cláusula do presente contrato que já se encontre expressamente em vigor, que venha implicitamente a entrar em vigor ou que se mantenha em vigor após a rescisão. Tal sendo permitido pelo art. 434.º, nº 1 do CC. Ensinando-nos Vaz Serra (RLJ Ano 102.º, p. 168) que não se pode exagerar o alcance da retroactividade, presumida como querida pelos contraentes, sendo outra a solução caso, desde logo, outra vontade resulte do contrato. Assim, a retroactividade da resolução só tem lugar onde a sua finalidade o justifique, bem podendo subsistir as obrigações, direitos e demais situações não abrangidas pela razão de ser da resolução – cfr., ainda, P. Lima e A. Varela, CC Anotado, vol. I, p. 410.
[11] Na referida cláusula 4.2 diz-se que os accionistas, entre eles a executada, se comprometem a pagar pelas acções determinada quantia em dinheiro – o peticionado quanto à ora executada – em 31/12/2001 ou em data anterior se verificados estiverem certos pressupostos, aqui não comprovados.
[12] E não expressamente de qualquer contrato de compra e venda de acções também eventualmente celebrado.
[13] Ac. da RC de 26/1/2010 (Cecília Agante), Pº 1782/08.7TBGRD.C1, in www.dgsi.pt, com menção de doutrina a propósito.
[14] Ac. do STJ de 31/3/09 (Santos Bernardino), Pº 08B3886, também in www.dgsi.pt.
[15] Ac. do STJ de 18/6/2009 (Oliveira Rocha), Pº 246/09.6YFLSB, também em www.dgsi.pt.