Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
598/04.4TBCBT.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ALUGUER DE LONGA DURAÇÃO
DIRECÇÃO EFECTIVA
DIREÇÃO EFECTIVA
LIMITES DA CONDENAÇÃO
LEGITIMIDADE
MORTE
DANO MORTE
ALIMENTOS
DANOS FUTUROS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 11/26/2015
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
Doutrina:
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11.ª Edição, Almedina, 2008, pp. 630-681, e, nota (1), p. 631.
- Antunes Varela, Obrigações em Geral, Vol. 1.º, 9.ª Edição, p. 501, Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina, 10.ª Edição, 2006, pp. 622-624; 656-657.
- Joaquim José Sousa Dinis, “Dano Corporal em Acidentes de Viação – Cálculo da indemnização em situações de morte, incapacidade total e incapacidade parcial”, in Separata dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano IX, Tomo I, 2001, pp. 8 e 9.
- Lopes do Rego, Comentários do Código de Processo Civil, Almedina, 1999, pp. 49-50.
- Vaz Serra, In BMJ n.º 90, pp.74-75 e 81; in RLJ Ano 109.º, pp. 156 e 158; in RLJ Ano 109.º, p. 159 e nota 2.
- Yvonne Lambert, Faivre, Droit du dommage corporel / Systèmes de indemnisation, 3.ª Edição, Dalloz, p. 186.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 495.º, N.º3, 503.º, N.º1, 562.º, 570.º, 572.º, 806.º, N.º3, 1675.º, N.º 1, 2009.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 30.º, 578.º, 609.º, N.º 1, 615.º, 663.º, 664.º.
D.L. N.º 133/2009, DE 02-06: - ARTIGO 2.º, N.º 1, ALÍNEA D).
D.L. N.º 149/95, DE 24-06.
D.L. N.º 354/86, DE 23-10: - ARTIGO 1.º, N.º 2, ALÍNEA C).
D.L. N.º 359/91, DE 21-09: - ARTIGO 3.º, ALÍNEA A), 2.ª PARTE.
D.L. N.º 522/85, DE 31-12: - ARTIGOS 2.º, 29.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 13/10/1998, IN C.J./ S.T.J., ANO VI, TOMO III, PP. 61-63;
-DE 11/07/2006, CITADO NO ACÓRDÃO DO STJ, DE 19/02/2014, PROCESSO N.º 1229/10.9TAPDL;
-DE 20/10/2009, NO PROCESSO Nº 85/07.9 TCGMT.G1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 19/02/2014, PROCESSO N.º 1229/10.9TAPDL-L1.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
1. Em caso de acidente de viação provocado por veículo em poder da locatária, no âmbito de um contrato de aluguer de longa duração (ALD), para efeitos de determinação da direção efetiva do veículo com vista à repartição do risco, nos termos e para os efeitos do art.º 503.º, n.º 1, do CC, deve atender-se aos poderes de facto concretamente exercidos por essa locatária e à sua incidência na esfera do risco envolvida no mesmo acidente.  

2. Numa ação emergente de responsabilidade civil por acidente de viação, para efeitos de limitação da condenação ao montante do pedido formulado, nos ter-mos do art.º 609.º, n.º 1, do CPC, o valor que releva não se afere pelos montantes parcelarmente deduzidos, mas pelo montante indemnizatório global, podendo assim cada parcela em que o réu for condenado ser superior a alguns dos montantes parcelares reclamados, desde que se contenha dentro do montante global; todavia, tal montante global deve ser diferenciado por cada uma das pretensões dos lesados.

3. O critério de aferição da legitimidade processual estabelecida em disposição especial deve pautar-se, no que lhe diz respeito, pela configuração da pretensão deduzida pelo autor, em sintonia com o disposto na parte final do n.º 3 do art.º 26.º correspondente ao atual 30.º do CPC.

   4. A indemnização a que se refere o n.º 3 do art.º 495.º do CC tem como critério não tanto a necessidade e medida estritas da prestação de alimentos a que se referem os artigos 2003.º, n.º 1, e 2004.º do mesmo diploma, mas a perda patrimonial, em termos previsíveis de danos futuros, correspondente ao que o falecido vinha efetivamente prestando, ou poderia eventualmente prestar, não fora a lesão sofrida, em termos de permitir aos beneficiários manter o nível de vida que aquele rendimento lhe proporcionaria.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório


1. AA, por si e em representação de sua filha menor BB, CC e DD instauraram, em 09/12/2004, junto do Tribunal Judicial de Celorico de Basto, ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra:

   1.º - EE - Companhia de Seguros, S.A.. (1.ª R.);  

   2.º - FF - Construções, Ldª (2.ª R.);  

   3.º - GG (3.º R.);

   4.º - HH (4.º R);  

   5.º - II - Comércio de aluguer de viaturas. Lda, incorporada na JJ - Instituição financeira de crédito, S.A. (5.ª R.).

Alegam as A.A., no essencial, que:

. Em 22/10/2001, pelas 8h45 (hora espanhola), na auto-estrada A1 que liga as cidades espanholas de Burgos e Málzaga, ocorreu um acidente de viação em que interveio, unicamente, o veículo automóvel de matrícula portuguesa 54-88-..., propriedade da 5.ª R., JJ, mas a circular sob as ordens e instruções do seu locatário, o 4.º R. HH, e conduzido pelo 3.º R. GG, no âmbito das funções assalariadas de motorista quer da 2.ª R. FF, quer do sócio-gerente desta, o 4.º R. HH;

O referido ve transportava então 10 homens adultos, incluindo o condutor, de entre os quais o marido da 1.ª A. e pai das restantes A.A., KK, ao serviço e sob as ordens, direção e fiscalização da 2.ª R. “FF”, com o fim de irem desempenhar tarefas relacionadas com trabalhos de construção civil;

. O sobredito veículo circulava com excesso da lotação e carga máximas autorizadas, com pneus de características ou qualidades inferiores às homologadas e com excesso de velocidade;   

. Nessas circunstâncias, ocorreu o rebentamento do pneu da roda traseira esquerda, na sequência do que o seu condutor, o R. GG, perdeu, de imediato, o controlo da viatura, a qual, após sucessivos, acabou por se imobilizar num talude existente fora da plataforma da auto-estrada completamente destruída;

. Em consequência disso, o passageiro KK, nascido em 03/10/1960, sofreu graves lesões crânio-encefálicas, tendo sido, depois de desencarcerado do interior da viatura, transferido para o hospital “General Yagüe”, de Burgos, onde esteve internado até 31/10/2001, data em que veio a falecer;

. Pelos danos sofridos pelo próprio KK e pelas A.A., com a morte daquele, são devidos os seguintes montantes indemnizatórios:

a) – pela perda da vida de KK, uma quantia não inferior a € 60.000,00 e, pelo seu sofrimento até à morte, durante nove dias, uma quantia não inferior ao € 20.000,00;

b) – a título do desgosto sofrido pela 1.ª A. com o decesso daquele sinistrado, seu marido, uma quantia não inferior a € 30.000,00 e pelo desgosto sofrido por cada uma das três restantes A.A. com a morte de seu pai, uma quantia não inferior a 25.000,00, perfazendo, quanto a estas, o montante de € 75.000,00;

c) – a título de rendimentos frustrados para a formação escolar da A. DD, uma quantia não inferior a € 29.000,00 e para a continuação dos estudos até à conclusão do ensino superior da A. menor, BB, uma quantia não inferior a € 50.000,00;

d) – por perda dos rendimentos do sinistrado, por parte da 1.ª A., sua mulher, uma quantia não inferior a € 150.000,00;

e) – por despesas do funeral, a quantia de € 518,75;

f) – por despesas suportadas pela 1.ª A., na sua estadia em Burgos, entre a data do acidente e o decesso do marido, a quantia de € 1.000,00.  


. Os R.R. respondem, solidariamente, por tais danos com base nas seguintes razões:

(i) - a 1.ª R. EE - Companhia de Seguros, S.A.., na qualidade de seguradora para a qual foi transferida a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ..., através da apólice n.º …, emitida em Portugal;       

(ii) - a 2.ª R. FF e o 4.º R. HH, sócio-gerente daquela, na qualidade de locatária do veículo e por terem partido deste as instruções para transportar passageiros além do lotação máxima autorizada e ainda por ter sido ele quem autorizou as alterações das características do veículo ao nível das rodas;

(iii) - o 3.º R. GG, na qualidade de condutor do veículo, em virtude de circular com excesso de velocidade e em precárias condições de segurança e estabilidade da viatura, sendo de presumir a sua culpa, dado que conduzia por conta de outrem;

(iv) – a 5.ª R. JJ – Instituição Financeira de Crédito, S.A., na qualidade de proprietária/locadora do veículo;

. Todos os R.R. ora demandados foram-no também, civilmente, pelas aqui A.A. para ressarcimentos dos danos ora reclamados, no âmbito de um processo criminal que correu termos junto do Juzgado de Instrucciòn n.º 1 de Briviesca, Burges, em Espanha, o qual terminou com a absolvição do ora R. GG e subsequente improcedência dos pedidos de indemnização ali formulados. 

As A.A. concluíram, pedindo a condenação solidária dos R.R. a pagar aos A.A. a quantia global de € 415.518,75, acrescida de juros de mora, à taxa máxima legal, a contar da data da citação até efetivo e integral pagamento.

2. A 1.ª R., “EE, S.A.”, apresentou contestação, em que, embora aceitando a transferência de responsabilidade até ao limite máximo contratado de € 625.000,00, concluiu pela improcedência da ação, na parte que lhe diz respeito, por razões que não relevam para o presente recurso.

3. Também a 5.ª R., “JJ, S.A”, contestou, impugnado os factos alegados pelas A.A. e sustentando, em resumo, que:

. Em 29/04/1999, celebrou com a R. “FF, Ld.ª”, um contrato de aluguer sobre o veículo …, na modalidade de ALD, pelo prazo de 48 meses, nos termos do qual cedeu a esta R. o gozo e fruição da referida viatura para utilização no interesse exclusivo da mesma, com a obrigação de pagar uma rendas mensais no valor de 75.788$00;

. Em outubro de 2002, foi contactada a locatária para antecipar o cumprimento do contrato e a aquisição do veículo, o que ocorreu logo que tomou conhecimento do acidente em causa;

. A R. não detinha o controlo material da viatura e desconhecia o motivo pelo qual o 3.º R. a conduzia;          

. Tendo o acidente ocorrido em 22/10/2001 e a ação sido instaurada apenas em 9/12/2004, os direitos peticionados pelas A.A. encontram-se prescritos.

Concluiu, a 5.ª R. pela sua absolvição da instância, com fundamento na respetiva ilegitimidade e, subsidiariamente, pela procedência da exceção de prescrição e improcedência da ação com a sua consequente absolvição dos pedidos contra si formulados.  

4. Por sua vez, o 3.º R. GG apresentou também contestação, em que impugnou os factos alegados pelas A.A., sustentando que o acidente ocorreu por caso fortuito e que nenhum dos ocupantes, à exceção do condutor, usava cinto de segurança, invocando ainda a prescrição dos direitos exercitados, concluindo pela improcedência da ação no que lhe diz respeito.

5. As A.A. replicaram, a pugnar pela improcedência das exceções deduzidas, reiterando o petitório.

6. Subsequentemente, a “LL Seguros, S.A..”, deduziu incidente de intervenção principal (fls. 329-341), em coligação com as A.A., no exercício do seu direito de regresso, pedindo a condenação solidária dos R.R. a pagar-lhe a quantia de € 120.869,96, referentes a pensões, indemnizações por ITA, subsídios, transportes médicos, assistência hospitalar e medicamentosa prestadas a vários sinistrados, incluindo o falecido KK; e foi também requerida e admitida a intervenção de todos os outros lesados no mencionado acidente.

7. Findos os articulados, foi proferido despacho saneador (fls. 1081-1.132 - Vol. 5.º), datado de 28/03/2008, no qual se conheceu das questões então pertinentes, designadamente da exceção de ilegitimidade suscitada pela 5.ª R. “JJ”, que foi julgada parte legítima, relegando-se o conhecimento das exceções de prescrição para final, seguindo-se a seleção da matéria de facto tida por relevante com organização da base instrutória.   

8. Realizada a audiência final e decidida a matéria de facto controvertida, conforme despacho de fls. 2854-2882 (Vol. 9.º), foi proferida sentença final (fls. 2920-2970 do Vol. 10.º), datada de 15/04/2013, na qual se decidiu:

a) – julgar a ação parcialmente improcedente, absolvendo  os R.R. HH e JJ”, dos pedidos formulados pelas A.A. e pelos intervenientes principais “LL - Companhia de Seguros, S.A.”, MM, NN e “Fundo de Acidentes de Trabalho”;

b) - conhecer oficiosamente da exceção de ilegitimidade passiva dos R.R. “EE – Companhia de Seguros, S. A.”, “FF - Construções, Ld.ª”, e GG, absolvendo-os da instância, no que respeita às pretensões deduzidas pelas A.A. e pelos intervenientes principais, acima indicados.

9. Inconformadas com tal decisão, as A.A. recorreram dela para o Tribunal da Relação de Guimarães, pugnando pela procedência total da ação, tendo a apelação sido julgada parcialmente procedente, conforme o acórdão proferido a fls. 3059-3079, de 15/05/2014, decidindo-se:

a) – julgar parte legítimas os R.R. “FF Construções, Ld.ª, e GG;

b) – condenar aqueles R.R. e ainda a R. JJ, solidariamente, a pagar às A.A., a quantia de € 11.271,63, acrescida de juros de mora, à taxa anual de 4%, a contar da data do acórdão e até efetivo pagamento;

c) – confirmar, no mais, a sentença recorrida. 

10. Desta feita, tanto os R.R. “JJ – Instituição Financeira de Crédito, S.A.”, e GG, como as A.A. AA e outras interpuseram recursos de revista, em que foram formuladas as seguintes conclusões:

 10.1. Por parte da R. JJ: 

1.ª – O acórdão recorrido condenou a ora Recorrente JJ responsável, nos termos do disposto no art.º 503.º, n.º 1, do CC, no pagamento às A.A. de € 11.271,63;

2.ª – Porém, não foi efetuada correta análise do alegado pela Recorrente quanto à natureza do contrato de ALD celebrado entre ela e a locatária FF, Ld.ª, nem do disposto nos artigos 503.º, n.º 1, e 505.º do CC;

 3.ª - Pelo que requer a reforma do acórdão proferido, porquanto, face ao alegado e à prova documental junta aos autos, não é possível concluir que “nem a locatária nem a locadora invocaram a celebração de um paralelo contrato-promessa de compra e venda ou de uma promessa unilateral de venda e tampouco da facticidade provada se pode, minimamente, deduzir ter sido esta a vontade das partes”;

 4.ª - Com efeito, logo em sede de contestação datada de 2/02/2005, alegou a aquisição da viatura pela locatária antes do termo do contrato;

 5.ª - A 16/04/2007, em sede de contestação ao incidente de intervenção principal provocada, deduzido pela LL - Seguros, S.A.., MM e NN, a Recorrente precisou a data de aquisição do veículo pela locatária e juntou documento (doc. n.º 4) não impugnado por nenhuma das partes;

6.ª - O referido doc. n.º 4 consiste numa carta, datada de 07/12/ 2001, recebida pela JJ e enviada pela locatária FF, Ld.ª, a remeter cheque para pagamento do valor em dívida e aquisição do veículo locado, de matrícula 54-88-..., e para, em contrapartida, receber a fatura e requerimento para alteração do registo de propriedade;

7.ª - Ademais, atento o teor das alegações de recurso das A.A., a R. JJ voltou a reiterar, em sede de resposta às alegações, que a vontade das partes, com a celebração do contrato de ALD, consistia na venda do veículo e aquisição do mesmo pela locatária FF no termo do contrato.

8.ª - Só assim se compreende que:

   - a locatária tenha pago uma entrada inicial pelo veículo no valor de € 4.367,58 - cfr. doc. n.º 1 junto à resposta às alegações;

   - a meio da duração da vigência do contrato tenha adquirido a propriedade do veículo, antecipando o cumprimento do mesmo - cfr. doc. n.º 4 junto à contestação;

   - o pagamento da totalidade dos alugueres em dívida tenha permitido a aquisição do veículo, pois tal significa que o valor de cada prestação mensal visou remunerar não o gozo do bem locado, mas o pagamento do preço para aquisição do veículo;

9.ª - São dois os pressupostos à responsabilidade nos termos do art.º 503.º, n.º 1, do CC: ter a direção efetiva do veículo causador do dano e o veículo estar a ser utilizado no seu próprio interesse;

10.ª - Numa situação de direção efectiva do proprietário, é necessário que exista uma situação de, pelo menos, um controle material mínimo sobre a viatura em questão, pois que a direção efetiva, como toda a doutrina explica, é o poder real, de facto, sobre o veículo; é o poder de determinar a utilização do veículo; é um poder de facto, ou exercer controle sobre o veículo, independentemente da titularidade;

11.ª - Atento o conceito ou noção jurídica de direção efetiva, resulta evidente que é incompatível a manutenção da direção efetiva pela locadora/proprietária sobre um veículo e a celebração de um contrato aluguer de longa duração sobre o mesmo veículo;

12.ª - Resultou provado que não existia, por parte da JJ, qualquer controle material sobre a viatura locada.

13.ª - Resultou provado que o veículo locado era livremente utilizado pela locatária, nomeadamente, que o destinou no dia do acidente – 22/10/2001 - ao transporte de trabalhadores da locatária, e que o acidente de viação deveu-se a excesso de velocidade, de carga e ao rebentamento de um pneu;

14.ª - Usando as palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, era à locatária e ao condutor do veículo, atenta a situação de facto em que se encontravam investidos, de posse e livre uso e fruição do veículo, a quem especialmente incumbia a obrigação de tomar as providências necessárias para que o veículo funcionasse sem causar danos a terceiros, nomeadamente: a locatária não dotar o veículo de carga excessiva e o R. GG adequar a condução aos limites legais de velocidade;

15.ª - Não tinha a Recorrida forma de controlar a condução R. GG nem o número de passageiros que a locatária autorizou na viagem.

16.ª - A JJ não tinha, nos termos contratualmente fixados, qualquer relação com a viatura locada que não fosse a de receber os alugueres, emitir os respetivos recibos/faturas e proceder à transferência da propriedade para a sociedade locatária, como efetivamente sucedeu;

17.ª - Todas as obrigações referentes ao veículo, nomeadamente, as constantes das condições gerais, relativas à manutenção e circulação do veículo, recaíam sobre a locatária;

18.ª - Como referido na sentença de 1.ª instância: «Daqui decorre que o interesse da locadora diz respeito à integridade do bem para o caso de eventual restituição em caso de incumprimento do contrato ou de decisão de não o adquirir, assim como à transferência de responsabilidade por forma a não ter de suportar prejuízos decorrentes da circulação do veículo»;

19.ª - E ainda «Se é certo que a R. JJ auferia as rendas devidas pela cedência temporária do veículo, tal não significa que tivesse interesse na circulação do veículo, pois aquela contrapartida era-lhe devida nos termos do contrato independentemente de a viatura estar imobilizado ou a ser usado pela R. FF na sua atividade»;

20.ª - Ademais, mesmo que se considerasse que a JJ tinha a direção efetiva do veículo, o que apenas se admite por mera cautela de patrocínio, a sua responsabilidade nos termos do art.º 503.º, n.º 1, do CC, sempre seria afastada nos termos do disposto no art.º 505.º, porquanto ficou provada nos autos a culpa do R. GG na ocorrência do acidente:

«Provou-se que, no momento do acidente, o Réu GG (...) O Réu estava obrigado a adequar a velocidade do … às condições da via - descendente -, ao tipo de pneus - recauchutados - à carga transportada. Deveria circular a velocidade inferior àquela que a via em causa permitia, já que naquelas condições, o trânsito a 120 km/h era impeditivo ao controle do veículo, designadamente, no caso de rebentamento do pneu, como veio a suceder.»

21.ª - Como refere António Menezes Cordeiro, «A imputação ao sujeito que tenha a efectiva direcção do veículo e o utilize no próprio interesse, nos termos do artigo 503.º, n.º 1, tem no entanto, natureza subsidiária, isto é: só funciona quando a imputação não deva, mercê de quaisquer outras normas, operar contra sujeito diferente. E assim sendo, é afastada quando os danos: - sejam imputáveis ao condutor do veículo; - sejam imputáveis ao próprio lesado; sejam imputáveis a terceiro; derivem de "causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo (...) A imputação ex artigo 503.º, n.º 1 também não funciona quando os danos sejam imputáveis ao próprio lesado ou a terceiro - artigo 505.º (...) entendemos que qualquer tipo de imputação ao lesado ou a terceiro é bastante para afastar a imputação objectiva» - ín “Direito das Obrigações”, 2.º Vol., 1999, AAFD Lisboa, pp. 384 e ss.;

22.ª - Foi alegada e provada matéria suficiente no sentido de afastar a presunção de direção efetiva do veículo que recai sobre o proprietário do mesmo, no caso, sobre a JJ, SA;

23.ª – Consideram as A.A. que «(...) a conclusão a que chegou o Mm.º Juiz “a quo” após estabelecer uma similitude entre ambos (contrato de aluguer de longa duração e de leasing) não está correcta (...)»;

24.ª - Ora, no dia 29.04.1999, foi celebrado entre a JJ e a R. FF, Ld.ª, um contrato de aluguer de veículo sem condutor, ao qual foi atribuído o n.º …. Por força do referido contrato, foi dada em locação àquela locatária, a viatura 54-88-..., pelo período de 48 meses/4anos, ficando a locatária obrigada a pagar mensalmente os alugueres contratados.

25.ª - A Recorrente cedeu então à locatária FF o gozo e fruição da viatura objeto do contrato, ficando esta a exercer o poder de facto sobre a viatura, sendo que a locatária passou a utilizar a viatura no seu interesse exclusivo;

26.ª - No caso dos autos, a vontade das partes na celebração do contrato de ALD n.º …, teve sempre por base a aquisição pela locatária do veículo locado;

27.ª - E tanto assim foi que, ao final de 2 anos e meio, após a celebração do contrato, antes do termo do mesmo, a locatária veio a adquirir a propriedade do veículo …, cfr. doc. n.º 4 e arts. 14.° e 15.º da contestação da ora Recorrente;

28.ª - Ademais, uma vez que a questão foi suscitada pelas AA., mais se esclarece que os valores fixados no contrato e que seriam pagos pela locatária no âmbito do contrato de ALD n.º …, destinavam-se, precisamente, a que esta adquirisse a propriedade do veículo … no termo do contrato.

29.ª - Assim, a locatária com a celebração do contrato pagou a entrada de € 4.367,58 e quando pretendeu antecipar o cumprimento do contrato (doc. n.º 4 junto à contestação), a locatária limitou-se a pagar os alugueres que se encontravam em dívida até final do contrato - que eram no total de 48 no valor de € 378,03 cada, sem IVA -, tendo assim adquirido a propriedade do veículo, cfr. doc. n.º 1 junto à resposta às 49 alegações de recurso e doc. n.º 4 junto à contestação;

30.ª - Face ao exposto, bem andou o Tribunal de 1.ª instância ao considerar que existe similitude entre o contrato dos autos e o de locação financeira.

31.ª - Não têm assim aplicação aos autos as considerações tecidas pelas A.A. no sentido de que, nestes autos, o contrato de ALD celebrado e o de locação financeira não de confundem; Justifica-se ainda que o indício que se retira do art. 2.º do DL 522/85, atual art.º 6.º/1 do DL 291/2007, de 21.08, no sentido de que se a obrigação de segurar recai sobre o locatário financeiro é porque é este quem tem a direcção efetiva, também se aplique ao contrato dos autos.

32.ª - Na verdade, também das cláusulas gerais do contrato de ALD (cláusula 9.ª) resulta que é sobre a locatária que impendia a obrigação de segurar o veículo, com capital ilimitado, o que foi efetuado pela mesma, precisamente, porque era a mesma que ficava com a posse e livre uso de utilização do veículo (pontos 119 e 122 da matéria de facto julgada provada e acima transcrita);

33.ª - O tipo de contrato de aluguer celebrado entre as partes também não se confunde com o conceito de contrato "Rent a Car", aluguer efémero com vista à utilização do veículo apenas por um curto período de tempo, sem qualquer expectativa do locatário pela aquisição definitiva, onde aí sim, é a locadora quem habitualmente controla o estado e manutenção do veículo;

34.ª - Acresce que, a responsabilidade da JJ pelo ressarcimento dos danos causados pelo veículo …, também seria sempre afastada pela existência de seguro de responsabilidade civil sobre o veículo;

35.ª - Ficou provado nos autos a existência de dois seguros sobre o veículo automóvel …, um deles de capital ilimitado;

36.ª - Assim, em face do exposto, deve a pretensão das AA., no diz respeito à responsabilização da R. JJ, ser julgada totalmente improcedente, porque totalmente infundada;

37.ª - Por tudo o alegado deverá a decisão do tribunal “a quo” ser revogada e substituído por outra que confirme a decisão de 1.ª instância.

 10.2. Pelo R. GG:

1.ª - A decisão do Tribunal de 1.ª Instância de declaração do ora recorrente como parte ilegítima na presente demanda nenhum reparo merecia, pelo que a sua revogação por parte do Tribunal recorrido, bem como os fundamentos em que se sustenta a mesma são errados, cumpre assim repristinar a decisão da 1.ª Instância e revogar o acórdão proferida em sede de apelação, declarando-se o ora recorrente como parte ilegítima com base nos fundamentos explanados naquela decisão.

2.ª - É esta decisão que se impõe de acordo com a facticidade dada como provada na sentença sob os pontos 119 a 123.

3.ª -  De tal factualidade dada como provado pela 1.º Instância extrai-se a conclusão de que foram outorgados dois contratos de seguro para o mesmo veículo, sendo que o primeiro celebrado em 05/04/2001 com a Companhia … de Seguros, S.A., atualmente LL Seguros, S.A.., de capital ilimitado e o segundo celebrado em 21/08/2001 com a EE, que o primeiro seguro celebrado com a LL Seguros, S.A.., tinha cobertura ilimitada e o segundo, com a EE, cingia a capital seguro ao montante da responsabilidade civil obrigatória de € 625.000,00, e ainda que a II Rent surge como entidade beneficiária, com direitos ressalvados, do primeiro seguro contratado com a LL Seguros, S.A.., o que obstava a que fosse cessado o seguro sem o sem prévio conhecimento, sendo certo que não se provou que até à presente data tenha a JJ recebido qualquer comunicação prévia de anulação, denúncia, resolução, revogação ou outra forma de cessação desse primeiro seguro contratualizado.

4.ª - Nos termos da factualidade dada por provada, nomeadamente dos pontos 122, 123 e 124, dúvidas não restam quanto à validade eficácia do seguro de responsabilidade ilimitada celebrado pela LL Seguros, S.A.., ao tempo Companhia … de Seguros, S.A., que assim cobre a responsabilidade pelos riscos de circulação do veículo acidentado dos autos.

5.ª - Assim, a única e exclusiva responsável civil e de forma ilimitada, ou seja, sem qualquer limite de cobertura, pelas consequências do acidente a seguradora LL Seguros, S.A.., por força da validade e eficácia ao tempo do acidente dos autos da apólice n.º …. Protecção Auto relativa ao veículo Hyundai, matrícula 54-88-..., com início em 08/05/2001 e termo um ano e seguintes;

6.ª - O acórdão recorrido violou o art.º 29.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 522/85, de 31/12;

7.ª- Caso assim não seja entendido, considerando-se o ora recorrente parte legítima, face à validade do primeiro contrato de seguro celebrado pela LL Seguros, S.A.., sempre se impunha a absolvição do recorrente do pedido por não ser civilmente responsável pelo pagamento das indemnizações pelas consequências do acidente na pessoa de KK, já que, face à cobertura do seguro sem qualquer limite de capital, seria aquela seguradora a responsável civil e assim aquela contra quem deveria ter sido proposta a ação pelas A.A.;

8.ª - A condenação do recorrente no pagamento da quantia de € 11.271,63, o acórdão recorrido considerou, erradamente, os valores alegadamente pagos pela R. EE por força de uma alegada sentença condenatória proferida em Espanha pelo 2 Juzgado de Primeira Instancia e Instruccion Único de Briviesca (Burgos) no processo Juicio Ordinário com n.º 460/2004, constantes do ponto 125 dos factos dados como provados na sentença proferida em 1.ª instância;

9.ª- Tais montantes não poderiam ter sido considerados, porquanto tal factualidade não foi levada à base instrutória nem foram dados como assentes, sendo que o ora recorrente não foi sequer notificado do tal documento de fls. 455 (a alegada sentença condenatória espanhola) com base no qual terá sido dado como provado o ponto 125, não lhe tendo sido, por isso, facultado o exercício do contraditório, o que constitui uma violação do art.º 3.º do CPC, cominada no art.º 195.º do CPC com a nulidade, que aqui se argui.

9.ª - Não resulta da matéria de facto levada à base instrutória dada como provada nem dos factos dados como assentes após as posições assumidas pelas partes nos articulados que os valores que a R. EE aceitou pagar nos autos às partes em sede de transação, num montante global de € 500.589,22 constituísse um esgotamento do capital de responsabilidade civil obrigatória;

11.ª - O montante global da indemnização fixada para as A.A. pela Relação de € 357.789,06, considerados os demais valores constantes da transação, não excede o capital de responsabilidade civil obrigatória, pelo que não podia o recorrente ser condenado no pagamento de qualquer quantitativo;

12.ª - O acórdão recorrido viola o disposto no art.º 8.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro;

13.ª - Exceção feita aos danos patrimoniais relativos às despesas de funeral e às despesas de permanência em Espanha, os montantes fixados pela Relação são claramente excessivos;

14.ª - Tal sobreavaliação de tais danos patrimoniais e não patrimoniais por parte do Tribunal “a quo” determina uma decisão totalmente injusta, iníqua e ilegal, violando o acórdão em crise os art.ºs 483.º, n.º 1, 496.º, n.º 1, e n.º 3, 564.º, n.º 2, e 566.º do CC;

15.ª - Tendo sido peticionados, respetivamente € 60.000,00 e € 150.000,00, a fixação das indemnizações pela perda do direito à vida no montante de € 75.000,00 e pelo dano patrimonial relativo a lucros cessantes em € 250.000,00 constitui uma causa de nulidade do acórdão recorrido, porquanto resulta numa condenação em quantidade superior ao peticionado - Cfr. al. e) do n.º 1 do art.º 615.º, aplicável “ex vi” da al.  c) do n.º 1 do art.º 674.º, ambos do NCPC;

16.ª - Quanto ao dano não patrimonial pela perda da vida, que tem vindo a ser balizado pelo STJ entre € 50.000,00 e € 75.000,00, a fixação do valor de € 75.000,00 pela Relação corresponde ao máximo que vem sendo fixado pelo STJ, o que é excessivo, dado que tal montante deverá ser reservado para as vítimas de uma fasquia etária mais nova, para crianças, jovens ou adolescentes;

17.ª - Considerado o montante peticionado pelas A.A., bem como a idade do falecido KK que iria completar 41 anos no dia 22 do mês em que se deu o acidente, cremos que o valor deve ser reduzido para a quantia de € 55.000,00.

18.ª - Quanto ao dano não patrimonial pelo sofrimento da vítima KK e ao dano não patrimonial do cônjuge da vítima e das três filhas, não justificam a indemnização, respetivamente, de € 15.000,00, de € 30.000,00 e de € 24.000,00 para cada uma das filhas, em face da factualidade dada como provada e aos valores fixados pela nossa jurisprudência;

19.ª - Considerando que o infeliz KK veio a falecer no mês em que ocorreu o acidente, é pelo menos certo que o sofrimento físico, emocional e psíquico, embora insuscetível de ser tabelado, medido ou quantificado, não se prolongou por um mês sequer, pelo que cremos ser mais ajustada a quantia de € 10.000,00.

20.ª - Considerando a ligação familiar provada, as idades das filhas e do cônjuge, à luz do que vem sendo o critério do STJ, a indemnização fixada para à 1.ª A. deverá ser reduzida para o montante de € 20.000,00 e o montante indemnizatório arbitrado pela Relação para cada um das filhas da vítima ser reduzido para a quantia de € 15.000,00;

21.ª - As indemnizações fixadas pelo Tribunal “a quo” constituem verbas francamente excessivas face ao circunstancialismo de facto atendível e à jurisprudência corrente.

22.ª - O dano não patrimonial tem de ser fixado com recurso a juízos de equidade e tem que respeitar tanto a evolução jurisprudencial como o próprio conceito de equidade, sendo que os montantes consignados no acórdão ora colocado em crise desvirtuam o verdadeiro alcance e sentido do conceito de equidade, pelo menos na interpretação e fórmula de Ferrer Correia e Vasco Gama Lobo Xavier (RDES IV - 124): Ao julgar segundo a equidade dá-se ao caso a solução que parecer mais justa, atendendo unicamente à sua especificidade e prescindindo das normas gerais e abstractas eventualmente aplicáveis.

23.ª - Além de estar em clara contradição com a prática jurisprudencial, as indemnizações fixadas na apelação violam o estatuído nos artigos 483.º, n.º 1, 496.º, n.º 1 e n.º 3, 564.º, n.º 2, e 566.º, do CC.

24.ª - Quanto ao dano patrimonial relativo a lucros cessantes sofrido pela 1.ª A., em virtude da morte do marido e de não poder contar mais com o rendimento por si auferido, a indemnização fixada em € 250.000,00 é, ela também, excessiva em face dos contornos concretos do caso vertente que foram dados por provados, violando o disposto nos artigos 564.º, n.º 2, e 566.º, todos do CC.

25.ª - Não foi devidamente sopesado pelo Tribunal “a quo” o facto de o salário que a vítima KK auferia era por referência a 10 horas diárias de trabalho, como resulta do ponto 46 do elenco dos factos provados constantes da sentença e que a construção civil veio a sofrer uma grave crise por falta de obras, nomeadamente em Espanha, o que fez cessar o fluxo das empresas portuguesas para esse país.

26.ª - No cálculo da indemnização deste dano, o acórdão recorrido não considerou o período de vida ativa da vítima, a redução da sua capacidade de carga laboral com o avançar da idade e a redução de rendimento inerente à aposentação sendo que a área de atividade da construção civil não contempla majorações remuneratórias de progressão na carreira, sendo, ao invés, o avançar da idade um fator redutor, tendo apenas sopesado a esperança média de vida relativamente à A. AA;

27.ª - O acórdão recorrido não considerou sequer que a A. AA é titular de uma pensão de viuvez pelo decesso do seu marido, o que deveria ter sido computado por se tratar de facto público e notório face ao sistema de previdência vigente em Portugal.

28.ª - Face ao facto da vítima estar praticamente a completar 41 anos de idade à data do acidente, crê-se ser justo e adequado fixar-se, nesta sede, a quantia de € 100.000,00, devendo ser reduzida para este montante pelo Tribunal “ad quem”.

29.ª - Tendo-se provado, nos pontos 25.º, 26.º e 27.º, que o facto do falecido KK não fazer uso do cinto de segurança contribui para as lesões sofridas e, porventura, para o seu falecimento, dúvidas não restam que se impõe a atuação do mecanismo estabelecido no art.º 570.º, porquanto a conduta do lesado contribuiu para os danos por si sofridos.

30.ª - Se ao condutor do veículo, aqui recorrente, que assumiu a viagem durante o percurso e já se encontravam a bordo todos os ocupantes, lhe era possível optar por conduzir ou não o veículo, de tal faculdade dispunha também a vítima KK.

31.ª - A questão da impossibilidade do não uso do cinto de segurança não se coloca, resultando o não uso desse dispositivo de segurança de um ato voluntário por parte da vítima e por si livremente representado e aceite, que assumiu os riscos do não uso e que, por isso, deverá forçosamente responder por tal conduta omissiva.

32.ª - O Tribunal “a quo” apenas optou por reduzir a indemnização devida pelas A.A. em 20%, fixando nessa percentagem a contribuição da vítima para a extensão dos danos.

33.ª - Se é certo que o grau de efetiva contribuição será sempre uma incógnita impossível de debelar, a verdade é que, em face do facto provado 27.º, ou seja, que «os dois passageiros que faziam uso do cinto de segurança referidos em 25) sofrera apenas ligeiras contusões», impõe-se que seja maior o grau de redução da indemnização, por se verificar que foi maior o grau de contribuição para extensão dos danos por parte da vítima, o qual deve ser fixado em metade ou 50%, devendo ser, nesta conformidade, reduzida a indemnização global fixada a favor das A.A.;

34.ª - Ao fixar meramente em 20% o grau de contribuição do próprio lesado, o acórdão recorrido viola o disposto no art.º 570.º do CC;

35.ª - Contas feitas ao “quantum” real das indemnizações de que devem beneficiar as A.A. e à redução de 50% que sobre estas deve operar por força da contribuição do lesado para o agravamento dos danos, considerando a quantia recebida pelas A.A. por parte da R. EE, por força da transação judicial dos autos, conclui-se que as A.A. já estão indemnizadas, nada mais tendo a receber de quem quer que seja.

Pede este Recorrente que seja revogado o acórdão recorrido, na parte aqui impugnada, e substituído por decisão que o absolva do pedido relativamente ao pagamento da quantia em que vem condenado.  


  10.3. Pelas A.A.:

1.ª - As recorrentes discordam da decisão recorrida, na parte em que reduz a indemnização arbitrada em 20%, com fundamento na falta de uso de cinto de segurança pela vítima KK e nos termos do disposto no artigo 570.º do CC;

2.ª - Embora tenha resultado provado que a vítima seguia sem cinto de segurança, aquando do acidente e que tal facto contribuiu para o agravamento das lesões sofridas pela mesma, não resultou provado que a falta de uso de cinto de segurança lhe foi imputável;

3.ª - Isto porque, conforme foi apurado, o veículo ia sobrelotado (10 homens adultos seguiam num veículo com a lotação de 9 lugares), não se tendo esclarecido se foi essa ou outra qualquer razão que levou a que a vítima seguisse sem cinto de segurança.

4.ª - Ora, incumbindo aos R.R. a prova da culpa do lesado – conforme previsto no art.º 572.º do CC - deveria o tribunal ter decidido esta questão de acordo com a regra do ónus da prova, em desfavor dos R.R.;

5.ª - E, assim sendo, não considerando provado nos autos a concorrência de um facto culposo do lesado, não seria aplicável o disposto no art.º 570.º do CC.

6.ª - Ao decidir reduzir em 20% a indemnização arbitrada às recorrentes com fundamento na falta de uso de cinto de segurança pela vítima KK - sem que se provasse que tal facto lhe foi imputável - o acórdão recorrido fez errada interpretação e aplicação dos art.º 570.º, 572.º e 342.º, n.º 2, todos do CC.

7.ª - Acresce que o Tribunal recorrido fixou o valor global da indemnização devida às recorrentes em € 443.018,75, correspondente esta à soma dos parciais da indemnização aí atribuídos, e deduziu a este valor a indemnização paga às recorrentes pela EE, no montante de € 343.117,43, sem atender ao facto de esta quantia incluir juros de mora, pelo que apenas deveria ter deduzido o capital recebido por via transacional, ou seja, o valor transacionado expurgado de cerca de 24,33% de juros de mora.

8.ª - Entendeu o tribunal recorrido que as indemnizações por lucro cessante (€ 250.000,00) e danos não patrimoniais da própria vítima (€ 15.000,00) e das recorrentes (€ 30.000,00 para a recorrente viúva e € 24.000,00 para cada uma das três filhas) foram fixadas atendendo aos valores mais recentemente fixados pela jurisprudência dos nossos tribunais, estando assim atualizadas e, por isso, não acrescendo às mesmas juros de mora desde a citação - com o que as recorrentes discordam em absoluto.

9.ª - Da análise dos acórdãos mais recentemente proferidos pelo STJ em casos semelhantes - entre eles e a título exemplificativo, o acórdão de 14-02-2013, proferido no recurso n.º 705/10.8 TBPFR. P1.S1 da 2.ª Secção e o acórdão de 20/02/2013, proferido no recurso n.º 269/09.5GBPNF.P1. S1 da 3.ª Secção, disponíveis em www.dgsi. pt, este último no qual são feitas várias considerações e enumerados diversos acórdãos reveladores da tendência dos nossos tribunais - resulta que, contrariamente ao referido no acórdão recorrido, os valores fixados a título de danos não patrimoniais não estão atualizados à data da prolação do acórdão, devendo, por isso, acrescer ao valor da indemnização, os correspondentes juros de mora calculados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

10.ª - Não tendo o acórdão recorrido considerado os juros de mora vencidos desde a citação, violou o disposto nos artigos 562.º, 564.º e 566.º todos do CC.

11. As Recorridas AA. e R. JJ apresentaram contra-alegações, pugnando pela negação de revista nos recursos contra elas interpostos.

12. Subsequentemente, o Tribunal a quo pronunciou-se sobre o pedido de reforma do acórdão, formulado pela Recorrente JJ, e sobre a arguição de nulidade do mesmo, suscitada pelo Recorrente GG, nos termos constantes o acórdão de fls. 3488-3489/v.º, de 05/03/ 2015, concluindo pela improcedência de tais questões, mas corrigiu o montante arbitrado para o valor de € 11.297,57, considerando verificado um erro de cálculo. 


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II - Delimitação do objeto do recurso


Antes de mais, importa registar que, tratando-se de ação proposta em 2004, em que a decisão recorrida foi proferida já em 15/05/2014, é aplicável o regime recursal do CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06, nos termos do art.º 7.º, n.º 1, desta Lei, salvo no que respeita ao valor da alçada para efeitos de recurso e à restrição da dupla conforme, em relação ao que se aplicam as disposições em vigor à data da propositura da ação.

Como é sabido, no que aqui releva, o objeto do recurso é definido em função das conclusões formuladas pelo recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do CPC.

Dentro desses parâmetros, o objeto dos presentes recursos incide sobre as seguintes questões:


   A – Quanto à revista interposta pela R. II:

   a) – Em primeira linha, a questão de saber se, em face da factualidade provada, esta R., enquanto proprietária/locadora do veículo ..., interveniente no acidente em causa, dada a natureza e objeto do contrato de locação do veículo, responde civilmente pelos danos decorrentes deste,

  b) – Subsidiariamente, a questão do afastamento da responsabilidade pelo risco imputada à II, ao abrigo do n.º 1 do art.º 503.º do CC, em virtude de se ter provado a culpa do condutor do veículo, o R. GG, na ocorrência do acidente;

 c) – Outrossim subsidiariamente, a questão relativa à existência de um seguro com garantia de cobertura ilimitada, celebrado com a LL Seguros, S.A.., tendo por objeto o veículo interveniente no acidente, em termos de excluir a responsabilização da II.   


   B – Quanto à revista interposta pelo R. GG:

 a) – A questão da invocada nulidade do acórdão recorrido com fundamento em condenação para além do pedido;

 b) – A questão da ilegitimidade do 3.º R., em face da existência de um seguro de responsabilidade ilimitada celebrado com a LL Seguros, S.A.., tendo por objeto o veículo acidentado;   

c) – Subsidiariamente:

(i) - A questão da não responsabilização do 3.º R. pelas indemnizações em causa, em virtude daquele seguro de cobertura ilimitada;

(ii)- A questão do atendimento aos valores alegadamente pagos pela R. EE por força de uma alegada sentença condenatória proferida em Espanha, constantes do ponto 125 dos factos dados como provados na sentença proferida em 1.ª instância;

 (iii) – A questão relativa ao excesso dos valores indemnizatórios arbitrados a título de lucros cessantes e de danos não patrimoniais, bem como a insuficiente redução da indemnização pela contribuição culposa do lesado para a produção do acidente ou agravamento do dano.


C – Quanto à revista interposta pelas A.A.:

a) - A questão relativa à redução em 20% da indemnização arbitrada, fundada no não uso do cinto de segurança por parte do sinistrado, tendo em conta a falta de prova de que esta infração seja imputável ao lesado a título de culpa;

b) – A questão do erro de inclusão dos juros moratórios na quantia recebida pelas A.A. por parte da EE, em sede do abatimento à indemnização arbitrada;

c) – A questão da não contemplação de juros de mora desde a citação.       

    

Tais questões serão abordadas pela seguinte ordem:

(i) – Em primeiro lugar, as questões suscitadas na revista interposta pela II, salvo aquelas que ficarem prejudicadas pela solução dada às questões precedentes;

(ii) – Em segunda linha, as questões suscitadas na revista interposta pelo 3.º R., pela ordem acima enunciada, exceto à relativa à redução da indemnização, que será apreciada conjuntamente com questão sobre o mesmo ponto suscitada na revista das A.A.;

(iii) – Seguidamente, as questões suscitadas na revista das A.A. respeitantes ao montante abatido à indemnização arbitrada e ao início do cômputo dos juros moratórios. 

 

III – Fundamentação   


1. Factualidade dada como provada pela na 1.ª Instância


Tem-se como provada a seguinte factualidade: 

1.1. No dia 22 de outubro de 2001, pelas 08h45 (hora espanhola), entre os quilómetros 48,350 e 48,400 da auto-estrada A1 que liga as cidades espanholas de Burgos e Málaga, em Zuneda, comarca de Briviesca, em Espanha, ocorreu um acidente de viação em que interveio um único veículo automóvel com a matrícula portuguesa 54-88-..., propriedade da 5.ª R. II e conduzido pelo 3.º R. GG – alínea A) dos factos assentes;

1.2. O veículo identificado em 1.1 era da classe ligeiro de passageiros, com a marca Hyundai, modelo H-l, de cor verde, com o chassis n.º KMJWWH7 FPXVI24608, e tinha a lotação de 09 (nove) lugares, com condutor incluído – alínea B) dos factos assentes;

1.3. O 4.º R., HH, à data do embate, era sócio gerente da 2.ª R. “FF - Construções, Ld.ª” – alínea C) dos factos assentes;

1.4. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1.1, o veículo de matrícula 54-88-... circulava com o conhecimento e seguindo as instruções do gerente da 2.ª R. “FF - Construções, Ldª.”, o 4.º R. HH – resposta ao art.º 1.º da base instrutória;

1.5. O 3.º R., GG, conduzia o veículo ..., no desempenho das tarefas que lhe haviam sido atribuídas enquanto trabalhador da 2.ª R. “FF -  Construções, Ldª.” – resposta ao art.º 2.º da base instrutória;

1.6. As características técnicas do veículo 54-88-... assinaladas no oficio de homologação emitido pela Direcção Geral de Viação correspondem à tara de 1.947 kg, peso bruto de 2.700 kg e pneus 195/70 R14, sendo que no certificado de conformidade emitido pela marca Hyundai se encontram previstos pneus 205/70R15 99S e jantes 6.0JXI5/ET40 – resposta ao art.º 3.º da base instrutória;

1.7. O veículo referido em 1.1 circulava nas circunstâncias ali descritas, equipado, na frente, com dois pneus da marca Avon, modelo Supervan e, na retaguarda, com dois pneus marca Insa modelo "Turbo-Rapid" – resposta ao art.º 4.º da base instrutória;

1.8. Os pneus referidos em 1.7 tinham as dimensões e características 195R14 e os da retaguarda eram recauchutados – resposta ao art.º 5.º da base instrutória;

1.9. Os quatro pneus tinham as ranhuras de borracha da faixa de rolamento medindo, pelo menos, 1,6 mm, sendo que os pneus da frente e o traseiro direito tinham a pressão correta – resposta ao art.º 55.º da base instrutória;

1.10. Os pneus dianteiros com que o … circulava tinham sido fabricados novos na semana 12 do ano de 2001 e os traseiros haviam sido recauchutados na semana 2 do ano de 2000 – resposta ao art.º 57.º da base instrutória;

1.11. Nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 1, no interior da viatura ..., circulavam dez homens adultos, com o condutor incluído – resposta ao art.º 6.º da base instrutória;

1.12. O … transportava ainda uma carga de peso não concretamente apurado correspondente à roupa e calçado que diariamente aqueles ocupantes usariam durante quinze dias – resposta ao art.º 7.º da base instrutória;

1.13. Os trabalhadores MM e PP transportavam, igualmente, o seu equipamento de segurança que inclui um par de botas de trabalho com palmilha e biqueira de aço e um capacete, com peso não concretamente apurado – resposta ao art.º 8.º da base instrutória;

1.14. Pelo menos um dos passageiros transportava comida e bebida para consumir para além das refeições que a entidade patronal suportava – resposta ao art.º 9.º da base instrutória;

1.15. Considerando o peso de todos os dez ocupantes, a roupa e comida, o veículo … circulava naquelas circunstâncias com peso bruto superior a 2.700 kg – resposta ao art.º 10.º da base instrutória;

1.16. Nas circunstâncias referidas em 1.1, dentro do veículo … seguia, como passageiro transportado, KK, natural de Celorico de Basto, onde nasceu a 03/10/1960 e casado com a A. AA – alínea D) dos factos assentes;

1.17. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, todos os ocupantes do veículo … se deslocavam das suas residências para Zufieda, Espanha onde, enquanto trabalhadores da R. FF Construções, Ld.ª, iam desempenhar tarefas relacionadas com trabalhos de construção civil – resposta ao art.º 13.º da base instrutória;  

1.18. O transporte das suas residências até ao local de trabalho constituía encargo da R. “FF Construções, Ld.ª” – resposta ao art.º 14.º da base instrutória;

1.19. Nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 1.1, onde a via se desenvolve em sentido descendente, o pneu da roda esquerda de trás do … rebentou – resposta ao art.º 15.º da base instrutória;

1.20. Nesse momento, o condutor do … circulava a velocidade entre 120 e 130 km/h – resposta ao art.º 16.º da base instrutória;

1.21. No local a velocidade máxima permitida é de 120 km/h – resposta ao art.º 17.º da base instrutória;

1.22. Face à situação descrita em 1.8, 1.11, 1.15 e 1.20, o … deslizou sobre o asfalto da faixa de rodagem e da berma ao longo de 26,10 metros e embateu num lanço de rails de proteção – resposta ao art.º 18.º da base instrutória;

1.23. E prosseguiu a sua marcha em mais de 36 metros, de forma desgovernada sobre os referidos rails, ultrapassando-os e imobilizando-se num talude existente já fora da plataforma da auto-estrada – resposta ao art.º 19.º da base instrutória;

1.24. A R. “FF, Ldª”, por intermédio do seu gerente, equipou o veículo com os pneus descritos em 1.7 e 1.8 – resposta ao art.º 20.º da base instrutória;

1.25. Com exceção do motorista, o R. GG e do passageiro que ia a seu lado no banco da frente, PP, todos os outros passageiros seguiam sem fazer uso do cinto de segurança, designadamente, o falecido KK – resposta ao art.º 52.º da base instrutória;

1.26. A situação referida em 1.25 contribuiu para as lesões sofridas por KK – resposta ao art.º 53.º da base instrutória;

1.27. Os dois passageiros que faziam uso do cinto de segurança referidos em 1.25 sofreram apenas ligeiras contusões – resposta ao art.º 54.º da base instrutória;

1.28. Em consequência dos embates referidos em 1.22 e 1.23 KK sofreu várias e graves lesões corporais crânio-encefálicas – resposta ao art.º 21. da base instrutória;

1.29. Depois de assistido no local e desencarcerado do interior da viatura KK foi de imediato transferido para o Hospital "General Yagüe" de Burgos, onde se manteve internado até 31 de Outubro de 2001 – resposta ao art.º 32.º da base instrutória;

1.30. O KK faleceu 31/10/2001 pelas 21h15m – alínea E) dos factos assentes;

1.31. Desde o momento do acidente até 31 de Outubro seguinte KK suportou dores e tratamentos invasivos – resposta ao art.º 23.º da base instrutória;

1.32. Do casamento referido em 1.16 nasceram a BB, nascida em 20/07/1988, CC e DD nascida em 25/06/1982, que conjuntamente com a A. AA constituem os únicos e universais herdeiros de KK – alínea F) dos factos assentes;

1.33. À data do acidente, KK era um homem saudável, alegre e comunicativo, considerado no meio onde vivia, onde por todos era estimado e respeitado – resposta ao art.º 24.º da base instrutória;

1.34. Formava com a mulher e as filhas uma família harmoniosa e unida por laços afetivos – resposta ao art.º 25.º da base instrutória;

1.35. Em consequência do falecimento do marido e pai, as A.A. sofreram desgosto e sofrimento – resposta ao art.º 26. da base instrutória;

1.36. Face ao falecimento do marido, a A. AA foi confrontada com a situação de concluir a formação profissional da filha BB sem recursos económicos suficientes para o efeito – resposta ao art.º 27.º da base instrutória;

1.37. Após ter tomado conhecimento do acidente, a A. AA deslocou-se para Burgos para se inteirar do estado de saúde do marido e acompanhá-lo durante o internamento hospitalar – resposta ao art.º 28.º da base instrutória;

1.38. Durante o período em que se manteve junto do marido, a A. AA sofreu angústia e ansiedade chegando a ser assistida na urgência do mesmo Hospital devido a desmaio – resposta ao art.º 29.º da base instrutória;

1.39. E só passados oito meses conseguiu retomar a sua vida normal – resposta ao art.º 31.º da base instrutória;

1.40. À data da morte de KK, o casal trabalhava para suportar as despesas domésticas, bem como para as filhas DD e BB continuarem a estudar e pagar as dívidas contraídas com a construção da casa – resposta ao art.º 33.º da base instrutória;

1.41. À data do falecimento do pai, a A. DD concluíra o 12.° ano, mas encontrava-se a assistir às aulas da disciplina de Geografia do 10.° ano, tendo em vista melhorar a sua média de 11 valores – resposta ao art.º 34.º da base instrutória;

1.42. A A. BB frequentava então o 8.° ano de escolaridade – resposta ao art.º 35.º da base instrutória;

1.43. A A. CC já havia iniciado a sua carreira profissional – resposta ao art.º 36.º da base instrutória;

1.44. À data do acidente, a A. AA trabalhava como operária fabril de calçado para QQ, Lda, auferindo o salário bruto mensal de € 334,19, acrescido de subsídio de alimentação, tendo ficado desempregada a partir de junho de 2004 – resposta ao art.º 37.º da base instrutória;

1.45. KK, à data do acidente, trabalhava para a sociedade “FF, Ld.ª”, como operário da construção civil, desempenhando seja as funções de “gruista”, seja as funções de carpinteiro de cofragens em Espanha, em Zufieda – resposta ao art.º 38.º da base instrutória;

1.46. Para onde se deslocava por períodos seguidos de 15 dias, findos os quais vinha a casa passar um fim de semana com a família e reabastecer-se de roupa e comida, para logo de seguida regressar ao local onde se desenvolvia o trabalho – resposta ao art.º 39.º da base instrutória;

1.47. Trabalhava em média 10 horas por dia, cinco dias por semana e 4 horas em sábados alternados, auferindo uma remuneração média mensal de € 1.500,00, a que acresciam as despesas de alojamento, alimentação e viagens de casa para os locais de trabalho e vice-versa, cujo valor ascendia a € 299,28 – resposta ao art.º 40.º da base instrutória;

1.48. A A. BB continuou a estudar até ao seu casamento em julho de 2006 – resposta ao art.º 46.º da base instrutória;

1.49. Com o funeral de seu marido a A. AA despendeu a quantia de € 518,75 – resposta ao art.º 49.º da base instrutória;

1.50. No período que permaneceu em Espanha para acompanhar o marido, a A. AA despendeu em deslocações, alimentação e estadia quantia não concretamente apurada – resposta ao art.º 50.º da base instrutória;

1.51. A A. AA nasceu em 2/06/1963 – alínea G) dos factos assentes;  

1.52. No exercício da sua atividade a Interveniente LL - Seguros celebrou com a “FF - Construções, Ldª”, um contrato de seguro do Ramo de Acidentes de Trabalho na modalidade de prémio variável, titulado pela apólice n.º … através do qual esta transferiu para aquela, nos termos legais, a responsabilidade pelos encargos provenientes de acidentes de trabalho, em relação a todos os trabalhadores que se encontram ao seu serviço e, nomeadamente, os trabalhadores GG, RR, SS, TT, UU, NN, MM, KK, VV, PP – alínea N) dos factos assentes;

1.53. O acidente ocorrido nas circunstâncias de tempo e lugar referidos em 1.1 foi considerado simultaneamente como acidente de trabalho, porquanto, na altura, todos os sinistrados encontravam-se ao serviço da sua entidade patronal e no seu horário de trabalho, conforme resulta, desde logo, da sentença proferida pelo Tribunal do Trabalho de Penafiel nos autos n.º 542/2001, relativo ao sinistrado José Carvalho, e pelo Tribunal do Trabalho de Guimarães, 1.º Juízo, nos autos n.° 29/2002 – alínea O) dos factos assentes;

1.54. Em consequência deste acidente resultaram ferimentos em GG, UU, SS, TT, MM e a morte de RR e KK – alínea P) dos factos assentes;

1.55. Em virtude das lesões que ao sinistrado UU advieram do acidente, foi-lhe fixado pelo Tribunal do Trabalho de Penafiel uma desvalorização de 22,24% – alínea Q) dos factos assentes;

1.56. Na sentença proferida no processo n.º 266/2002, que correu termos no Tribunal de Trabalho de Penafiel, a interveniente LL, foi condenada a pagar ao sinistrado UU a quantia de € 12,00 referente a despesas de transporte e a pensão anual no montante de € 1.220,54, desde 5 de fevereiro de 2002 – alínea R) dos factos assentes;

1.57. A pensão anual fixada ao sinistrado foi obrigatoriamente remível, tendo a interveniente LL procedido à entrega do capital de remição no valor de € 16.374,76, no dia 21/05/2004 – alínea S) dos factos assentes;

1.58. Em virtude das lesões que o sinistrado UU apresentava, o mesmo teve de ser imediatamente transportado para o Hospital Comarcal Santiago Apostol – resposta ao art.º 61.º da base instrutória;

1.59. Com o internamento, tratamento, despesas e pensões do sinistrado UU, a interveniente LL suportou as seguintes quantias: ao sinistrado UU, a quantia de € 2.488,64; ao Hospital de Santa Maria, a quantia de € 60,35; a médicos assessores, a quantia de € 886,98; ao Hospital Comarcal Santiago Apostol, a quantia de € 2.062,67; à Clínica Neurológica, a quantia de € 139,68; à Clínica Oftalmológica, a quantia de € 139,76; por despesas a outras entidades hospitalares, farmacêuticas e laboratoriais, a quantia de € 353,38 – resposta ao art.º 62.º da base instrutória;

1.60. Em virtude das lesões sofridas no acidente pelo sinistrado SS, foi fixado ao referido sinistrado, pelo Tribunal do Trabalho de Guimarães, uma desvalorização de 6% – alínea T) dos factos assentes;

1.61. Na sentença proferida no processo n.º 179/2002 que correu termos no Tribunal de Trabalho de Guimarães, a interveniente LL foi condenada a pagar ao sinistrado SS a quantia de € 12,00 referente a despesas de transporte e a pensão anual no montante de € 327,90, desde 9 de junho de 2002 – alínea U) dos factos assentes;

1.62. A pensão anual fixada ao sinistrado foi obrigatoriamente remível, tendo a interveniente LL procedido à entrega do capital de remição no valor de € 5.804,16, no dia 25/05/2004 – alínea V) dos factos assentes;

1.63. Em virtude das lesões que o sinistrado SS apresentava, o mesmo teve de ser imediatamente transportado para o Hospital Comarcal Santiago Apostol – resposta ao art.º 63.º da base instrutória;

1.64. Com o internamento, tratamento, despesas e pensões do sinistrado SS a interveniente LL suportou as seguintes quantias: ao sinistrado SS, a quantia de € 2.682,10; ao Hospital de Santa Maria, a quantia de € 19,95; a médicos assessores, a quantia de € 236,82; ao Hospital Comarcal Santiago Apostol, a quantia de € 2.062,67; à GIREF, a quantia de € 446,43; à Ortopedia Universal, a quantia de € 196,27; à SMIC, a quantia de € 94,77 – resposta ao art.º 64.º da base instrutória;

1.65. Em virtude das lesões sofridas no acidente em apreço, foi fixada, pelo Tribunal do Trabalho de Guimarães, ao sinistrado MM, uma desvalorização de 10% – alínea X) dos factos assentes;

1.66. Na sentença proferida no processo n.º 662/2002 que correu termos no Tribunal do Trabalho de Guimarães, a interveniente LL foi condenada a pagar ao sinistrado MM a quantia de € 30,00 referente a despesas de transporte e a pensão anual no montante de € 548,80, desde 29 de janeiro de 2003, e a quantia de € 1.128,67, a título de diferença de indemnização – alínea Y) dos factos assentes;  

1.67. A pensão anual fixada ao sinistrado foi obrigatoriamente remível, tendo a interveniente procedido à entrega do capital de remição no valor de € 9.393,26, no dia 11/01/2005 – alínea W) dos factos assentes;

1.68. Em virtude das lesões que o sinistrado MM apresentava, o mesmo teve de ser imediatamente transportado para o Hospital General Yagüe – resposta ao art.º 66.º da base instrutória;

1.69. Com o internamento, tratamento, despesas e pensões do sinistrado MM, a interveniente LL suportou as seguintes quantias: ao sinistrado MM, a quantia de € 4.389,61; ao Hospital de Santa Maria, a quantia de € 3.601,59; a médicos assessores, a quantia de € 363,30; ao Hospital General Yagüe, a quantia de € 5.300,49; ao Centro Cirurgia Plástica, a quantia de € 722,26; ao Laboratório Médico Pessanha, a quantia de € 159,27; por despesas farmacêuticas e laboratoriais, a quantia de € 198,65 – resposta ao art.º 67.º da base instrutória;

1.70. Em virtude das lesões que o ocupante do veículo … RR sofreu, o mesmo teve morte imediata no local do acidente dos autos – alínea Z) dos factos assentes;

1.71. Conforme sentença proferida no processo n.° 542/2001, que correu termos no Tribunal do Trabalho de Penafiel, a interveniente LL foi condenada a pagar à viúva do sinistrado RR: a quantia de € 12,47, referente a despesas de transporte; a quantia de € 2.673,56, a título de despesas com o funeral; a quantia de € 2.005,17, a título de subsídio por morte; a pensão anual vitalícia e atualizável à viúva no montante de € 2.352,03, a partir de 23.10.2001 – alínea AA) dos factos assentes;

1.72. E aos dois filhos menores: ao filho XX, a pensão anual e temporária no montante de € 1.568,02; à filha ZZ, a pensão anual e temporária no montante de € 1.568,02; a quantia de € 2.005,17, a título de subsídio por morte – alínea AB) dos factos assentes;

1.73. Além dos montantes referidos em 1.71 e 1.72 relativamente a despesas de funeral e subsídio por morte, a interveniente LL despendeu, até 21 de dezembro de 2006, com os beneficiários do sinistrado RR, o montante de € 14.734,52 a título de pensões – resposta ao art.º 70.º da base instrutória;

1.74. Em virtude das lesões que o sinistrado KK apresentava, o mesmo foi de imediato transportado para o Hospital General Yague, onde acabou por falecer – alínea AC) dos factos assentes;

1.75. Na sentença proferida no processo n.º 274/2001, que correu termos no Tribunal de Trabalho de Guimarães, a interveniente LL foi condenada a pagar à viúva do sinistrado KK: a quantia de € 2.673,56, a título de despesas com o funeral; a quantia de € 1.909,40, a título de subsídio por morte; a quantia de € 139,19, pelo período de ITA de 23/10/2001 a 31/10/2001; a pensão anual no montante de € 2.352,03, até perfazer a idade da reforma, e a pensão de € 3.136,04, a partir daquela idade – alínea AD) dos factos assentes;

1.76. E às duas filhas menores: a pensão anual e temporária no montante de € 1.568,02, a cada uma das filhas; a quantia de € 1.090.40, a título de subsídio por morte - alínea AE) dos factos assentes;

1.77. Além dos montantes referidos em 1.75 e 1.76 relativamente a despesas de funeral e subsídio por morte, a interveniente LL despendeu, até 21/12/2006, com os beneficiários do sinistrado KK, aqui A.A., o montante de € 14.112,05, a título de pensões, a quantia de € 7.730,70, ao Hospital General Yagüe, e € 15,00 à Conservatória do Registo Civil – resposta ao art.º 71.º da base instrutória;

1.78. Em virtude das lesões sofridas no acidente, foi fixado pelo Tribunal do Trabalho de Guimarães, ao sinistrado VV, uma desvalorização de 4%  – alínea AJ) dos factos assentes;

1.79. Na sentença proferida no processo n.º 29/2002, que correu termos no Tribunal do Trabalho de Guimarães, a interveniente LL foi condenada a pagar ao sinistrado VV a quantia de € 12,00 referente a despesas de transporte e a pensão anual no montante de € 219,52, desde 11/03/2011 – alínea AK) dos factos assentes;

1.80. A pensão anual fixada ao sinistrado foi obrigatoriamente remível, tendo a interveniente procedido à entrega do capital de remição no valor de € 3.915,80, no dia 2l/10/2003 – alínea W) dos factos assentes;

1.81. Em virtude das lesões que o sinistrado VV apresentava, o mesmo teve de ser imediatamente transportado para o Hospital Comarcal Santiago Apostol – resposta ao art.º 68.º da base instrutória;

1.82. Com o internamento, tratamento, despesas e pensões do sinistrado VV, a interveniente LL suportou as seguintes quantias: ao sinistrado VV, a quantia de € 2.311,70; ao Hospital de Santa Maria, a quantia de € 58,11; a médicos assessores, a quantia de € 439,44; à Ortopedia Universal, a quantia de € 14,96; à SMIC, a quantia de € 199,52 – resposta ao art.º 69.º da base instrutória;

1.83. Em virtude das lesões que o sinistrado NN apresentava, o mesmo teve de ser imediatamente transportado para o Hospital Comarcal Santiago Apostol – resposta ao art.º 60.º da base instrutória;

1.84. Em virtude das lesões sofridas pelo sinistrado NN, a quem não foi atribuída qualquer incapacidade, a LL liquidou o valor de € 3.697,16 – resposta ao art.º 103.º da base instrutória;

1.85. Em virtude das lesões que o sinistrado TT apresentava, o mesmo teve de ser imediatamente transportado para o Hospital Comarcal Santiago Apostol – resposta ao art.º 65.º da base instrutória;

1.86. Em virtude das lesões sofridas pelo sinistrado TT, a quem não foi atribuída qualquer incapacidade, a interveniente LL liquidou o valor de € 2.409,74 – resposta ao art.º 104.º da base instrutória;

1.87. Com a assistência prestada ao condutor do veículo …, liquidou ao Hospital Comarcal Santiago Apostol a quantia de € 116,60 – resposta ao art.º 72.º da base instrutória;

1.88. Nas circunstâncias de tempo e de lugar referidos em 1.1, o chamado MM era transportado no veículo ligeiro de passageiros 54-88-..., nas condições aludidas em 1.17 e 1.18 – resposta ao art.º 73.º da base instrutória;

1.89. Em consequência do embate referido em 1.22 e 1.23, o chamado MM sofreu fratura da mandíbula direita e golpe profundo na face do lado esquerdo – resposta ao art.º 74.º da base instrutória;

1.90 Após ter sido transportado para o Hospital General Yagüe da cidade de Burgos, foi submetido a uma intervenção cirúrgica, aí permanecendo internado até 01/11/2001 – resposta ao art.º 75.º da base instrutória;

1.91. Posteriormente, já no Hospital de S. Maria - Porto, foi operado mais duas vezes à mandíbula direita, para correções e para retirar material cirúrgico de osteossíntese – resposta ao art.º 76.º da base instrutória;

1.92. Esteve em repouso e teve alta definitiva em 22 de Novembro de 2002, data da consolidação das lesões sofridas – resposta ao art.º 77.º da base instrutória;

1.93. Apesar dos tratamentos a que se submeteu, o interveniente MM ficou a padecer das seguintes sequelas: cicatriz oblíqua com 8 cm de comprimento, que se estende da região nasal para a mandíbula na hemi-face esquerda; três cicatrizes cirúrgicas na região abdominal com 2 cm de comprimento cada; cicatriz quelóide, de 6 cm por 2 cm, na face anterior do terço superior do braço – resposta ao art.º 78.º da base instrutória;

1.94. As sequelas referidas em 1.93 determinam-lhe uma IPG de 3 pontos sem diminuição da capacidade para o trabalho – resposta ao art.º 79.º da base instrutória;

1.95. As lesões sofridas provocaram no interveniente MM dores físicas de grau 5, numa escala de 1 a 7, no momento do acidente e no decurso dos tratamentos – resposta ao art.º 80.º da base instrutória;

1.96. Na altura do acidente, o interveniente MM era fisicamente bem constituído e saudável – resposta ao art.º 83.º da base instrutória;

1.97. A cicatriz na face representa um dano estético de grau 4 numa escala de 1 a 7 – resposta ao art.º 84.º da base instrutória;

1.98. Na data do acidente, o interveniente MM começara a trabalhar para a R. “FF, Ld.ª”, como armador de ferro, auferindo um vencimento de € 5,00 por hora, para laborar 10 horas por dia e cinco dias por semana – resposta ao art.º 85.º da base instrutória;

1.99. Por causa dos ferimentos sofridos e dos tratamentos a que teve de se submeter, o interveniente esteve sem poder trabalhar até 22/11/2002 – resposta ao art.º 86.º da base instrutória;

1.100. O interveniente MM tinha à data do acidente 26 anos – alínea AM) dos factos assentes;

1.101. Nas circunstâncias referidas em 1.1, o interveniente NN era transportado na viatura 54-88-..., nas condições aludidas em 1.17 e 1.18 – resposta ao art.º 87.º da base instrutória;

1.102. Após o acidente, o interveniente NN recebeu os primeiros socorros no local, tendo sido assistido no Hospital identificado em 1.83 – resposta ao art.º 88.º da base instrutória;

1.103. Neste estabelecimento hospitalar, o interveniente NN apresentou: traumatismo abdominal fechado, com hematoma no lóbulo hepático direito, no segmento 5 de 41 x 33 mm; desgaste múltiplo na parede abdominal; traumatismo do maxilar superior com ferida incisiva com abertura de toda a gengiva, com expulsão completa de dois dentes incisivos médios superiores; feridas no centro e na ponta da língua – resposta ao art.º 90.º da base instrutória;

1.104. O interveniente esteve internado e depois foi submetido a diversos tratamentos cirúrgicos, tendo regressado a casa e depois acompanhado em tratamento ambulatório – resposta ao art.º 91.º da base instrutória;

1.105. O interveniente NN apresenta as seguintes sequelas: cicatriz plana normocrómica com 3 cm, transversal, situada no mento; cicatriz plana normocrómica com 1 cm, transversal, situada na ponta da língua; implantes nos dentes 11, 21 e 22; abertura da boca 5 cm; cicatriz plana normocrómica com 2 cm, transversal, situada no hemitórax face posterior ao nível do oitavo espaço intercostal direito; cicatriz plana normocrómica vertical com 6 cm, transversal, situada na face anterior do abdómen, ao nível do epigastro - resposta ao art.º 92.º da base instrutória;

1.106. As cicatrizes referidas em 1.105 correspondem a uma dano estético de grau 2, numa escala de 1 a 7 – resposta ao art.º 94.º da base ins-trutória;

1.107. O interveniente NN tem dores na boca – resposta ao art.º 95.º da base instrutória;

1.108. À data do acidente, o interveniente NN desempenhava funções de carpinteiro de cofragens auferindo um rendimento mensal líquido de € 800,00 – resposta ao art.º 99.º da base instrutória;

1.109. À data do acidente, o interveniente NN era robusto e saudável – resposta ao art.º 100.º da base instrutória;

1.110. Em consequência das lesões sofridas no acidente e dos tratamentos, o interveniente NN suportou dores de grau 4, numa escala de 1 a 7 – resposta ao art.º 101.º da base instrutória;

1.111. Em ambos os processos que correram termos no Tribunal do Trabalho respeitantes aos sinistrados RR e VV, a entidade patronal “FF – Construções, Ld.ª” e a LL Seguros, S.A.. foram condenadas, em quota parte de responsabilidades, a repararem os danos emergentes do referido acidente de viação – alínea AF) dos factos assentes;

1.112. Ambos os tribunais condenaram o Fundo de Acidentes de Trabalho a proceder ao pagamento da quota parte das prestações a cargo da entidade patronal, em sua substituição, em virtude de insuficiência económica da mesma e ausência de bens penhoráveis – alínea AG) dos factos assentes;

1.113. Face à decisão referida em 1.112, os beneficiários do sinistrado RR receberam do FAT a quantia de € 26.306,24, a que acresce a provisão matemática no valor de € 57.251,15 (no total de € 83.557,49) e o sinistrado VV, o montante de € 1.355,80 – alínea AR) dos factos assentes;

1.114. Em consequência do falecimento de KK, o Instituto de Segurança Social - Centro Nacional de Pensões pagou à viúva, a título de prestações por morte, o valor de € 499,00, no período de 07.2002, 07.2003; à filha BB, o montante de € 360,98 e, à filha CC, o valor de € 28,48, estas duas referentes a 07.2002 – alínea AN) dos factos assentes;

1.115. A “II Rent – Comércio e Viaturas de Aluguer, Ldª.”, foi incorporada por fusão na sociedade “JJ - Instituição Financeira de Crédito, S.A.”, em consequência da qual o património ativo e passivo da sociedade fundida foi incorporado no património da 5.ª R. “JJ - Instituição Financeira de Crédito, S. A.”, transferindo-se para a sociedade incorporante os direitos e obrigações da incorporada – alínea J) dos factos assentes;

1.116. No dia 29 de Abril de 1999 foi celebrado entre “II Rent – Comércio e Viaturas de Aluguer, Ldª.”, e a 2.ª R. “FF - Construções, Ld.ª”, um contrato de aluguer de veículo sem condutor, ao qual foi atribuído o n.º … e, por força do referido contrato, foi dado em locação a esta locatária a viatura referida em 1.1, pelo período de 48 meses, para a poder utilizar em qualquer parte do País ou em qualquer país da Comunidade Europeia, desde que por período inferior a 30 dias, ficando a locatária obrigada a pagar mensalmente as rendas contratadas, no valor de 75.788$00 cada uma – alínea K) dos factos assentes complementada pelo teor da cláusula 5.ª das condições particulares também considerado no acórdão recorrido;

1.117. A “II”, em face do acordo referido em 1.116, cedeu à “FF-Construções, Ldª”, o gozo e fruição da viatura objeto do contrato – alínea L) dos factos assentes;

1.118. Da cláusula 8.ª das condições gerais do acordo referido em 1.116 consta que é ao locatário que cabe promover a manutenção do veículo, nomeadamente às inspeções periódicas, procedendo sempre como um proprietário diligente procederia e de suportar os respetivos encargos, entendendo-se por manutenção tudo o que seja necessário ao funcionamento, conservação normal ou extraordinária do veículo – alínea M) dos factos assentes completada pelo teor daquela cláusula, também considerado no acórdão recorrido;

1.118-A. Da cláusula 14.ª do mesmo contrato consta que a locatária fica obrigada a permitir o exame do veículo pela locadora II, sempre que esta o pretenda, sem prejuízo da normal utilização (al. b), bem como a manter em lugar visível a identificação do proprietário e ou do locador da viatura (a fornecer pela II) no local próprio e os dísticos eventualmente exigidos por lei (al. e) – facto considerado no acórdão recorrido, conforme doc. de fls. 132;

1.118-B. Da alínea a) da cláusula 9.ª do mesmo contrato consta que a locatária “terá a obrigação de, relativamente ao prazo do aluguer, incluindo as suas renovações previstas: um seguro cujo beneficiário será a II RENT, ou o respectivo proprietário, que abranja as eventualidades de perda ou deterioração, causais ou não, do veículo; um seguro de montante ilimitado, que abranja a responsabilidade civil emergente dos danos provocados pela utilização do veículo – conforme doc. de fls. 132 e, de resto referida, em sede de análise fáctico-jurídica, no acórdão recorrido;   

1.119. Por meio de contrato de seguro, a R. “EE” assumiu os riscos inerentes à circulação do veículo de matrícula 54-88-..., que ficou titulado pela apólice emitida em Portugal com o n.º …727 – alínea H) dos factos assentes;

1.120. Na sequência de proposta apresentada por HH, a R. “EE” emitiu certificado n.º …6 relativo ao veículo de matrícula 54-88-..., válido entre as 10 horas do dia 21/08/2001 e as 24 horas do dia 21/09/2001, prevendo o máximo de garantia de Esc. 120.000.000$00 - doc. de fls. 2088 a 2090;

1.121. Na apólice n.º …379, emitida pela R. “EE” em 31/08/2001, relativamente ao veículo de matrícula 54-88-..., o capital do seguro de responsabilidade civil correspondia a 125.000.000$00 - doc. de fls. 1777;  

1.122. Na apólice n.º …379, emitida pela R. “EE” em 14 de Janeiro de 2005, relativamente ao veículo de matrícula 54-88-..., consta que o capital do seguro foi elevado para € 625.000, em 26/03/2002 - doc. de fls. 61;

1.123. Em 5 de Abril de 2001, foi emitida por “LL Seguros, S.A..”, anteriormente “Companhia … de Seguros, S.A.”, a apólice n.° …./000 Protecção Auto, relativa ao veículo “Hyundai” com a matrícula 54-88-..., com início em 08/05/2001 e termo um ano e seguintes com o seguinte conteúdo: tomador:

 - FF Construções, Ldª;

 - responsabilidade civil obrigatória ilimitada;

 - credor hipotecário: II Rent

alínea AO) dos factos assentes e doc. de fls, 2637;  

1.124. Das cláusulas especiais da apólice referida em 1.22 consta o seguinte:

«Direitos ressalvados:

   1. A entidade indicada tem interesse no seguro.

  2. A LL Seguros não pagará qualquer indemnização em caso de perda total ao abrigo das coberturas facultativas sem o prévio conhecimento e aceitação deste.

  3. Na situação prevista no número anterior, a LL Seguros não procederá a alterações contratuais que possam prejudicar o terceiro com direitos ressalvados nem à resolução do seguro sem prévio conhecimento deste»

alínea AP) dos factos assentes e doc. de fls. 2637;

1.125. Por requerimento apresentado em 15/10/2012, a R. “II” informou que não recebeu qualquer anulação do seguro – alínea AQ) dos factos assentes e doc. de fls. 2757.

1.126. Em consequência da morte referida em 1.5, correu termos em Espanha um processo crime que pelo Juzgado de Instrution n.º 1 de Briviesca, Burgos, Espanha, em que foi arguido o R. GG e demandados civis os ora R.R., no âmbito do qual foi proferida decisão de absolvição do R. – alínea I) dos factos assentes;

1.127. Os intervenientes AAA, por si e em representação do filho menor XX, ZZ, BBB, VV e SS declararam que, tendo intentado contra a R. EE ação que correu termos no 2 Juzgado de primeira instancia e Instruccion Único de Briviesca (Burgos) Juicio Ordinário com o n.º 46012004, obtiveram sentença transitada em julgado que condenou a demandada a indemnizar a primeira com € 90.619,92, XX e ZZ € 37.758,30 cada um, o quinto com € 5.811,08 e o sexto com € 14.055,38 que a mesma lhes pagou, considerando-se ressarcidos - doc. de fls. 455;  

1.128. Por decisão proferida em 24/11/2006, no procedimento cautelar correspondente ao apenso A., transitada em julgado, a R. “EE” foi condenada a pagar à A. AA a quantia mensal de € 400,00, com efeitos desde o dia 02/10/2006 e até ao dia 8 de cada mês, a título de renda mensal devida pela reparação provisória, até ao trânsito em julgado da sentença que vier a ser proferida nos autos principais - fls. 114 a 137 do apenso A e 75 a 90 do apenso B;

1.129. Em 7 de Fevereiro de 2011, foi celebrada transação nos seguintes termos:

«1 - As Autoras AA, DD, CC e BB, bem como os intervenientes MM, NN, LL, ISSS, FAT aceitam que a obrigação de indemnizar a cargo da Ré EE fique limitada ao capital da respectiva apólice, ou seja, € 625.000,00 (seiscentos e vinte e cinco mil euros);

2 - Em conformidade com o acordado na cláusula imediatamente anterior, as Autoras AA, DD, CC e BB, bem como os intervenientes MM, NN, LL, ISSS e FAT, exoneram de qualquer responsabilidade a referida Ré EE, dela recebendo apenas os seguintes montantes, os quais incluem os respectivos juros moratórios, e que, adicionados dos montantes pagos pela mesma Ré no âmbito das acções judiciais que correram termos pelos tribunais espanhóis, esgotam o capital da apólice correspondente à obrigação legal de segurar:

a) As Autoras AA, DD, CC e BB, receberão da Ré a quantia total de € 343.117,43 (trezentos e quarenta e três mil e cento e dezassete euros e quarenta e três cêntimos) - dos quais € 133.698,70 se destinam a ressarcir o dano patrimonial futuro da Autora AA - a que a mesma Ré deduzirá ainda todas as quantias entretanto pagas nos termos da obrigação constituída pela decisão proferida nos autos apensos de procedimento cautelar para arbitramento de reparação provisória, e que ora se julga extinta;

b) O interveniente MM receberá da Ré a quantia total de € 12.011,64 (doze mil e onze euros e sessenta e quatro cêntimos), todos eles correspondentes apenas ao ressarcimento do dano não patrimonial;

c) O interveniente NN receberá da Ré a quantia total de € 6.005,82 (seis mil e cinco euros e oitenta e dois cêntimos), todos eles correspondentes apenas ao ressarcimento do dano não patrimonial;

d) A interveniente LL receberá da Ré a quantia total de € 111.257,95 (cento e onze mil e duzentos e cinquenta e sete euros e noventa e cinco cêntimos);

e) O interveniente ISSS receberá da Ré a quantia total de € 507,11 (quinhentos e sete euros e onze cêntimos);

f) O interveniente FAT receberá da Ré a quantia total de € 27.689,27 (vinte e sete mil e seiscentos e oitenta e nove euros e vinte e sete cêntimos).

3 – A Autora AA declara para todos os efeitos legais, que com o recebimento da supra descrita quantia de € 133.698,70, destinados a ressarcir unicamente o dano patrimonial futuro, aceitará exonerar a interveniente LL das obrigações para ela emergentes da sentença proferida no foro laboral, no âmbito do processo por acidente de trabalho que correu termos pela secção de processos do Tribunal do Trabalho de Guimarães.

As cláusulas 4 e 5 da mesma transacção respeitam às custas da presente acção e ao prazo de pagamento das quantias supra referidas.» 

1.130. Aquela transação foi homologada por sentença proferida na mesma data, em 07/02/2011.


2. Do mérito do recurso


2.1. Enquadramento preliminar


Estamos no âmbito de uma ação declarativa cujo objeto, no que releva para o presente recurso, consiste em pretensões indemnizatórias no quadro da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, ou subsidiariamente pelo risco, emergente de um acidente de viação ocorrido em Espanha, no dia 22/10/2001, com intervenção de um único veículo, propriedade da 5.ª R. II, mas que se encontrava em poder da 2.ª R. “FF, Construções, Ld.ª”, por virtude de um contrato de aluguer de longa duração (ALD), e que era conduzido pelo 3.º R. GG, na qualidade de motorista ao serviço desta locatária, em relação ao qual a responsabilidade civil respeitante à sua circulação se encontraria, alegadamente, transferida para a 1.ª R. “EE - Companhia de Seguros, S.A..”, através da apólice n.º …727, emitida em Portugal.

Tais pretensões foram deduzidas pelo cônjuge (1.ª A.) e pelas três filhas (restantes A.A.) de KK, um dos passageiros transportados naquele veículo, que acabou por falecer, a 31/10/2001, em consequência das lesões sofridas no sobredito acidente.

E traduzem-se no pedido de condenação solidária dos R.R. no montante indemnizatório global de € 415.518,75, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da data da citação, compreendendo as seguintes parcelas indemnizatórias:

A – A título de danos patrimoniais emergentes suportados pela 1.ª A.:

 a) – a quantia de € 518,75, por despesas do funeral;

 b) – a quantia de € 1.000,00, por despesas decorrentes da deslocação e estadia daquela A. em Burgos, entre a data do acidente e o decesso do seu marido;


B – A título de danos patrimoniais pela frustração do rendimento futuro do falecido:

 a) – uma quantia não inferior a € 150.000,00 para a 1.ª A;

 b) – uma quantia não inferior a € 29.000,00 para a A. DD;

 c) – uma não inferior a € 50.000,00 para a A. menor, BB;


C -  A título de danos não patrimoniais:

 a) – uma quantia não inferior € 60.000,00 para as A.A. pela perda de vida de KK;

 b) – uma quantia não inferior ao € 20.000,00 para as A.A. pelo sofrimento daquele sinistrado entre a data do acidente e o seu decesso;

c) – uma quantia não inferior a € 30.000,00 pelo desgosto sofrido pela 1.ª A. com o decesso do seu marido;

d) - uma quantia não inferior a 25.000,00 pelo desgosto sofrido por cada uma das restantes A.A. com o decesso de seu pai, perfazendo o montante de € 75.000,00.


     A 1.ª instância, além do mais, julgou:

  - por um lado, oficiosamente, partes ilegítimas a 1.ª R. “EE - Companhia de Seguros, S.A..”, a 2.ª R. “FF, Construções, Ld.ª”, e o 3.º R. GG, absolvendo-os da instância;

 - por outro lado, improcedente a ação quanto à 5.ª R. II, absolvendo-a do pedido contra a mesma formulado.

        

Por sua vez, o Tribunal da Relação, julgando parcialmente procedente a apelação interposta pelas A.A., declarou a 2.ª R. o 3.º R. como partes legítimas e condenou-os, bem como a 5.ª R. II a pagar o montante global de € 11.297,57, acrescida de juros de mora, à taxa anual de 4%, a contar da data do acórdão e até efetivo pagamento, compreendendo as seguintes parcelas.


Para tanto, considerou ajustados os seguintes valores de base:

   a) - € 518,75, correspondentes a despesas do funeral,

   b) - € 500,00, por despesas de 10 dias estadia da 1.ª A. em Burgos;

   c) - € 250.000,00, pela frustração, por parte da 1.ª A., do rendimento futuro do seu falecido marido;

   d) - € 15.000,00, para compensação do sofrimento suportado por KK, entre a data do acidente e a sua morte; 

   e) - € 75.000,00, pelo dano correspondente à perda de vida do mesmo;

   e) - € 30.000,00, para compensação do sofrimento da 1.ª A. pela morte do seu marido;

   f) - € 24.000,00, para compensação do sofrimento de cada uma das três A.A. restantes pela morte do seu pai.

       Sobre a soma desses valores, o Tribunal a quo operou a redução de 20%, com fundamento na culpa concorrente do sinistrado por não uso do cinto de segurança, apurando a quantia total de € 357.789,06, à qual subtraiu ainda a importância de € 343.117,43 já paga às A.A. pela seguradora EE, S.A., fixando a indemnização devida às A.A. em € 11.297,57, sem qualquer diferenciação dos montantes devidos a cada uma delas.

   Relativamente aos juros de mora, no acórdão recorrido consignou-se que, para determinação da indemnização em sede de lucros cessantes/danos futuros e de danos não patrimoniais, foram tidos “em consideração os valores mais recentemente atribuídos pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores”, daí convocando a doutrina fixada no AUJ do STJ n.º 4/2002, de 9/05/2002.               


         É pois neste contexto que passamos à apreciação de cada uma das questões suscitadas nos recursos interpostos.

 

 2.2. Da revista interposta pela 5.ª R. JJ, S.A.


   As A.A. demandaram a 5.ª R. JJ como proprietária-locadora da viatura 54-88-..., única interveniente no acidente em causa, sustentando que aquela R. mantinha o interesse na utilização deste veículo, nas circunstâncias temporais e espaciais do referido acidente.


   Porém, a 5.ª R. contrapôs, no essencial, que:

- Em 29/04/1999, tinha celebrado com a 2.ª R. “FF – Construções, Ld.ª”, um contrato de aluguer sem condutor sobre aquele veículo, pelo período de 48 meses, mediante o pagamento de rendas mensais no valor de € 75.788$00, conforme o constante do documento junto a fls. 131-132, ficando a locatária a dispor do poder de facto ou da direção efetiva do mesmo, cabendo-lhe promover a sua manutenção e a obrigação de providenciar pelo respetivo seguro, o que foi feito junto da 1.ª R. EE;

- Nessas circunstâncias, a locatária passou a utilizar a viatura no seu interesse exclusivo, enquanto que a locadora deixou de ter qualquer controlo material da mesma, desconhecendo as condições em que estava a ser utilizada e quem era o seu condutor, à data do acidente, em 22/10/2001;

- Em outubro de 2002, a 5.ª R. foi contactada pela locatária, 2.ª R., para antecipar o cumprimento do contrato de aquisição da viatura, o que veio a acontecer, embora se encontrem por pagar os valores correspondentes à regularização do contrato.    

     Daí concluiu a 5.ª R. no sentido de ser parte ilegítima na presente ação ou, subsidiariamente, de ser julgada não responsável pelo acidente em causa.

      Na réplica, vieram as A.A. responder que a locadora JJ era quem fruía os lucros civis do referido veículo, acrescendo o facto de a direção efetiva deste, por parte da locatária, ser limitada à área de circulação e à obrigação de zelar pela sua conservação.

No despacho saneador, foi julgada improcedente a exceção de ilegitimidade passiva suscitada pela 5.ª R., tendo sido, seguidamente, dados como assentes os factos respeitantes ao alegado contrato de aluguer do veículo, selecionados sob as alíneas K), L) e M) e como tal inseridos na factualidade provada, em sede de sentença final, transposta e complementada sob os pontos 1.116 a 1.118-A acima enunciados.    


      Em face dessa factualidade e considerando ainda que o veículo, à data do acidente, era conduzido pelo R. GG, no desempenho de tarefas que lhe haviam sido atribuídas enquanto trabalhador da 2.ª R., “FF – Construções, Ld.ª”, segundo instruções do gerente da mesma, equiparando, de certo modo, o contrato de aluguer em foco ao contrato de locação financeira, a 1.ª instância concluiu que a 5.ª R., JJ, não detinha a direção efetiva do veículo locado e julgou a ação improcedente quanto a ela, absolvendo-a do pedido. 


    Por sua vez, no âmbito do recurso de apelação interposto pelas A.A., o Tribunal da Relação de Guimarães considerou, neste particular, que:

«O art.º 503.º., n.º 1 do Código Civil (C.C.) responsabiliza pelos danos ocasionados por um veículo quem tiver o poder de facto sobre ele e o utilize em proveito próprio, mesmo que por intermédio de um comissário.

É de presumir que o proprietário tenha a direcção efectiva do veículo. Se tal se não verificar caber-lhe-á ilidir a presunção.

Responsável pela indemnização dos danos ocasionados pelo veículo (esteja ou não este em circulação) é, pois, quem tenha a direcção efectiva dele e o utilize na satisfação de um interesse próprio.

O interesse tanto pode ser material ou económico como moral ou espiritual, enquanto que a direcção efectiva, como escreve Dario de Almeida, “envolve um poder real ou material de utilização e destino do veículo, com a inerente faculdade, quer de manutenção ou conservação, quer de superintendência ou vigilância”, acrescentando que “no seu núcleo essencial” se insere a noção de «guarda» (in Manual de Acidentes de Viação”, 3ª ed., pág. 316).   

Ensina o Prof. Antunes Varela que tem a direcção efectiva do veículo “a pessoa que, de facto, goza ou usufrui as vantagens dele, e a quem, por essa razão, especialmente cabe controlar o seu funcionamento (vigiar a direcção e as luzes do carro, afinar os travões, verificar os pneus, controlar a sua pressão, etc.)” (in “Das Obrigações Em Geral”, vol. I, 10.ª edição, pág. 657).

Sem embargo, entende o mesmo Autor que numa situação de aluguer do veículo conduzido pelo locatário ou às suas ordens, ele “é utilizado tanto no interesse do locatário, como no do locador, e qualquer deles se pode dizer que tem a direcção efectiva do veículo, devendo por isso aceitar-se que ambos respondem solidariamente pelo dano” (in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 10.ª edição, pág. 664).

Defende o Prof. Almeida Costa que pela conjugação dos dois elementos acima referidos – direcção efectiva e interesse próprio na utilização - “a responsabilidade objectiva também pode caber a um locatário ou comodatário”, e a questão de saber se ela cabe solidariamente ao locador e ao locatário “depende de saber quem cria o risco e aproveita dele”, devendo atender-se ao que resulte da análise das circunstâncias de cada situação concreta (in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 10.ª edição, pág. 664). 

Por sua vez, o Prof. Vaz Serra, fazendo uma incursão pelos direitos francês, alemão e italiano, distingue as situações de aluguer de veículo com condutor, em que a responsabilidade de indemnizar recai inteiramente sobre o locador, e de aluguer de veículo sem condutor, em que tal responsabilidade poderá caber apenas ao locatário se se provar que é ele quem tem “a direcção real do veículo com exclusão do locador, privado em absoluto do poder efectivo de direcção ou disposição da coisa e deixando, por isso, de criar o risco especial que justifica a responsabilidade objectiva” [(itálico nosso) in R.L.J., ano 109, págs. 154-159], acrescentando que se a utilização for feita também no interesse do locador, “que tem direito à retribuição locatícia, pode ser que também este tenha a direcção efectiva”, caso em que a responsabilidade pelo risco pertence solidariamente ao locador e ao locatário (posição reafirmada in R.L.J., ano 114, pág. 287, nota (1)).

O S.T.J., no Ac. de 23/10/1997, partindo do pressuposto de que tem a direcção do veículo “a pessoa que goza ou usufrui as vantagens dele e quem, por essa razão, especialmente cabe controlar o seu funcionamento no que respeita ao seu aspecto mecânico” decidiu no sentido de que no caso de aluguer “sendo o veículo conduzido pelo locatário, ou às suas ordens, o veículo é utilizado tanto no interesse do locatário, como do locador, e qualquer deles se pode dizer que tem a direcção efectiva do veículo, devendo por isso aceitar-se que ambos respondem solidariamente pelo dano”, concluindo que “o dono do veículo – e seu alugador – não perde, por efeito da locação, o poder de facto sobre o veículo, continuando a gozar ou usufruir as vantagens dele, que se não restringem à simples deslocação ou transporte do próprio dono, mas também a qualquer outro uso, nomeadamente à sua utilização por terceiro, seja para satisfazer alguma incumbência daquele (no caso da relação comitente/comissário) a título gratuito ou oneroso, seja para usufruir dos rendimentos produzidos pela cedência temporária do seu uso” (in B.M.J. nº. 470, págs. 582-588).    

Já antes haviam decidido no mesmo sentido, v.g. os Acs. da Rel. de Coimbra, 18/06/1976 e da Rel. de Lisboa, de 7/03/1978 (in C.J., respectivamente, ano de 1976, Tomo II, pág. 308 e ano de 1978, Tomo II, pág. 406). 

E parece ser esta a orientação que vingou já que o art.º 2.º do Dec.-Lei n.º 522/85 (lei do seguro obrigatório vigente à data em que ocorreu o acidente) impondo a obrigação de segurar ao proprietário do veículo, apenas exclui do cumprimento desta obrigação as situações de usufruto, venda com reserva de propriedade e locação financeira.

Ora, como ficou provado, no dia 29 de Abril de 1999 foi celebrado entre a “II Rent – Comércio e Viaturas de Aluguer, Ld.ª” e a Ré “FF - Construções, Ld.ª”, um contrato de aluguer de veículo sem condutor, ao qual foi atribuído o n.º … e por força deste contrato a primeira entregou à segunda o veículo …, referido em 1., pelo período de 47 meses, para o usar e fruir, mediante o pagamento da importância mensal de 75.788$00.

Acerca da qualificação de um contrato, refere o Prof. Pedro Pais de Vasconcelos que ela é feita “através do reconhecimento nele de uma qualidade que é a qualidade de corresponder a este ou àquele tipo, a este ou àquele modelo típico” e, prossegue, “a qualificação legal traz consigo, assim, sempre um processo de relacionação entre a relação contratual subjectiva estipulada e o ordenamento legal objectivo onde o catálogo dos tipos contratuais legais se contém. Este relacionamento traduz-se num movimento espiral e hermenêutico, assente numa pré-compreensão que se traduz em pré-qualificações experimentais precárias, feitas com apoio na cultura jurídica e na “experiência do mundo” de quem qualifica.

A qualificação do contrato pressupõe que se tenha, como ponto de partida, uma ideia suficientemente clara, embora ainda não definitiva, sobre o conteúdo e sentido do contrato a qualificar. Esta ideia é fornecida pela interpretação e traz consigo já uma pré-compreensão, uma antecipação de sentido na expectativa de um resultado” (in “Contratos Atípicos”, Almedina, 1995, págs. 164-165).     

Isto considerado, resulta inequívoco que as partes celebraram um contrato de aluguer de longa duração (ALD), que é um contrato atípico, que, tendo em consideração o princípio da liberdade contratual, na vertente da liberdade de conformação dos contratos, consagrado no art.º 405.º do C.C., se rege pelas suas cláusulas contratuais particulares e gerais, desde que não sejam contrárias a normas imperativas, pelas normas gerais dos contratos, pelo Dec.-Lei n.º 354/86, de 23 de Outubro (cfr., designadamente, os art.os 16.º; 17.º, 20.º, e 21.º, na redacção que lhe deu o Dec.-Lei n.º 373/90, de 27 de Novembro), e ainda pelos art.os 1022.º, e sgs., do C.C., na parte em que dispõem sobre a locação de coisas móveis.

Muito embora tradicionalmente seja propósito destes contratos vir a permitir aos locatários, no seu termos, a aquisição do veículo alugado, seja celebrando um contrato-promessa de compra e venda, a produzir efeitos no termo da vigência do contrato de aluguer, seja através de uma promessa unilateral de venda, ou mesmo prevendo a aquisição no clausulado contratual, não é esta uma característica essencial individualizadora daquele tipo de contratos (acerca das diversas teses que se têm desenvolvido sobre a natureza do ALD cfr., com interesse, v.g. os Acs. do S.T.J. de 14/05/2009, Procº. 08P4096, Consº. Fonseca Ramos e de 12/10/2010, Procº. 67/07.0TCGMR.G1.S1, 1ª. Sec., Consº. Moreira Alves, e ainda o Ac. desta Rel. de Guimarães de 26/05/2011, Procº. 936/07.8TBVVD.G1, Desemb. Manuel Bargado, todos in www.dgsi.pt).   

Na situação sub judicio, e observando as regras de hermenêutica contratual, constantes dos art.os 236.º e 238.º do C.C., não é possível descortinar no clausulado do contrato alguma menção à opção de compra da viatura automóvel pela locatária. Bem ao invés, uma das obrigações da Ré, locatária, ali expressamente prevista, é a de “restituir o veículo, no fim do aluguer, no estado que deva derivar do seu uso normal e prudente” (cfr. alínea c) da cláusula 14.ª).

Por outro lado, nem a locatária nem a locadora invocaram a celebração de um paralelo contrato-promessa de compra e venda ou de uma promessa unilateral de venda e tampouco da facticidade provada se pode minimamente deduzir ter sido esta a vontade das partes.

Não estamos, pois, perante um “contrato indirecto” (em que o tipo de referência é o aluguer e o fim indirecto é o da venda a prestações com reserva de propriedade - cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, ob. cit. pág. 245) e nem há qualquer similitude entre o contrato que foi celebrado e o contrato de locação financeira.

Indubitavelmente foi celebrado um contrato de aluguer, de longa duração, de um veículo automóvel, em resultado do qual o uso deste veículo foi concedido à locatária “FF, Construções, Ld.ª” mas manteve-se na propriedade da locadora “II Rent Comércio e Viaturas de Aluguer, Ld.ª”.

Saber se esta tinha, juntamente com a locatária, a direcção efectiva do veículo alugado impõe que se atente às cláusulas contratuais.   

Ora, ficou estabelecido na cláusula 8.ª das condições contratuais gerais, que era à referida Ré locatária, que cabia “prover à manutenção do veículo … procedendo sempre como um proprietário diligente procederia e de suportar os respectivos encargos”, ficando aí estabelecido que a manutenção inclui “tudo o que seja necessário ao funcionamento, conservação normal ou extraordinária do veículo”, mas também ficou clausulada a obrigação da locatária “Permitir o exame do veículo” pela locadora “sempre que esta o pretenda” ainda que “sem prejuízo da normal utilização” (alínea b)), e ainda a obrigação de “Manter em lugar visível a identificação do proprietário e ou do locador da viatura (a fornecer pela II Rent) no local próprio e os dísticos eventualmente exigidos por lei … (alínea e).

Por outro lado, na cláusula n.º 5, das cláusulas contratuais especiais, ficou estipulado que a locatária poderia circular com a viatura “em qualquer parte do País, ou em qualquer país da Comunidade Europeia, desde que por um período inferior a 30 dias”. 

Ora, este poder de controlo sobre a viatura, que estava na disponibilidade da Locadora exercer ou não (se e quando quisesse podia verificar se a Locatária introduziu na viatura alguma alteração que, por exemplo, a desvalorizasse) e sobre o seu uso (designadamente se estava a ser ultrapassado o prazo fixado de circulação no estrangeiro, dentro da União Europeia) é incompatível com a privação absoluta do poder efectivo de direcção sobre o veículo dado em aluguer.

Daqui resulta não dever ser afastado o regime de responsabilidade consagrado no artº. 503º., n.º 1, do C.C., respondendo a Locadora, enquanto proprietária do veículo, solidariamente com a Locatária, pelos danos resultantes da circulação deste.

Não podemos, pois, concordar com o decidido pelo Tribunal a quo, cujo raciocínio, doutamente exposto, embora, a fls. 2958 e sgs. dos autos, terá subjacente a ideia de uma opção de compra pela locatária que, como vimos, não é consistente nem com a alegação das partes nem com a facticidade provada.

Assiste, pois, nesta parte, razão às Apelantes, ao pretenderem ver responder (também) a locadora “II” pelos danos que sofreram.»

           

Nessa base, o Tribunal da Relação condenou a 5.ª R. na indemnização arbitrada às A.A., solidariamente com a 2.ª R. e o 3.º R., este enquanto comissário, por circular com velocidade acima do limite máximo permitido e não ter adequado tal velocidade às especiais condições em que se processava o transporte, com um número de passageiros excedente à lotação determinada para aquele veículo e com peso global superior ao que estava preparado para transportar.

Todavia, a Recorrente JJ pugna pela sua absolvição do pedido pelas razões constantes das respetivas conclusões acima transcritas.


    Vejamos.


   O artigo 503.º do CC prescreve, no que aqui interessa, que:

 1 – Aquele que tiver a direção efetiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.

   3 – Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte; se, porém, o conduzir fora do exercício das suas funções de comissário, responde nos termos do n.º 1.


Assim, o preceituado no n.º 1 do citado art.º 503.º faz recair a responsabilidade objetiva pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação, sobre quem detenha a direção efetiva do mesmo e o utilize no seu interesse próprio, independentemente da respetiva titularidade ou domínio jurídico.

Ora, ter a direção efetiva do veículo significa dispor do poder de facto sobre o mesmo. Por sua vez, o interesse na utilização terá de ser próprio, podendo traduzir-se em vantagens de ordem patrimonial ou não patrimonial, ainda que não necessariamente exclusiva, não se exigindo sequer que se trate de interesse digno de proteção legal.   

Nas palavras de Antunes Varela[1]:

«A fórmula (…) “ter a direcção efectiva do veículo” destina-se a abranger todos aqueles casos (proprietário, usufrutuário, locatário, adquirente com reserva de propriedade, autor do furto do veículo, que o utiliza abusivamente, etc.) em que, com ou sem domínio jurídico, parece justo impor a responsabilidade objectiva a quem usa o veículo ou dele dispõe. Trata-se das pessoas a quem especialmente incumbe, pela situação de facto em que se encontram investidas, tomar as providências adequadas para que o veículo funcione sem causar danos a terceiros. (…) Tem a direcção efectiva do veículo a pessoa que, de facto, goza ou usufrui as vantagens dele, e a quem, por essa razão, especialmente cabe controlar o seu funcionamento (vigiar os pneus, luzes do carro, afinar os travões, verificar os pneus, controlar a sua pressão, etc.)»

E, particularizando, escreve o mesmo Autor que[2]:

   «No caso de aluguer, sendo o veículo conduzido pelo locatário ou às suas ordens, o veículo é utilizado tanto no interesse do locatário, como no do locador, e qualquer deles se pode dizer que tem a direcção efectiva do veículo, devendo por isso aceitar-se que ambos respondem solidariamente pelo dano

Ainda, quanto à repartição e título de responsabilidades, refere ainda aquele Autor que[3]:     

   «Nos casos em que haja culpa do condutor no acidente, o detentor ou utente pode ser chamado à responsabilidade com um duplo fundamento: a) como detentor do veículo e criador do risco inerente à sua utilização; b) como comitente e, nessa qualidade, garante da obrigação de indemnizar a cargo do comissário. No primeiro caso, há razões para aplicar ao detentor os limites máximos da responsabilidade fixada no art.º 508.º; no segundo, a responsabilidade do comitente cobre toda a obrigação de indemnização do comissário, que não tem limites preestabelecidos.»        

   Porém, no comentário ao art.º 503.º do CC, Pires de Lima e Antunes Varela, observam que:

«Embora a responsabilidade recaia, assim, normalmente sobre o proprietário, este não é responsável se (…) perdeu, por qualquer circunstância, essa direcção, como no caso de furto ou de entrega ao promitente-comprador, ao locatário ou, em certas circunstâncias, ao comodatário.

  Na mesma linha, Almeida Costa, a propósito dos pressupostos da responsabilidade objetiva enunciados no art.º 503.º, n.º 1, escreve que[4]:      

«As mais das vezes, o detentor será o proprietário de veículo, ou, inclusive, um usufrutuário ou adquirente com reserva de propriedade. Todavia, pela conjugação dos referidos elementos, a responsabilidade objectiva também pode caber a um locatário ou comodatário, ou a outrem que o haja furtado ou apenas utilizado abusivamente.»

  Em nota de rodapé[5], o mencionado Autor, equacionando a situação de locador, adverte que a solução do problema dependerá de «(…) saber quem cria o risco e aproveita dele, isto é: a direcção efectiva do veículo e o interesse na sua utilização.» E adianta que: «Deverá, portanto, atender-se ao que resulte das circunstâncias de cada situação concreta.» Citando, Vaz Serra, refere que: «A propósito da locação, a admissibilidade do interesse do locador na utilização do veículo envolverá a consequência de o locatário assumir uma posição equiparável à de um comissário, quando não a de um verdadeiro comissário locador.

Importará, por exemplo, para efeitos de saber a quem cabe a direção efetiva do veículo, distinguir a locação com condutor ou sem condutor.   


Por sua vez, Vaz Serra argumenta que[6]:

«Desde que a responsabilidade objectiva se funda na criação do risco, deve ela caber àquele que cria o risco, e este é criado por quem tem a efectiva direcção do veículo e o utiliza no seu interesse. (…) Uma vez que o que importa é a efectiva direcção da coisa e a utilização no próprio interesse, podem ser guardas o usufrutuário, o locatário, o comodatário, o possuidor em nome próprio, o adquirente com reserva de propriedade (salvo não lhe pertencendo o poder de utilização do veículo).  

(…)

As soluções preconizadas concordam, em grande parte, com as da jurisprudência francesa. Esta atende à guarda, aquelas à criação do risco, mas os resultados práticos coincidem, pois quem não tem a guarda não cria, pelo menos em regra, o risco.»

Segundo o mesmo Autor, refletindo sobre o direito francês, alemão e italiano[7]:

«(…) é solução geralmente admitida, nos direitos que adoptam, em matéria de responsabilidade por acidentes de viação, orientação idêntica ou semelhante à do nosso direito, que, nos casos de locação ou comodato, a responsabilidade recai sobre o locatário ou comodatário, e não, em princípio, sobre o proprietário.

(…)

Parece que o facto de o proprietário (ou outro tenedor ou possuidor) do veículo ceder o uso deste a outrem, quer a título de locação, quer a título de comodato, exclui, em princípio, a sua responsabilidade pelo risco, pois, com essa cedência, deixa de ter a direcção efectiva do veículo e de o utilizar no próprio interesse: o veículo passa a estar sob a efectiva direcção do locatário ou comodatário e a ser utilizado por este no seu interesse. Isto, ainda que a cedência não tenha uma duração muito apreciável, já que, ainda então, a efectiva direcção e a utilização do veículo passam a caber ao beneficiário da cedência (sobretudo, se as despesas passarem a ser suportadas por este).

Nestas circunstâncias, o proprietário (…) não é, em princípio, responsável pelo risco, porquanto, tendo cedido o veículo a outrem, ao menos para a viagem durante a qual ocorreu o acidente, terá perdido, durante esse tempo, a direcção efectiva e a utilização interessada do veículo.      


E, ponderando as hipóteses de aluguer sem condutor, observa que:

«Poderia também entender-se que, se a direcção efectiva pertence só ao locador, apenas este será responsável pelo risco: é o que acontecerá se o aluguer for sem condutor e a direcção real do veículo couber somente ao locatário, com exclusão do locador, privado em absoluto do poder efectivo de direcção ou disposição da coisa e deixando, por isso, de criar o risco especial que justifica a responsabilidade objectiva; mas, sendo a utilização do veículo feita também no interesse do locador, que tem direito à retribuição locatícia, pode ser que também este tenha a direcção efectiva. Havendo responsabilidade do locador e do locatário, ela é solidária.»[8]


 De todas estas considerações doutrinárias ressalta a ideia-âncora de que o fundamental será saber, no contexto de cada situação concreta, em que esfera de direção efectiva do veículo, nomeadamente quando ela se encontrar repartida entre o proprietário/locador e o locatário, se gera o risco especial que justifica a responsabilidade objetiva, admitindo-se, em caso de não dilucidação, que haja concorrência causal de ambas essas esferas.

Assim sendo, para tais efeitos, o que importa é centrar-nos no núcleo essencial e específico do contrato sobre os poderes de facto atribuídos à locatária em sede de uso, fruição, guarda e conservação do veículo, bem como sobre o controlo das respetivas condições de circulação, em vez de enveredar por uma qualificação genérica em termos das obrigações típicas dele decorrentes ou por uma categorização algo abstrata em termos de qualificar essa direcção como absoluta ou relativa.   


Posto isto, tudo está agora em atentar nas circunstâncias do caso, respigando-se da factualidade provada o seguinte:

(i) – No dia 22/10/2001, pelas 08h45 (hora espanhola), entre os quilómetros 48,350 e 48,400 da auto-estrada A1 que liga as cidades espanholas de Burgos e Málaga, em Zuneda, comarca de Briviesca, em Espanha, ocorreu um acidente de viação em que interveio um único veículo automóvel com a matrícula portuguesa 54-88-..., propriedade da 5.ª R. II e conduzido pelo 3.º R. GG – alínea A) dos factos assentes correspondente ao ponto 1.1;

(ii) - O referido veículo era da classe ligeiro de passageiros, com a marca Hyundai, modelo H-l, de cor verde, com o chassis n.º KMJWWH7 FPXVI24608, e tinha a lotação de 09 (nove) lugares, com condutor incluído – alínea B) dos factos assentes correspondente ao ponto 1.1;

 (iii) - No dia 29 de Abril de 1999 foi celebrado entre “II Rent – Comércio e Viaturas de Aluguer, Ldª.”, e a 2.ª R. “FF – Construções, Ld.ª”, um contrato de aluguer de veículo sem condutor, ao qual foi atribuído o n.º … e, por força do referido contrato, foi dado em locação a esta locatária a viatura referida em 1.1, pelo período de 48 meses, para a poder utilizar em qualquer parte do País ou em qualquer país da Comunidade Europeia, desde que por período inferior a 30 dias, ficando a locatária obrigada a pagar mensalmente as rendas contratadas, no valor de 75.788$00 cada uma  – alínea K) dos factos assentes correspondente ao ponto 1.116;

(iv) - A “II”, em face do acordo referido em 1.116, cedeu à “FF - Construções, Ld.ª”, o gozo e fruição da viatura objeto do contrato – alínea L) dos factos assentes correspondente ao ponto 1.117;

(v) - Da cláusula 8.ª das condições gerais do acordo referido em 1.116 consta que é ao locatário que cabe promover a manutenção do veículo, nomeadamente às inspeções periódicas, procedendo sempre como um proprietário diligente procederia e de suportar os respetivos encargos, entendendo-se por manutenção tudo o que seja necessário ao funcionamento, conservação normal ou extraordinária do veículo – alínea M) dos factos assentes completada pelo teor daquela cláusula, também considerado no acórdão recorrido correspondente ao ponto 1.118;

(vi) - Da cláusula 14.ª do mesmo contrato consta que a locatária fica obrigada a permitir o exame do veículo pela locadora II, sempre que esta o pretenda, sem prejuízo da normal utilização (al. b), bem como a manter em lugar visível a identificação do proprietário e ou do locador da viatura (a fornecer pela II) no local próprio e os dísticos eventualmente exigidos por lei (al. e) – facto considerado no acórdão recorrido, conforme doc. de fls. 132 correspondente ao ponto 1.118-A;

(vii) - Da alínea a) da cláusula 9.ª do mesmo contrato consta que a locatária “terá a obrigação de, relativamente ao prazo do aluguer, incluindo as suas renovações previstas: um seguro cujo beneficiário será a II RENT, ou o respectivo proprietário, que abranja as eventualidades de perda ou deterioração, causais ou não, do veículo; um seguro de montante ilimitado, que abranja a responsabilidade civil emergente dos danos provocados pela utilização do veículo – conf. doc. de fls. 132 e referenciada no acórdão recorrido correspondente ao ponto 1.118-B;

(viii) - Por meio de contrato de seguro, a R. “EE” assumiu os riscos inerentes à circulação do veículo de matrícula 54-88-..., que ficou titulado pela apólice emitida em Portugal com o n.º …727 – alínea H) dos factos assentes correspondente ao ponto 1.119;

(ix) - Na sequência de proposta apresentada por HH, a R. “EE” emitiu certificado n.º …56 relativo ao veículo de matrícula 54-88-..., válido entre as 10 horas do dia 21/08/2001 e as 24 horas do dia 21/09/2001, prevendo o máximo de garantia de 120.000.000$00 - doc. de fls. 2088 a 2090 correspondente ao ponto 1.120;

(x) - Na apólice n.° …379, emitida pela R. “EE” em 31/08/2001, relativamente ao veículo de matrícula 54-88-..., o capital do seguro de res-ponsabilidade civil correspondia a 125.000.000$00 - doc. de fls. 1777 correspondente ao ponto 1.121

(xi) - Na apólice n.º …379, emitida pela R. “EE” em 14/01/2005, relativamente ao veículo de matrícula 54-88-..., consta que o capital do seguro foi elevado para € 625.000, em 26/03/2002 - doc. de fls. 61 correspondente ao ponto 1.122;

(xii) - Nas circunstâncias de tempo e lugar do acidente, o veículo de matrícula 54-88-... circulava com o conhecimento e seguindo as instruções do gerente da 2.ª R. “FF - Construções, Ldª.”, o 4.º R. HH – resposta ao art.º 1.º da base instrutória correspondente ao ponto 1.4;

(xiii) - O 3.º R., GG, conduzia o veículo …, no desempenho das tarefas que lhe haviam sido atribuídas enquanto trabalhador da 2.ª R. “FF - Construções, Ldª.” – resposta ao art.º 2.º da base instrutória correspondente ao ponto 1.5;

(xiv) - As características técnicas do veículo 54-88-... assinaladas no oficio de homologação emitido pela Direcção Geral de Viação correspondem à tara de 1.947 kg, peso bruto de 2.700 kg e pneus 195/70 R14, sendo que no certificado de conformidade emitido pela marca Hyundai se encontram previstos pneus 205/70R15 99S e jantes 6.0JXI5/ET40 – resposta ao art.º 3.º da base instrutória correspondente ao ponto 1.6;

(xv) - O referido veículo circulava nas circunstâncias descritas, equipado, na frente, com dois pneus da marca Avon, modelo Supervan e, na retaguarda, com dois pneus marca Insa modelo "Turbo-Rapid" – resposta ao art.º 4.º da base instrutória correspondente ao ponto 1.7;

(xvi) - Os pneus referidos tinham as dimensões e características 195R14 e os da retaguarda eram recauchutados – resposta ao art.º 5.º da base instrutória correspondente ao ponto 1.8;

(xvii) - Os quatro pneus tinham as ranhuras de borracha da faixa de rolamento medindo, pelo menos, 1,6 mm, sendo que os pneus da frente e o traseiro direito tinham a pressão correta – resposta ao art.º 55.º da base instrutória correspondente ao ponto 1.9;

(xviii) - Os pneus dianteiros com que o … circulava tinham sido fabricados novos na semana 12 do ano de 2001 e os traseiros haviam sido recauchutados na semana 2 do ano de 2000 – resposta ao art.º 57.º da base instrutória correspondente ao ponto 1.10;

(xix) - Nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas acima, no interior da viatura …, circulavam dez homens adultos, com o condutor incluído – resposta ao art.º 6.º da base instrutória correspondente ao ponto 1.11;

(xx) - O … transportava ainda uma carga de peso não concretamente apurado correspondente à roupa e calçado que diariamente aqueles ocupantes usariam durante quinze dias – resposta ao art.º 7.º da base instrutória correspondente ao ponto 1.12;

(xxi) - Considerando o peso de todos os dez ocupantes, a roupa e comida, o veículo … circulava naquelas circunstâncias com peso bruto superior a 2.700 kg – resposta ao art.º 10.º da base instrutória correspondente ao ponto 1.15;

(xxii) - O transporte dos ocupantes do veículo das suas residências até ao local de trabalho constituía encargo da R. “FF Construções, Ld.ª” – resposta ao art.º 14.º da base instrutória correspondente ao ponto 1.18;

(xxiii) - Nas circunstâncias de tempo e de lugar do acidente, onde a via se desenvolve em sentido descendente, o pneu da roda esquerda de trás do … rebentou – resposta ao art.º 15.º da base instrutória correspondente ao ponto 1.19;

(xxiv) - Nesse momento, o condutor do … circulava a velocidade entre 120 e 130 km/h – resposta ao art.º 16.º da base instrutória correspondente ao ponto 1.20;

(xxiv) - No local a velocidade máxima permitida é de 120 km/h – resposta ao art.º 17.º da base instrutória correspondente ao ponto 1.21;

(xxv) - Face à situação descrita em 1.8, 1.11, 1.15 e 1.20, o … deslizou sobre o asfalto da faixa de rodagem e da berma ao longo de 26,10 metros e embateu num lanço de rails de proteção – resposta ao art.º 18.º da base instrutória correspondente ao ponto 1.22;

(xxvi) - E prosseguiu a sua marcha em mais de 36 metros, de forma desgovernada sobre os referidos rails, ultrapassando-os e imobilizando-se num talude existente já fora da plataforma da auto-estrada – resposta ao art.º 19.º da base instrutória correspondente ao ponto 1.23;

(xxvii) - A R. “FF, Ldª”, por intermédio do seu gerente, equipou o veículo com os pneus descritos em 1.7 e 1.8 – resposta ao art.º 20.º da base instrutória correspondente ao ponto 1.24;

(xxviii) - Com exceção do motorista, o R. GG e do passageiro que ia a seu lado no banco da frente, PP, todos os outros passageiros seguiam sem fazer uso do cinto de segurança, designadamente, o falecido KK – resposta ao art.º 52.º da base instrutória correspondente ao ponto 1.25;

(xxix) - A situação referida em 1.25 contribuiu para as lesões sofridas por KK – resposta ao art.º 53.º da base instrutória correspondente ao ponto 1.26;

(xxx) - Os dois passageiros que faziam uso do cinto de segurança referidos em 1.25 sofreram apenas ligeiras contusões – resposta ao art.º 54.º da base instrutória correspondente ao ponto 1.27;

(xxxi) - Em consequência dos embates referidos em 1.22 e 1.23 KK sofreu várias e graves lesões corporais crânio-encefálicas – resposta ao art.º 21. da base instrutória correspondente ao ponto 1.28;

(xxxii) - Depois de assistido no local e desencarcerado do interior da viatura KK foi de imediato transferido para o Hospital "General Yagüe" de Burgos, onde se manteve internado até 31 de Outubro de 2001 – resposta ao art.º 32.º da base instrutória correspondente ao ponto 1.29;

(xxxiii) - O KK faleceu 31/10/2001 pelas 21h15m – alínea E) dos factos assentes correspondente ao ponto 1.30.

 

Deste acervo fáctico extrai-se que o veículo ..., único interveniente no acidente em causa, à data do acidente, era propriedade da “II - Rent – Comércio e Viaturas de Aluguer, Ldª.”, mais tarde incorporada na 5.ª R., JJ - Instituição Financeira de Crédito, S.A., mas que esta tinha cedido à 2.ª R., “FF, Construções, Ld.ª”, o gozo e fruição do veículo, no âmbito de um contrato de aluguer de veículo sem condutor, celebrado no dia 29/04/de 1999, pelo período de 48 meses, para o poder utilizar em qualquer parte do País ou em qualquer país da Comunidade Europeia, desde que por período inferior a 30 dias, ficando a locatária obrigada a pagar mensalmente as rendas contratadas, no valor de 75.788$00, cada uma. A locatária assumiu também a obrigação de promover a manutenção do veículo, nomeadamente no que respeita às inspeções periódicas, devendo proceder sempre como um proprietário diligente, e de suportar os respetivos encargos, entendendo-se por manutenção tudo o que fosse necessário ao funcionamento, conservação normal ou extraordinária do mesmo.

Trata-se, pois, de um contrato legalmente atípico, mas socialmente denominado “aluguer de veículo de longa duração”, abreviadamente ALD, o qual não se confunde com o típico e nominado “contrato de locação financeira”, previsto e regulado pelo Dec.-Lei n.º 149/95[9], de 24-06, nem com o contrato de aluguer sem condutor anteriormente previsto e regulado no Dec.-Lei n.º 354/86[10], de 23-10, entretanto revogado pelo Dec.-Lei n.º 181/2012, de 06/08, cujo art.º 1.º, n.º 2, alínea c), exclui agora expressamente do seu âmbito os contratos designados por ALD, considerando-se como tal, no n.º 3 deste normativo, os contratos de aluguer de veículos por período superior a 12 meses.   

Ainda assim o atípico contrato de aluguer de veículo de longa duração tem sido uma espécie contratual, social e habitualmente, utilizada como meio de obter o financiamento da aquisição, por parte do locatário, do veículo locado, seja ou não acompanhado de um acordo expresso paralelo de opção dessa aquisição. Há mesmo quem reconduza essa espécie de contrato, nalguns casos, a um contrato de concessão de crédito, o que poderia, de resto, poderia ter algum acolhimento na ressalva da 2.ª parte da alínea a) do art.º 3.º do Dec.-Lei n.º 359/91[11], de 21-09, que contemplava o regime do contrato de crédito ao consumo, mas que hoje reveste maior dificuldade, em face do disposto no art.º 2.º, n.º 1, alínea d), do Dec.-Lei n.º 133/2009[12], de 02-06, que revogou e substituiu aquele diploma, na medida em que, nesta alínea, se prescreve a exclusão do referido regime “em contratos de locação de bens móveis de consumo duradouro que não prevejam o direito ou a obrigação de compra da coisa locada, seja no próprio contrato, seja em contrato separado”.

Ora, pretende a Recorrente JJ, do teor do contrato celebrado, designadamente do tipo e quantitativo das prestações convencionadas, bem como do facto, já posterior ao acidente, de ter ocorrido a aquisição do veículo por parte da locatária, extrair que a vontade real das partes subjacente àquele contrato seria a da sua aquisição pela locatária. Só que não basta apelar a uma tal vontade real, quando nem sequer se prova que a mesma tenha sido manifestada mediante a adequada declaração negocial.      

Com efeito, no caso dos autos, não foi oportunamente alegado, nem muito menos provado, que tivesse sido formalizada uma tal declaração negocial nem qualquer acordo paralelo, no sentido da opção pela locatária da aquisição daquele veículo, ainda que o montante mensal das rendas possa indiciar, de certo modo, uma tal finalidade subjacente.


Seja como for, o certo é que dos factos provados resulta que a locadora transferiu para a locatária o poder e fruição daquele veículo, ficando esta com a obrigação de promover a sua manutenção, suportando os respetivos encargos, nos termos acima descritos.

Por outro lado, a locatária assumiu, contratualmente, perante a locadora a obrigação de providenciar pelo seguro de cobertura da responsabilidade pelo risco de circulação da viatura locada, o que indicia bem a a intenção de transferir para aquela o risco inerente a tal circulação, muito embora se deva reconhecer que a mera transferência convencional do risco não se imporá, por si só, a terceiros[13].

Não se ignora que da cláusula 14.ª do mesmo contrato consta que a locatária fica obrigada a permitir o exame do veículo pela locadora JJ, sempre que esta o pretenda, sem prejuízo da normal utilização (al. b), bem como a manter em lugar visível a identificação do proprietário e ou do locador da viatura (a fornecer pela JJ) no local próprio e os dísticos eventualmente exigidos por lei (al. e).

Porém, não se afigura que essas obrigações, nem sequer a obrigação típica de restituição do locado após a cessação do contrato, por si só, tenham a virtualidade de comprimir o amplo poder de uso e fruição do veículo concedido à locatária, mormente no que concerne à preservação das condições de circulação do mesmo.

Ora, dos concretos poderes contratualmente atribuídos à locatária e do exercício efectivo desses poderes por parte desta, conforme o acima mencionado, afigura-se resultar que era ela quem detinha o núcleo duro do controlo da viatura locada e da manutenção das suas condições de circulação, sem prejuízo, evidentemente, dos poderes de fiscalização da locadora para acautelar a integridade do bem locado.

É também certo que a locadora era ainda titular de um interesse próprio na fruição do veículo associado aos rendimentos que daí retirava, mas a prossecução deste interesse não passava pelo exercício do uso, guarda e conservação do mesmo, nem pela manutenção das condições de circulação, que havia atribuído, de forma ampla, para a locatária.  

Sucede que o veículo circulava, nas circunstâncias de tempo e lugar do acidente, com o conhecimento e seguindo as instruções do gerente da 2.ª R. “FF - Construções, Ldª.”, o 4.º R. HH, sendo então conduzido pelo 3.º R., GG, no desempenho das tarefas que lhe haviam sido atribuídas enquanto trabalhador da 2.ª R. “FF - Construções, Ldª.”, transportando um número de ocupantes e uma carga global superiores ao que estava autorizado.

Prova-se também que foi a locatária, ora 2.ª R. “FF, Ldª”, quem, por intermédio do seu gerente, equipou o veículo com os pneus com que o mesmo circulava à data do acidente, com as características descritas acima.

E, no que respeita à dinâmica do acidente, colhe-se que o condutor do veículo circulava, naquelas condições, a uma velocidade entre 120 e 130 km/h, num local em que o limite máximo permitido era de 120 km/hora e em que a via se desenvolvia em sentido descendente.  

Nessas circunstâncias, rebentou o pneu da roda esquerda de trás do veículo, que deslizou sobre o asfalto da faixa de rodagem e da berma ao longo de 26,10 metros, embatendo num lanço de rails de proteção, prosseguindo a sua marcha em mais de 36 metros, de forma desgovernada sobre os referidos rails, ultrapassando-os e imobilizando-se num talude existente já fora da plataforma da auto-estrada.

Acresce ainda que, com exceção do motorista e de um passageiro que ia a seu lado no banco da frente, todos os outros passageiros, incluindo o falecido marido e pai das A.A., KK, seguiam sem fazer uso do cinto de segurança, sendo que os dois ocupantes que faziam uso do cinto de segurança sofreram apenas ligeiras contusões.

Perante este quadro factual, mesmo admitindo que pudesse, porventura, recair sobre a locadora, enquanto proprietária do veículo, a responsabilidade objetiva pelo risco inerente à sua esfera de controlo residual sobre as condições de circulação do mesmo, o certo é que, no caso vertente, o circunstancialismo tido por relevante para a ocorrência do acidente - como foram o excesso de lotação e de carga, em relação ao permitido, quiçá o estado dos pneus, e a não observância, por parte do condutor, do limite de velocidade estabelecido para o local -, situa-se, claramente, fora do domínio de facto da locadora, inscrevendo-se sim na esfera do controlo atribuído à locatária, ou seja, no âmbito da direção efetiva para esta transferida e por ela realmente exercida.

Nestas circunstâncias, salvo o devido respeito, conclui-se não ser imputável à 5.ª R., JJ – Instituição Financeira de Crédito, S.A., nos termos do n.º 1 do art.º 503.º do CC, qualquer responsabilidade pelo risco na produção do acidente, impondo-se, por isso, a sua absolvição da pretensão contra ela formulada pelas A.A.

Termos em que procede a revista interposta por aquela R., ficando, por isso, prejudicado o conhecimento das questões subsidiárias por ela suscitadas.     


2.3. Da revista interposta pelo 3.º R. GG


2.3.1. Quanto à questão da nulidade do acórdão recorrido com fundamento em condenação ultra petitum


Veio o Recorrente GG arguir a nulidade do acórdão recorrido, sustentando que, tendo sido pedidos, respetivamente, € 60.000,00 e € 150.000,00, a fixação das indemnizações pela perda do direito à vida no montante de € 75.000,00 e pelo dano patrimonial relativo a lucros cessantes em € 250.000,00, tal condenação é quantitativamente superior ao peticionado, em violação do preceituado na al. e) do n.º 1 do art.º 615.º, aplicável “ex vi” da al. c) do n.º 1 do art.º 674.º, ambos do NCPC.


Ora, segundo o art.º 661.º, n.º 1, correspondente ao atual art.º 609.º do CPC, aplicável aos acórdãos da Relação por via do art.º 713.º, n.º 2, correspondente ao atual art.º 663.º do mesmo Código, o tribunal não pode condenar em quantitativo superior ao que for peticionado. A violação deste limite implica a nulidade da decisão nessa parte, nos termos do art.º 668.º, n.º 1, alínea e), correspondente ao atual art.º 615.º do CPC.

Para tanto, importa ter presente que, segundo jurisprudência corrente, o valor que releva não se afere pelos montantes parcelarmente deduzidos, mas pelo montante indemnizatório global, podendo assim cada parcela em que o réu for condenado ser superior a alguns dos montantes parcelares reclamados, desde que se contenha dentro do montante global de cada pretensão.

Sucede que, no caso presente, interpretando conjugadamente o petitório formulado com a respetiva fundamentação, verificamos estar perante pretensões indemnizatórias diferenciadas por cada uma das A.A., salvo quanto à pretensão conjunta de indemnização pela perda de vida e pelos danos não patrimoniais sofridos pela vítima, cujo montante global indicado é de € 415.518,75, compreendendo as seguintes vertentes:

   A - Em relação apenas à 1.ª A.,:  

a) – a quantia de € 518,75, por despesas do funeral;

b) – a quantia de € 1.000,00, por despesas com a estadia daquela A. em Burgos entre a data do acidente e o decesso do seu marido;

c) - uma quantia não inferior a € 150.000,00, a título de frustração do rendimento futuro do falecido;

d) - uma quantia não inferior a € 30.000,00 pelo desgosto sofrido com o decesso do seu marido.

         Tais verbas totalizam a cifra de € 181.518,75.


B – Em relação à A. DD

a) - uma quantia não inferior a € 29.000,00, a titulo de frustração do rendimento futuro do falecido;

b) – uma quantia não inferior a € 25.000,00, pelo sofrimento com o decesso de seu pai.

         Tais verbas ascendem ao total de € 54.000,00;


C – Em relação à A. BB:

a) - uma não inferior a € 50.000,00, a titulo de de frustração do rendimento futuro do falecido;

b) - uma quantia não inferior a € 25.000,00, pelo sofrimento com o decesso de seu pai.

         Tais verbas somam o valor de € 75.000,00.


D – Em relação à A. CC, uma quantia não inferior a € 25.000,00, pelo sofrimento com o decesso de seu pai.


E – Em relação às A.A., em conjunto:

 a) – uma quantia não inferior € 60.000,00 para as A.A. pela perda de vida de KK;

 b) – uma quantia não inferior ao € 20.000,00 para as A.A. pelo sofrimento daquele sinistrado entre a data do acidente e o seu decesso.

         O que soma o total de € 80.000,00, correspondendo à parcela de € 20.000,00 para cada uma.


  Nessa medida, o pedido total da 1.ª A. corresponde a € 201.518,75 (€ 181.518,75 + € 20.000,00 da sua quota-parte no pedido de indemnização conjunta).

        

  Ora, os valores de base considerados pelo Tribunal da Relação para a condenação do R. foram os seguintes:

            A – Em relação à 1.ª A. :

a) - € 518,75, correspondentes a despesas do funeral,

 b) - € 500,00, por despesas de 10 dias da sua estadia da 1.ª A. em Burgos;

c) - € 250.000,00, pela frustração, por parte da 1.ª A., do rendimento futuro do seu falecido marido;

d) - € 30.000,00, para compensação do sofrimento da 1.ª A. pela morte do marido.

         Tais montantes perfazem a quantia de € 281.018,75.


B – Em relação a cada uma das restantes A.A., a quantia de € 24.000,00 sofrimento de seu sofrimento com a morte do seu pai.


C – Em relação a todas as A.A. as quantias de € 15.000,00, para compensação do sofrimento suportado pela vítima, entre a data do acidente e a sua morte, e de € 75.000,00, pelo dano correspondente à perda de vida do mesmo, perfazendo o total de € 90.000,00, o que traduz em € 22.500,00 para cada uma delas.

 

   Porém, sobre tais valores, o Tribunal a quo operou a redução de 20%, com fundamento na culpa concorrente do sinistrado por não uso do cinto de segurança, apurando assim a quantia total de € 357.789,06, à qual subtraiu ainda a cifra de € 343.117,43 já paga às A.A. pela seguradora EE, S.A., fixando a indemnização devida às A.A. em € 11.297,57, sem qualquer diferenciação dos montantes devidos a cada uma delas.

  Ora, fazendo repercutir tal redução de 20% nos sobreditos montantes, encontram-se as seguintes verbas:

A – Quanto ao pedido global exclusivamente da 1.ª A., a quantia de € 224.815,00;

B – Quanto ao pedido de cada uma das restantes A.A., a quantia de € 19.200,00.

C – Quanto à indemnização conjunta a todas as A.A., a quantia de € 72.000,00, o que se traduz em € 18.000,00 para cada uma delas.

Significa isto que a indemnização da arbitrada em conjunto às A.A. foi inferior em € 8.000,00 ao valor liquidado de € 80.000,00, correspondendo à diferença parcelar de € 2.000,00 em relação a cada uma delas.


Assim, a indemnização arbitrada à 1.ª A., incluindo a sua quota-parte da indemnização conjunta, é de € 242.815,00 (€ 224.815,00 + € 18.000,00), excedendo assim o total para ela peticionado de € 201.518,75.


Em suma, a indemnização arbitrada à 1.ª A. não poderia exceder o limite de € € 201.518,75, sendo o acórdão recorrido nulo na parte excedente, caso sejam de manter ou na medida em que forem de manter os montantes indemnizatórios arbitrados pela Relação.

         2.3.2. Quanto à ilegitimidade invocada pelo 3.º R.


     Neste capítulo, antes de mais, cumpre registar que, embora o 3.º R., GG, tenha sido inicialmente demandado pelas A.A., na qualidade de condutor alegadamente responsável pelo acidente, a título de culpa, a par dos restantes R.R., nomeadamente a 1.ª R., EE - Companhia de Seguros, S.A.., como seguradora do veículo …, só na sequência dos documentos entretanto juntos pela interveniente LL Seguros, S.A.., é que o mesmo R. veio deduzir articulado superveniente a pugnar pela sua absolvição do pedido, sustentando que:

- aquela interveniente, ao tempo Companhia … de Seguros, celebrara um contrato de seguro tendo por objeto o sobredito veículo, com uma cobertura ilimitada de responsabilidade civil, prevendo a existência dos direitos ressalvados a favor da co-ré JJ, a qual informou nos autos que não foi notificada da anulação deste seguro;

- assim, não tendo sido comunicado a esta co-ré qualquer resolução desse contrato, a respetiva apólice era válida e eficaz, à data do acidente, encontrando-se a responsabilidade transferida para essa interveniente, pelo que não se verifica insuficiência do capital a título de cobertura do seguro obrigatória.

     Também a 5.ª R. JJ veio dizer não ter recebido qualquer anulação do referido contrato, concluindo pela sua ilegitimidade.

      Por sua vez as A.A. responderam no sentido da não admissão daquele articulado superveniente, considerando que, embora a ação tivesse sido intentada na pressuposição de apenas um contrato de seguro, mas apurando-se a existência de dois, mesmo assim se mostra cumprida a obrigação assumida pela 1.ª R. EE até ao limite da responsabilidade civil obrigatória, só fazendo sentido discutir a existência da primeira apólice se a interveniente LL estivesse no processo como ré ou como associada dos réus.

A apreciação de tal questão foi relegada para sentença final.


Neste âmbito, consta da matéria de facto dada como provada que:  

(i) - Por meio de contrato de seguro, a R. “EE” assumiu os riscos inerentes à circulação do veículo de matrícula 54-88-..., que ficou titulado pela apólice emitida em Portugal com o n.º 15/002139727 – alínea H) dos factos assentes correspondente ao ponto 1.119.

(ii) - Na sequência de proposta apresentada por HH, a R. “EE” emitiu certificado n.º …56 relativo ao veículo de matrícula 54-88-..., válido entre as 10 horas do dia 21/08/2001 e as 24 horas do dia 21/09/2001, prevendo o máximo de garantia de 120.000.000$00 - doc. de fls. 2088 a 2090 correspondente ao ponto 1.120.

(iii) - Na apólice n.° …379, emitida pela R. “EE” em 31/08/2001, relativamente ao veículo de matrícula 54-88-..., o capital do seguro de responsabilidade civil correspondia a 125.000.000$00 - doc. de fls. 1777 correspondente ao ponto 1.121;

(iv) - Na apólice n.º …379, emitida pela R. “EE” em 14/01/2005, relativamente ao veículo de matrícula 54-88-..., consta que o capital do seguro foi elevado para € 625.000, em 26/03/2002 - doc. de fls. 61 correspondente ao ponto 1.122;

(v) - Em 05/04/2001, foi emitida por “LL Seguros, S.A..”, anteriormente “Companhia … de Seguros, S.A.”, a apólice n.° …/000 Protecção Auto, relativa ao veículo “Hyundai” com a matrícula 54-88-..., com início em 08/05/2001 e termo um ano e seguintes com o seguinte conteúdo: tomador: - FF Construções, Ldª; - responsabilidade civil obrigatória ilimitada; - credor hipotecário: II Rent – alínea AO) dos factos assentes e doc. de fls, 2637 correspondente ao ponto 1.123.

(vi) - Das cláusulas especiais da apólice referida em 1.22 consta o seguinte:

«Direitos ressalvados:

1. A entidade indicada tem interesse no seguro.

2. A LL Seguros não pagará qualquer indemnização em caso de perda total ao abrigo das coberturas facultativas sem o prévio conhecimento e aceitação deste.

3. Na situação prevista no número anterior, a LL Seguros não procederá a alterações contratuais que possam prejudicar o terceiro com direitos ressalvados nem à resolução do seguro sem prévio conhecimento deste» – alínea AP) dos factos assentes e doc. de fls. 2637 correspondente ao ponto 1.124.

(vii) - Por requerimento apresentado em 15/10/2012, a R. “JJ” informou que não recebeu qualquer anulação do seguro – alínea AQ) dos factos assentes e doc. de fls. 2757 correspondente ao ponto 1.125.


      Perante tal factualismo, a sentença final absolveu da instância, com fundamento em ilegitimidade passiva, o 3.º R., GG, a 1.ª R., EE - Companhia de Seguros, S.A.., e a 2.ª R. FF, Ld.ª, ao concluir que:

«Não obstante a emissão da apólice pela Companhia … de Seguros em 05/04/2001, o R. HH, assumindo a qualidade de tomador em vez da R. FF, celebrou um contrato de seguro com a R. EE que passou a vigorar a partir das 10 horas do dia 21/08/2001.

Não foi possível apurar no âmbito da presente acção o motivo determinante da outorga deste segundo contrato, designadamente, se ocorreu alguma anulação da iniciativa da Companhia … ou a denúncia por parte da anterior tomadora, a R. FF – Construções, Ld.ª.

Desconhecemos, assim, e tais contratos vigoravam em simultâneo à data do sinistro, o que, a suceder, implicaria a nulidade do segundo por via do art.º 434.º do Código Comercial;

Ainda que se defenda que o contrato de seguro automóvel é um seguro pessoal e não real, caso em que a norma em questão não se aplica, fica em aberto a questão da responsabilidade dos R.R. GG e FF Construções, Ld.ª, bem como o fundamento para o pagamento das indemnizações supra referidas pela R. EE, uma vez que o seguro celebrado em primeiro lugar não previa qualquer limite de capital.  


  Todavia, no recurso de apelação interposto pelas A.A., o Tribunal da Relação revogou aquela sentença nesta parte, declarando aquele R. e as duas R.R. partes legítimas, com os seguintes fundamentos:

«De acordo com a cláusula 9ª. do contrato, cabia à Locatária “custear, relativamente ao prazo de duração do aluguer, incluindo as suas renovações”, “um seguro cujo beneficiário será a II RENT, ou o respectivo proprietário que abranja as eventualidades de perda ou deterioração, causais ou não do veículo” e “um seguro de montante ilimitado, que abranja a responsabilidade civil emergente de danos provocados pela utilização do veículo”.

Ora, ficou provado que, no cumprimento desta cláusula, a locatária “FF, Construções, Ldª.” celebrou um contrato de seguro com a então “Companhia … de Seguros, S.A.”, actualmente “LL Seguros, S.A..”, tendo esta Seguradora, em 5/04/2001, emitido a apólice n°. …/000 “Protecção Auto” relativa ao veículo alugado, “Hyundai” de matrícula 54-88-..., com início em 8 de Maio de 2001 e termo um ano e seguintes com o seguinte conteúdo: - tomador: FF Construções, Ldª; - responsabilidade civil obrigatória ilimitada; - credor hipotecário: II Rent”, constando das cláusulas especiais da apólice o seguinte:

"Direitos ressalvados:

1. A entidade indicada tem interesse no seguro.

2. A LL Seguros não pagará qualquer indemnização em caso de perda total ao abrigo das coberturas facultativas sem o prévio conhecimento e aceitação deste.

3. Na situação prevista no número anterior, a LL Seguros não procederá a alterações contratuais que possam prejudicar o terceiro com direitos ressalvados nem à resolução do seguro sem prévio conhecimento deste".

Baseando-se neste contrato de seguro o Tribunal a quo julgou partes ilegítimas (para além da “EE - Companhia de Seguros, S.A..”, que, como se referiu, pagou indemnização às Autoras) a locatária “FF, Ldª” e o condutor do veículo (comissário) GG.

Também contra esta parte da decisão se insurgem as Apelantes cumprindo, por isso, apreciar das suas razões.

Como se sabe, a reforma do C.P.C. de 1995/1996 terminou de vez com a querela que se vinha desenvolvendo em torno do conceito de legitimidade enquanto pressuposto processual.

Havendo vingado a tese de Barbosa de Magalhães, é pela configuração dada pelo autor à relação material controvertida que se aferirão quem são os titulares dos interesses em confronto.  

Assim, sendo partes legítimas quem tem interesse directo em demandar e quem tem interesse directo em contradizer, exprimindo-se este interesse, para o autor, pela utilidade derivada da procedência da acção, e para o réu, pelo prejuízo que dessa procedência advenha, se a lei não dispuser de modo diverso, a legitimidade há-de aferir-se tendo apenas em consideração o pedido e a causa de pedir.

Caiu a tese de Alberto dos Reis que advogava a determinação da legitimidade pela determinação da pessoa, pressupondo-se a existência do direito, que o pode fazer valer, mas considerando, para o efeito, todos os factos que sejam trazidos ao processo e as provas que fossem produzidas.

Na situação sub judicio, atendendo ao pedido e à causa de pedir, são responsáveis pela indemnização, nos termos do disposto no art.º 503.º do C.C., a proprietária do veículo, a locatária e, nos termos referidos na douta sentença, o condutor, enquanto comissário, por não ter adequado a velocidade às especiais condições em que se processava o transporte – o número de passageiros excedia a lotação determinada para aquele veículo e o peso global deles e da carga era superior ao que ele estava preparado para suportar.      

Sendo eles os responsáveis cabia-lhes satisfazer aos lesados a indemnização dos danos por estes sofridos em resultado do sinistro que veio a ocorrer. 

Por imposição legal, esta responsabilidade de indemnizar havia de ser transferida para uma companhia de seguros, nos termos previstos no (então vigente) art.º 2.º, do Dec.-Lei 522/85.

Ora, o n.º 1 do art.º 29.º, daquele Diploma Legal, impõe que se demandem a seguradora e o civilmente responsável quando o pedido formulado ultrapassar os limites fixados para o seguro obrigatório.

Ao impor, assim, o litisconsórcio passivo o legislador não pretendeu mais do que assegurar ao lesado a integral satisfação do seu crédito.

Ora, sendo consabida a existência de outros lesados no acidente, face ao montante do pedido formulado pelas Autoras, e perante o limite máximo por que respondia a Companhia de Seguros “EE” (única conhecida das Autoras), que já tinha mesmo ressarcido alguns dos lesados, estava justificada a intervenção dos demais responsáveis pelo pagamento da indemnização.

Sem embargo, fundando-se no contrato de seguro celebrado com a “Companhia … de Seguros” e apesar de reconhecer que “Não foi possível apurar ... se ocorreu alguma anulação” da iniciativa dela “ou a denúncia por parte da anterior tomadora...” e reconhecer ainda que desconhece se vigoraram em simultâneo aquele contrato e o celebrado com a Ré “EE”, o Tribunal a quo dá como assente a vigência daquele contrato e “liberta” os responsáveis pela indemnização “uma vez que o seguro celebrado em primeiro lugar não previa qualquer limite de capital”. 

Comungamos das dúvidas manifestadas pelo Tribunal a quo quanto à vigência simultânea dos dois contratos, já que existe nos autos uma carta de denúncia desse contrato, enviada à Ré “FF, Construções, Ldª.” e sendo, embora, certo que a Ré “JJ” afirma, em requerimento que fez juntar aos autos, não ter recebido carta de teor idêntico, ou de “anulação do seguro” não o é menos que a Interveniente “LL Seguros” afirma, também nos autos, que “dúvidas não restam que este seguro se encontra anulado desde 08/05/2001 e que tal facto foi comunicado à JJ” (cfr. nº. 9 do requerimento de fls. 2627-2629, IX volume), mas são precisamente estas dúvidas que devem levar o Tribunal a uma decisão diversa daquela por que se optou. 

De qualquer modo, deve dizer-se, com o Ac. do S.T.J. de 13/10/1998, que “O responsável civil tem de ser demandado mesmo que a sua responsabilidade esteja complementarmente garantida por um seguro facultativo pela simples razão de que o seguro obrigatório é, à partida, um seguro de responsabilidade civil com garantia dos danos correspondentes, enquanto que o seguro facultativo será um simples seguro de danos” e, fundando-se em Lopes do Rego, acrescenta “a seguradora, no âmbito do seguro facultativo, pode opor aos lesados numerosas excepções que não pode invocar dentro dos capitais estabelecidos para o seguro obrigatório” (in C.J., Acs. do S.T.J., ano VI, Tomo III, págs. 61-63).

Daqui decorre, pois, (também) a legitimidade da Locatária e do condutor do veículo (comissário).

Finalmente, sabendo-se que quer a legislação europeia quer a nacional vão no sentido de os lesados de acidente de viação serem efectivamente ressarcidos dos danos que sofreram, não se podem sujeitar as Apelantes a verem gorado o seu direito à indemnização, designadamente por prescrição, porque os originariamente responsáveis não cumpriram com o ónus da indicação do seguro válido pelo qual terão transferido a sua responsabilidade civil.

A Locadora, a Locatária e o condutor, comissário desta última, deverão, pois, satisfazer a obrigação por que são responsáveis, deixando-se unicamente para eles a discussão com a “LL” sobre a validade e eficácia, aquando do acidente de viação, do aludido contrato de seguro.

Do exposto se conclui que os Réus “FF - Construções, Ldª.” e GG são também partes legítimas na acção.»

           

  Inconformado com esta decisão, o Recorrente GG veio sustentar a tese da sua ilegitimidade, amparado no decidido em 1.ª instância, considerando, no essencial, que:

- Nos termos da factualidade dada por provada, nomeadamente dos pontos 122, 123 e 124, dúvidas não restam quanto à validade eficácia do seguro de responsabilidade ilimitada celebrado pela LL Seguros, S.A.., ao tempo Companhia … de Seguros, S.A., que assim cobre a responsabilidade pelos riscos de circulação do veículo acidentado dos autos;

- Assim, a única e exclusiva responsável civil e de forma ilimitada, ou seja, sem qualquer limite de cobertura, pelas consequências do acidente a seguradora LL Seguros, S.A.., por força da validade e eficácia ao tempo do acidente dos autos da apólice n.º …/000 Protecção Auto relativa ao veículo Hyundai, matrícula 54-88-..., com início em 08/05/2001 e termo um ano e seguintes;

- O acórdão recorrido violou o art.º 29.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 522/85, de 31/12;

- Caso assim não seja entendido, considerando-se o ora recorrente parte legítima, face à validade do primeiro contrato de seguro celebrado pela LL Seguros, S.A.., sempre se impunha a absolvição do recorrente do pedido por não ser civilmente responsável pelo pagamento das indemnizações pelas consequências do acidente na pessoa de KK, já que, face à cobertura do seguro sem qualquer limite de capital, seria aquela seguradora a responsável civil e assim aquela contra quem deveria ter sido proposta a ação pelas A.A..


         Vejamos.


O artigo 29.º do Dec.-Lei n.º 522/85, de 31-12, em vigor à data da propositura da presente ação[14], sob a epígrafe Legitimidade das partes e outras regras, prescrevia que:  

1 – As acções destinadas à efectivamente da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal, e em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente:

a) – Só contra a seguradora, quando o pedido formulado se contiver dentro dos limites fixados para o seguro obrigatório: 

b) – Contra a seguradora e o civilmente responsável, quando o pedido formulado ultrapassar os limites referentes na alínea anterior.

3 – Quando, por razão não imputável ao lesado, não for possível determinar qual a seguradora, aquele tem a faculdade de demandar directamente o civilmente responsável, devendo o tribunal notificar oficiosamente este último para indicar ou apresentar documento que identifique a seguradora de veículo interveniente no acidente.


Assim, no domínio do seguro obrigatório automóvel relativo à responsabilidade civil emergente de acidente de viação, consagra-se:

- a regra imperativa da legitimidade passiva singular da seguradora, quando o pedido formulado se contenha dentro dos limites fixados para o seguro obrigatório;

- o litisconsórcio passivo necessário legal, da seguradora e do civilmente responsável, quando a pretensão indemnizatória exceda os limites do seguro obrigatório.

Trata-se de uma disposição especial sobre a legitimidade processual passiva nas ações fundadas em responsabilidade civil emergente de acidentes de viação, mas, não obstante isso, o critério da sua aferição deve pautar-se, no que lhe diz respeito, pela configuração da pretensão deduzida pelo autor, em especial pelos contornos quantitativos do pedido formulado, em sintonia, aliás, com o disposto na parte final do n.º 3 do art.º 26.º correspondente ao atual 30.º do CPC[15].

  No caso vertente, as A.A. interpuseram a presente ação, em primeira linha, contra a EE - Companhia de Seguros, S.A..”, ao ter conhecimento do contrato de seguro celebrado entre esta e os 2.ª e 4.º R.R. sobre o veículo, 54-88-..., único interveniente no acidente, válido entre as 10 horas do dia 21/08/2001 e as 24 horas do dia 21/09/2001, prevendo o máximo de garantia de 120.000.000$00, mas também contra a 2.ª, o 3.º, o 4.º e 5.ª R.R., alegadamente tidos como civilmente responsáveis pelos danos decorrentes do acidente em causa, pressupondo que os montantes das indemnizações devidas aos A.A. e aos demais lesados ultrapassassem o limite então fxado para o seguro obrigatório, o que se mostrava plausível na configuração do caso.

  Sucede que, já no decurso da audiência, do depoimento da testemunha CCC, indicada pela co-ré JJ, surge a informação de que existiria um contrato de seguro de responsabilidade civil com cobertura de capital ilimitada, relativo ao veículo acidentado, conforme apólice n.º P 34056773, emitida pela então denominada Companhia … de Seguros, mas que teria sido substituído por outro contrato junto de uma outra companhia de seguros, desta feita com capital limitado (ata de fls. 2571 a 2575 do Vol. 9.º), o que nunca dantes tinha sido suscitado pelas partes no processo.

  Perante essa informação, o tribunal ordenou que se oficiasse ao Instituto de Seguros de Portugal para que identificasse a seguradora em referência, a fim de ser notificada para juntar cópia dessa apólice, conforme despacho exarado a fls. 2574-2575 do Vol. 9.º.        

Foi na sequência disso que a interveniente “LL Seguros, S.A..”, anteriormente denominada “Companhia … de Seguros, S.A.”, veio informar, através dos requerimentos de fls. 2627 e 2636, que foi emitida por aquela seguradora a apólice n.º …/00 - Protecção Auto, com cobertura de capital ilimitada, tendo por objeto veículo de matrícula 54-88-..., como tomador a 2.ª R. FF – Construções, Ld.ª, e como credor hipotecário da 5.ª R. JJ, com início em 08/05/2001, conforme documento de fls. 2637 e segs., mas que se encontrava anulada desde 08/05/2001 por decisão daquela seguradora.      

Não obstante as diligências entretanto realizadas para apurar tal questão, as instâncias tiveram por não esclarecidas as dúvidas sobre a subsistência desse contrato de seguro, à data do acidente em causa, sendo que a interveniente LL, S.A., sempre manteve que “não restam dúvidas de que tal seguro se encontra anulado desde 08/05/2001”.

E foi perante essa dúvida séria que as instâncias adoptaram soluções divergentes: a 1.ª instância, concluindo pela ilegitimidade dos civilmente demandados com a sua absolvição da instância; a Relação, concluindo pela legitimidade passiva daqueles demandados.

Está assim aqui em dúvida a verificação dos fundamentos de uma exceção dilatória relativa à verificação do pressuposto processual da legitimidade passiva do R. GG, ora Recorrente, exceção esta que é de conhecimento oficioso, nos termos do art.º 578.º correspondente ao anterior art.º 495.º do CPC.

Todavia, como já foi dito, a aferição daquele pressuposto é feita em função da configuração dada pelo autor, não fornecendo os autos elementos suficientes para a pôr em crise, não se vislumbrando, minimamente, que tal seja imputável às A.A. lesadas, bem pelo contrário. 

Em suma, mostrando-se, como se mostra, definida a legitimidade do 3.º R., ora Recorrente, na configuração dada pelas pretensões formuladas pelas A.A., nem tão pouco se comprovando a invalidade ou ineficácia do contrato de seguro firmado com a R. EE, que, de resto, o assumiu nos autos, ter-se-á de reconhecer a legitimidade passiva daquele R.

Nesta conformidade, não merece censura o acórdão recorrido ao ter decidido declarar o 3.º R. parte legítima.


2.3.3. Quanto à responsabilidade do 3.º R. pelas indemnizações arbitradas


Subsidiariamente à invocada questão da sua ilegitimidade, veio ainda o 3.º R. sustentar a sua absolvição do pedido considerando que:

- Da factualidade dada como provada se extrai a conclusão de que foram outorgados dois contratos de seguro para o mesmo veículo: o primeiro celebrado em 05/04/2001 com a Companhia … de Seguros, S.A., atualmente LL Seguros, S.A.., de capital ilimitado e o segundo celebrado em 21/08/2001 com a EE;

- O primeiro seguro celebrado com a LL Seguros, S.A.., tinha cobertura ilimitada e o segundo, com a EE, se cingia a capital seguro ao montante da responsabilidade civil obrigatória de € 625.000,00;

- A II Rent surge como entidade beneficiária, com direitos ressalvados, do primeiro seguro contratado com a LL Seguros, S.A.., o que obstava a que fosse cessado o seguro sem o sem prévio conhecimento, sendo certo que não se provou que até à presente data tenha a JJ recebido qualquer comunicação prévia de anulação, denúncia, resolução, revogação ou outra forma de cessação desse primeiro seguro contratualizado;

- Nesses termos, dúvidas não restam quanto à validade eficácia do seguro de responsabilidade ilimitada celebrado pela LL Seguros, S.A.., ao tempo Companhia … de Seguros, S.A., que assim cobre a responsabilidade pelos riscos de circulação do veículo acidentado dos autos;

- Assim, a única e exclusiva responsável civil e de forma ilimitada, ou seja, sem qualquer limite de cobertura, pelas consequências do acidente a seguradora LL Seguros, S.A.., por força da validade e eficácia ao tempo do acidente dos autos da apólice n.º …/000 Protecção Auto relativa ao veículo Hyundai, matrícula 54-88-..., com início em 08/05/2001 e termo um ano e seguintes;

- O acórdão recorrido violou o art.º 29.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 522/85, de 31/12;

- Caso não se considere o ora recorrente parte legítima, face à validade do primeiro contrato de seguro celebrado pela LL Seguros, S.A.., sempre se impunha a absolvição do recorrente do pedido, por não ser civilmente responsável pelo pagamento das indemnizações pelas consequências do acidente na pessoa de KK, já que, face à cobertura do seguro sem qualquer limite de capital, seria aquela seguradora a responsável civil e assim aquela contra quem deveria ter sido proposta a ação pelas A.A..


Ultrapassada que está a questão da legitimidade do 3.º R., tal como se deixou exposto no ponto precedente, resta saber se, independentemente disso, aquele R. deverá ser responsabilizado pelas indemnizações arbitradas, em face do que se apurou nos autos sobre qual o contrato de seguro que estaria em vigor à data do acidente.

  Ora, como já acima ficou dito e consta da factualidade provada, foram celebrados dois contratos de seguro, tendo por objeto o veículo acidentada:

- o constante da apólice n.° …/000 Protecção Auto, emitida por “LL Seguros, S.A..”, anteriormente “Companhia … de Seguros, S.A.”, com início em 08/05/2001 e cobertura ilimitada, tendo como tomador a R. FF Construções, Ld.ª, e credor hipotecário a II - Rent;

- o constante da apólice n.º …379, emitida pela R. “EE”, para valer entre as 10 horas do dia 21/08/2001 e as 24 horas do dia 21/09/2001, com o máximo de cobertura garantida de  120.000.000$00.

    No entanto, tendo-se suscitado, supervenientemente, a questão da subsistência daquele primeiro contrato, perante a afirmação da “LL Seguros, S.A..”, de que o mesmo se encontrava “anulado” desde 08/05/2001 por decisão daquela seguradora, as instâncias tiveram por não esclarecida tal situação.

  Por seu lado, a R. EE não pôs em causa a validade e eficácia da apólice n.º …379, acabando por pagar às A.A. e aos demais lesados a parte das indemnizações por eles pretendidas, nos limites do capital garantido pelo seguro obrigatório.

   Nessas circunstâncias, tem de se concluir que o 3.º R. não logrou provar a invalidade ou ineficácia do contrato de seguro celebrado junto da EE, como pretenso facto impeditivo da sua responsabilidade pelas indemnizações em causa, na parte em que excede o capital do seguro obrigatório por aquele coberto.  

Acresce que para além dos limites fixados para o seguro obrigatório, os civilmente responsáveis têm de ser demandados respondem mesmo que a sua responsabilidade se encontre garantida por um seguro facultativo, como bem se observa no acórdão recorrido e se doutrinou no acórdão do STJ, de 13/10/1998, ali citado.

Nestes termos, improcedem, também nesta parte, as razões do Recorrente.


2.3.4. Quanto ao montante deduzido ao montante indemnizatório apurado a título de pagamento pela EE  


O Recorrente GG impugna o montante global da indemnização considerada pelo Tribunal da Relação, no valor de € 357.789,06, sustentando que:

- Na condenação do recorrente no pagamento da quantia de € 11.271,63, o acórdão recorrido considerou, erradamente, os valores alegadamente pagos pela R. EE por força de uma alegada sentença condenatória proferida em Espanha pelo 2 Juzgado de Primeira Instancia e Instruccion Único de Briviesca (Burgos) no processo Juicio Ordinário com n.º 460/2004, constantes do ponto 125 dos factos dados como provados na sentença proferida em 1.ª instância;

- Tais montantes não poderiam ter sido considerados, porquanto tal factualidade não foi levada à base instrutória nem foram dados como assentes, sendo que o ora recorrente não foi sequer notificado do tal documento de fls. 455 (a alegada sentença condenatória espanhola) com base no qual terá sido dado como provado o ponto 1.125, não lhe tendo sido, por isso, facultado o exercício do contraditório, o que constitui uma violação do art.º 3.º do CPC, cominada no art.º 195.º do CPC com a nulidade, que aqui se argui;

- Não resulta da matéria de facto levada à base instrutória dada como provada nem dos factos dados como assentes após as posições assumidas pelas partes nos articulados que os valores que a R. EE aceitou pagar nos autos às partes em sede de transação, num montante global de € 500.589,22 constituísse um esgotamento do capital de responsabilidade civil obrigatória;

- O montante global da indemnização fixada para as A.A. pelo Tribunal da Relação, considerados os demais valores constantes da transação, não excede o capital de responsabilidade civil obrigatória, pelo que não podia o recorrente ser condenado no pagamento de qualquer quantitativo;

- O acórdão recorrido viola o disposto no art.º 8.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro.


  Em primeiro lugar, importa referir que o valor global de € 357.789,06 representa a soma dos montantes indemnizatórios, parcelarmente, fixadas às A.A., em sede de danos patrimoniais e não patrimoniais, com base nos factualidade dada como provado nestes autos, com a redução de 20% fundada no culpa atribuída ao lesado por não usar o cinto de segurança.

  Porém, o tribunal subtraiu ao montante assim encontrado a verba de € 343.117,43, por considerar este o montante recebido pelas A.A. por parte da EE - Companhia de Seguros, S.A...

  Trata-se, assim, de um facto extintivo, de pagamento parcial, por parte daquela seguradora, a título das indemnizações aqui em causa, nos termos do acordo de transação formalizado e homologado na sessão de audiência de julgamento de 07/02/2011, em que estivera presente o ilustre mandatário do 3.º R., conforme documentada na ata de fls. 2263 a 2268.

Desse acordo extrai-se também que as indemnizações ali suportadas pela EE com os diversos lesados esgotaram o capital do seguro obrigatório assumido por aquela seguradora.

Significa isto que as A.A. aceitaram receber da EE, a título de parte das indemnizações peticionadas nestes autos, o referido montante dentro do limite garantido por aquele contrato e tendo em conta as indemnizações pagas aos demais lesados, pelo que se afigura inoportuno vir agora questionar os termos desse pagamento. 

          Improcedem assim as razões do Recorrente nesta parte. 


2.3.5. Quanto aos montantes indemnizatórios impugnados na revista interposta pelo 3.º R.


Neste âmbito, o Recorrente GG impugna, por considerar excessivos, os seguintes valores indemnizatórios:

a) – a quantia de € 250.000,00 atribuída à 1.ª A. pela frustração do rendimento futuro do seu falecido marido, contrapondo a verba de € 100.000,00;

b) – a quantia de € 75.000,00 pela perda de vida da vítima, sustentando que deverá ser reduzido a € 55.000,00;

c) – a quantia € 15.000,00 considerada como compensação do sofrimento físico e emocional do sinistrado, no período decorrido entre a data do acidente e a sua morte, contrapondo a verba de € 10.000,00;

d) – as quantias de € 30.000,00 e de € 24.000,00 consideradas para compensar o sofrimento, respetivamente da 1.ª A. e de cada uma das restantes A.A., pela morte do seu marido e pai, tendo por ajustadas apenas as quantias de € 20.000,00 e de € 15.000,00.

 

a) – Quanto ao valor da indemnização a título de frustração, por parte da A., do rendimento futuro da vítima


Antes de mais, convém ter presente que pelo dano em referência foi peticionada uma quantia não inferior a € 150.000,00, tendo, no entanto, o Tribunal da Relação considerado ajustada a verba de € 250.000,00, sujeita depois a uma redução de 20%, em função da culpa atribuída ao lesado pelo não uso do cinto de segurança.

A ponderação dessa verba foi justificada nos seguintes moldes:

«Trata-se (…) de um dano cuja indemnização deve representar um capital que produza um rendimento capaz de cobrir a diferença entre a situação anterior do lesado e a que actualmente ele tem, até ao final do período considerado – que é o final da vida – esgotando-se aí. 

Quanto a esta parte, o que se provou foi que à data do seu decesso a vítima KK trabalhava para suportar as despesas domésticas, bem como as decorrentes com a educação das filhas (Apelantes) DD e BB e ainda para pagar as dívidas contraídas com a construção da casa de habitação familiar.

Enquanto a A. ganhava o salário ilíquido mensal de € 334,19, aquele auferia mensalmente cerca de € 1.799,28 (aqui se incluindo o subsídio de alimentação).

Ganhando mais que a A., é pressuposto que o seu contributo para as despesas do agregado familiar também fosse maior.

Iremos considerar que ele gastaria consigo próprio uma terça parte do que ganhava (como vem sendo entendimento jurisprudencial e as circunstâncias do caso concreto não apontarem em sentido diverso), pelo que lhe restavam cerca de € 1.199,52, que, como é normal, destinava a fazer face às despesas da família.

Haver-se-á, no entanto, de ter em consideração que a vítima tinha aquele nível de rendimentos por se encontrar temporariamente a trabalhar no estrangeiro. Quando regressasse muito dificilmente conseguiria ganhar aquela importância mensal, como, de resto, inculca a crise que posteriormente se instalou na construção civil, havendo, por isso, de contar com uma diminuição do seu contributo. 

Isto considerado, e tendo ainda presente a esperança média de vida das mulheres em Portugal, que ronda os 80 anos, a idade que a A. tinha à data em que ocorreu o acidente – 38 anos -, e uma taxa de juros de 2,5%, julga-se adequado o montante de € 250.000 (duzentos e cinquenta mil euros) para ressarcir a A. deste dano.»


Por sua vez, o Recorrente contrapõe que:

a) - Não foi devidamente sopesado pelo Tribunal “a quo” o facto de o salário que a vítima KK auferia era por referência a 10 horas diárias de trabalho, como resulta do ponto 46 do elenco dos factos provados constantes da sentença e que a construção civil veio a sofrer uma grave crise por falta de obras, nomeadamente em Espanha, o que fez cessar o fluxo das empresas portuguesas para esse país;

b) - No cálculo da indemnização deste dano, o acórdão recorrido não considerou o período de vida ativa da vítima, a redução da sua capacidade de carga laboral com o avançar da idade e a redução de rendimento inerente à aposentação, sendo que a área de atividade da construção civil não contempla majorações remuneratórias de progressão na carreira, sendo, ao invés, o avançar da idade um fator redutor, tendo apenas sopesado a esperança média de vida relativamente à A. AA;

c) - O acórdão recorrido não considerou sequer que a A. AA é titular de uma pensão de viuvez pelo decesso do seu marido, o que deveria ter sido computado por se tratar de facto público e notório face ao sistema de previdência vigente em Portugal.

d) - Face ao facto da vítima estar praticamente a completar 41 anos de idade à data do acidente, crê-se ser justo e adequado fixar-se, nesta sede, a quantia de € 100.000,00, devendo ser reduzida para este montante pelo Tribunal “ad quem”.


Não está aqui em discussão propriamente o direito da A. a ser indemnizada pela perda de rendimentos resultante do falecimento do seu marido KK em consequência do acidente em foco, mas tão só a determinação do respetivo montante.

No entanto, sempre se dirá que tal direito radica no disposto no n.º 3 do art.º 495.º do CC, em que se prescreve que, no caso de lesão de que proveio a morte:

Têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.

Estamos assim em presença de um desvio do princípio de que, no domínio da responsabilidade extracontratual, o titular do direito de indemnização é o próprio sujeito do direito ou do interesse violado.

Nas palavras de Antunes Varela[16], nesta hipótese:

«Há na concessão deste direito de indemnização uma verdadeira excepção à regra de que só os danos ligados à relação jurídica ilicitamente violada contam para a obrigação imposta ao lesante.

Com efeito, a obrigação alimentar, quer fundada na lei, quer baseada em qualquer dos deveres de justiça em que assenta a naturalis obligatio, constitui um direito relativo a que o lesante era estranho. Só por disposição especial da lei este poderia, por conseguinte, ser obrigado a indemnizar os prejuízos que para o titular desse direito relativo advieram da prática de facto ilícito.»

           

Ora, segundo os artigos 1675.º, n.º 1, do CC, os cônjuges estão reciprocamente vinculados ao dever de assistência que compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar, sendo que a obrigação de alimentos entre os cônjuges decorre ainda do disposto no art.º 2009.º, n.º 1, do mesmo diploma.

         Como refere o citado Autor[17]:

   «Se a vítima falece no próprio momento da agressão ou da lesão, o instituto da sucessão não chegaria para assegurar o direito à indemnização por parte dos seus herdeiros, pois dificilmente se poderia sustentar a tese do nascimento desse direito no seu património. E, todavia, não seria justo que, em tais circunstâncias, os sucessores ou familiares do lesado não tivessem direito a nenhuma indemnização, e o tivessem quando a vítima houvesse sobrevivido alguns escassos segundos ao momento da lesão.» 

 E quanto a saber se tal direito assiste “apenas às pessoas que, no momento da lesão, podiam exigir já alimentos, ou também àquelas que só mais tarde viriam a ter esse direito, se o lesado fosse vivo”, diz o mesmo Autor que “o espírito da lei abrange também estas últimas pessoas.”[18]  

  Em suma, trata-se de um direito próprio de quem tiver a posição de exigir alimentos à vítima de lesão mortal[19].

  Não resta, pois, dúvidas de que a A. está em posição de exigir indemnização pelos rendimentos frustrados do falecido marido em função dessa obrigação alimentar.

   Ponto é saber como determinar o prejuízo alcançável e o montante indemnizatório.

  Como tem vindo a ser reconhecido pela jurisprudência e doutrina autorizada, o direito a indemnização do titular do direito a alimentos conferido pelo n.º 3 do artigo 495º do CC não abarca quaisquer danos patrimoniais daquele titular, mas apenas o dano relativo à perda de alimentos. Nas palavras de Antunes Varela “o prejuízo a ter em conta é o que advém (para a pessoa carecida de alimentos) da falta da pessoa lesada”, sendo “por este prejuízo que a indemnização se mede”; daí concluindo que o lesante não possa “ser condenado em prestação superior (seja no montante, seja na própria duração) àquela que provavelmente o lesado suportaria, se fosse vivo)[20].

  Tem-se, no entanto, discutido se tal obrigação se deve pautar pelos estritos parâmetros da obrigação alimentar, nomeadamente tendo em conta a necessidade do alimentando, ou se deve reconduzir-se aos princípios gerais do art.º 562.º do CC.

  Nesta equação, afigura-se que a solução mais condizente com o preceituado no n.º 3 do art.º 495.º será a adotada no acórdão deste Supremo Tribunal, de 11/07/2006[21], no sentido de considerar como critério não tanto a necessidade e medida estritas da prestação de alimentos a que se referem os artigos 2003.º, n.º 1, e 2004.º do CC, mas sim “a perda patrimonial, em termos previsíveis de danos futuros, correspondente ao que o falecido vinha efectivamente prestando, ou (…) poderia eventualmente prestar”, não fora a lesão sofrida, em termos de permitir aos beneficiários manter o nível de vida que aquele rendimento lhe proporcionaria. Dai que não relevem, para tal efeito, outros eventuais rendimentos auferidos pela 1.ª A.      

           

Assim, nas hipóteses como a dos autos, há que partir do rendimento anual líquido que o sinistrado falecido auferia à data do acidente, ponderando a sua sustentabilidade evolutiva ao longo da expectativa de vida previsível e, na base dele, determinar a parte que afectaria ao agregado familiar, deduzido de 1/3 para as despesas que seriam próprias, encontrando-se assim uma base de capitalização, na ordem dos 3% a 4%, tendo como horizonte tanto a expectativa média de vida do falecido como a da beneficiária. Ao valor assim capitalizado far-se-á uma redução ente 1/3 e ¼, tendo em conta a amortização do capital ao fim do tempo previsto, como tem sido normalmente aceite, à semelhança do que tem vindo a ser seguido pela doutrina e jurisprudência francesas[22].


Dos factos provados colhe-se, para este efeito que:

(i) – Em consequência das lesões sofridas com o acidente em causa, KK, nascido em …, a 03/10/1960, e casado com a 1.ª A. AA, faleceu em 31/10/2001 - pontos 1.16 e 1.30 da factualidade provada;

(ii) -  À data do acidente, KKe era um homem saudável, alegre e comunicativo, considerado no meio onde vivia, onde por todos era estimado e respeitado e formava com a mulher e as filhas uma família harmoniosa e unida por laços afetivos - pontos 1.33 e 1.34 da factualidade provada;

(iii) - À data da morte de KK, o casal trabalhava para suportar as despesas domésticas, bem como para as filhas DD e BB continuarem a estudar e pagar as dívidas contraídas com a construção da casa – - ponto 1.40 da factualidade provada;

(iv) - À data do acidente, a A. AA trabalhava como operária fabril de calçado para QQ, Lda, auferindo o salário bruto mensal de € 334,19, acrescido de subsídio de alimentação, tendo ficado desempregada a partir de junho de 2004 - ponto 1.44 da factualidade provada;

(v) - KK, à data do acidente, trabalhava para a sociedade “FF, Ld.ª”, como operário da construção civil, desempenhando seja as funções de “gruista”, seja as funções de carpinteiro de cofragens em Espanha, em Zufieda - ponto 1.45 da factualidade provada;

(vi) - Para onde se deslocava por períodos seguidos de 15 dias, findos os quais vinha a casa passar um fim de semana com a família e reabastecer-se de roupa e comida, para logo de seguida regressar ao local onde se desenvolvia o trabalho - ponto 1.46 da factualidade provada;

(vii) - Trabalhava em média 10 horas por dia, cinco dias por semana e 4 horas em sábados alternados, auferindo uma remuneração média mensal de € 1.500,00, a que acresciam as despesas de alojamento, alimentação e viagens de casa para os locais de trabalho e vice-versa, cujo valor ascendia a € 299,28 – - pontos 1.47 da factualidade provada;  

(viii) - A 1.ª A. AA nasceu em 2/06/1963 - ponto 1.51 da factualidade provada.  


Deste circunstancialismo extrai-se KK, à data do acidente, trabalhava em Espanha, na qualidade de operário da construção civil, quer como gruista, quer como carpinteiro de cofragens, auferindo uma remuneração média mensal de € 1.500,00, acrescida do valor de € 299,28 para despesas de alojamento, alimentação e viagens.

Importa, no entanto, reconhecer que essa situação não se afigura sustentável ao longo de toda a sua previsível vida ativa, nem sequer nos anos mais próximos, em que o sector da construção civil se encontra em crise. Por outro lado, não se levará em conta o acréscimo de € 299,28, uma vez que tal valor está afecto às despesas relacionadas com a situação específica do trabalho em Espanha.

Assim, tomar-se-á por base um valor de rendimento médio mensal de € 1.200,00, com a redução de 1/3 para despesas que seriam próprias, apurando-se o rendimento anual de € 11.200,00 (€ 800,00 x 14 meses).

Tomando por horizonte uma expectativa de vida média da ordem dos 75 a 80 anos, restariam a KK no máximo 39 anos de vida e à 1.ª A. 42 anos, pelo esta que só poderia contar com o rendimento previsível daquele durante os 39 anos.

  Assim, fazendo incidir uma taxa de capitalização de 4% ao ano sobre o rendimento anual médio de € 11.200,00 durante a expetativa de vida ao longo de 39 anos, apura-se um capital da ordem dos € 280.000,00, sobre o qual deverá incidir uma redução de 1/4, ficando em € 210.000,00 o valor a considerar como rendimento perdido pela A. com a morte do seu marido. 


b) – Quanto ao dano não patrimonial pela perda da vida


No que respeita ao dano pela perda da vida, as A.A. peticionaram o montante não inferior a € 60.000,00, tendo o Tribunal da Relação fixado o mesmo em € 75.000,00, ao que Recorrente contrapõe o valor de € 55.000,00.

No entanto, dentro das balizas tidas em conta pela jurisprudência entre € 50.000,00 e 75.000,00, atenta a idade da vítima à data do acidente (41 anos) e que se tratava de pessoa saudável, alegre e comunicativo, considerado no meio onde vivia, onde por todos era estimado e respeitado, formando com a mulher e as filhas uma família harmoniosa e unida por laços afetivos, tem-se por mais ajustada a quantia de € 60.000,00.   


c) – Quanto ao dano não patrimonial pelo sofrimento do sinistrado


Em sede de dano não patrimonial pelo sofrimento do sinistrado entre a data do acidente, em 22/10/2001, e a sua morte, em 31/10/2001, portanto durante cerca de nove dias, as A.A. peticionaram um valor não inferior a € 20.000,00, tendo a Relação fixado o mesmo em € 15.000,00, ao que o Recorrente contrapõe € 10.000,00.

Ora, dos factos provados retira-se que o sinistrado:  

- Em consequência do acidente sofreu várias e graves lesões corporais crânio-encefálicas – ponto 1.28 da factualidade provada;  

- Depois de assistido no local e desencarcerado do interior da viatura KK foi de imediato transferido para o Hospital "General Yagüe" de Burgos, onde se manteve internado até 31 de outubro de 2001, data em que faleceu às 21h15 – pontos 1.29 e 1.30 da factualidade provada;

 - Desde o momento do acidente até 31 de Outubro seguinte, suportou dores e tratamentos invasivos – – ponto 1.31 da factualidade provada;

 Nessas circunstâncias, tem-se por ajustado o valor de € 15.000,00.


d) – Quanto aos danos não patrimoniais das A.A. pelo sofrimento com a morte da vítima


Quanto aos danos em referência as A.A. peticionaram as quantias não inferiores a € 30.000,00 para a 1.ª A. e 25.000,00 para cada uma das restantes A.A., tendo a Relação considerados, respetivamente, as quantias de € 30.000,00 e de € 24.000,00, ao que o Recorrente contrapõe os valores de € 20.000,00 e de € 15.000,00.

Dado o profundo abalo que as A.A. sofreram pela morte do seu marido e pai, numa idade precoce, considerando que formavam uma famí-lia harmoniosa e unida por laços afetivos, tem-se também por justa as quantias consideradas pelo tribunal a quo de € 30.000,00 para a 1.ª A. e de € 24.000,00 para cada uma das restantes.


2.4. Da questão relativa à redução da indemnização arbitrada suscitada pelas A.A. e pelo 3.º R.


Aqui chegados, coloca-se agora a questão da redução de 20% operada pelo Tribunal da Relação, ao considerar que o sinistrado, por não ter utilizado o cinto de segurança, contribuiu para o agravamento dos danos, nos termos do art.º 570.º do CC.

O Tribunal da Relação fundamentou essa redução nos seguintes termos:

«Nos termos do disposto no artº. 570º., do C.C., aplicável ex vi do artº. 505º., do mesmo Cód., quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.

Como ensina o Prof. Antunes Varela, trata-se aqui de um problema de causalidade “que consiste em saber quando é que os danos verificados no acidente não devem ser juridicamente considerados como um efeito do risco próprio do veículo, mas sim como uma consequência do facto praticado pela vítima” (ob. cit., pág. 679).

Na situação sub judicio ficou provado que aquando do acidente a vítima KK não fazia uso do cinto de segurança, o que contribuiu para as lesões que sofreu (cfr. nos. 25 e 26).

Crê-se que esta conclusão foi extraída da constatação de que os dois (o motorista e o passageiro que seguia ao lado dele) que levavam o cinto de segurança “sofreram apenas ligeiras contusões”.

Interessante teria sido saber se a Vítima ia sentado no banco que ia sobrelotado, com um passageiro a mais, caso em que estaria impossibilitado, por motivo que lhe não era imputável, de usar o cinto de segurança.

Seguro é, porém, que a causa da morte foram as graves lesões crâneo-encefálicas sofridas por aquele KK.

Ora, não tendo ficado provado se o veículo capotou, mas apenas que “deslizou sobre o asfalto da faixa de rodagem e da berma” e, depois de ter embatido num lanço de rails de protecção, “prosseguiu a sua marcha de forma desgovernada sobre os referidos rails, ultrapassando-os e imobilizando-se num talude existente já fora da plataforma da auto-estrada” é de presumir que as lesões terão sido provocadas por choque violento da cabeça contra as partes duras (partes laterais?) do veículo.

A ser assim, o uso do cinto de segurança podia não ter sido determinante para evitar as lesões, aceitando-se, porém, que, na medida em que fixava o corpo ao banco, pudesse fazer localizar essas lesões apenas a uma parte do crânio – aquela que sofria o choque com as mencionadas partes duras.

Isto considerado, julga-se adequado atribuir à falta do cinto de segurança a percentagem de 20% relativamente às lesões sofridas.»

As A.A., sustentam, no seu recurso, que, apesar de se ter provado que KK não trazia o cinto de segurança, não está provado que lhe fosse imputável tal facto, ónus que recaía sobre os R.R..

Por sua vez, o 3.º R. impugna o valor daquela redução sustentando que ela deve ser fixada em 50%.  


Prescreve o art.º 570.º do CC que:

1 - Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que dela resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.

2 – Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar.

   E segundo o art.º 572.º do mesmo Código:

Àquele que alega a culpa do lesado incumbe a prova da sua verificação; mas o tribunal conhecerá dela, ainda que não seja alegada.

        

Em primeiro lugar, tem-se por adquirido que a produção do acidente é imputável ao condutor do veículo, ora 3.º R., a título de culpa, por violação das normas estradais aplicáveis, mormente por excesso de velocidade e por não ter observado as condições de segurança de circulação, quanto à lotação e à carga do veículo, o que afasta a aplicação do n.º 2 do citado art.º 570.º.

Assim, o que está aqui em causa é saber se e em que medida o não uso do cinto de segurança por parte do passageiro KK contribuiu para a produção ou o agravamento dos danos. 


A este propósito, dos factos provados colhe-se que:  

- Com exceção do motorista, o R. GG e do passageiro que ia a seu lado no banco da frente, PP, todos os outros passageiros seguiam sem fazer uso do cinto de segurança, designadamente, o falecido KK – ponto 1.25 da factualidade provada;

- Tal situação contribuiu para as lesões sofridas por KK – ponto 1.26 da factualidade provada;

- Os dois passageiros que faziam uso do cinto de segurança referidos em 1.25 sofreram apenas ligeiras contusões – ponto 1.27 da factualidade provada

- Em consequência dos embates referidos em 1.22 e 1.23 KK sofreu várias e graves lesões corporais crânio-encefálicas – ponto 1.28 da factualidade provada.

- Em consequência deste acidente resultaram ferimentos em GG, UU, SS, TT, MM e a morte de RR e KK – alínea P) dos factos assentes;


         Está, pois, provado que o falecido KK, no momento do acidente, não utilizava o cinto de segurança, o que constitui uma manifesta infração às normas estradais aplicáveis e que aquele não podia nem devia ignorar. Dessa infração torna-se precípua a censurabilidade de tal conduta e portanto provada a culpa do infractor, nos termos e para os efeitos do art.º 572.º do CC.

Nessas circunstâncias, caberia às A.A. provar alguma causa excludente da culpa, como aquela que insinuam, mas que não resulta dos factos provados.

   Com efeito, do facto de o veículo transportar passageiros acima da lotação permitida, desconhecendo-se, como se desconhece, em que lugar o sinistrado seguia, não se pode concluir que não lhe seja imputável aquela infração omissiva.  


  Relativamente ao grau de contribuição desse facto para a produção ou agravamento das lesões sofridas por KK, é matéria de facto assente pelas instâncias - o que este tribunal de revista tem de acatar - que a falta de uso do cinto de segurança só contribuiu para o agravamento dos danos, que não para a produção do acidente, restando ponderar, dentro dos limites tidos por provados, qual o grau dessa contribuição. 

Sucede que dos ocupantes da viatura só dois sofreram a morte: RR e KK; os outros sofreram ferimentos, sendo que os que levavam cinto de segurança só tiveram ligeiras contusões.

Porém, daí não se pode retirar, sem mais, a ilação de que a morte daqueles dois ocupantes se deveu fundamentalmente ao facto de não usarem o cinto de segurança, já que os demais que também não traziam cinto de segurança só tiveram ferimentos.

    Assim, dentro desses limites e do que, a partir deles, é possível sopesar em sede de equidade, não se tem por desajustada a redução de 20% operada pelo Tribunal da Relação.   


   Sucede que essa redução foi aplicada sobre o montante indemnizatório globalmente atribuído às A.A., o que dificulta a determinação do total de indemnização por cada uma delas, de modo a apurar se excede os limites das correspondentes pretensões.   

  Comecemos então por reconduzir a redução de 20% ao total de indemnização atribuído a cada uma das A.A..

         Em conformidade com o acima exposto, à 1.ª A. são atribuídos os seguintes montantes indemnizatórios: 

         A – Em relação à 1.ª A. :

a) – a quantia de € 518,75, correspondentes a despesas do funeral, não impugnada neste recurso;

b) – a quantia de € 500,00, por despesas de 10 dias da sua estadia da 1.ª A. em Burgos, aqui confirmada;

c) - € 210.000,00, pela frustração, por parte da 1.ª A., do rendimento futuro do seu falecido marido, segundo alteração aqui feita;

d) - € 30.000,00, para compensação do sofrimento da 1.ª A. pela morte do marido, aqui conformada.

         Tais montantes perfazem a quantia de € 241.018,75.

B – Em relação a cada uma das restantes A.A., a quantia de € 24.000,00, pelo sofrimento de seu sofrimento com a morte do seu pai, aqui mantida.

C – Em relação a todas as A.A., as quantias de € 15.000,00, para compensação do sofrimento suportado pela vítima, entre a data do acidente e a sua morte, e de € 60.000,00 pelo dano correspondente à perda de vida do mesmo, perfazendo o total de € 75.000,00, o que traduz na parcela de € 18.750,00 para cada uma delas.

 

        Assim, o total atribuído à 1.ª A. é de € 259.768,75 (€ 241.018,75 + € 18.750,00), ficando, com a redução de 20%, em € 207.815,15.

        O total atribuído a cada uma das restantes A.A. é de € 42.750,00 (€ 24.000,00 + € 18.750,00), ficando, com a redução de 20%, em € 34.200,00.


       Como a pretensão da 1.ª A. totaliza € 201.518,75 (€ 181.518,75 + 20.000,00 na quota-parte da indemnização conjunta), a indemnização a ela devida terá de situar-se neste montante.        

         Em síntese, a indemnizações atribuídas são as seguintes:

a) – à 1.ª A., a quantia de € 201.518,75;

b) – a cada uma das restantes três A.A., a quantia de € 34.200,00, perfazendo € 102.600,00.   

      O total dessas indemnizações é de € 304.118,75, ao qual será deduzida a quantia de capital incluída na importância de € 343.117,43 já recebidas da 1.ª R. EE, cujo valor não se encontra apurado.

        

2.5. Quanto ao abatimento da quantia já recebida pelas A.A. por parte da seguradora EE


O Tribunal da Relação abateu ao total de indemnização atribuído às A.A. a quantia de € 343.117,43 por elas já recebidas da 1.ª R. EE, conforme acordo de transação descrito no ponto 1.129, de que consta o seguinte:

«1 - As Autoras AA, DD, CC e BB, bem como os intervenientes MM, NN, LL, ISSS, FAT aceitam que a obrigação de indemnizar a cargo da Ré EE fique limitada ao capital da respectiva apólice, ou seja, € 625.000,00 (seiscentos e vinte e cinco mil euros);

2 - Em conformidade com o acordado na cláusula imediatamente anterior, as Autoras AA, DD, CC e BB, bem como os intervenientes MM, NN, LL, ISSS e FAT, exoneram de qualquer responsabilidade a referida Ré EE, dela recebendo apenas os seguintes montantes, os quais incluem os respectivos juros moratórios, e que, adicionados dos montantes pagos pela mesma Ré no âmbito das acções judiciais que correram termos pelos tribunais espanhóis, esgotam o capital da apólice correspondente à obrigação legal de segurar:

a) As Autoras AA, DD, CC e BB, receberão da Ré a quantia total de € 343.117,43 (trezentos e quarenta e três mil e cento e dezassete euros e quarenta e três cêntimos) - dos quais € 133.698,70 se destinam a ressarcir o dano patrimonial futuro da Autora AA - a que a mesma Ré deduzirá ainda todas as quantias entretanto pagas nos termos da obrigação constituída pela decisão proferida nos autos apensos de procedimento cautelar para arbitramento de reparação provisória, e que ora se julga extinta;

b) O interveniente MM receberá da Ré a quantia total de € 12.011,64 (doze mil e onze euros e sessenta e quatro cêntimos), todos eles correspondentes apenas ao ressarcimento do dano não patrimonial;

c) O interveniente NN receberá da Ré a quantia total de € 6.005,82 (seis mil e cinco euros e oitenta e dois cêntimos), todos eles correspondentes apenas ao ressarcimento do dano não patrimonial;

d) A interveniente LL receberá da Ré a quantia total de € 111.257,95 (cento e onze mil e duzentos e cinquenta e sete euros e noventa e cinco cêntimos);

e) O interveniente ISSS receberá da Ré a quantia total de € 507,11 (quinhentos e sete euros e onze cêntimos);

f) O interveniente FAT receberá da Ré a quantia total de € 27.689,27 (vinte e sete mil e seiscentos e oitenta e nove euros e vinte e sete cêntimos).

3 – A Autora AA declara para todos os efeitos legais, que com o recebimento da supra descrita quantia de € 133.698,70, destinados a ressarcir unicamente o dano patrimonial futuro, aceitará exonerar a interveniente LL das obrigações para ela emergentes da sentença proferida no foro laboral, no âmbito do processo por acidente de trabalho que correu termos pela secção de processos do Tribunal do Trabalho de Guimarães.

As cláusulas 4 e 5 da mesma transacção respeitam às custas da presente acção e ao prazo de pagamento das quantias supra referidas.

- Aquela transação foi homologada por sentença proferida na mesma data, em 07/02/2011.» 


      No entanto, as A.A. impugnaram a forma como foi efectuada tal dedução, considerando que a quantia deduzida compreende também os respetivos juros de mora, na ordem dos 24,33%, quando só deveria ter sido abatido o capital.

       Por seu lado, o 3. R. Recorrido contrapõe que, para tais efeitos, não há que fazer uma tal distinção, já que tais juros são formas de atualização do respetivo capital.


      Ora, do acordo de transação acima transcrito consta que a quantia de € 343.117,43 recebida pelas A.A. da EE inclui os juros moratórios, sendo como tal imputada, com as demais quantias atribuídas aos restantes lesados, no capital de seguro, esgotando assim este capital.

       Não indicam as A.A. a que título tais juros moratórios foram computados, mas, como refere o Recorrido, tudo indica que o terão sido como forma de atualização da dívida de valor em que se traduz a indemnização considerada. 

         De resto, foram como tal imputados no valor do capital de seguro garantido por aquela seguradora até ao esgotamento deste capital, constituindo, deste modo, o limite da responsabilidade daquela seguradora, em termos de seguro obrigatório, para além do qual responderão os demais responsáveis civis.

  Nestas circunstâncias, será todo o montante indemnizatório recebido pelas A.A., dentro desse limite do capital de seguro obrigatório, que deverá ser abatido ao total da indemnização arbitrada nestes autos.

         Termos em que improcedem, neste particular, as razões das A.A. recorrentes.

        

2.6. Quanto ao início de contagem dos juros de mora


Vem também as A.A. impugnar a contagerm dos juros de mora quanto ao seu início, sustentando que deverão ser computados a contar da data da citação.

Sucede que os valores atribuídos aos danos patrimoniais por lucros cessantes e por danos não patrimoniais, bem como aos danos patrimoniais pela estadia da 1.ª A. em Burgos, tiveram em conta os padrões de vida à data dessa atribuição. Só o valor de € 518,75 relativo às despesas do funeral é que se refere à data de realização da própria despesa.

De resto, as A.A. não recorreram da decisão nesse particular, mas apenas no que se refere à aplicação dos juros de mora a partir da citação.

Porém, face ao disposto no art.º 806.º, n.º 3, do CC e tendo em conta a jurisprudência estabelecida no sentido de que são de excluir do âmbito daquele normativo os casos em que a indemnização seja arbitrada em função dos valores atuais à data dessa atribuição, tem-se por correta a decisão nessa parte, salvo quanto à parcela correspondente à quantia de € 518,75, reduzida em 20%, para € 415,00, em relação à qual são devidos juros de mora desde a citação.  

          

IV - Decisão


Por todo o exposto, acorda-se em julgar:

A – Procedente a revista da 5.ª R. JJ, revogando-se, nessa parte o acórdão recorrido e, em sua substituição, absolvendo-se aquela R. do pedido contra ela formulado pelas A.A.;

B – Parcialmente procedentes as revistas do 3.º R. e das A.A., alterando-se a decisão recorrida, nos seguintes termos:

a) – reduz-se o total da indemnização à 1.ª A., incluindo a sua quota-parte na indemnização conjunta, ao montante de €  201.518,75 (duzentos e um mil, quinhentos e dezoito euros e setenta e cinco cêntimos);

b) – reduz-se o total de indemnização a cada uma das restantes três A.A., incluindo a sua quota-parte na indemnização conjunta, ao montante de € 34.200,00 (trinta e quatro e duzentos euros), perfazendo o total de € 102.600,00 (cento e dois mil e seiscentos euros);

c) – estende-se à data da citação o cômputo dos juros moratórios sobre a parcela de € 415,00, relativa a despesas do funeral, integrada no valor da indemnização atribuída à 1.ª A.;

d) - Sobre o total dos montantes referidos em a) e b), na cifra de € 304.118,75 (trezentos e quatro, cento e dezoito euros e setenta e cinco cêntimos), bem como sobre o juro moratório referido em c), será deduzido o montante de capital de indemnização já recebido pelas A.A., por parte da R. EE, no valor de € 343.117,43 (trezentos e quarenta e três mil cento e dezassete euros e quarenta e três cêntimos), nada mais havendo de ser pago pelos demais responsáveis civis, o que aproveita ao todos os devedores solidários nos termos da alínea c) do n.º 1 do art.º 634.º do CPC;

C – Em consequência do abatimento referido em B, alínea d), absolvem-se do pedido a 2.ª R. e o 3.º R., ora Recorrente.


As custas da ação ainda em dívida e dos recursos ficam a cargo das A.A., sem prejuízo da dispensa do seu pagamento por virtude do apoio judiciário de que beneficiam.

Lisboa, 26 de novembro de 2015

Manuel Tomé Soares Gomes

                                      

Carlos Alberto Andrade Bettencourt de Faria 

João Luís Marques Bernardo

 

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[1] In Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina, 10.ª Edição, 2006, pp. 656-657.
[2] Ob. cit. p. 664.
[3] Ob. cit. p. 663.
[4] In Direito das Obrigações, 11.ª Edição, Almedina, 2008, p. 630-681.
[5] Ob. cit, nota (1), p. 631.
[6] In BMJ n.º 90, pp.74-75 e 81.
[7] RLJ Ano 109.º, pp. 156 e 158.
[8] RLJ Ano 109.º, pp. 159.
[9] O Dec.-Lei n.º n.º 149/95 foi sucessivamente alterado pelos Decretos-Leis n.º 265/97, de 02/10, n.º 285/2001, de 03/11 e n.º 30/2008, de 25/02.
[10] O Dec.-Lei n.º 354/86 foi sucessivamente alterado pelos Decretos-Leis n.º 373/90, de 27/11, n.º 44/92, de 31/03 e n.º 77/2009, de 01/04.
[11] O Dec.-Lei n.º 359/91 foi sucessivamente alterado pelos Decretos-Leis n.º 199-B/91, de 21-09, n.º 101/2000, de 02-06, e n.º 82/2006, de 03-05.
[12] Entretanto alterado pelo Dec.-Lei n.º 72-A/2010, de 17-06.
[13] Neste sentido, vide Vaz Serra, in RLJ Ano 109.º, nota 2, p. 159.
[14] Este diploma foi, entretanto, revogado e substituído pelo Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08.
[15] Parece ser neste sentido a observação crítica de Lopes do Rego, in Comentários do Código de Processo Civil, Almedina, 1999, pp. 49-50.    
[16] In Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina, 10.ª Edição, 2006, pp. 623.
[17] Ob. cit. p. 622.
[18] Ob. cit. p. 623-624.
[19] Vide acórdão do STJ, de 19/02/2014, relatado por Santos Cabral, no processo n.º 1229/10.9TAPDL-L1.S1, acessível na Internet – http://www.dgsi.jstj, p. 30.
[20] Vide, Obrigações em Geral, Vol. 1.º, 9.ª Edição, pag. 501, conforme citação feita em recente acórdão do STJ, de 20/10/2009, relatado Por Nuno Cameira), no processo nº 85/07.9 TCGMT.G1, http://www. dgsi.pt
[21] Citado no acórdão do STJ, de 19/02/2014, relatado por Santos Cabral, no processo n.º 1229/10.9TAPDL-
[22] Sobre o referido método de cálculo dos lucros cessantes, vide Joaquim José Sousa Dinis, Dano Corporal em Acidentes de Viação – Cálculo da indemnização em situações de morte, incapacidade total e incapacidade parcial, in Separata dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano IX, Tomo I, 2001, pp. 8 e 9, e ainda Yvonne Lambert – Faivre, Droit du dommage corporel / Systèmes de indemnisation, 3.ª Edição, Dalloz, pag. 186.