Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
10781/06.2YYPRT-B.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SESSÃO
Relator: ÁLVARO RODRIGUES
Descritores: LIVRANÇA
RELAÇÕES IMEDIATAS
REDUÇÃO TELEOLÓGICA
Data do Acordão: 11/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS - FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / NULIDADE E ANULABILIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO
DIREITO COMERCIAL - TÍTULOS DE CRÉDITO
Doutrina: - G. Dias, Da Letra e da Livrança, 4º, p.530.
- Pedro Paes de Vasconcelos, Direito Comercial (Títulos de Crédito), ed. da AAFDL, 1988/89, p. 75.
- Vaz Serra, in BMJ, 61, p.288.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 220.º, 292.º
LULL: - ARTIGOS 10.º, 30.º, 77.º
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 24-05-2005, Pº 05A1347, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT;
-DE 12-02-2009, Pº 08B039 IN WWW.DGSI.PT;
-DE 20-05-2010, Pº 11683/06.8TBOER.A.L1.
Sumário :
1- Como se tem vindo a entender, de forma consensual, na jurisprudência deste Supremo Tribunal, enquanto o título permanecer no domínio das relações imediatas, o preenchimento de uma livrança, pelo tomador, de valor superior ao resultante do contrato de preenchimento, não torna a livrança totalmente nula, aplicando-se-lhe as regras da redução dos negócios jurídicos contempladas no Código Civil.

Para reforço desta afirmação, citemos mais um aresto deste Supremo Tribunal, desta feita, relatado pela Exmª Conselheira Maria dos Prazeres Beleza, assim sumariado:

 «Tendo o beneficiário respeitado qualitativamente o acordo de preenchimento, a inscrição, numa livrança subscrita em branco, de um montante superior ao devido à data do preenchimento não a inutiliza como titulo executivo» ( Cfr. no texto a identificação de tal aresto).

II- Nesta, como nas demais decisões deste mais alto Tribunal, fez-se apelo ao disposto no artº  292º do Código Civil, por força da aplicação do vetusto princípio «utile per inutile non vitiatur» que ganhou especial ênfase no domínio jurídico-privado.

Segundo o saudoso Prof. Mota Pinto, «trata-se de uma “redução teleológica” no sentido de ser determinada pela necessidade de alcançar plenamente as finalidades visadas pela norma imperativa infringida».

III- «Redução teleológica» significa redução imposta pela finalidade ou escopo normativo (do grego, thelos = fim, finalidade) e este é o emergente do artº 10º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças ao visar unicamente, como se disse, impedir que um terceiro de boa-fé que recebe o título (por endosso) já preenchido se veja confrontado com a excepção de preenchimento abusivo, mas não regular o instituto quando o título ainda está nas relações imediatas e, portanto, sujeito às regras gerais do negócio jurídico, como doutamente se decidiu no Acórdão deste Supremo Tribunal, acima citado.

IV- De resto, também por razão de ordem pragmática e decorrente da natureza das coisas (ex natura rerum), a solução teria que ser esta, pois, sendo a diferença entre a quantia efectivamente devida e a quantia constante do título, meramente quantitativa e não qualitativa, um majus e não um aliud, a quantia em dívida se contém na que foi escrita nos títulos – o que não é refutado pelos Recorrentes – pelo que se impõe apenas a eliminação ope judicis dessa diferença para a obtenção da exactidão daquela que é, efectivamente, devida.

V- O Direito tem de estar ao serviço do Homem e das suas legítimas aspirações (hominum causa omne jus constitutum est) e não de especulações jurídicas meramente teoréticas que podem, se desgarradas das realidades da vida, não apenas deixar de conduzir à realização da Justiça, como ser causa das mais iníquas decisões.

Decisão Texto Integral:

Acordam no SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

RELATÓRIO

Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que lhes move AA, S.A., com sede no Lugar da .........., Apartado ....., .........., Mem Martins, vieram BB e CC, ambos com domicílio profissional na Praça do ..............., ...,...º, sala ...., Porto, deduzir Oposição à execução, alegando, em síntese, que:

– assinaram as livranças exequendas em branco, na qualidade de avalistas da subscritora DD, S.A., para garantia do cumprimento das obrigações que para esta resultavam da celebração de determinados contratos de locação financeira;

– o preenchimento das livranças, efectuado pela exequente, foi abusivo, uma vez que aí foram incluídos montantes superiores aos resultantes da autorização de preenchimento e, além disso, os bens locados tinham um valor residual muito inferior ao valor venal e, portanto, será este o prejuízo efectivamente sofrido pela exequente com o incumprimento que terá de atender-se;

– em cada uma das livranças apenas deverão incluir-se, com referência a cada contrato de locação financeira, as rendas vencidas até à data da resolução, a diferença entre as rendas vincendas e o valor venal do veículo (a que tem de reduzir-se a cláusula penal, por força do art. 811º nº 3 do Código Civil) e o imposto de selo sobre essas quantias, o que perfaz, relativamente a cada contrato, respectivamente, € 12.589,96, € 19.388,63, € 17.043,20, € 20.199,20 e € 20.199,20.

Concluem pela procedência da oposição por ter havido violação do contrato de preenchimento.

Recebida a Oposição, a Exequente, ora Recorrida,  contestou, alegando ser inadmissível aos Oponentes, enquanto meros avalistas, invocarem a excepção de preenchimento abusivo e que foi plenamente respeitado o pacto de preenchimento das livranças, uma vez que os cálculos foram efectuados de acordo com as cláusulas contratuais, sendo certo que, além das rendas vencidas e não pagas, dos juros de mora sobre essas rendas é de um montante indemnizatório igual a 20% da soma das rendas vincendas com o valor residual, a exequente podia aí incluir a indemnização pela falta de restituição atempada dos equipamentos.

         Concluiu pela improcedência da oposição e, caso assim não se entendesse, dever-se-ia ter por reconhecida a dívida pelos Oponentes à Exequente no montante por esta alegado, devendo em consequência a execução seguir os seus termos pelo valor de € 99.060,69.

         Após a legal tramitação com observância das legais formalidades, teve lugar a audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida decisão que  julgou a oposição parcialmente provada e procedente e, em consequência, determinou que a execução prosseguisse seus termos, em relação aos Executados, ora Oponentes, para pagamento do capital de €160.126,23 acrescido de juros de mora, à taxa legal, a contar de 19-7-2004.

         Inconformados, os Executados/Oponentes interpuseram, sem êxito, recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto.

         Ainda irresignados, os mesmos trouxeram recurso de Revista para este Supremo Tribunal, rematando a sua minuta recursória, com as seguintes:

         CONCLUSÕES

1. Os títulos executivos dados à execução nos autos principais não têm o valor de livranças, pelo que estas apenas valem como quirógrafos.

2. A recorrida preencheu abusivamente as livranças dadas à execução nos autos principais, pelo

que as transformou em meros documentos particulares a constituir prova nos termos dos artºs 362° e segs. do C. Civil.

3. Ao abrigo dos artºs 10° e 17° da LULL, os recorrentes podiam opor-se a esses títulos, invocando o seu valor não cambiário face ao mencionado preenchimento abusivo.

4.         Os recorrentes demonstraram esse preenchimento abusivo pelo que se impõe a absolvição deles de toda a responsabilidade cambiária (cfr. V. Serra, in Bol . 61-288 e G. Dias, Da Letra e da Livrança 4º -530).

5.         A responsabilidade dos recorrentes, como executados nos autos principais, apenas se pode aferir da assinatura que apuseram nos citados títulos executivos, na altura como avalistas.

6.         O aval prestado, nesses títulos executivos é nulo por falta de forma (cfr. artºs 30° e 77° da LULL e artº 220° do C. Civil).

7.         Assim, a recorrida apenas pode fazer os seus direitos relativamente aos recorrentes com fundamento no negócio subjacente à emissão daqueles títulos executivos, estando-lhe vedado exercê-los pela via executiva dos autos principais.

8.         No douto Acórdão recorrido, não se interpretaram correctamente os artºs 10° e 17° da LULL, e não se aplicaram, como se deviam ter aplicado, as regras dos artºs 30° e 77° da LULL e artº 220° do C. Civil, bem como se aplicou erradamente o artº 32° da LULL.

Não foram apresentadas contra-alegações no presente recurso.

         Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, pois nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, sendo que este é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, nos termos, essencialmente, do artº 684º, nº 3 do CPC, como, de resto, constitui doutrina e jurisprudência firme deste Tribunal.

FUNDAMENTOS

         Das instâncias, vem dada como provada a seguinte factualidade:

A) A exequente, na sequência de trespasse do estabelecimento comercial da sociedade AA, S.A., no âmbito de um aumento de capital da 1.ª, adquiriu, mediante cessão da posição contratual, os créditos, incluindo os de natureza litigiosa, detidos pela 2.ª sobre os locatários em contratos de locação financeira que tenham sido objecto de resolução, acompanhados, designadamente, dos títulos de crédito emitidos em garantia e respectivos pactos de preenchimento – documento de fls. 19 a 30 da execução, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.

           B) A exequente é portadora das livranças juntas a fls. 14 a 18 da execução, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.

             C) Nas referidas livranças consta, como beneficiária, a sociedade AA, S.A..

      

D) Nelas figura, como subscritora, a executada DD, S.A..

E) No verso das mesmas livranças, sob a menção “dou o meu aval”, aparecem as assinaturas dos executados CC e BB, ora oponentes.

F) Tais livranças contêm ainda, como data de emissão, data de vencimento e valor, respectivamente, as seguintes menções:

1) Livrança de fls. 14: 19/7/2004; 19/7/2004; € 30.211,19;

2) Livrança de fls. 15: 19/7/2004; 19/7/2004; € 44.145,70;

3) Livrança de fls. 16: 19/7/2004; 19/7/2004; € 33.070,28;

4) Livrança de fls. 17: 19/7/2004; 19/7/2004; € 37.616,86;

5) Livrança de fls. 18: 19/7/2004; 19/7/2004; € 37.772,68.

G) Quando os oponentes e a subscritora apuseram as suas assinaturas nas livranças exequendas, as mesmas encontravam-se em branco.

H) Foi a exequente quem, posteriormente, preencheu as referidas livranças, nelas apondo os dizeres que dela agora constam, designadamente, os mencionados em F).

I) A sociedade AA, S.A., e a executada DD celebraram entre si os contratos juntos a fls. 48 a 79, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, intitulados “contrato de locação financeira mobiliária” nº748, 836, 1459, 1662 e 1663.

J) As livranças exequendas foram entregues à respectiva beneficiária para garantia do cumprimento dos contratos referidos em I).

K) Mediante o contrato nº 748, a AA declarou dar em locação à DD, e esta declarou receber, o veículo de matrícula 00-00-00, mediante o pagamento de 60 rendas mensais, sendo de € 1.566,22, acrescidos de IVA, o valor residual.

L) Mediante o contrato nº 836, a AA declarou dar em locação à DD, e esta declarou receber, uma Escavadora Komatsu, mediante o pagamento de 60 rendas mensais, sendo de € 2.294,47, acrescidos de IVA, o valor residual.

M) Mediante o contrato nº 1459, a AA declarou dar em locação à DD, e esta declarou receber, o veículo de matrícula 00-00-00, mediante o pagamento de 60 rendas mensais, sendo de € 1.566,22, acrescidos de IVA, o valor residual.

N) Mediante o contrato nº 1662, a AA declarou dar em locação à DD, e esta declarou receber, o veículo de matrícula 00-00-00, mediante o pagamento de 60 rendas mensais, sendo de € 1.700,90, acrescidos de IVA, o valor residual.

O) Mediante o contrato nº 1663, a AA declarou dar em locação à DD, e esta declarou receber, o veículo de matrícula 00-00-00, mediante o pagamento de 60 rendas mensais, sendo de € 1.700,90, acrescidos de IVA, o valor residual.

P) A cláusula 12ª, nº4 e 5, das condições gerais, dos contratos referidos em I), tem a seguinte redacção:

“4. No caso de rescisão do contrato pela AA, o Locatário deverá proceder à imediata restituição do veículo em perfeito estado de conservação.

5. Sem prejuízo do disposto no número anterior, em caso de rescisão do contrato pela AA, esta terá o direito de conservar suas as rendas vencidas e pagas, a receber as rendas vencidas e não pagas, acrescidas de juros, e ainda um montante indemnizatório igual a 20% da soma das rendas vincendas com o valor residual, sem prejuízo do direito da AA de exigir a reparação integral dos seus prejuízos”.

Q) A cláusula 11ª, nº 3, das condições gerais, dos contratos mencionados em I), tem a seguinte redacção: “Caso o locatário decida não exercer opção de compra do veículo, nos termos da cláusula 9ª destas Condições Gerais, e não devolver o mesmo no fim do prazo da locação, ou no caso de extinção do presente Contrato, independentemente da sua causa, incluindo rescisão pela AA, esta terá direito, a título de cláusula penal pela mora na devolução do veículo, a receber uma quantia não inferior a 3% do valor da última renda vencida, por cada dia de mora na devolução do veículo”.

R) Em 25/9/2003, a AA remeteu à executada DD e aos oponentes, os quais as receberam em 29/9/2003, as cartas cuja cópia consta de fls. 81 e 82, e que aqui se dão por integralmente reproduzidas.

S) Mediante tais cartas, a AA informou a executada DD e os oponentes de que, relativamente aos contratos mencionados em I), se encontravam vencidas e não pagas prestações que, acrescidas de juros, ascendiam ao valor global de € 54.021,82, que deveria ser pago no prazo de 8 dias, decorrido o qual, caso não houvesse pagamento, os contratos se considerariam  automaticamente rescindidos, devendo, neste caso, as viaturas deles objecto ser imediatamente entregues nas instalações da AA.

T) Em 4 de Agosto de 2004, a AA dirigiu à executada DD, a qual a recebeu em 9/8/2004, a carta cuja cópia consta de fls. 86 a 88, que aqui se dá por integralmente reproduzida, informando que se encontravam a pagamento as livranças relativas aos contratos mencionados em I), as quais haviam sido preenchidas com vencimento em 19/7/2004, pelos seguintes valores:

1) Livrança relativa ao contrato n.º 748:

(i) € 8.477,86, correspondentes às rendas vencidas e não pagas;

(ii) € 1.439,83, relativos a juros de mora vencidos e calculados desde a data de vencimento das mencionadas rendas até 19.07.2004;

(iii) € 6.470,94, correspondentes ao valor indemnizatório de 20% da soma das rendas vincendas com o valor residual; 

(iv) e € 13.822,55, relativos à mora na devolução do veículo.

2) Livrança relativa ao contrato n.º 836:

(i) € 12.257,91, correspondentes às rendas vencidas e não pagas;

(ii) € 2.081,93, relativos a juros de mora vencidos e calculados desde a data de vencimento das mencionadas rendas até 19.07.2004;

 (iii) € 9.842,67, correspondentes ao valor indemnizatório de 20% da soma das rendas vincendas com o valor residual;

 (iv) € 19.963,20, relativos à mora na devolução do veículo.

3) Livrança relativa ao contrato n.º 1459:

(i) € 8.537,15, correspondentes às rendas vencidas e não pagas;

(ii) € 1.450,11, relativos a juros de mora vencidos e calculados desde a data de vencimento das mencionadas rendas até 19.07.2004;

(iii) € 9.212,08, correspondentes ao valor indemnizatório de 20% da soma das rendas vincendas com o valor residual; 

(iv)e € 13.870,94, relativos à mora na devolução do veículo.

4) Livrança relativa ao contrato n.º 1662:

(i) € 9.227,45, correspondentes às rendas vencidas e não pagas;

(ii) € 1.567,37, relativos a juros de mora vencidos e calculados desde a data de vencimento das mencionadas rendas até 19.07.2004;

(iii) € 11.810,58, correspondentes ao valor indemnizatório de 20% da soma das rendas vincendas com o valor residual; e

(iv) € 15.011,46, relativos à mora na devolução do veículo.

5) Livrança relativa ao contrato n.º 1663:

(i) € 9.467,21, correspondentes às rendas vencidas e não pagas;

(ii) € 1.483,43, relativos a juros de mora vencidos e calculados desde a data de vencimento das mencionadas rendas até 19.07.2004;

(iii) € 11.810,58, correspondentes ao valor indemnizatório de 20% da soma das rendas vincendas com o valor residual;

(iv) e € 15.011,46, relativos à mora na devolução do veículo.

U) Os oponentes e a representante legal da executada DD apuseram ainda as suas assinaturas nos documentos de fls. 14 a 18 da execução, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, intitulados “pacto de preenchimento de livrança”.

V) Mediante tais documentos, os oponentes e a executada DD declararam autorizar a AA a preencher as livranças mencionadas em B), em caso de incumprimento, pela locatária, de qualquer das obrigações emergentes dos contratos de locação financeira, nelas inscrevendo as quantias que se encontrassem em dívida, incluindo o valor das rendas em dívida, dos respectivos juros e de quaisquer indemnizações, compensações ou penalidades, acrescido do valor de imposto de selo devido em virtude da emissão das livranças e de quaisquer outras despesas ou encargos à data determináveis.

W) A AA instaurou contra a executada DD providência cautelar de entrega judicial, a qual correu termos sob o nº 2082/04.7TVLSB, da 5ª Vara Cível, 3ª Secção, de Lisboa, conforme documento de fls. 136 a 147, que aqui  se dá por integralmente reproduzido.

X) Mediante aquela providência, foi ordenada, em 27/2/2004, a apreensão e entrega, à AA, dos veículos e equipamentos referidos em K) a O).

Y) Depois de ter sido ordenada tal providência, a AA veio informar o respectivo processo de que os bens mencionados em X) lhe foram entretanto voluntariamente entregues.

      Z) Os bens referidos em X) só foram recuperados pela exequente durante os meses de Março e Abril de 2004.

AA) Relativamente ao contrato nº 748, à data da sua resolução, as rendas vincendas ascendiam a € 34.048,67.

BB) Nessa data, o bem locado tinha o valor venal de € 30.000.

CC) Relativamente ao contrato nº 836, à data da sua resolução, as rendas vincendas ascendiam a € 51.659,82.

    DD) Nessa, o bem locado tinha o valor venal de €45.000.

EE) Relativamente ao contrato nº 1459, à data da sua resolução, as rendas vincendas ascendiam a € 47.760,29.

FF) Nessa data, o bem locado tinha o valor venal de € 40.000.

GG) Relativamente ao contrato nº 1662, à data da sua resolução, as rendas vincendas ascendiam a € 60.892.55.

HH) Nessa data, o bem locado tinha o valor venal de € 50.000.

II) Relativamente ao contrato nº 1663, à data da sua resolução, as rendas vincendas ascendiam a € 60.892.55.

JJ) Nessa data, o bem locado tinha o valor venal de € 50.000.

         Está em causa, no presente recurso, apenas a questão de saber se as livranças de que tratam os autos e que servem de títulos executivos à Execução que a ora Recorrida AA, S.A. moveu contra os ora Oponentes/Recorrentes, por força do preenchimento daqueles títulos em branco com quantias superiores às efectivamente devidas, não têm o valor de livranças, com isto se verificando o que os ora Recorrentes alegam na conclusão 1ª da sua douta minuta recursória, ou seja, que  «os títulos executivos dados à execução nos autos principais não têm o valor de livranças, pelo que estas apenas valem como quirógrafos.».

         A partir desta premissa fundamental, procuram os Recorrentes sustentar toda a construção jurídica que edificam nas referidas alegações e que condensam nas restantes conclusões, entre as quais pontificam, pela sua manifesta relevância para  sua pretensão recursiva, as conclusões seguintes, que para maior facilidade de consulta, aqui se transcrevem de novo:

    

4.         Os recorrentes demonstraram esse preenchimento abusivo pelo que se impõe a absolvição deles de toda a responsabilidade cambiária (cfr. V. Serra, in Bol . 61-288 e G. Dias, Da Letra e da Livrança 4º -530).

5.         A responsabilidade dos recorrentes, como executados nos autos principais, apenas se pode aferir da assinatura que apuseram nos citados títulos executivos, na altura como avalistas.

6.         O aval prestado, nesses títulos executivos é nulo por falta de forma (cfr. artºs 30° e 77° da LULL e artº 220° do C. Civil).

7.         Assim, a recorrida apenas pode fazer valer os seus direitos relativamente aos recorrentes com fundamento no negócio subjacente à emissão daqueles títulos executivos, estando-lhe vedado exercê-los pela via executiva dos autos principais.

   Falece razão aos Recorrentes, adiante-se, desde já!

Não ocorre in casu qualquer nulidade das citadas livranças que as inviabilize como títulos cambiários ou de crédito, pois, como bem concluiu a Relação, na sequência, aliás, do que já havia decidido a 1ª Instância, «as livranças dadas à execução não perderam a sua natureza cambiária sendo, como tal, o dador do aval  responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada atento o disposto no artigo 32 da LULL, impondo-se concluir que bem andou o Tribunal a quo ao ordenar a prossecução dos autos executivos para pagamento das quantias encontradas após redução.».

Com efeito, não obstante nas Instâncias se ter concluído que houve preenchimento de uma parte da quantia titulada superior à que, na realidade, era devida, foi entendido pela 1ª Instância, com o aplauso do Tribunal da Relação, o seguinte:

            «Na sentença recorrida considerou-se que, “com base nas cláusulas contratuais e na autorização de preenchimento, a exequente poderia apor, em cada uma das livranças exequendas, respectivamente, os valores de € 25.970,76. € 38.213,75. € 29.098,60, € 33.343, 65 e €33.499, 47,(..), tendo havido preenchimento abusivo na parte excedente” , ou seja, o Tribunal recorrido considerou que o preenchimento de valor superior ao resultante do contrato não torna a livrança nula dado que cada livrança foi reduzida aos valores apurados o que se enquadra na redução dos negócios jurídicos nos termos do artigo 292 do CC»

Este entendimento tem o sufrágio deste Supremo Tribunal, como bem frisou a Relação, citando o acórdão do STJ, de 24-05-2005 (Relator, Exmº Juiz Conselheiro, Nuno Cameira), assim sumariado na parte que interessa:

«A excepção do preenchimento abusivo não interfere na totalidade da dívida, confinando-se aos limites desse preenchimento. Por isso, se o subscritor inicial entregou a livrança em branco de quantia superior ao convencional, a livrança vale segundo a quantia inferior, aproveitando-se os actos jurídicos praticados.

Isto porque, no âmbito das relações imediatas, a obrigação cartular está sujeita ao regime comum das obrigações e, nos termos do artº 292º do CC, a nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada»[1].

No mesmo sentido, pode ver-se o Acórdão, também deste Supremo Tribunal, de 20-05-2010, de que foi Relator, o Exmº Conselheiro Sebastião Póvoas, onde se afirma que «a livrança incompletamente preenchida não é nula, sendo anulável se, em violação do pacto de preenchimento, lhe foi inscrito um montante diverso do acordado, mantendo-se válida relativamente aos limites do preenchimento»[2]

         A ratio de tal entendimento radica, como bem se aponta no aresto deste  Supremo Tribunal acabado de se referir, na circunstância de o artº 10º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças apenas visar impedir que um terceiro de boa-fé e sem culpa grave que recebe o título (por endosso) já preenchido, se veja confrontado com a excepção de preenchimento abusivo, e não a regular o instituto quando o título ainda está nas relações imediatas e, portanto, sujeito às regras gerais do negócio jurídico[3].

O argumento dos Recorrentes, constante do texto das suas doutas alegações, de que «apenas se poderia reduzir ou converter o negócio que determinou a emissão e assinatura dos títulos dados à execução nos autos principais, negócio esse que não é posto em causa  com a absolvição dos recorrentes da responsabilidade cambiária», ainda que bem delineado, não colhe no domínio das obrigações cartulares ou cambiárias.

Como os Recorrentes não ignoram, na medida em que estão devidamente patrocinados, as obrigações cambiárias estão sujeitas aos princípios de incorporação, literalidade, autonomia e abstracção, pelo que as obrigações dos avalistas são totalmente autónomas da relação subjacente estabelecida entre o credor e o devedor por via de determinado negócio jurídico.

Como ensina Pais de Vasconcelos, «a autonomia do aval traduz-se num regime segundo o qual o avalista é responsável pelo pagamento da obrigação cambiária própria como avalista, que define pela do avalizado, mas que vive e subsiste  independentemente desta».[4]

Trata-se de uma obrigação de natureza totalmente diversa da relação subjacente, que se incorpora no título e que vale com o sentido das palavras e algarismos apostos no mesmo título, ou seja, no seu sentido literal.

O conteúdo e a extensão do direito incorporado no título aferem-se pelo quanto nele estiver escrito.

Por outras palavras, a relação subjacente que se estabelece entre o avalista e o avalizado funda-se na prestação do aval e pode ser invocada nas relações entre ambos, mas não se  confunde com a relação obrigacional que está por detrás da emissão do título de crédito subscrito pelo avalista.

 Como se tem vindo a entender de forma consensual, na jurisprudência deste Supremo Tribunal, enquanto o título permanecer no domínio das relações imediatas, o preenchimento de uma livrança, pelo tomador, de valor superior ao resultante do contrato de preenchimento, não torna a livrança totalmente nula, aplicando-se-lhe as regras da redução dos negócios jurídicos contempladas no Código Civil.

Para reforço desta afirmação, citemos mais um aresto deste Supremo Tribunal, desta feita relatado pela Exmª Conselheira Maria dos Prazeres Beleza, assim sumariado:

 «Tendo o beneficiário respeitado qualitativamente o acordo de preenchimento, a inscrição, numa livrança subscrita em branco, de um montante superior ao devido à data do preenchimento não a inutiliza como titulo executivo»[5].

Nesta, como nas demais decisões deste mais alto Tribunal, atrás citadas, fez-se apelo ao disposto no artº  292º do Código Civil, por força da aplicação do vetusto princípio utile per inutile non vitiatur que ganhou especial ênfase no domínio jurídico-privado.

Segundo o saudoso Prof. Mota Pinto, «trata-se de uma “redução teleológica” no sentido de ser determinada pela necessidade de alcançar plenamente as finalidades visadas pela norma imperativa infringida»

«Redução teleológica» significa redução imposta pela finalidade ou escopo normativo ( do grego, thelos = fim, finalidade) e este é o emergente do artº 10º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças ao visar unicamente, como se disse, impedir que um terceiro de boa-fé que recebe o título (por endosso) já preenchido se veja confrontado com a excepção de preenchimento abusivo, mas não regular o instituto quando o título ainda está nas relações imediatas e, portanto, sujeito às regras gerais do negócio jurídico, como doutamente se decidiu no Acórdão deste Supremo Tribunal, acima citado.[6]

De resto, também por uma razão de ordem pragmática e decorrente da natureza das coisas (ex natura rerum), a solução teria que ser esta, pois, sendo a diferença entre a quantia efectivamente devida e a quantia constante do título, meramente quantitativa e não qualitativa, um majus e não um aliud, a quantia em dívida se contém na que foi escrita nos títulos – o que não é refutado pelos Recorrentes – pelo que se impõe apenas a eliminação ope judicis dessa diferença para a obtenção da exactidão daquela que é, efectivamente, devida.

O Direito tem de estar ao serviço do Homem e das suas legítimas aspirações (hominum causa omne jus constitutum est) e não de especulações jurídicas meramente teoréticas que podem, se desgarradas das realidades da vida, não apenas deixar de conduzir à realização da Justiça, como ser causa das mais iníquas decisões.

São termos em que, sem necessidade de outros considerandos, se impõe a improcedência do presente recurso com a consequente confirmação do acórdão recorrido.

         DECISÃO 

Face a tudo quanto exposto fica, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em se negar a Revista, confirmando-se na íntegra a douta decisão recorrida.

Custas pelos Recorrentes, por força da sua sucumbência.

Processado e revisto pelo Relator.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 29 de Novembro de 2012

Álvaro Rodrigues (Relator)

Fernando Bento

João Trindade

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[1] Pº 05A1347, disponível em www.dgsi.pt.
[2] Pº 11683/06 – 8TBOER.A.L1
[3] Idem, ibidem
[4] Pedro Paes de Vasconcelos, Direito Comercial (Títulos de Crédito), ed. da AAFDL, 1988/89, pg. 75.
[5] Pº 08B039 in www.dgsi.pt
[6] Ut supra, nota 3.