Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
21827/17.9T8SNT-A.L1.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
PROCEDIMENTO EXTRAJUDICIAL DE REGULARIZAÇÃO DE SITUAÇÕES DE INCUMPRIMENTO (PERSI)
ABUSO DE DIREITO
SUBSIDIARIEDADE
HIPOTECA
PRESSUPOSTOS
DEVER DE INFORMAÇÃO
EXTINÇÃO
CRÉDITO BANCÁRIO
AÇÃO EXECUTIVA
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
Data do Acordão: 11/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - A aplicação do instituto do abuso do direito tem uma natureza subsidiária, só a ele sendo lícito recorrer na falta de uma norma jurídica que resolva, de forma adequada, a questão em causa.

II - Dada a integração automática do cliente-devedor em mora no PERSI - Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (e o dever do Banco proceder à mesma), tem de se considerar que os executados estão abrangidos por este regime de regularização da dívida, que só se extingue em situações tipificadas na lei (artigo 17.º, n.º 1 e 2, do DL 227/2012, de 25-10) e mediante comunicação aos clientes bancários-devedores, nos termos do artigo 17.º, n.º 3, do diploma que criou o PERSI.

III – Não constando da matéria de facto que tenha ocorrido a extinção do PERSI, nem que a exequente Caixa Geral de Depósitos, SA, tenha comunicado aos executados, nos termos da lei, essa eventual extinção, conclui-se que o Banco exequente instaurou a execução durante o período de vigência do PERSI, numa fase em que estava impedido de o fazer, por força da lei (artigo 18.º, n.º 1, al. b), do DL n.º 227/2012).

IV – Neste contexto, e na falta de factos indiciadores de má-fé, a invocação pelo cliente-bancário das normas jurídicas do regime jurídico do PERSI a seu favor não constitui um abuso do direito, mesmo que tal tenha sucedido após a alienação do imóvel, garantia do mútuo.

V – Não se pode esquecer, como se salienta no Preâmbulo do diploma legal que prevê o PERSI, que estamos perante uma relação jurídica caraterizada por uma acentuada assimetria informativa, em que a lei inculca uma especial responsabilidade nas instituições bancárias e considera o cliente bancário-consumidor como a parte mais fraca. 

Decisão Texto Integral:

I - Relatório


1. Por apenso à correspetiva execução, em que é exequente a Caixa Geral de Depósitos S.A., e que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca ... (Juízo de Execução ..., Juiz …), deduziram AA e BB embargos de executado, pedindo a extinção dos autos executivos principais.

A exequente/embargada contestou.

2. De imediato e, interlocutoriamente, foi proferida a decisão de 14 de março de 2019, que julgou procedente os embargos de executado e declarou extinta a execução.

3. Inconformada, a Caixa Geral de Depósitos S.A. interpôs recurso de apelação (artigos 635.°, n.° 4, 639.°, n.° l e 663.°, n.° 2, do CPC), tendo o Tribunal da Relação, primeiro, por decisão singular da Relatora, e depois por acórdão proferido em Conferência,  decidido julgar procedente a apelação, revogando a decisão de 14 de março de 2019 e indeferindo os presentes embargos de executado.

4. Inconformado, o executado embargante, AA, interpôs recurso de revista, em que formulou as seguintes conclusões:

«43. Quanto à presente situação nunca existiu PERSI.

44. O facto provado 4, a folhas 3 da sentença de 14 de março de 2019, foi inequívoco na existência de condições prévias ao PERSI

45. A carta de 1 de Setembro de 2017 expressamente enuncia no 2ª parágrafo “...informamos que a análise de uma eventual reestruturação requer o prévio pagamento de, pelo menos, juros e encargos vencidos ….”.

46. No ponto 4 dos factos provados em sentença de 1ª instância o próprio meritíssimo juiz faz a redação do seu entendimento do facto com o seguinte “...as condições em que aceita analisar a reestruturação das dívidas.”

47. E relembrando que esta factualidade foi integralmente aceite e não modificada pelo acórdão em conferência.

48. E se existiam condições prévias da embargante à análise da reestruturação ( PERSI) então não se tinha iniciado o PERSI.

49. Desde logo, da leitura do diploma DL 227/2012 de 25 de Outubro a integração no PERSI e até do seu preâmbulo ressalta não existirem condições para aceder ao PERSI, mais ainda ressalta que não podem existir condições prévias para o visado aceder ao PERSI.

50. Não houve integração no PERSI – fase 1, não houve análise da reestruturação – fase 2 e como tal o que aconteceu com a carta de 1 de Setembro de 2017 não corresponde certamente a proposta ou negociação em fase 3 do PERSI.

51. Quanto ao eventual mecanismo automático do PERSI, não existe, não é automá-tica por natureza nem o poderia ser com a comunicação de 1 de Setembro.

52. O único automatismo que existe é o direito ao PERSI desde que existam dificul-dades financeiras.

53. É obrigatório a fase prévia ao PERSI conforme artigo 13.º não tendo sido respei-tada pela embargada.

54. A embargante também não respeitou a lei em nenhum dos 5 pontos do artigo 14º do DL 227/2012 de 25 de Outubro.

55. O nº 4 do artigo 14º deste diploma refere “4-No prazo máximo de cinco dias após a ocorrência dos eventos previstos no presente artigo, a instituição de crédito deve informar o cliente bancário da sua integração no PERSI, através de comunicação em suporte duradouro.”

56. A embargada não notificou o embargante da integração no PERSI, não deu cumprimento ao artigo 14º nº 4 e menos ainda ao nº 5 do mesmo preceito de acordo com o aviso nº 17/2012 do Banco de Portugal.

57. Com os elementos e comunicações da embargada à embargante será impossível considerar quer à data quer agora ter existido integração no PERSI.

58. Assim entendeu, irreprensivelmente, o meritíssimo juiz de 1ª instância a folhas 4 e 5 da sua sentença expressando claramente, a linhas 5 da página 5 - “….com a sua solicitação no sentido de integração no PERSI, assim não procedeu (ponto 4 dos factos)”.

Termos em que nos melhores de direito, sempre com o mui douto provimento de V. Ex.ªs, deve o presente recurso ser recebido, porque em tempo, devendo          o Tribunal ad quem, conceder provimento ao mesmo, revogando a decisão a quo em acórdão de conferência mantendo o sentido da decisão proferida em 1ª instância.

5. A recorrida, Caixa Geral de Depósitos, SA, apresentou contra-alegações nas quais formulou as seguintes conclusões:

«A - O Recorrente interpôs recurso de revista não se conformando com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, o qual deu total provimento ao recurso de apelação interposto pela Caixa Geral de Depósitos, S.A.

B - Na verdade, o Tribunal a quo analisou exaustivamente todas as questões enunciadas e fez uma irrepreensível aplicação do direito, nomeadamente o regime previsto no Decreto-lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, aos factos dados como provados.

C - O Recorrente sustenta que, em todo o Decreto-lei n.º 227/2012 de 25 de outubro, não podem existir condições prévias para o cliente bancário aceder ao PERSI, exceto as suas próprias dificuldades económicas.

D - Contudo, o enquadramento no PERSI nunca esteve sujeito a condições prévias, tendo a Recorrente formulando uma proposta concreta, a qual não obteve resposta por parte do Recorrente.

E - O Recorrente foi interpelado acerca do incumprimento de várias operações, tendo sido concedido um prazo para o pagamento dos valores em dívida, de acordo com a carta de interpelação de 28.12.2016.

F - Em consequência, à carta do Recorrente datada de 14.08.2017, onde é confessado expressamente o incumprimento, respondeu a Recorrida por carta de 01.09.2017, ponto n.º 4 da matéria de facto assente, com a ref.ª …./01.09.2017, com o assunto «enquadramento PERSI».

G - Nesta missiva, é apresentada ao cliente uma solução concreta por parte da instituição bancária para resolução da situação de incumprimento.

H - Na referida carta, datada de 01.09.2017, é «apresentado ao cliente bancário uma proposta de regularização adequada à sua situação financeira (…)» de acordo com o art.º 15.º n.º 4 do DL n.º 227/2012, de 25.10.

I - Ora, à carta da Exequente CGD de 01.09.2017, com o assunto «enquadramento PERSI», onde é apresentada ao cliente solução concreta por parte da instituição bancária para resolução da situação de incumprimento, devia o Recorrente ter informado a CGD que aceitava as condições transmitidas ou então apresentava um plano alternativo, no prazo de 15 dias (cfr. n.º 3 do art.º 16º do DL n.º 227/2012, de 25.10).

J - Por esse motivo, o PERSI extinguiu-se atento o disposto na alínea f) do art.º 17º do DL n.º 227/2012, de 25.10.

K - Por outro lado, é estatuído na alínea e) do art.º 17º do DL n.º 227/2012, de 25.10 que o PERSI se extingue quando o cliente bancário pratique atos suscetíveis de pôr em causa os direitos ou as garantias da instituição de crédito.

L - Ora, a venda, por parte do cliente bancário, do imóvel onerado a favor da CGD a terceiros, garantia dos contratos dados à execução, em 11.03.2016, sem o prévio conhecimento e autorização da credora hipotecária, como aliás foi invocado no Requerimento Executivo, consubstancia um ato suscetível de pôr em causa a garantia da instituição de crédito.

M - Desta forma, nunca poderia o pedido efetuado por carta posterior àquela transmissão, datada de 14.08.2017, integrar-se no PERSI uma vez que aquele facto da transmissão a terceiro determina a sua imediata extinção (cfr. alínea e) do art.º 17º do DL n.º 227/2012, de 25.10).

N-A Recorrida aplicou, no presente caso, o regime do DL n.º 227/2012, de 25.10, como resulta da carta de 01.09.2017, com a ref.ª .../01.09.2017, onde é «apresentado ao cliente bancário uma proposta de regularização adequada à sua situação financeira (…)» de acordo com o art.º 15º n.º 4 do DL n.º 227/2012, de 25.10.

O - Face ao exposto, o conteúdo da missiva enviada no dia 01-09-2017 foi suscetível de enquadrar o Recorrente no PERSI, demonstrando que a Recorrida formulou uma proposta de regularização adequada à capacidade financeira do Recorrente, prevista nos artigos 15.º e 16.º do DL 227/2012.

P - Estando o procedimento PERSI extinto, pode o credor instaurar ação executiva para cobrança dos valores em dívida, que eram do conhecimento do Recorrente.

NESTES TERMOS,

Deverá ser julgado improcedente o recurso de revista apresentado pelo Recorrente, confirmando-se o acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.

ASSIM DECIDINDO, MAIS UMA VEZ SERÁ FEITA,

VENERANDOS JUÍZES CONSELHEIROS, A COSTUMADA

JUSTIÇA».

Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, a questão a decidir diz respeito  ao regime do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), previsto no DL 227/2012, de 25 de outubro, quais as vicissitudes do mesmo e modos de extinção, bem como à questão de saber se a Caixa Geral de Depósitos podia intentar a ação executiva.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A – Os factos

As instâncias deram como provados os seguintes factos:

1. Exequente embargada e executados embargantes, por escritu­ras públicas, juntas aos autos principais e cujo teor se dá por reproduzido, entre si ajustaram os contratos de mútuo com hipoteca sobre imóvel cuja falta de cumprimento, verificada pelo menos em 2016, justifica a ação executiva de que os presentes são apensos.

2. No dia 28 de dezembro de 2016, a embargada exequente dirigiu aos executados embargantes, que a receberam, a carta junta aos autos com a contestação, cujo teor se dá por reproduzido, nos termos da qual lhes concedia um prazo de 15 dias para regularização dos créditos, findo o qual recorreria à via judicial.

3. Por carta datada de 14 de agosto de 2017, junta com o requerimento de em­bargos de executado e cujo teor se dá por reproduzido, o executado em­bargante solicitou à embargada exequente a integração em PERSI.

4. Em resposta, no dia 1 de setembro de 2017, a embargada exequente remeteu a carta que junta e cujo teor se dá por reproduzido, nos termos da qual co­munica as condições em que aceita analisar a reestruturação das dívidas.

5. No dia 20 de setembro de 2017, o embargante executado remeteu à exe­quente embargada a carta junta aos autos com o requerimento de embar­gos de executado, cujo teor se dá por reproduzido, e nos termos da qual, sublinhando que a integração em PERSI não está sujeita a qualquer condi­ção, reitera o pedido formulado no sentido da integração em PERSI.

6. Em março de 2016, os embargantes executados alienaram o imóvel referido no ponto 1 - certidão de teor junta com o requerimento executivo e cujo teor se dá por reproduzido.


B – O Direito

1. O Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) surgiu como um instrumento criado pelo legislador, no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25-10, para atender às dificuldades financeiras dos cidadãos no pagamento das prestações do empréstimo bancário contraído para aquisição de habitação, em épocas de crise económica. Enquadra-se na política mais geral de defesa do consumidor, visando também fazer face às assimetrias informativas entre a instituição bancária e as famílias que recorrem ao crédito.

O Preâmbulo do diploma legal que o criou estabelece que no âmbito do PERSI, «(…) as instituições de crédito devem aferir da natureza pontual ou duradoura do incumprimento registado, avaliar a capacidade financeira do consumidor e, sempre que tal seja viável, apresentar propostas de regularização adequadas à situação financeira, objetivos e necessidades do consumidor».

Como se afirma no citado Preâmbulo:

 «A degradação das condições económicas e financeiras sentidas em vários países e o aumento do incumprimento dos contratos de crédito, associado a esse fenómeno, conduziram as autoridades a prestar particular atenção à necessidade de um acompanhamento permanente e sistemático, por parte de instituições, públicas e privadas, da execução dos contratos de crédito, bem como ao desenvolvimento de medidas e de procedimentos que impulsionem a regularização das situações de incumprimento daqueles contratos, promovendo ainda a adoção de comportamentos responsáveis por parte das instituições de crédito e dos clientes bancários e a redução dos níveis de endividamento das famílias.

Neste contexto, com o presente diploma pretende-se estabelecer um conjunto de medidas que, refletindo as melhores práticas a nível internacional, promovam a prevenção do incumprimento e, bem assim, a regularização das situações de incumprimento de contratos celebrados com consumidores que se revelem incapazes de cumprir os compromissos financeiros assumidos perante instituições de crédito por factos de natureza diversa, em especial o desemprego e a quebra anómala dos rendimentos auferidos em conexão com as atuais dificuldades económicas».

 

 2. No caso vertente, o tribunal de 1.ª instância e o Tribunal da Relação aderiram a visões distintas sobre as questões de direito suscitadas.

O tribunal de 1.ª instância julgou procedente a oposição à execução por embargos de executado, declarando a extinção da execução (artigo 732.º, n.º 4, do CPC), com o seguinte fundamento:

«Durante o período que decorre entre a integração do cliente no PERSI e a extinção deste procedimento, está, nomeadamente, vedado à instituição de crédito intentar acções judiciais com a finalidade de obter a satisfação do seu crédito (artigo 18.º, n.º 1, al. b)).

Em conformidade, e por maioria de razão, quando verificados os respectivos pressupostos, como no caso dos autos, é obrigatória a integração do cliente bancário no PERSI, pelo que a acção executiva só pode ser intentada contra os obrigados após a extinção deste procedimento – condição objectiva de procedibilidade, cuja falta, como no caso dos autos, corresponde a uma excepção dilatória inominada não sanável, que se julga procedente (art. 576.º, n.º 1 e n.º 2, e 577.º CPC) – neste sentido TRE de 6 de Outubro de 2016, proferido no âmbito do processo n.º 4956/14.8T8ENT-A.E1, in www.dgsi.pte, em consequência, extinta a execução.

Já o acórdão recorrido decidiu pela improcedência dos embargos de executado, baseando-se, para o efeito, no instituto do abuso do direito previsto no artigo 334.º do Código Civil, entendendo que a invocação pelos embargantes do DL n.º 272/2012 para sustentar que «(…) o Banco estava impedido de intentar acção judicial para satisfação do seu crédito no período compreendido entre a integração no PERSI e a extinção deste, configura um claro abuso de direito dos recorrentes, actuação que o direito não tutela e considera ilegítima – artigo 334.º do Código Civil.»

Referiu a decisão recorrida, para integrar os factos do caso nos requisitos do abuso do direito, o seguinte:

«Quando a apelante “…Em resposta, no dia 1 de Setembro de 2017,…remeteu a carta que junta e cujo teor se dá por reproduzido, nos termo da qual comunica as condições em que aceita analisar a reestruturação das dívidas….”. Estava a apresentar proposta (s) de regularização adequadas à situação financeira dos clientes e/ou a avaliar propostas alternativas dos próprios clientes (artigos 15.º e 16.º), dado que a integração no PERSI é automática.

Os apelados, face a tal, deviam ter apresentado contra proposta para chegar a acordo. E não o fizeram. Chegando à situação de alienarem o imóvel (facto 6). Este comportamento pode ser entendido como recusa da proposta apresentadas.»

3. Vejamos os factos do caso, a fim de proceder à atividade de subsunção jurídica:

Em 14 de agosto de 2017, o executado embargante solicitou à exequente a integração em PERSI (facto provado n.º 3). Em resposta, no dia 1 de setembro de 2017, o Banco exequente remeteu carta dirigida ao executado, nos termos da qual comunica as condições em que aceita analisar a reestruturação das dívidas (facto provado n.º 4). Em resposta a esta carta, o executado remeteu no dia 20 de setembro de 2017 carta, nos termos da qual, sublinhando que a integração em PERSI não está sujeita a qualquer condição, reitera o pedido formulado no sentido da integração em PERSI (facto provado n.º 5). Provou-se que, em março de 2016, os embargantes alienaram o imóvel sobre o qual incidiu o contrato de mútuo com hipoteca (facto provado n.º 6).

Desde pelo menos 2016, segundo o facto provado n.º 1, que se verifica a falta de cumprimento pelos executados dos contratos de mútuo com hipoteca sobre imóvel.   A situação sob apreciação reúne, assim, as condições para integração dos executados no PERSI, previsto no DL n.º 227/2012, de 25.10, que estabelece os princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e na regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários e cria a rede extrajudicial de apoio a esses clientes bancários no âmbito da regularização dessas situações.

Em caso de mora do devedor, a integração em PERSI, segundo o artigo 39.º, n.º 1, do citado diploma, é automática, cabendo à instituição de crédito mutuante informar o cliente dessa integração nos termos do artigo 14.º, n.º 4, no prazo máximo de cinco dias após a ocorrência da mora, através de comunicação em suporte duradouro.

As instituições bancárias passaram a ter de promover um conjunto de diligências relativamente a clientes bancários em mora ou incumprimento de obrigações decorrentes de contrato de crédito, tendo de integrá-los, obrigatoriamente, no PERSI (artigos 12.º e 14.º do DL n.º 272/2012).

O PERSI caracteriza-se por comportar três fases essenciais: uma inicial, outra de avaliação e proposta, e a terceira de negociação (artigos 14.º, 15.º e 16.º, do DL n.º 227/2012), extinguindo-se este regime especial, nos termos previstos no artigo 17.º, do referido diploma.

Nos termos do artigo 17.º (Extinção do PERSI), o PERSI extingue-se:

a) Com o pagamento integral dos montantes em mora ou com a extinção, por qualquer outra causa legalmente prevista, da obrigação em causa;

b) Com a obtenção de um acordo entre as partes com vista à regularização integral da situação de incumprimento;

c) No 91.º dia subsequente à data de integração do cliente bancário neste procedimento, salvo se as partes acordarem, por escrito, na respetiva prorrogação; ou

d) Com a declaração de insolvência do cliente bancário.

2 - A instituição de crédito pode, por sua iniciativa, extinguir o PERSI sempre que:

a) Seja realizada penhora ou decretado arresto a favor de terceiros sobre bens do devedor;

b) Seja proferido despacho de nomeação de administrador judicial provisório, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;

c) A instituição de crédito conclua, em resultado da avaliação desenvolvida nos termos do artigo 15.º, que o cliente bancário não dispõe de capacidade financeira para regularizar a situação de incumprimento, designadamente pela existência de ações executivas ou processos de execução fiscal instaurados contra o cliente bancário que afetem comprovada e significativamente a sua capacidade financeira e tornem inexigível a manutenção do PERSI;

d) O cliente bancário não colabore com a instituição de crédito, nomeadamente no que respeita à prestação de informações ou à disponibilização de documentos solicitados pela instituição de crédito ao abrigo do disposto no artigo 15.º, nos prazos que aí se estabelecem, bem como na resposta atempada às propostas que lhe sejam apresentadas, nos termos definidos no artigo anterior;

e) O cliente bancário pratique atos suscetíveis de pôr em causa os direitos ou as garantias da instituição de crédito;

f) O cliente bancário recuse a proposta apresentada, sem prejuízo do disposto no n.º 1 do artigo anterior; ou

g) A instituição de crédito recuse as alterações sugeridas pelo cliente bancário a proposta anteriormente apresentada, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo anterior.

3 - A instituição de crédito informa o cliente bancário, através de comunicação em suporte duradouro, da extinção do PERSI, descrevendo o fundamento legal para essa extinção e as razões pelas quais considera inviável a manutenção deste procedimento.

4 - A extinção do PERSI só produz efeitos após a comunicação referida no número anterior, salvo quando o fundamento de extinção for o previsto na alínea b) do n.º 1.

5 - O Banco de Portugal define, mediante aviso, os elementos informativos que devem acompanhar a comunicação prevista no n.º 3.

De acordo com o disposto nos artigos 14.º, n.º 4 e 17.º, n.º 3, do citado Decreto-lei, a integração no PERSI e a extinção do procedimento têm de ser comunicadas pela instituição de crédito ao cliente “através de comunicação em suporte duradouro”, sem prejuízo dos requisitos exigíveis quanto ao conteúdo dessas comunicações.

Como entendeu este Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 19-05-2020 (Processo n.º 6023/15.8T8OER-A.L1.S1), «2. Enquanto o mutuante não proporcionar ao devedor consumidor a oportunidade para encontrar uma solução extrajudicial, tendo em vista a renegociação ou a modificação do modo de cumprimento da dívida, não lhe é permitido o recurso à via judicial para fazer valer o seu crédito (como se extrai do art.18º daquele diploma). 3. O cumprimento prévio dos deveres impostos pelo regime do PERSI constitui um pressuposto específico da ação executiva movida por uma entidade financeira contra um devedor consumidor, cuja ausência se traduz numa exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso que conduz à absolvição da instância». No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 13-04-2021 (proc. n.º 1311/19.7T8ENT-B.E1.S1) onde se exarou em sumário que «A comunicação de integração no PERSI, bem como a de extinção do mesmo, constituem condição de admissibilidade da acção (declarativa ou executiva), consubstanciando a sua falta uma excepção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, que determina a extinção da instância (art. 576.º, n.º 2, do CPC)».

Dada a integração automática do cliente-devedor em mora no PERSI, tem de se considerar que os executados estão abrangidos por este regime de regularização da dívida, que só se extingue em situações tipificadas na lei (artigo 17.º, n.º 1 e 2, do DL 272/2012. Por outro lado, a extinção só produz efeitos, de molde a permitir ao Banco propor ação executiva, se for comunicada ao cliente nos termos legalmente exigidos (artigo 17.º, n.º 3, do citado diploma).

Ora, no caso vertente, o Banco e o cliente devedor, à data da proposição da ação executiva, encontravam-se em fase de negociação das condições do PERSI, não se tendo consumado um acordo para a regularização do pagamento. Durante a negociação do PERSI, as instituições bancárias estão vinculadas a um conjunto de deveres de conduta, entre os quais figuram os previstos no artigo 19º e 20.º, que demonstram a especial responsabilidade que o Estado pretendeu impor às instituições de crédito na gestão do PERSI, e a intenção de assim criar condições para que o cumprimento destes deveres seja fiscalizado pelo Banco de Portugal.

  Como reflexo desta responsabilidade bancária na condução do PERSI, o legislador estipulou que, nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 18.º do DL n.º 272/2012, no período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento, a instituição de crédito está impedida de: a) Resolver o contrato de crédito com fundamento em incumprimento; b) Intentar ações judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito.

A recorrida argumenta que a alienação do imóvel, pelos executados, sem autorização e conhecimento da Caixa, constitui uma causa de extinção imediata do PERSI, ao abrigo do artigo 17.º, n.º 2, al. e), do DL n.º 227/2012, por colocar em perigo a garantia, pelo que não estava impedida de intentar a ação executiva. Todavia, uma vez que a garantia do crédito é uma hipoteca, que, gozando de sequela (artigo 686.º do Código Civil), acompanha a coisa em todas as suas vicissitudes, não se pode afirmar, sem mais, que esteja em perigo a garantia, pois o devedor pode fazer-se pagar pelo valor da coisa onde quer que ela se encontre. Ademais, a lei não admite qualquer extinção automática do PERSI, exigindo o cumprimento de deveres de informação e de comunicação, que, no caso concreto, não foram cumpridos. É que, em face do n.º 3 do artigo 17.º, a instituição de crédito deve informar o cliente bancário, através de comunicação em suporte duradouro, da extinção do PERSI, descrevendo o fundamento legal para essa extinção e as razões pelas quais considera inviável a manutenção deste procedimento, o que a CGD não fez, partindo de imediato para a instauração da ação executiva.

Assim, não constando da matéria de facto o cumprimento, pela CGD, dos deveres legalmente impostos (não foi enviada, nem rececionada pelos devedores) qualquer carta da CGD com o conteúdo legalmente exigido), não se pode afirmar ter ocorrido a extinção do PERSI. Em consequência, o Banco exequente instaurou a execução durante o período de vigência do PERSI, numa fase em que estava impedido de o fazer, por força da lei. Estão, pois, verificados os pressupostos da exceção dilatória inominada não sanável (artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, e 577.º, ambos do CPC), aplicada pelo tribunal de 1.ª instância para declarar extinta a execução, nos termos do artigo 732.º, n.º 4, do CPC.

4. Mas será que invocando o regime do PERSI, os executados agiram em abuso do direito, uma vez que tinham já alienado o imóvel a terceiros, conforme entendeu o acórdão recorrido?

A figura do abuso do direito tem sido utilizada como uma válvula de escape para evitar os resultados injustos que a aplicação estrita da lei pode causar. Como se refere em Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 18-12-2008 (proc. 08B2688), “a figura do abuso do direito surge como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam manifestamente os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.”

Todavia, para que seja aplicado este instituto, não bastam conceções subjetivas de justiça, ou, até, que seja de facto produzida uma qualquer forma de injustiça ou de desequilíbrio entre as partes. 

Como se concluiu no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 12-01-2021 (proc. n.º 2689/19.8T8GMR-B.G1.S1), «I - O abuso de direito não significa uma desaplicação de normas com base numa remissão genérica para sentimentos de justiça. Os tribunais exigem a prova rigorosa dos seus elementos constitutivos e a ponderação dos valores sistemáticos em jogo, de acordo com modelos experimentados ao longo da história pelo labor da jurisprudência».

No mesmo acórdão, relatado pela agora relatora, se refere que “o instituto do abuso do direito tem sofrido uma forte evolução e alargamento na sua aplicação, e pressupõe um conjunto de critérios, emergentes do sistema jurídico, suscetíveis de uma aplicação rigorosa e objetiva, com base no labor jurisprudencial intenso verificado nas últimas décadas nos tribunais portugueses e o contributo da doutrina para a construção dogmática da figura”.   

As raízes históricas do instituto do abuso do direito indicam que foi claro que esta figura não remetia para a consciência subjetiva do juiz ou para sentimentos individuais, fruto de sensibilidades pessoais, mas para sentimentos de justiça que pudessem ser partilhados pela generalidade das pessoas e que se reportassem à consciência social e jurídica dominante.

Para que seja aplicado o instituto do abuso do direito, é, pois, necessário que os factos provados sejam inequívocos no sentido de demonstrarem a má fé dos executados e que o exercício do seu direito ou posição jurídica exceda o fim social e económico que constitui a sua razão de ser.

Ora, a este respeito, entendemos que a alienação do imóvel sobre o qual incide a garantia prestada não desonera os devedores do pagamento da dívida, nem desonera a instituição bancária das suas obrigações de integração dos executados em PERSI, e de informação/comunicação da extinção do mesmo. Assim, diferentemente do acórdão recorrido, entendemos que esta alienação, desprendida de factualidade que não se encontra alegada nem provada relativa ao objetivo do negócio ou outras circunstâncias contemporâneas do mesmo indiciadoras de má fé, não paralisa o direito de os executados solicitarem a integração em PERSI e tentarem negociar as melhores condições para o pagamento da dívida.

Para além de não haver, no caso dos autos, factualidade demonstrativa dos requisitos do abuso do direito, não se pode esquecer, como se salienta no Preâmbulo do diploma legal que prevê o PERSI, que estamos perante uma relação jurídica caraterizada por uma acentuada assimetria informativa, em que a parte mais fraca é o cliente bancário, que recorreu ao crédito. Não se pode afirmar, pois, como fez o acórdão recorrido, que incumbisse aos executados apresentar contra-propostas durante a negociação, sendo, pelo contrário, ao Banco que compete gerir o processo de negociação, podendo sempre, caso entenda que estão frustradas as tentativas de acordo ou que o cliente não colabora, extinguir o PERSI observados os pressupostos legais exigíveis para o efeito.

O instituto do abuso do direito tem que estar secundado em factos indiciários de má fé ou de contrariedade aos bons costumes ou ao fim económico e social do direito. Ora, a má fé dos executados, no caso dos autos, não está provada, nem resulta da matéria de facto. O conteúdo das cartas trocadas entre o Banco e os executados, juntas aos autos, esclarecem que a CGD tentou passar por cima do regime do PERSI, enviando uma carta aos executados em que os insta a pagar a quantia em dívida no prazo de 15 dias, sob ameaça de ação executiva, sem cumprir o dever de informar os executados deste regime especial de proteção dos devedores (carta de 28 de dezembro de 2016 – facto provado n.º 2). Na verdade, a iniciativa de requerer o regime do PERSI partiu dos executados (carta de 14 de agosto de 2017 – facto provado n.º 3), tendo a CGD colocado condições prévias à integração em PERSI e exigido o pagamento imediato de uma parte da dívida (carta de 1 de setembro de 2017 – facto provado n.º 4), propostas de legalidade duvidosa em face da disciplina legal do procedimento (obrigatoriedade do PERSI e deveres de informação das instituições de crédito).

O recurso ao PERSI corresponde ao exercício de um direito que a lei concedeu aos devedores precisamente por entender que os clientes bancários, em dificuldades financeiras para assumirem as suas obrigações, precisam de proteção.

Para além de não estarem verificados os requisitos específicos do instituto do abuso do direito, nas suas várias modalidades, tal como vêm sendo sedimentados pela jurisprudência e pela doutrina, são aqui pertinentes as afirmações de Vaz Serra (“Abuso de direito”, BMJ, n.º 85, pp. 243 e ss) e de Manuel de Andrade (Teoria Geral das Obrigações, Almedina, Coimbra, 1966, p. 63), que formulavam o abuso do direito através de cláusulas gerais – “clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante” ou “de modo particularmente escandaloso para a consciência jurídica dominante”. Com efeito – reitera-se – a assimetria informativa entre as partes de um contrato de mútuo bancário, em que uma delas, o cliente-devedor, ocupa a posição de consumidor, juntamente com a escassez dos factos provados, impedem que estejamos perante qualquer injustiça para o Banco que choque a consciência social dominante. De resto, o Banco não fica prejudicado com a alienação, uma vez que continua a ser titular de um direito de hipoteca sobre o bem alienado.

Como se entendeu no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 02-12-2013 (processo n.º 306/10.0TCGMR.G1.S1), «A aplicação do instituto do abuso do direito tem uma natureza subsidiária, só a ele sendo lícito recorrer na falta de uma norma jurídica que resolva, de forma adequada, a questão em causa, exigindo-se a prova rigorosa dos seus elementos constitutivos e a ponderação dos valores sistemáticos em jogo, sob pena de se tratar de uma remissão genérica e subjectiva para a materialidade da situação».

  

5. Assim, por não ser aplicável o artigo 334.º do Código Civil, revoga-se o acórdão recorrido e repristina-se a sentença do tribunal de 1.ª instância.

6. Anexa-se sumário, elaborado de acordo com o artigo 663.º, n.º 7, do CPC:

I - A aplicação do instituto do abuso do direito tem uma natureza subsidiária, só a ele sendo lícito recorrer na falta de uma norma jurídica que resolva, de forma adequada, a questão em causa.

II - Dada a integração automática do cliente-devedor em mora no PERSI - Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (e o dever do Banco proceder à mesma), tem de se considerar que os executados estão abrangidos por este regime de regularização da dívida, que só se extingue em situações tipificadas na lei (artigo 17.º, n.º 1 e 2, do DL 227/2012, de 25-10) e mediante comunicação aos clientes bancários-devedores, nos termos do artigo 17.º, n.º 3, do diploma que criou o PERSI.

III – Não constando da matéria de facto que tenha ocorrido a extinção do PERSI, nem que a exequente Caixa Geral de Depósitos, SA, tenha comunicado aos executados, nos termos da lei, essa eventual extinção, conclui-se que o Banco exequente instaurou a execução durante o período de vigência do PERSI, numa fase em que estava impedido de o fazer, por força da lei (artigo 18.º, n.º 1, al. b), do DL n.º 227/2012).

IV – Neste contexto, e na falta de factos indiciadores de má-fé, a invocação pelo cliente-bancário das normas jurídicas do regime jurídico do PERSI a seu favor não constitui um abuso do direito, mesmo que tal tenha sucedido após a alienação do imóvel, garantia do mútuo.

V – Não se pode esquecer, como se salienta no Preâmbulo do diploma legal que prevê o PERSI, que estamos perante uma relação jurídica caraterizada por uma acentuada assimetria informativa, em que a lei inculca uma especial responsabilidade nas instituições bancárias e considera o cliente bancário-consumidor como a parte mais fraca. 

III – Decisão

Pelo exposto, decide-se, na 1.ª Secção deste Supremo Tribunal de Justiça, conceder a revista e revogar o acórdão recorrido, repristinando-se a sentença do tribunal de 1.ª instância.

Custas pela recorrida.

Lisboa, 16 de novembro de 2021 

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)

Fernando Samões (2.º Adjunto)