Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
824/06.5TVLSB.L2.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: PERDA DE CHANCE
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
DANO AUTÓNOMO
PROBABILIDADE SÉRIA
MANDATO FORENSE
ACÇÃO NÃO CONTESTADA
INCUMPRIMENTO
INDEMNIZAÇÃO
DANO
Data do Acordão: 07/01/2014
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: COMENTADO IN: "REVISTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO", Nº 140 - OUT./DEZ. 2014 - P. 249-258
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÃOES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO / CONTRATOS EM ESPECIAL / MANDATO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
– Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª edição, pp. 431, 733.
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 5ª edição, 2.º, 431; Direito das Obrigações em Geral, I Volume, 7ª edição, p.885.
- Carneiro da Frada, Direito Civil Responsabilidade Civil – O Método do Caso, Almedina, Junho 2006, pp.63, 103 e 104.
- Júlio Gomes, in “Direito e Justiça”, vol. XIX, 2005, II.
- Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil”, Anotado, vol. 2, p. 691.
- Nancy Levit, Ethereal Torts, George Washington Law Review, v.61, p. 140.
- Nuno Santos Rocha, A “Perda de Chance” Como Uma Nova Espécie de Dano, edições Almedina, 2014, pp. 27, 96.
- Paulo Mota Pinto, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, I, 1103, em nota de pé.
- Rute Pedro, A Responsabilidade Civil do Médico, 179 e seguintes.
- Sérgio Savi, Responsabilidade civil por perda de uma chance, São Paulo, Atlas, 2006. p. 3.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 483.º, N.º1, 563.º, 1157.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 674.º-A.
DECRETO-LEI N.° 522/88: - ARTIGO 19.º, AL.C).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 20.6.2006, IN CJSTJ, 2006, II, 119;
-DE 4.12.2012, PROC. 289/10.7TVLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT ;
-DE 14.3.2013, PROC. 78/09.1TVLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT ;
-DE 6.3.2014, PROC. 23/05.3TBGRD.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT .
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ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.°6/2002, DE 28.05.2002.
Sumário :
1. A figura da “perda de chance” visa superar a tradicional dicotomia: responsabilidade contratual versus responsabilidade extracontratual ou delitual, summa divisio posta em causa num tempo em que cada vez mais se acentua que a responsabilidade civil deve ter uma função sancionatória e tuteladora das expectativas e esperanças dos cidadãos na sua vida de relação, que se deve pautar por padrões de moralidade e eticidade, como advogam os defensores da denominada terceira via da responsabilidade civil.

2. A perda de chance relaciona-se com a circunstância de alguém ser afectado num seu direito de conseguir uma vantagem futura, ou de impedir um dano por facto de terceiro. A dificuldade em considerar a autonomia da figura da perda de chance no direito português, resulta do facto de ser ligada aos requisitos da responsabilidade civil extracontratual – art. 483º, nº1, do Código Civil – mormente ao nexo de causalidade.
Com efeito, um dos requisitos da obrigação de indemnizar, no contexto da responsabilidade civil ex contractu, ou ex delictu, é que exista nexo de causalidade entre a conduta do responsável e os danos sofridos pelo lesado por essa actuação culposa.

3. Para que se considere autónoma a figura de “perda de chance” como um valor que não pode ser negado ao titular e que está contido no seu património, importa apreciar a conduta do lesante não a ligando ferreamente ao nexo de causalidade – sem que tal afirmação valha como desconsideração absoluta desse requisito da responsabilidade civil – mas, antes, introduzir, como requisito caracterizador dessa autonomia, que se possa afirmar que o lesado tinha uma chance [uma probabilidade, séria, real, de não fora a actuação que lesou essa chance], de obter uma vantagem que probabilisticamente era razoável supor que almejasse e/ou que a actuação omitida, se o não tivesse sido, poderia ter minorado a chance de ter tido um resultado não tão danoso como o que ocorreu. Há perda de chance quando se perde um proveito futuro, ou se não se evita uma desvantagem por causa imputável a terceiro.

4. Não devem assimilar-se os planos do dano e da causalidade, com implicação na perspectiva de excluir como dano autónomo a perda de chance, nem esta figura deve ser aplicada, subsidiariamente, quando se não provou a existência de nexo de causalidade adequada entre a conduta lesiva por acção ou omissão e o dano sofrido, já que existe sempre uma álea, seja quando se divisa uma vantagem que se quer alcançar, ou um risco de não conseguir o resultado desejado.

5. No caso de perda de chance não se visa indemnizar a perda do resultado querido, mas antes a da oportunidade perdida, como um direito em si mesmo violado por uma conduta que pode ser omissiva ou comissiva; não se trata de indemnizar lucros cessantes ao abrigo da teoria da diferença, não se atendendo à vantagem final esperada.

6. Assente que a Ré, como defensora oficiosa, apresentou a contestação em nome do Réu, fora do prazo legal. Essa omissão teve como consequência, desde logo, o terem-se por fictamente confessados os factos alegado pelo Autor, não implicando automaticamente a condenação no pedido.

7. Importa saber se, revelando em si mesmo a não apresentação da contestação, perda de chance do Réu fazer valer em juízo a sua versão dos factos, essa omissão da Ré, profissionalmente desvaliosa, contendeu com um sério, real e muito provável desfecho favorável da acção para o Autor.

8. O Autor/recorrente foi condenado por sentença transitada em julgado por ter provocado um acidente de viação enquanto condutor sob a influência de álcool.

9. Tudo ponderado, mormente a presunção do art. 674º-A do Código de Processo Civil, teremos que afirmar que, com contestação ou não, na acção de regresso, as probabilidades, as chances do Réu (ora Autor/recorrente) não ser condenado, não se anteviam providas de razoável grau de êxito, no sentido em que, ante a prova que pudesse oferecer não teria reais probabilidades de ser absolvido; ademais, fora condenado por duas sentenças transitadas em julgado no que respeita à sua grave conduta causadora de um acidente de viação causalmente ligado ao facto criminoso de conduzir sob a influência do álcool.

10. A sua “chance” de não ser condenado era mínima, não credível e, por isso, não se pode afirmar que a conduta omissiva e censurável da Ré Advogada tenha sido a causa directa, imediata de não ter sido absolvido na acção de regresso, implicando perda dessa chance.
Decisão Texto Integral:

Proc.824/06.5TVLSB.L2.S1.

R-455[1]

Revista


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


            AA, intentou, em 31.1.2006, pelas Varas Cíveis da Comarca de Lisboa – 16ª Vara – acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra:

 BB

Pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 85.000,00, a título de danos patrimoniais e a quantia de € 5.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros de mora à taxa legal desde a citação e até integral pagamento.

Alegou para tanto e em síntese, que:

- a Ré foi nomeada, em 20.9.2001, pelo Conselho Distrital da Ordem de Advogados de Lisboa para patrocinar o Autor, então Réu numa acção que lhe havia sido movida pela Companhia CC ao abrigo do exercício do direito de regresso nos termos do artigo 19° do D.L. 522/85 de 31.12. com o fundamento de que este, enquanto condutor de um veículo interveniente num acidente de viação, ter agido sob influência do álcool;

- tal nomeação ocorreu antes de terminar o prazo da contestação, tendo ainda o Autor, antes do seu termo, reunido com a Ré em Setembro de 2001, não tendo posteriormente sido informado do estado do processo;

- a Ré requereu prorrogação do prazo para contestar, que lhe foi negado, vindo depois a contestação que apresentou fora de prazo a ser desentranhada, porque intempestiva;

- consequentemente foi proferida sentença que condenou o ora Autor e ali Réu no pedido, num total de € 85.000,00, em virtude dos juros vencidos desde a data da citação;

- ficou igualmente abatido e deprimido em consequência dessa condenação, por ter sido vendida, no âmbito de um processo de execução que lhe foi movida, a casa de que era dono e que estava hipotecada à CGD.

Contestou a Ré, por excepção, suscitando a prescrição do direito do Autor, à luz do art. 498°/1 do Código Civil, por este ter tido conhecimento da sentença em 16 de Março de 2002 (e consequentemente de que havia sido condenado no pagamento da quantia peticionada pela Seguradora) e que só propôs a presente acção volvidos mais de 3 anos sobre tal data.

Impugnou igualmente os factos alegados pelo Autor, referindo que, quando foi notificada pela O.A, em 20.9.2001, de que havia sido nomeada patrona ao ora Autor para contestar uma acção, apressou-se a comunicar com este, por fax, dando-lhe conta do que se passava.

 Mais alegou que reuniu com o Autor no dia 26 desse mês no seu gabinete, dando-lhe conta da necessidade de contestar a acção, atentas as cominações e consequências daí decorrentes, o que o Autor contrapôs por entender que nada havia a contestar e que não tinha quaisquer bens em seu nome e que só pediu apoio judiciário para se eximir ao pagamento das custas do processo;

- todavia, e após insistências da Ré, o Autor anuiu em apresentar a contestação, tendo-lhe aquela solicitado elementos para o efeito, o que, também após grande insistência, o Autor se comprometeu a entregar-lhe;

- não obstante diversas tentativas da Ré de contactar telefonicamente o Autor, não logrou fazê-lo, o que a levou a apresentar um requerimento de prorrogação do prazo para contestar. Diz também a ré que deu conhecimento ao Autor, através de mensagem dirigida para o seu telemóvel, do teor da sentença e que a mesma se justificava pela ausência de contestação.

Alega, finalmente, que o lapso por si cometido em nada influenciaria o desfecho da acção, uma vez que o Autor tinha sido condenado e julgado, pelos mesmos factos, pela prática de um crime de condução sob a influência do álcool, e que do auto de participação resultava que o mesmo era o único culpado do acidente.

A ré deduziu o incidente de intervenção principal provocada da DD (Europe) Ldª, por, na qualidade de Advogada e com inscrição na O.A, estar abrangida pelo seguro de responsabilidade civil profissional celebrado entre esta e aquela Seguradora, e requereu também a intervenção principal provocada da EE, S.A por estar associado ao cartão American Express da O.A e que garante igualmente o pagamento de indemnizações por danos decorrentes do exercício da actividade profissional de Advogado.

Replicou o Autor, dizendo apenas ter tido conhecimento dos fundamentos da acção em Fevereiro de 2004, concluindo como na petição inicial.

Admitido o incidente e citadas as chamadas, vieram estas a contestar, tal como resulta de fls. 228 e segs e de fls.241 e segs. sendo que a Ré Ocidental excepcionou igualmente a prescrição e suscitou a eventual nulidade do contrato de seguro por a Ré ter outro, sem que lhe tenha dado conhecimento, como estava contratualmente obrigada, impugnando os demais factos alegados na P.I.

A Ré DD limitou-se a impugnar a matéria alegada na p.i.

Elaborou-se despacho saneador – no qual se relegou a excepção de prescrição para final – e organizou-se a matéria de facto assente e a base instrutória.


***

Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, foi a ré BB condenada a pagar ao autor a quantia de € 50.000,00, com juros de mora desde a data da citação, e, solidariamente com esta, as RR seguradoras “na proporção dos limites do capital seguro nas respectivas apólices, deduzidas as competentes franquias”.


***

As Rés, recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por Acórdão de 12.12.2013 – fls. 887 a 924 –, julgou improcedente a invocada excepção da prescrição e na procedência da apelação, revogou a sentença recorrida, absolvendo-se as Rés do pedido.


***


Inconformado, o Autor recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça, e alegando formulou as seguintes conclusões:

1. O presente pleito, mais do que proceder à análise de meros quantitativos e taxas de alcoolemia, visa a tutela de Direitos Fundamentais, quais sejam o Direito a uma defesa condigna, efectiva e real, que decorre do conteúdo material e normativo dos artigos 1.°, 2.º e 20.º da Constituição.

2. Assim, mais do que saber se o aqui recorrente ultrapassou, no dia do acidente, a TAS permitida, estão em causa a preterição do seu direito de defesa; e a perda da sua habitação.

 

3. O direito de defesa decorre, conforme alegado, do conteúdo dos artigos l.º da Constituição – atinente à dignidade da pessoa humana – princípio do Estado de Direito Democrático – artigo 2.º Constituição – e princípio do Acesso ao Direito, consagrado no artigo 20.º da Constituição.

4. O direito de defesa resulta ainda da consagração no artigo 10° da Declaração Universal dos Direitos Humanos, também referido em sede de corpo das presentes alegações.

5. A propósito deste direito de defesa, sobre o qual muito já se disse, citando-se ainda jurisprudência, para a qual se remete o Acórdão n.273/2012, proferido pelo Tribunal Constitucional.

6. O certo é que a própria Comunidade Jurídica  se indigna quando não são reconhecidas aos cidadãos as respectivas prorrogativas de defesa.

7. Exemplo paradigmático desta censura social  encontra-se consagrado no Discurso de início do ano Judicial de 2013, proferido por Excelência o Sr. Bastonário da Ordem dos Advogados que, em sede consensual do seu discurso, afirmou:

“Há dois mil anos, na Palestina, um homem inocente foi condenado à morte por uma multidão de pessoas fanatizadas. Antes foi preso, interrogado, torturado, humilhado e julgado diante da turba de justiceiros que ululava pela sua condenação. O julgamento, a sentença e a sua execução foram rápidas e exemplares. Não houve, como agora se diz, manobras dilatórias, nem excesso de garantismo, nem outros expedientes que atrasassem ou dificultassem a justiça que todos queriam.

Tudo aí se processou segundo um modelo que foi usado durante séculos que alguns quererem hoje recuperar’’.

Mais afirma sua Excelência Sr. Bastonário, declaração que ora humildemente se subscreve, que;

 “E se aqui, hoje, invoco, esse julgamento não é pelo facto de o arguido estar inocente, pois sempre houve e haverá inocentes condenados. Não é pelo facto de, em troca da sua condenação, um criminoso ter sido libertado, pois sempre houve e sempre haverá culpados que escapam à justiça; e sempre que um inocente é condenado há um culpado que fica impune. ‘

Também não é pela brutalidade da condenação, pois essas sentenças sempre foram as preferidas das multidões e dos justiceiros. Não é também pela convicção dos julgadores sobre a culpabilidade do acusado, pois as turbas são sempre irracionais e só têm certezas.

Não é sequer pela tortura e pela humilhação pública do acusado, pois essas práticas também continuaram a existir durante séculos e continuam hoje em alguns estados modernos que se dizem democráticos e de direito, como o nosso.

Para concluir que o que ainda hoje me arrepia naquele julgamento é o facto de não ter havido ninguém que erguesse a sua voz em defesa do acusado.

De não ter havido ninguém que invocasse uma atenuante pequena que fosse – para amenizar um pouco a brutalidade da sentença que se anunciava.

O arguido foi preso, interrogado, julgado e condenado em processo sumário, sem qualquer defesa”.

8. Hoje em dia, as Companhias de Seguros comprimem particularmente bem as garantias e exigências inerentes a uma verdadeira Defesa Jurisdicional na medida em que, sendo frequentemente chamadas a representar os interesses de condutores que, o mais das vezes provocam acidentes de viação, apenas rentabilizam o seu negócio por poderem contar, em Tribunal, com todas as prorrogativas de defesa dos direitos e interesses legítimos desses cidadãos.

9. Relativamente ao direito à habitação – norma de carácter programático – a mesma não deixa de ser essencial, por constituir o núcleo dos direitos sociais de qualquer pessoa (quer quem já tenha casa, como sucedia com o recorrente; quer, quem legitimamente, aspira pelo direito a ter uma habitação condigna).

10. Ademais, não é expectável que, mesmo em casos de condenação dos lesantes em processos de reembolso a seguradoras, aqueles venham a perder as suas casas.

11.Ao contrário, segundo regras de experiência comum, um réu, ainda que condenado, só perderá a sua casa em situações de manifesto incumprimento ou quando, como foi o caso, não tenha tido qualquer acompanhamento e intervenção processual relevante.

12. Como vimos, o direito à habitação, enquanto direito social, comporta várias consagrações legais. Para além dos diplomas já citados, este direito social encontra igualmente expressão na Declaração sobre Progresso e Desenvolvimento Social (1969), proclamada pela Assembleia-geral na sua Resolução 2542 (XXIV) de 11 de Dezembro de 1969.

            13. A Parte II dispõe: “No domínio social, o progresso e desenvolvimento devem visar a elevação contínua dos níveis de vida material e espiritual de todos os membros da sociedade, no respeito dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, mediante a realização dos seguintes objectivos essenciais:

Artigo 10.

            (…)

(f) Assegurar a todos, e em particular às pessoas de fracos recursos e famílias numerosas, alojamento e serviços colectivos adequados.”

            14. Relativamente aos níveis de alcoolemia registados pelo ora recorrente no longínquo ano de 1997, a verdade é que, admitindo-se que estivesse em causa a mera discussão da TAS, sempre se tem entendido que os valores apresentados em sede de medição constituem simples meios de prova, sujeitos à análise e prudente arbítrio do julgador.

            15. De facto, sendo a medição do nível da taxa de alcoolemia efectuado por dispositivos mecânicos, os mesmos apresentam hoje uma margem de insegurança ou de erro sendo que, em 1997, ano do sinistro em causa, a sua fiabilidade era muito menor.

            16. Na realidade, à data dos factos era pré-definida uma margem de erro de, pelo menos 15% – para cima ou para baixo – relativamente ao nível de alcoolemia registado nos alcoolímetros.

            17. Assim, consoante se considere a legislação actualmente vigente; ou a que vigorava em 1997, é defensável que o recorrente apresentava uma TAS de 1.18 mg/l; ou, mais provavelmente, de 1.09 mg/l, considerada a variação da taxa de alcoolemia aceite em face da regulamentação em vigor durante o ano de 1997.

            18. Assim, quer se adopte uma ou outra tabela – por força de uma visão actualista ou historicista do evento – é de presumir que, com elevada certeza, o recorrente não terá cometido o crime pelo qual foi condenado.

            19. Vale isto por dizer que, ainda que tenha sido erroneamente condenado em processo-crime, os resultados obtidos no primeiro processo não são automaticamente transponíveis para o segundo, pelo que tal circunstância poderia ter sido alegada em sua defesa (como aliás outras, por exemplo, a efectivação de uma transacção, repartição das culpas, entre outros).

            20. A este propósito, no que tange à margem de erro admissível, cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Évora, processo nº10/12.5GFELV.E1, de 20.11.2012, em cujo sumário se dispõe o seguinte: “Não enferma de erro notório na apreciação da prova a sentença que procede a desconto da margem de erro admissível na taxa de alcoolemia detectada a arguido que confessou os factos da acusação.”

            21. Sem prescindir, pela absoluta inércia da Ilustre defensora oficiosa, ora recorrida, a mesma aumentou inexoravelmente o risco de condenação do aqui recorrente, ao consolidar a situação jurídica derivada da não contestação, e inerente confissão dos factos (cfr. Ac. do TRE nº 632/07-1).

            22. Por outro lado, adere-se à justificação doutamente formulada na primeira instância, acima citada, nos termos da qual existe nexo de causalidade adequada entre a falta de contestação e a condenação do ora recorrente, por se ter consumado o efeito jurídico que a lei faz depender da falta de contestação (cfr. página 24 do douto acórdão em crise).

            23. Sem prescindir, existe a perda de chances sérias, efectivas e reais, por parte do ora recorrente que, nessa medida, merecem a tutela do Direito e são indemnizáveis.

            24. Tais perdas traduzem-se na perda de possibilidade de ser defendido ao longo do processo;

            25. E na concomitante perda de oportunidade de preservar, ao menos, a casa de morada de família do recorrente – que foi perdida – ao, em última análise, de melhorar a sua situação jurídica durante o difícil processo judicial emergente do direito de regresso invocado pela Seguradora CC (cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, nº289/10.7TVLSBX.S1, de 4 de Dezembro de 2012; e Ac. do Supremo Tribunal de Justiça nº 488/09.4TBESP.P1.SI, de 5 de Fevereiro de 2013).

            26. Tais perdas de oportunidade deverão ser valorizadas tendo em conta a importância dos bens jurídicos protegidos, quais sejam o Direito à Defesa, indemnizável, pelo menos, em € 25.000; e o dano de perda da habitação, indemnizável em € 20.000, mas nunca em menos de quinze mil euros.

            Assim se decidindo, pela revogação da Douta decisão em crise, far-se-á a costumada Justiça.

            Contra-alegou a co-ré EE, S.A., pugnando pela confirmação do Acórdão.


***


            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

            a) Na petição inicial que deu origem ao processo n.º 72/2001 que correu termos pela 2ª Secção da 12ª Vara Cível de Lisboa, a “Companhia CC, S.A”, declarou:

 “ (...) Intentar contra AA (...) acção declarativa de condenação com processo comum ordinário (...) no exercício da sua actividade comercial, a Autora outorgou com AA um contrato de seguro do ramo automóvel, para ter início em 23.10.96, que veio a ser titulado pela apólice n.º … (...).

Referindo-se o supra mencionado contrato à transferência da responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo com a matrícula -HJ (...).

No dia 16.08.97, pelas 21.00 h, o referido veículo, conduzido pelo Réu, deu causa a um acidente de viação, que ocorreu na E.N. 247, ao km 64.3, na localidade de Sintra. (...) Tendo o Réu, condutor do HJ, ao efectuar uma ultrapassagem sem verificar se o podia fazer em segurança para si e para o trânsito que se fazia sentir no local, ido embater contra o veículo de matrícula OF-, que circulava em sentido contrário (...) Acabando este último por ser empurrado contra o veículo de matrícula - GT. (...) o Réu, condutor do veículo segurado pela Autora, sujeito ao teste de alcoolemia, acusou uma TAS de 1,28 gr/1. (...) É comum e medicamente assente que o álcool afecta negativamente as faculdades físico-mentais imprescindíveis ao bom desempenho da condução automóvel (...) Influenciando, necessária e negativamente, a condução dos veículos automóveis influindo na produção do acidente dos autos (...) Já que, se não fosse a perturbação causada pelo álcool, o Réu teria verificado antes de ultrapassar que, em sentido contrário ao seu, circulava um outro veículo, e teria evitado esta manobra e, consequentemente, o acidente dos autos. (...) A Autora tem assim o direito de exercer, como agora exerce, o direito de regresso contra o Réu, nos termos do art.º 19°/c do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31.12, com fundamento no facto deste, enquanto condutor do veículo, ter agido sob influência do álcool. (...)

Nestes termos e nos demais de direito, deve a presente acção ser julgada procedente por provada, e o Réu condenado a pagar à Autor a quantia de 16.482.316$00, acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal desde a data da citação até integral pagamento, e ainda de todas as indemnizações que a Autora venha ainda a despender devido a este sinistro. (...)”;

b) Em carta registada com A/R datada de 18 de Setembro de 2001 e remetida à Ré, o Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados declarou:

“ (...) Exmo.(a) Sr.(a) Dr.(a): Nos termos dos artigos nos 32° e 33° da Lei 30-E/2000 de 20 de Dezembro, informo V.Exª que, por despacho de 18/09/2001, foi nomeado (a) para patrocinar o(a) requerente: AA (...) o Apoio Judiciário foi pedido para: Contestar acção nº 72/01, que corre termos no 2° Juízo cível de Lisboa. (...)";

c) Em requerimento dirigido ao processo referido na alínea a) dos factos assentes e entrado em juízo, a 7 de Novembro de 2001, a Ré declarou: “ (...) Exmo. Senhor Doutor Juiz de Direito do Vara Cível de Lisboa, AA, devidamente identificado nos presentes autos requer a V. Ex.ª que se digne prorrogar o prazo para contestação do supra citado processo por ainda não lhe ter sido possível reunir todos os elementos solicitados (...)”;

d) Sobre o requerimento mencionado na alínea c) dos factos assentes, recaiu o seguinte despacho judicial “ (...) Pelo exposto, vai indeferido o requerimento de fls. 138 (…)”;

e) No processo referido na alínea a) dos factos assentes foi proferido despacho onde se lê: “ (...) A contestação de fls. 141 é extemporânea. Assim desentranhe-se e remeta-se ao apresentante (...)”;

f) No processo referido na alínea a) dos factos assentes foi proferido despacho onde se lê: “ (...) Regularmente citado, o Réu não contestou atempadamente.

 Nos termos do art. 484º, nº1, considero confessados os factos articulados pelo Autor (…)”.

g) No processo referido na alínea a) dos factos assentes foi proferida sentença onde se lê:

 “ (... ) 4. Decisão.

Pelo exposto julgo a acção parcialmente procedente por provada e, consequentemente, condeno o Réu a pagar à Autora o montante de 82,213,45 euros ou 16.482.316$00, acrescido de juros de mora, contados desde a data da citação até integral, à taxa legal (...)”;

h) Pela apólice n.º …, a “EE, S.A.” assegurou, perante a Ré, na qualidade de membro da Ordem dos Advogados e titular do cartão de crédito “American Express”, o pagamento das indemnizações devidas a terceiros por esta em virtude do desempenho da profissão de advogado, até ao montante de € 49.879,79, sendo aplicável uma franquia de € 4.987,98;

i) Na apólice referida na alínea h) dos factos assentes, lê-se:

 “ (...) Artigo 12° Pluralidade de Seguros (...) 2. Não se verifica nulidade do presente contrato de Seguro de responsabilidade civil, sempre que o Segurado contrate, ou tenha contratado, outro Seguro civil. 3. Considera-se neste caso o presente Seguro subordinado à nulidade ou à falência da companhia seguradora. 4. Se qualquer dos Seguros for inferior ao valor do risco coberto, respondem as seguradoras, na proporção da quantia segura em cada contrato (...)";

j) Pela apólice DP/…, a “DD (Europe) Ltd” assegurou, perante a Ordem dos Advogados e os seus membros, o pagamento das indemnizações devidas por estes em virtude da ocorrência de erro, omissão ou negligência no desempenho da profissão de advogado até ao montante de € 150.000,00;

k) Na apólice referida na alínea j) dos factos assentes, lê-se:

 “(...) Art. 13° Coexistência de Seguros Se qualquer SEGURADO for titular, individualmente ou através de sociedade de advogados de outra apólice de responsabilidade civil que providencie cobertura idêntica à da presente apólice, fica estabelecido que esta funcionará apenas na falta ou insuficiência daquela, entendendo-se aquela como celebrada primeiro.

Se a apólice ou apólices de cobertura análoga pré-existentes contiverem uma provisão respeitante à concorrência de seguros em termos idênticos à presente, entende-se então que esta APÓLICE actuará em concorrência com as mesmas, cada uma respondendo h) Pela apólice nº …, a “EE, S.A.” assegurou, perante a Ré, na qualidade de membro da Ordem dos Advogados e titular do cartão de crédito “American Express”, o pagamento das indemnizações devidas a terceiros por esta em virtude do desempenho da profissão de advogado, até ao montante de € 49.879,79, sendo aplicável uma franquia de € 4.987,98;

i) Na apólice referida na alínea h) dos factos assentes, lê-se:

 “ (...) Artigo 12° Pluralidade de Seguros (...) 2. Não se verifica nulidade do presente contrato de Seguro de responsabilidade civil, sempre que o Segurado contrate, ou tenha contratado, outro Seguro civil. 3. Considera-se neste caso o presente Seguro subordinado à nulidade ou à falência da companhia seguradora. 4. Se qualquer dos Seguros for inferior ao valor do risco coberto, respondem as seguradoras, na proporção da quantia segura em cada contrato (...)”;

j) Pela apólice DP/…, a “DD (Europe) Ltd” assegurou, perante a Ordem dos Advogados e os seus membros, o pagamento das indemnizações devidas por estes em virtude da ocorrência de erro, omissão ou negligência no desempenho da profissão de advogado até ao montante de € 150.000,00;

k) Na apólice referida na alínea j) dos factos assentes, lê-se:

“(…) Art. 13° Coexistência de Seguros Se qualquer SEGURADO for titular, individualmente ou através de sociedade de advogados de outra Apólice de Responsabilidade Civil que providencie cobertura idêntica à da presente Apólice, fica estabelecido que esta funcionará apenas na falta ou insuficiência daquela, entendendo-se aquela como celebrada primeiro. Se a Apólice ou Apólices de cobertura análoga pré-existentes contiverem uma provisão respeitante à concorrência de seguros em termos idênticos à presente, entende-se então que esta APÓLICE actuará em concorrência com as mesmas, cada uma respondendo proporcionalmente aos limites garantidos (...)”;

I) A petição inicial que deu origem aos presentes autos deu entrada em juízo em 31 de Janeiro de 2006;

m) O Autor e a Ré reuniram-se no escritório desta em 21 de Setembro de 2001;

n) A Ré apenas se reuniu com o Autor na ocasião referida na alínea m);

o) O Autor não contava que a Ré apresentasse a contestação à acção mencionada na alínea a) dos factos assentes fora do respectivo prazo e que agisse da forma descrita em n);

p) O Autor não contava que a Ré não lhe desse a conhecer a sentença aludida na alínea g);

p)1. - Pelo menos em Junho e Julho de 2002 o Autor teve conhecimento por intermédio de um funcionário da CC, Companhia de Seguros, de que na acção nº72/2001 tinha sido proferida sentença a condená-lo no pagamento de uma indemnização na ordem dos € 80.000,00. (facto aditado pelo Tribunal da Relação de Lisboa).

q) O Autor foi julgado em 17 de Agosto de 1997 e condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime p.p. no art. 292.° do Código Penal na pena de 100 dias de multa à razão de 500$00 dia, e na pena acessória de inibição de conduzir veículos motorizados, pelo período de um mês, por conduzir no dia 16/8/97, pelas 21h30m, o veículo automóvel de matrícula -HJ, pela EN 247, km 64,3, Odrinhas, Sintra, sendo então interveniente num acidente e acusado uma TAS de 1,28 g/l (cfr. certidão de fls. 432 a 443 dos autos cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

r) O acidente de viação ocorreu no dia 16 de Agosto de 1997, pelas 21h45m, na EN 247 km 64,3 em Odrinhas, concelho de Sintra, entre o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula -HJ, conduzido pelo ora Autor, o veículo ligeiro de passageiros de matrícula OF- conduzido por FF e o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula -GT conduzido por GG;

s) O veículo HJ circulava no sentido Odrinhas-Terrugem, tendo o seu condutor iniciado uma ultrapassagem e foi embater frontalmente no veículo OF que circulava em sentido contrário e após no veículo GT;

t) A taxa de alcoolemia que o Autor apresentava no momento do acidente (TAS de 1,28 g/l) turvou-lhe, pelo menos a mente e provocou-lhe, designadamente, perda da sua capacidade de percepção visual e de concentração, impedindo que o mesmo se certificasse que circulava, em sentido contrário, outra viatura.

 [Os factos constantes das alíneas r), s), e t), resultaram do aditamento à BI e dados como provados no segundo julgamento]

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:

- se a Ré BB deve ser condenada a indemnizar o Autor pelo facto de, na qualidade de defensora oficiosa noutra acção em que o ora Autor/recorrente foi Réu, não ter contestado atempadamente o que determinou a sua condenação a indemnizar o lesado no valor de € 82,213,45, ou 16.482.316$00, acrescido de juros de mora, contados desde a data da citação até integral pagamento, à taxa legal, por ser responsável por um acidente de viação ao conduzir sob a influência de álcool – o que fez com que, em acção de regresso que lhe foi movida pela seguradora tivesse sido condenado.

O recorrente sustenta que foi violado o seu direito à defesa e que a sua condenação na acção de regresso que lhe moveu a seguradora “CC”, para haver a quantia que pagou ao lesado em acidente de viação causado pelo facto do ora recorrente ter sido considerado culpado por conduzir sob a influência do álcool, se deveu à actuação da sua defensora oficiosa.

O recorrente coloca, com algum dramatismo, a sua pretensão no contexto da violação do direito fundamental à defesa, sendo este, inquestionavelmente, considerado um direito universalmente reconhecido como inerente à Dignidade Humana, desde logo reconhecido nos arts. 1º e 20º da Constituição da República.

Do que se trata é saber quais as consequências jurídicas decorrentes do facto da Ré, Advogada oficiosa nomeada pela Ordem dos Advogados, não ter contestado a acção n.º72/2001 que correu termos pela 2ª Secção da 12ª Vara Cível de Lisboa, sendo Autora a “Companhia CC, S.A”.

Tendo sido considerada extemporânea a contestação apresentada pela Senhora Advogada, com o inerente desentranhamento da contestação, foi o Réu condenado a pagar à Autora o montante de € 50 000,00, acrescido de juros de mora, contados desde a data da citação até integral, à taxa legal.

Tendo a Ré Advogada sido nomeada defensora oficiosa do ora recorrente/réu, na acção condenatória que lhe foi movida pela seguradora “CC”, o seu estatuto enquanto defensora não se distingue no essencial de um sui generis contrato de mandato forense – art. 1157º do Código Civil – razão pela qual lhe competia, dentro da margem de discricionariedade técnica inerente ao patrocínio, adoptar a estratégia defensiva que mais conviesse aos interesses do seu defendido. Assim, são convocáveis, no contexto dessa incumbência, as normas do contrato de mandato e a inerente obrigação de meios do mandatário[2], sendo que, acima de tudo, a Advogada nomeada deveria apresentar contestação, a menos que tal não fosse do interesse processual e substantivo do Réu na dita acção.

Foi sem dúvida intenção da Senhora Advogada, defensora oficiosa, contestar a acção, como desde logo resulta do facto de ter pedido, no processo, prorrogação do prazo para oferecer a contestação, peça que, tendo sido apresentada, foi considerada extemporânea e mandada desentranhar, decisão que transitou em julgado.

Não pode, pois, discutir-se com utilidade, que não contestar teria sido estratégia da defesa.

O que está em causa é saber quais as consequência dessa omissão que implicou por força do cominatório a prova dos factos alegados e, na subsunção deles ao direito, determinou a condenação do Réu, ora recorrente, a indemnizar a seguradora triunfante na acção de regresso.

Também não está em causa, como o Autor sustenta nas suas alegações, que possa agora e aqui ser apreciado que a taxa de alcoolemia deva ser outra que não aquela que conduziu à condenação no processo penal onde foi arguido, e que foi aquela que se considerou provada na acção de regresso.

Ademais, importa acentuar que a acção de onde o recurso dimana é uma acção que visa a condenação das Rés por alegada violação do direito do Autor, na perspectiva de que a omissão de contestar da co-ré Advogada causou danos patrimoniais e não patrimoniais ao Recorrente.

A sentença de 1ª Instância (a 2ª prolatada no processo por mor da anulação decretada na Relação), considerou não ser aplicável a “teoria da perda de chance”.

Escreveu-se aí – “Não há, pois, e salvo o devido respeito, de, no caso concreto, fazer qualquer apelo à teoria da perda de chance. Efectivamente a figura da perda de chance pressupõe que não se logre estabelecer nexo de causalidade adequada entre o facto ilícito e o dano.

 No domínio da actividade processual o caso mais paradigmático é o de um recurso intempestivo: o único dano que se pode, em princípio, assacar a tal omissão é o do recorrente não ver reapreciada a sua posição junto do Tribunal superior, já que nenhuma outra cominação processual lhe está associada (v.g. por o recurso não terem regra efeito suspensivo) … Ao invés, no caso concreto, ficou devidamente demonstrada, como vimos, a adequada causalidade entre o facto ilícito (a não apresentação da contestação) e o dano (a condenação do Autor), daí não termos ponderado, por a entendermos inaplicável, na teoria da perda de chance…A causa real da condenação do Autor foi, no caso concreto, a omissão de contestação ainda que seja de admitir que a mesma condenação, perante a factualidade enunciada, se daria de todo o modo (se bem com evidente incerteza relativamente ao quantum indemnizatório). O certo é que não vemos em que medida é que face ao direito constituído os factos que resultaram provados assumem relevância para eximir ou reduzir a responsabilidade da Ré…”.

A discussão chamou à colação a figura da perda de chance, “perte d´une chance, que não tem consagração no direito português como fonte de responsabilidade civil, instituto em que se integra sobretudo no direito francês – onde tem consagração no Code Civil – art. 1383º – tendo tratamento na jurisprudência espanhola suíça e brasileira.

A figura visa superar a tradicional dicotomia: responsabilidade contratual versus responsabilidade extracontratual ou delitual, summa divisio posta em causa num tempo em que cada vez mais se acentua que a responsabilidade civil deve ter uma função tuteladora das expectativas e esperanças dos cidadãos, na sua vida de relação que se deve pautar por padrões de moralidade e eticidade, como advogam os defensores da denominada terceira via da responsabilidade civil.

Nuno Santos Rocha, in “A “Perda de Chance” Como Uma Nova Espécie de Dano” – edições Almedina – 2014 – escreve a fls. 96:

 “Além do mais, com a mudança operada no instituto da responsabilidade civil, através da superação do princípio da culpa, progredindo-se para um sistema cada vez mais solidário e menos individualista – onde o enfoque passa a ser dado à vítima e já não à conduta do agente –, o conceito de dano reparável evoluiu, ampliando-se a certas realidades que antes não se admitia que pudesse conter.[3] Entre nós, danos como invasão da privacidade, ofensas à honra, angústia, quebras de confiança e de expectativas jurídicas, ou da violação do dever de dar conselhos, recomendações ou informações, são já assumidamente reparáveis.”

Carneiro da Frada, in “Direito Civil Responsabilidade Civil – O Método do Caso”, Almedina – Junho 2006 – depois de referir que existe uma “diluição de fronteiras” entre aquelas clássicas formas de responsabilidade civil face às “constantes interferências entre o delito e o contrato”, escreve com acentuada inspiração – pág. 63:

“Isto posto, a questão da unidade da responsabilidade civil deve ser encarada como relativa. Salvaguardadas, na sua diversidade, as soluções juridicamente correctas, a resposta que figurativamente se poderia dar é a de que responsabilidade obrigacional e aquiliana são como peras e maçãs: diferentes, mas similares (não vale a pena indispor quem pense que são antes similares, embora diferentes, mas deplorar tão-só que não se lhes distinga o sabor). E ainda: responsabilidade delitual e obrigacional são como queijo e bolachas, complementam-se[4].

Por isso, a disciplina opcional de Responsabilidade Civil especifica e une, em simultâneo.”

A perda de chance relaciona-se com a circunstância de alguém ser afectado num seu direito de conseguir uma vantagem futura ou de impedir um dano, por facto de terceiro.

A perda de chance e a sua problemática surgiram com mais intenso debate, na década de 60, em França, estando relacionada, sobretudo, com casos de responsabilidade médica.

As dificuldades que muitos encontram na autonomia da figura da perda de chance no direito português resulta do facto de a ligaram aos requisitos da responsabilidade civil extracontratual – art. 483º, nº1, do Código Civil – mormente, ao nexo de causalidade.

Com efeito, um dos requisitos da obrigação de indemnizar, no contexto da responsabilidade civil ex contractu ou ex delictu é que exista nexo de causalidade entre a conduta do responsável e os danos sofridos pelo lesado por essa actuação culposa.

Dispõe o art. 563.° do Código Civil – “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.

Este normativo consagra a teoria da causalidade adequada na formulação negativa de Ennnecerus Nipperdey.

Como ensina Antunes Varela, in “Direito das Obrigações em Geral”, I Volume, 7ª edição, pág.885;

 “Há que restringir a causa àquela ou àquelas condições que se encontrem para com o resultado numa relação mais estreita, isto é, numa relação tal que seja razoável impor ao agente responsabilidade por esse mesmo resultado, isto é, o agente só responde pelos danos para cuja produção a sua conduta era adequada.

Se o agente produziu a causa donde resultou o dano, sem dúvida que a sua conduta é adequada ao resultado, mesmo que, concomitantemente com a sua conduta, haja a conduta de terceiros a concorrer para esse resultado ou, pelo menos, a não o evitar.

Com efeito “desde que o devedor ou lesante praticou um facto ilícito, e este actuou como condição de certo dano”, justifica-se perfeitamente que o prejuízo (embora devido a caso fortuito ou, em certos termos, à conduta de terceiro) recaia, em princípio, não sobre o titular do interesse atingido, mas sobre quem, agindo ilicitamente, criou a condição do dano”.

Como sentenciou este Supremo Tribunal – Acórdão de 20.6.2006, in CJSTJ, 2006, II, 119:

“I – Tal como decorre da redacção do artigo 563º do Código Civil o nosso sistema jurídico acolheu a doutrina da causalidade adequada, a qual, todavia, não pressupõe a exclusividade de uma causa ou condição.

II – Muito embora tal conceito legal comporte qualquer das formulações da referida teoria – na formulação positiva ou negativa –, vem-se, porém, entendendo que, provindo a lesão de um facto ilícito (contratual ou extracontratual), seja de acolher e seguir a formulação negativa, segundo a qual o facto que actuou como condição do dano só não deverá ser considerado causa adequada do mesmo se, dada a sua natureza geral e em face das regras da experiência comum, se mostrar indiferente para a verificação do dano.

III – Causalidade adequada essa que se refere – e não apenas ao facto ou dano isoladamente considerados – a todo o processo factual que, em concreto, conduziu ao dano.

IV – Muito embora sejam as circunstâncias a definir a adequação da causa, contudo, não se deve perder de vista, por um lado, que para a produção do dano pode haver a colaboração de outros factos, contemporâneos ou não, e, por outro, que a causalidade não tem necessariamente de ser directa e imediata, bastando que a acção condicionante desencadeie outra condição que, directamente, suscita o dano (causalidade indirecta).

V – Sempre que ocorra um concurso de causas adequadas, qualquer dos seus autores é responsável pela reparação de todo o dano.

VI – No nosso ordenamento jurídico o nexo de causalidade apresenta-se com uma dupla função: como pressuposto da responsabilidade e como medida da obrigação de indemnizar.”

Foi por ter considerado que entre a conduta omissiva da Ré e a condenação do Réu existiu nexo de causalidade adequada, que a sentença de 1ª Instância condenou a ora Ré Advogada a indemnizar o Autor.

Já o Acórdão recorrido abordou a questão da omissão referida na perspectiva da perda de chance, citando tratadistas que com mais frequência são referidos a propósito da figura da perda de oportunidade (transcrevemos do Acórdão recorrido).

O Professor Júlio Gomes, in “Direito e Justiça”, vol. XIX, 2005, II, escreveu a certo trecho:

“Afigura-se-nos, pois, que a mera perda de uma chance não terá, em geral, entre nós, virtualidades para fundamentar uma pretensão indemnizatória... Na medida em que a doutrina da perda de chance seja invocada para introduzir uma noção de causalidade probabilística, parece-nos que a mesma deverá ser rejeitada entre nós, ao menos de jure condito... Admitimos, no entanto, um espaço ou dimensão residual da perda de chance no Direito português vigente: referimo-nos a situações pontuais, tais como a situação em que ocorre a perda dum bilhete de lotaria, ou em que se é ilicitamente afastado dum concurso ou de uma fase posterior dum concurso.

Trata-se de situações em que a chance já se “densificou” o suficiente para, sem se cair no arbítrio do juiz, se poder falar no que Tony Weir apelidou de “uma quase propriedade”, um “bem”.”

Rute Pedro, in “A Responsabilidade Civil do Médico”, 179 e seguintes:

 “A perda de chance, enquanto tal, está ausente do nosso direito. Em Portugal, poucos são os Autores que se referem à noção de perda de chance e, quando o fazem, dedicam-lhe uma atenção lateral e pouco desenvolvida. Pode, também, entender-se que paira nas entrelinhas de decisões judiciais portuguesas, estando subjacente a algumas delas em que os tribunais expendem um raciocínio semelhante ao que subjaz a esta teoria, sem, no entanto, se lhe referirem” (página 232). E, mais adiante: “Também são especialmente pertinentes, a este propósito, as decisões relativas a casos de responsabilidade civil em que se inclui no montante reparatório aquilo que o lesado poderia vir a ganhar quando completasse a formação universitária que frequenta no momento em que se produziu a lesão.”

Paulo Mota Pinto, in “Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo”, I, 1103, em nota de pé, aborda a figura, referindo:

 “...Não parece que exista já hoje entre nós base jurídico-positiva para apoiar a indemnização de perda de chances... Antes parece mais fácil percorrer o caminho da inversão do ónus, ou da facilitação da prova, da causalidade e do dano, com posterior redução da indemnização, designadamente por aplicação do artigo 494.° do Código Civil, do que fundamentar a aceitação da “perda de chance” como tipo autónomo da dano, por criação autónoma do direito para a qual faltam apoios...”.

Como nos dá conta Nuno Santos Rocha, obra citada, pág. 27:

 “Todavia, não tem sido só ao nível dos Estados que a teoria da “perda de chance” se tem vindo a impor. Diversas instituições europeias e internacionais têm utilizado e desenvolvido a noção. Assim, o artigo 2.7 da Directiva 92/13/CE aprovada pelo Conselho das Comunidades Europeias, na sua parte final[5], bem como o art. 7.4.3 dos princípios relativos aos contratos comerciais internacionais, desenvolvidos pelo Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado – UNIDROIT, referem-se explicitamente à noção de “perda de chance”.

Por outro lado, existem instrumentos desenvolvidos de forma menos oficial e institucional que também, directa ou indirectamente, acabam por consagrar a figura, como é o caso do artigo 163º da parte geral do projecto preliminar do Código Europeu dos Contratos e do artigo 3:106 dos Princípios de Direito Europeu da Responsabilidade Civil elaborados pelo European Group on TortLaw.”

Não devem assimilar-se os planos do dano e da causalidade com implicação na perspectiva de excluir como dano autónomo a perda de chance nem esta figura deve ser aplicada, subsidiariamente, quando se não provou a existência de nexo de causalidade adequada entre a conduta lesiva por acção ou omissão, e o dano sofrido, já que existe sempre uma álea, seja quando se divisa uma vantagem que se quer alcançar, ou um risco de não conseguir o resultado desejado.

Para que se considere autónoma a figura de “perda de chance”, como um valor que não pode ser negado ao titular e que está contido no seu património, importa apreciar a conduta do lesante, não a ligando ferreamente ao nexo de causalidade – sem que tal afirmação valha como desconsideração absoluta desse requisito da responsabilidade civil, mas, antes, introduzir como requisito caracterizador dessa autonomia que se possa afirmar que o lesado tinha uma chance, uma probabilidade, séria, real, de, não fora a actuação que frustrou essa chance, obter uma vantagem que probabilisticamente era razoável supor que almejasse e/ou que a actuação omitida se o não tivesse sido, poderia ter minorado a chance de ter tido um resultado não tão danoso como o que ocorreu. Há perda de chance quando se perde um proveito futuro, ou se não se evita uma desvantagem por actuação imputável a terceiro.

Estando em causa uma obrigação de meios e não de resultado, a omissão da diligência postulada por essa obrigação evidencia, de forma mais clara, que a perda de chance se deve colocar mais no campo da causalidade e não do dano, devendo ponderar-se se a omissão das leges artis foi determinante para a perda de chance sendo esta real, séria e não uma mera eventualidade, suposição ou desejo[6], provavelmente capaz de proporcionar a vantagem que o lesado prosseguia.

No caso de perda de chance não se visa indemnizar a perda do resultado querido mas antes a da oportunidade perdida, como um direito em si mesmo violado por uma conduta que pode ser omissiva ou comissiva; não se trata de indemnizar lucros cessantes ao abrigo da teoria da diferença, não se atendendo à vantagem final esperada.

 Discorrendo sobre os “problemas especiais de causalidade, a probabilidade e a possbilidade”, o Professor Carneiro da Frada, in “Direito Civil Responsabilidade Civil – O Método do Caso” – Almedina – Junho 2006 – pode ler-se, págs.103 e 104:

 “Um outro exemplo dá-o o dano conhecido por “perda de chance”, praticamente por desbravar entre nós. Entre as suas áreas de relevância encontra-se a da responsabilidade médica: se o atraso de um diagnóstico correcto diminuiu em 40% as possibilidades de cura do doente, quid iuris?

Já fora desse âmbito, como resolver também o caso da exclusão de um sujeito a um concurso, privando-o da hipótese de o ganhar? Ainda: se na fase das negociações de um contrato um terceiro acusa infundadamente uma das partes à outra, e esta última se desinteressa depois das negociações, poderá haver responsabilidade pela perda da oportunidade de um contrato (e em que termos)?

Uma das formas de resolver este género de problemas é a de considerar a perda de oportunidade um dano em si, como que antecipando o prejuízo relevante em relação ao dano final (apenas hipotético, v.g., da ausência de cura, da perda do concurso, do malograr das negociações por ausência de cura, da perda do concurso, do malograr das negociações por outros motivos), para cuja ocorrência se não pode asseverar um nexo causal suficiente.

Mas então tem de se considerar que a mera possibilidade de uma pessoa se curar, apresentar-se a um concurso ou negociar um contrato consubstancia um bem jurídico tutelável. Se no plano contratual, a perda de oportunidade pode desencadear responsabilidade de acordo com a vontade das partes (que erigiram essa “chance” a bem jurídico protegido pelo contrato), no campo delitual esse caminho é bem mais difícil de trilhar: a primeira alternativa do art. 483º, n.°1, não dá espaço e, fora desse contexto, tudo depende da possibilidade de individualizar a violação de uma norma cujo escopo seja precisamente a salvaguarda da “chance”.”

Assente que a Ré, como defensora oficiosa, apresentou a contestação, em nome do Réu, fora do prazo, essa omissão teve como consequência desde logo o terem-se por fictamente confessados os factos alegados, pelo Autor, não implicando automaticamente a condenação no pedido.

 

Mas importa saber se, sendo em si mesmo a não apresentação da contestação perda de chance do Réu, fazer valer em juízo a sua versão dos factos, essa omissão, profissionalmente desvaliosa, contendeu com um sério, real e um muito provável desfecho da acção a si desfavorável.

Reconhece-se o melindre de, em sede de recurso e numa acção como a que está em causa, este Tribunal para avaliar os requisitos de seriedade, consistência e plausibilidade de uma actuação que causou a perda de chance: in casu, de não ser condenado, mas essa apreciação é inevitável, tendo este Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 4.12.2012, Proc. 289/10.7TVLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt, para ajuizar da perda de chance estando em causa um erro de patrocínio forense, apreciado se, com a omissão de recorrer, dada a fragilidade da sentença, essa omissão implicou a perda de uma chance real e séria.

Aí se concluiu que se o mandatário tivesse recorrido as probabilidades de êxito eram manifestas[7].

No mesmo sentido o Ac. deste Supremo Tribunal de Justiça, de 14.3.2013 – Proc. 78/09.1TVLSB.L1.S1 – in www.dgsi.pt., onde se afirma – “O dano da perda de oportunidade de ganhar uma acção não pode ser desligado de uma probabilidade consistente de a vencer. Para haver indemnização, a probabilidade de ganho há-de elevada”.

Também o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 6.3.2014 – Proc. 23/05.3TBGRD.C1.S1 – in www.dgsi.pt, depois de considerar que no contexto de contrato de mandato forense a obrigação a cargo do mandatário é uma obrigação de meios, considerou que – “É admitida a ressarcibilidade do dano da perda de chance ou de oportunidade, que pressupõe: a possibilidade real de se alcançar um determinado resultado positivo, mas de verificação incerta; e um comportamento de terceiro, susceptível de gerar a sua responsabilidade, que elimine de forma definitiva a possibilidade de esse resultado se vir a produzir.”

Voltando à questão de saber se, mesmo ante a não contestação da acção de regresso pela Ré Advogada do Réu, essa omissão de não ter ocorrido, implicaria que se considerasse que o ora Autor teria tido uma probabilidade real, séria e esperável de não ser condenado – se para ele existiu perda de chance de ganhar, sendo absolvido na acção de regresso.

Imporá, desde logo, afirmar que ora Autor/recorrente foi condenado por sentença transitada em julgado por ter provocado um acidente de viação enquanto condutor sob a influência de álcool.

Com efeito, o Autor foi julgado em 17 de Agosto de 1997 e condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime p.p. no art. 292.° do Código Penal na pena de 100 dias de multa à razão de 500$00 dia, e na pena acessória de inibição de conduzir veículos motorizados, pelo período de um mês, por conduzir no dia 16/8/97, pelas 21h30m, o veículo automóvel de matrícula …-HJ, pela EN 247, km 64,3, Odrinhas, Sintra, sendo então interveniente num acidente e acusado uma TAS de 1,28 g/l (cfr. certidão de fls. 432 a 443 dos autos cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

Tendo a sua seguradora pago ao lesado uma indemnização por sentença que transitou em julgado, veio exercer o direito de regresso pedindo ao Réu (agora Autor/recorrente) aquilo que havia pago.

Ao tempo estava em vigor o artigo 19.°, alínea c), do Decreto-Lei n° 522/88 –“Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso…contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandono de sinistrado…”

Foi esta acção que o Réu não contestou e foi condenado.

O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, n.°6/2002, de 28.05.2002, doutrinou – “A alínea c) do artigo 19° do Decreto-Lei n.°522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.”

Relevante, também, é saber quais os efeitos do caso julgado penal e a sua repercussão na matéria de facto, na acção de regresso.

Dispõe o art. 674º-A do Código de Processo Civil – “A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer acções civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infracção.”

Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2, pág. 691, comentam:

A sentença proferida em processo penal constitui presunção ilidível da existência dos factos constitutivos em que se tenha baseado a condenação em qualquer acção de natureza civil em que se discutam relações jurídicas dependentes ou relacionadas com a prática da infracção.

O caso mais frequente é o da acção de indemnização: provada, no processo penal, a prática dum acto criminoso que constitua ilícito civil, o titular do interesse ofendido não tem o ónus de provar na acção civil subsequente o acto ilícito praticado nem a culpa de quem o praticou, sem prejuízo de continuar onerado com a prova do dano sofrido e do nexo de causalidade

[…] A presunção é invocável perante terceiros relativamente ao processo penal (por exemplo, perante a seguradora da pessoa penalmente condenada por acidente de viação), que a poderão ilidir. Não se trata, directamente, da eficácia extraprocessual da prova produzida no processo penal, mas da eficácia probatória da própria sentença, independentemente das provas com base nas quais os factos tenham sido dados como assentes.

A presunção estabelecida difere das presunções stricto sensu, na medida em que a ilação imposta ao juiz cível resulta do juízo de apuramento dos factos por um acto jurisdicional com trânsito em julgado.

Não está, porém, em causa a eficácia do caso julgado (ao contrário do que a defeituosa inserção dos artigos que regulam a matéria podia levar a supor), mas a eficácia probatória da sentença penal.” (destaque nosso)

Tudo ponderado, teremos que afirmar que, com contestação ou não, na acção de regresso, as probabilidades, a chance do Réu (ora Autor/recorrente) não ser condenado não se antevia provida de razoável grau de êxito, no sentido em que, ante a prova que pudesse oferecer, teria reais probabilidades de ser absolvido; ademais, fora condenado por duas sentenças transitadas em julgado no que respeita à sua grave conduta causadora de um acidente de viação causalmente ligado ao facto criminoso de conduzir sob a influência do álcool.

 A sua “chance” de não ser condenado era mínima, não credível e, por isso, não se pode afirmar que a conduta omissiva e censurável da Ré tenha sido a causa directa, imediata de não ter sido absolvido na acção de regresso.

Por assim ter entendido o Acórdão recorrido não merece censura.

Sumariando:

1. A figura da “perda de chance” visa superar a tradicional dicotomia: responsabilidade contratual versus responsabilidade extracontratual ou delitual, summa divisio posta em causa num tempo em que cada vez mais se acentua que a responsabilidade civil deve ter uma função sancionatória e tuteladora das expectativas e esperanças dos cidadãos na sua vida de relação, que se deve pautar por padrões de moralidade e eticidade, como advogam os defensores da denominada terceira via da responsabilidade civil.

2. A perda de chance relaciona-se com a circunstância de alguém ser afectado num seu direito de conseguir uma vantagem futura, ou de impedir um dano por facto de terceiro. A dificuldade em considerar a autonomia da figura da perda de chance no direito português, resulta do facto de ser ligada aos requisitos da responsabilidade civil extracontratual – art. 483º, nº1, do Código Civil – mormente ao nexo de causalidade.

Com efeito, um dos requisitos da obrigação de indemnizar, no contexto da responsabilidade civil ex contractu, ou ex delictu, é que exista nexo de causalidade entre a conduta do responsável e os danos sofridos pelo lesado por essa actuação culposa.

3. Para que se considere autónoma a figura de “perda de chance” como um valor que não pode ser negado ao titular e que está contido no seu património, importa apreciar a conduta do lesante não a ligando ferreamente ao nexo de causalidade – sem que tal afirmação valha como desconsideração absoluta desse requisito da responsabilidade civil – mas, antes, introduzir, como requisito caracterizador dessa autonomia, que se possa afirmar que o lesado tinha uma chance [uma probabilidade, séria, real, de não fora a actuação que lesou essa chance], de obter uma vantagem que probabilisticamente era razoável supor que almejasse e/ou que a actuação omitida, se o não tivesse sido, poderia ter minorado a chance de ter tido um resultado não tão danoso como o que ocorreu. Há perda de chance quando se perde um proveito futuro, ou se não se evita uma desvantagem por causa imputável a terceiro.

4. Não devem assimilar-se os planos do dano e da causalidade, com implicação na perspectiva de excluir como dano autónomo a perda de chance, nem esta figura deve ser aplicada, subsidiariamente, quando se não provou a existência de nexo de causalidade adequada entre a conduta lesiva por acção ou omissão e o dano sofrido, já que existe sempre uma álea, seja quando se divisa uma vantagem que se quer alcançar, ou um risco de não conseguir o resultado desejado.

5. No caso de perda de chance não se visa indemnizar a perda do resultado querido, mas antes a da oportunidade perdida, como um direito em si mesmo violado por uma conduta que pode ser omissiva ou comissiva; não se trata de indemnizar lucros cessantes ao abrigo da teoria da diferença, não se atendendo à vantagem final esperada.

6. Assente que a Ré, como defensora oficiosa, apresentou a contestação em nome do Réu, fora do prazo legal. Essa omissão teve como consequência, desde logo, o terem-se por fictamente confessados os factos alegado pelo Autor, não implicando automaticamente a condenação no pedido.

 

7. Importa saber se, revelando em si mesmo a não apresentação da contestação, perda de chance do Réu fazer valer em juízo a sua versão dos factos, essa omissão da Ré, profissionalmente desvaliosa, contendeu com um sério, real e muito provável desfecho favorável da acção para o Autor.

8. O Autor/recorrente foi condenado por sentença transitada em julgado por ter provocado um acidente de viação enquanto condutor sob a influência de álcool.

9. Tudo ponderado, mormente a presunção do art. 674º-A do Código de Processo Civil, teremos que afirmar que, com contestação ou não, na acção de regresso, as probabilidades, as chances do Réu (ora Autor/recorrente) não ser condenado, não se anteviam providas de razoável grau de êxito, no sentido em que, ante a prova que pudesse oferecer não teria reais probabilidades de ser absolvido; ademais, fora condenado por duas sentenças transitadas em julgado no que respeita à sua grave conduta causadora de um acidente de viação causalmente ligado ao facto criminoso de conduzir sob a influência do álcool.

 

10. A sua “chance” de não ser condenado era mínima, não credível e, por isso, não se pode afirmar que a conduta omissiva e censurável da Ré Advogada tenha sido a causa directa, imediata de não ter sido absolvido na acção de regresso, implicando perda dessa chance.

Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pelo Autor/recorrente aqui e nas instâncias.

                                           

                                                   Supremo Tribunal de Justiça,01 de Julho de 2014

Fonseca Ramos (Relator)

Fernandes do Vale

Ana Paula Boularot

______________________ 
[1] Relator – Fonseca Ramos.
Ex.mos Adjuntos:
Conselheiro Fernandes do Vale.
Conselheira Ana Paula Boularot.

[2] A responsabilidade civil é extracontratual se a obrigação incumprida tem origem em fonte diversa de contrato.
Tal responsabilidade resulta da violação de deveres de conduta, vínculos jurídicos gerais impostos a todas as pessoas e que correspondem aos direitos absolutos – Almeida Costa, in “ Direito das Obrigações”, 5ª edição, pág. 431.O cumprimento da obrigação pode implicar para o devedor a assunção de uma obrigação de meios ou de uma obrigação de resultado.
Segundo aquele civilista a “obrigação de meios” existe quando o devedor apenas se compromete a desenvolver, prudente e diligentemente, certa actividade para a obtenção de um determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza – “Direito das Obrigações”-733.
O Professor Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, 5ª edição, 2º, define obrigação de resultado “como aquela em que o devedor, ao contrair a obrigação, se compromete a garantir a produção de certo resultado em benefício do credor ou de terceiro”.
               
[3] “Nos últimos cem anos, a responsabilidade civil passou de reparar apenas danos tangíveis que atentassem directamente às pessoas ou ao seu património, para actualmente admitir a indemnização de danos emocionais e expectativas de interesse. Cfr. Nancy Levit, Ethereal Torts, George Washington Law Review, v.61, p. 140.”
[4] O excerto citado remete para a obra do autor –“Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil”.
[5] “Quando uma pessoa introduza um pedido de indemnização por perdas e danos relativo aos custos incorridos com a preparação de um contrato, apenas terá de provar que houve violação do direito comunitário em matéria de celebração dos contratos ou das normas nacionais de transposição desse direito e que teria tido uma possibilidade real de lhe ser atribuído o contrato que foi prejudicada por essa violação”. Disponível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:31992L0013:pt:HTML
[6] SAVI, Sérgio, “Responsabilidade civil por perda de uma chance”. São Paulo, Atlas, 2006. p. 3
[7] Transcreve-se parte do sumário: “Perante uma sentença, sobre responsabilidade civil emergente de acidente de viação, em que a matéria de facto mais relevante, designadamente quanto à presunção legal de culpa (reconhecida na peça), vinha assente desde o saneamento do processo, estando em causa apenas uma questão de direito, que não é sequer controvertida, nem na doutrina nem na jurisprudência, avultando, como manifesto equívoco do julgador, a confusão entre o nexo de causalidade referente à responsabilidade civil e obrigação de indemnizar o lesado da Seguradora e o nexo de causalidade atinente a uma outra relação jurídica, que não era objecto do litígio, em que só uma eventual reincidência na confusão pelo tribunal de recurso poderia manter o insucesso da pretensão do autor, mostra-se possível, tal a simplicidade da questão, averiguar, mediante reapreciação e avaliação do julgado, e tomar posição acerca das probabilidades sérias de êxito do recurso, se tivesse sido interposto e normalmente alegado.
Sendo a conclusão no sentido do concurso da existência de séria probabilidade de sucesso do recurso, à luz do desenvolvimento dum processo causal normal, considerando as circunstâncias do caso, conhecidas e cognoscíveis por um advogado medianamente competente, como, por exemplo, a contradição de fundamentação na sentença e o claro erro de direito, tanto no tocante às consequências da adquirida presunção de culpa como ao nexo de causalidade relevante, deve afirmar-se a obrigação de indemnizar.
Os danos a ressarcir ao lesado, emergentes do cumprimento defeituoso do mandato forense, deverão corresponder à prestação devida, que o advogado não efectuou, com que fez perder ao mandante a “chance” de evitar um prejuízo, no caso, de impedir a perda da indemnização negada pela sentença cujo recurso foi ilicitamente omitido.”