Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B3815
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: AVAL
LIVRANÇA EM BRANCO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
DENÚNCIA
SÓCIO
Data do Acordão: 03/31/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :


1. Tendo intervindo na celebração do pacto de preenchimento de uma livrança incompleta, o avalista pode opor ao beneficiário a excepção material do preenchimento abusivo, quando a execução foi por este instaurada.
2. Cabe então ao avalista o ónus da prova dos factos constitutivos dessa excepção.
3. Não são transponíveis para o aval as razões que determinaram o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2001, relativo à fiança genérica de obrigações futuras.
4. Não podem ser invocadas como causa suficiente de ineficácia do aval prestado, nem a perda da qualidade de sócio da sociedade avalizada, nem a renúncia à gerência, por parte do avalista.
5. Independentemente de poder ser interpretada no sentido de exprimir a vontade unilateral de pôr fim a um contrato de constituição do aval, não pode ser tratada como denúncia uma declaração dirigida pelo avalista apenas ao beneficiário da livrança.
6. A responsabilidade do avalista mede-se pela responsabilidade do avalizado.
Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1.AA, avalista, deduziu oposição à execução instaurada por F..., SA, beneficiário, com base numa livrança subscrita por BB Fábrica de Calçado, Lda (anteriormente denominada CC, Lda).

Em síntese, sustentou que a livrança, subscrita e avalizada em branco, fora preenchida pelo exequente (com o local e a data de emissão, o vencimento, o valor, o local de pagamento e a identificação dos subscritores) sem o seu consentimento, ou, sequer, conhecimento, contra a sua vontade e em abuso de direito e com má fé; que se destinara a garantir um contrato de concessão de crédito a CC, Lda., de que era sócio-gerente; que cedera a sua quota e renunciara à gerência em 29 de Maio de 2001, actos devidamente levados ao registo a 13 de Julho seguinte; que então enviou ao exequente uma carta solicitando “a retirada do seu aval e do de sua mulher nas livranças da «CC, Lda»”; que o exequente continuou a financiar esta empresa, mediante novos financiamentos e novas aberturas de crédito; que a livrança é nula, por não conter os elementos essenciais (artigos 33º e 77º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças) e pela indeterminabilidade do seu objecto (artigo 280º do Código Civil): que a livrança se encontra prescrita, quer como obrigação cambiária, “quer enquanto caução ou fiança”, por se ter verificado a novação de todas as obrigações inicialmente garantidas; que é abuso de direito pretender manter indefinidamente uma livrança em branco, para a poder preencher quando se quiser; que o exequente violou o princípio da boa fé, nomeadamente por não ter respondido quando lhe solicitou ser retirado do aval, assim o convencendo de que a sua pretensão tinha sido acolhida.

A oposição foi indeferida liminarmente; o indeferimento foi, todavia, revogado pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 69.

Contestando, F... SA sustentou ser infundada a oposição, nomeadamente por ter preenchido a livrança de acordo com uma Convenção de Preenchimento que o oponente subscreveu, por o aval não ser afectado pela cessão de quotas, que aliás nem lhe tinha sido comunicada, por o oponente não ter o direito de unilateralmente se desonerar, por o silêncio relativamente à carta que lhe fora enviada não ter o significado pretendido pelo oponente, por não ter ocorrido qualquer prescrição ou novação, por não ter violado as regras da boa fé.

Por sentença de fls. 164, a a oposição foi julgada improcedente, decisão que veio a ser confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 314.

2.AA recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça. O recurso foi admitido como revista com efeito meramente devolutivo.

Nas alegações então apresentadas, formulou as seguintes conclusões:

«I- A ponderação das consequências da decisão constitui um factor relevante da realização do direito, habilitando as regras da "interpretação sinéptica" o intérprete-aplicador a pensar "através de consequências” que permitem, pelo conhecimento e ponderação dos efeitos das decisões, em consonância com a realidade sócio-económica em se inserem os sujeitos processuais, repudiar qualquer resultado injusto, ainda que de conformidade formal, assim prosseguindo, na vida jurídica, a realização integral do direito.

1.Mostra-se violado, na desconsideração do seu resultado que ressalta da decisão recorrida, o disposto no n.º3 do art. 9.º do C. Civil e o art. 20.° da Constituição da República Portuguesa, donde decorre que a solução injusta no resultado não pode ser entendida como vontade da lei;

II - A relação que intercede entre o avalista do subscritor e o beneficiário de uma livrança é uma relação imediata, na medida em que a obrigação daquele encontra como primeiro credor o beneficiário, o qual assim se lhe opõe directamente.

1 - Mostra-se incorrectamente interpretado o regime jurídico das letras e livranças, mormente o art. 17.° da Lei Uniforme respectiva, o qual postula interpretação como a que se contém na precedente conclusão.

111- A convenção de preenchimento de livrança que permita ao seu beneficiário preenchê-Ia, em data completamente dependente do seu livre arbítrio, por força de quaisquer operações bancárias legalmente permitidas, sem menção expressa da sua origem ou natureza, é nula, por indeterminabilidade do seu objecto, exactamente pelos motivos, normas e princípios que presidiram à prolação do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ, de 23/01/2001, n.º 4/2001, in D.R., série A, n.º 57, de 08/03/2001.

1 - Mostra-se incorrectamente interpretado o art. 280.° n.1, do Código Civil, quer pela indeterminabilidade do objecto da garantia-aval, quer pela distância intelectual e dominial a que se encontrava, no momento do seu preenchimento, o avalista da empresa avalizada, quer, ainda, pela distância temporal em que o mesmo ocorreu, face à subscrição da livrança, de acordo com o voto de vencido do Exmo. Senhor Conselheiro Sousa Inês, no acórdão referido no corpo desta conclusão, a contrario sensu.

IV - Mesmo que inexistissem as cláusulas referidas na conclusão anterior, deve sempre considerar-se válida a desvinculação ad nutum do avalista face a eventual inexistência de convénio ou acordo nesse sentido, atenta a "repugnância, retratada no n.º2 do art. 280.0ºdo C. Civil", da lei pelas obrigações "ad aeternum", devendo julgar-se inerente às relações jurídicas de duração indeterminada a faculdade de se lhes pôr termo mediante denúncia.

1 - Mostra-se violado o n.º 2 do art. 280.º do Código Civil, já que a tese de que o aval é irrevogável, convertendo-o assim em obrigação desprovida de limite de tempo é contrária à ordem pública, bem como à al. J} do art. 18.º do D. L. N. o 446/85 (Lei das Cláusulas Contratuais Gerais) que expressamente proíbe em absoluto a existência de cláusulas com tal conteúdo.

V- A decisão que se pretende ver repudiada e se acusa nas anteriores conclusões 11, 111 e IV, encerra uma interpretação inconstitucional do regime jurídico das letras e livranças, nomeadamente dos artigos 10.º e 17.º da Lei Uniforme respectiva, já que qualquer delas conduz à sonegação do acesso, pelo avalista, à tutela jurisdicional efectiva, deixando-o totalmente à mercê do avalizado e do credor, os quais, assim, até se podem conluiar para o prejudicarem a seu bel-prazer, sem que lhe seja permitido qualquer controle.

1 - Mostra-se violado o Art. 20º da C.R.P., o qual impunha a interpretação que se propugna nas conclusões referidas no corpo desta.

IV- A absurda e desproporcionada liberdade de conformação de um título de crédito, impõe, como qualquer outra liberdade, inerente responsabilidade. Ainda que se admita a validade literal do convénio de preenchimento o que não concedemos, tal implica sempre um forte acréscimo da exigência de cumprimento dos deveres acessórios de conduta, nomeada e principalmente dos de informação e esclarecimento, sob pena de perda da garantia.

1 - Mostram-se violados o nº 2 do art 762º e o art.334º, ambos do Código Civil, os quais implicavam a consideração do preenchimento da livrança como abusiva, face à violação dos deveres referidos no corpo da conclusão .

V- Sendo o Recorrente a parte fraca, por débil economicamente e a menos preparada tecnicamente, de uma relação concluída com um contraente profissional, especializado na matéria, dever-lhe-á ser amplamente permitido o recurso a todos os meios de defesa, como forma de o proteger face à sua evidente fragilidade.

1 - Mostra-se violado o princípio da igualdade, consagrado, entre outros, no art. 13.°, mormente no seu n.o 2, da Constituição da República Portuguesa, o qual impqunha a protecção reclamada para o executado, face à sua evidente falta de cultura jurídico-cambial, sobretudo em relação à preparação, obrigatória neste domínio, do exequente.

VI- O banco, enquanto parte forte, económica e juridicamente, dispondo de quadros com uma preparação e formação muito superior à média, estava obrigado, ao receber a carta do recorrente solicitando a retirada do seu aval a partir daquela data, a responder-lhe, informando-o de que não iria considerar o seu pedido, ao invés de se remeter ao silêncio concupiscente, e, contando com o aval cuja pretensão de retirada fora manifestada, prosseguir em sucessivas renovações do contrato, efectuando novos financiamentos à empresa do

1 - Mostra-se violado o n.º 2 do art. 762.° do C. Civil e o princípio geral da boa-fé que nele se contém, de onde decorre a obrigação de informação que, uma vez violada, implica a libertação da responsabilidade do recorrente em relação ao aval cuja retirada solicitou;

VII- Deve considerar-se perfeitamente válida e eficaz, para o efeito de se desvincular, para o futuro, do aval em livrança cujo convénio de preenchimento não contém qualquer limite temporal, a declaração, enviada por um avalista, naqueles termos, de uma empresa, através de carta registada com aviso de recepção, solicitando a retirada do aval em virtude de ter deixado de ser sócio da empresa avalizada. Quando muito, perante tal declaração, o beneficiário da livrança apenas pode proceder ao seu imediato preenchimento, demonstrando a sua não aceitação da aludida desvinculação e não, aceitar a declaração, sem nada dizer, vindo a accioná-la cinco anos depois da recepção da aludia declaração.

1 - Mostra-se violado o art. 10.° da LULL, do qual resulta a contrario sensu, que o preenchimento da letra pelo subscritor do pacto respectivo, contra este pacto –  no caso, para além da sua vigência, no que ao recorrente concerne ­pode ser-lhe oposta, já que demonstra inequívoca má-fé e, logicamente, falta grave.

Nestes termos e nos Que V. Exas. doutamente suprirão, deve julgar-se o presente recurso procedente, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-a por outra que julgue a oposição totalmente procedente (...)”.

 Contra-alegou o exequente, sustentando o acórdão recorrido e concluindo nestes termos:

«1.O pacto de preenchimento de livrança subscrito pelo Recorrente não é nulo por indeterminabilidade do objecto e as obrigações nele consubstanciadas são obrigações com objecto perfeitamente determinável uma vez que aquela convenção contém com clareza os critérios objectivos da sua determinação, maxime, a natureza dos títulos de que poderão derivar obrigações para os respectivos outorgantes.

2. A obrigação do Recorrente enquanto avalista não é eterna dado que o respectivo título cambiário desde sempre se destinou a garantir especificamente as obrigações decorrentes do predito financiamento, o qual foi do seu inteiro conhecimento, pelo que não pode o Recorrente ignorar e pretender denegar as responsabilidades conscientemente assumidas perante o Recorrente e que bem sabe que se mantêm até integral pagamento.

3. Sendo assim seguro afirmar-se que o prazo para a validade do aval não é outro que não seja o efectivo cumprimento de todas as obrigações garantidas.

4. Assim, não sendo a obrigação do Recorrente "eterna" não poderia o mesmo denunciá-­la unilateralmente.

5. Acresce que a intervenção do Recorrente enquanto avalista no título dado à execução determina a sua responsabilidade enquanto terceiro (sócio ou não da sociedade subscritora) que garante o pagamento do mesmo título sendo certo que a respectiva responsabilidade é fixada pelo próprio título e pelo pacto de preenchimento acordado entre as partes.

6. Se por um lado, nada impede a livre disposição das participações sociais respectivas, a verdade é que, por outro lado, a cessão da quota do Recorrente não abrange as obrigações por si contraídas a título pessoal perante o Recorrente, sendo igualmente irrelevante a perda da qualidade de gerente da subscritora em data posterior à entrega da livrança ao Recorrente.

7. A obrigação do Recorrente não se deve submeter às regras da denúncia das relações obrigacionais sem prazo de duração pelo que o Recorrente, após ter cedido a sua quota e renunciado à gerência da sociedade subscritora da livrança sub judice, poderia, se assim o entendesse, pôr termo à obrigação de avalista mediante pagamento das responsabilidades garantidas ao tempo em que as liquidasse, notificando o Recorrente para proceder ao preenchimento e aposição da data de vencimento eventualmente coincidente com a da cessão da quota e neste caso, o Recorrente poderia lançar mão do seu direito de regresso contra os restantes co­-obrigados cambiários, nos termos da LULL.

8. Mesmo a admitir-se, o que apenas por raciocínio académico se concede, que se considera válida a denúncia da convenção de preenchimento da livrança dada à execução por parte do Recorrido / Recorrente, sempre os efeitos de tal denúncia importariam o pagamento ao Recorrente do aludido financiamento à data da denúncia.»

9. Com efeito, o regime da livre denúncia nos contratos renováveis automaticamente deve ser interpretado em conjugação com os princípios do pacta sunt servanda e da segurança jurídica, estando sujeito aos limites que decorrem da natureza do vínculo assumido entre as partes.

10. Ora, invocar agora, por conveniência de não pagamento, que à data do preenchimento da livrança já não era sócio e gerente, é, convenhamos, um acto de ele próprio de abuso de direito.

11. Não é admissível que o Recorrente possa denunciar um contrato com o único fim de se furtar ao respectivo pagamento, pois isso opõe-se à natureza do respectivo vínculo obrigacional sendo certo que o exercício do direito de denúncia apesar de discricionário, deve sujeitar-se às regras da boa-fé.

12. Ora, sendo a denúncia um modo de cessação de vínculos obrigacionais que visa extinguir a relação contratual, seria contrário aos princípios da boa fé que tal extinção não tivesse por efeito a restituição ao Recorrente do capital mutuado sob a forma de abertura de crédito em conta corrente.»

3. Encontram-se provados os seguintes factos (transcreve-se o acórdão recorrido):

«1. Foi apresentada à execução de que estes autos constituem um apenso, o documento junto a fls. 31 e 31 verso dos mesmos, denominado “livrança”, contendo, além do mais, os seguintes dizeres:

- Importância – 48.483,93 €;

- Vencimento – 2005/08/10;

- Local e Data de Emissão – Porto – 2005-08-02;

- Subscritores – a firma “ BB FÁBRICA DE CALÇADO, LDA ( ANTERIORMENTE DENOMINADA “ CC, LDA “), com a aposição de assinaturas sobre o carimbo com os dizeres “CC, LDA “ e “ OS GERENTES” no local respectivo;

- No verso encontram-se apostas três assinaturas, uma das quais a do aqui oponente, por debaixo das expressões “ Por aval ao Subscritor” (cfr. doc. de fls. 31 e 31 verso dos autos de execução …).

2. Consta a fls. 92 e 92 verso dos autos documento denominado “ CONVENÇÃO DE PREENCHIMENTO DE LIVRANÇA EM BRANCO”, em que figura como primeiro outorgante a aqui exequente, segundo outorgante a firma “ CC, LDA”, e como terceiro outorgantes, entre outros, o aqui oponente, AA, no qual, além do mais, os terceiro outorgantes declararam o seguinte.

“ Os Terceiros outorgantes, que intervêm na qualidade de avalistas do referido título, declaram que possuem um perfeito conhecimento do conteúdo das responsabilidades assumidas pelo segundo outorgante, do seu montante e dos termos da presente convenção, à qual dão o seu acordo, sem excepções ou restrições de tipo algum, autorizando assim e por isso o preenchimento da Livrança nos precisos termos exarados “ (cfr. doc. de fls. 92 e 92 verso dos autos …).

3. Por carta registada datada de 2 de Agosto de 2005, a aqui exequente comunicou ao aqui oponente, além do mais, o seguinte:

“(…) Serve a presente para comunicar que, nesta data, procedemos ao preenchimento da Livrança Caução subscrita por “NTV –

BB FABRICA DE CALÇADO, LDA” e avalizada por v. Exa, pelo valor em dívida até ao momento, acrescido de juros e respectivo Imposto de Selo, no montante global de EUR 48.483,93 (quarenta e oito mil, quatrocentos e oitenta e três euros e noventa cêntimos), correspondendo EUR 45.583,96 a capital e EUR 2.899,97 aos respectivos juros e Imposto de Selo.

O seu vencimento verificar-se-á em 10-08-2005, devendo para o efeito proceder ao seu pagamento no F..., S.A., sito na Rua ..., PORTO (…)” ( cfr. doc. de fls. 94 a 96 …).

4.O objecto social da firma, ““CC, LDA “, consistia no exercício da indústria de calçado ( cfr. doc. de fls. 22 a 26 dos autos …).

5. Por Escritura Pública outorgada no dia 29 de Maio de 2001, no Cartório Notarial de São João da Madeira, denominada de “ CESSÃO DE QUOTA”, ao aqui oponente e mulher, DD, declararam, além do mais, ceder a quota de que era titular o aqui oponente na firma, “ CC, LDA”, de cinco milhões de escudos, ao segundo outorgante, EE, que declarou aceitar, a pagar em dezasseis prestações mensais iguais e sucessivas de um milhão e dezoito mil setecentos e cinquenta escudos, vencendo-se a primeira nesta data e as restantes em igual dia dos meses sucessivos, com reserva de propriedade até integral pagamento, com o valor contabilístico de vinte e oito milhões oitocentos e quarenta e oito mil escudos, e que o cedente renuncia à gerência, que ali vinha exercendo (cfr. doc. de fls. 27 a 31 dos autos …).

6. Por carta regista com aviso de recepção, datada de 13 de Julho de 2001, o aqui oponente comunicou à aqui exequente o seguinte:

“Venho com a presente solicitar que o meu aval, bem como o da minha esposa, sejam retirados das livranças da firma CC, LDA, em virtude de já não pertencer à mesma (…)” (cfr. docs. de fls. 33 a 35 dos autos …).

7. Enquanto gerente da firma, “ CC, LDA”, o aqui oponente mantinha uma relação com os funcionários da exequente, na agência de São João da Madeira, onde aquela firma tinha domiciliadas as suas contas bancárias, por ele considerada como de confiança.

8. Esses funcionários da exequente, bem como gente em São João da Madeira, sabiam que o aqui oponente chegava a ser identificado com a fábrica e esta com ele: “ O AA da Cross”.

9. Alguns funcionários da exequente, bem como gente em São João da Madeira ligada aos negócios, souberam do dissenso ocorrido entre o aqui oponente e o filho do seu sócio FF, de nome EE, que o levou á cedência da quota aludida em E).

10.Esse dissenso prendia-se com a política de investimentos que o EE queria implementar na firma, á qual o aqui oponente era absolutamente contrário.

11. Tal facto era do perfeito conhecimento da exequente.

12. O Sr. EE fez distribuir pelos parceiros comerciais da dita firma e chegou a fazer entregar a alguns dos responsáveis locais dos bancos o documento junto com a fls. 32 dos autos, denominado “ CIRCULAR”.

13. A carta referida em 6. foi elaborada e enviada pelo aqui oponente.

14. O aqui oponente, por ignorância e por confiança na exequente, sempre tomou tal carta por boa e bastante.

15 .Face ao silêncio da exequente em relação a tal carta, o oponente nunca pôs em dúvida, estar o assunto completa e definitivamente resolvido.

16.O oponente não pediu à exequente o original do documento referido em 1.

17. Após o facto aludido em 5. o exequente continuou a financiar a firma, “CC, LDA” e efectuou novos financiamentos.

18. A exequente, quando se apercebeu que a assinatura do aqui oponente deixara de figurar em documentos de gestão corrente da subscritora do documento referido em A), questionou a firma, na altura denominada “ CC, LDA”, sobre a razão de ser de tal ausência.”

4. Cumpre conhecer do recurso.

As questões colocadas pelo recorrente são as seguintes:

- nulidade do pacto de preenchimento e preenchimento abusivo da livrança;

- validade da “desvinculação ad nutum”;

- inconstitucionalidade da interpretação adoptada pelo acórdão recorrido quanto aos artigos 10º e 17º da da Lei Uniforme Relativa ás Letras e Livranças;

- violação do artigo 20º da Constituição;

- violação dos deveres acessórios de conduta, abuso de direito e violação do princípio da igualdade.

5. Cumpre conhecer do recurso, tendo sempre presente, por um lado, que, tratando-se de uma execução baseada num título extra-judicial, a oposição pode assentar, além da “inexequibilidade do título” e das outras causas previstas no artigo 814º do Código de Processo Civil para a execução de sentenças, em qualquer fundamento “que seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração” (artigo 816º), mas que, por outro, é necessário que o fundamento invocado seja compatível com a natureza cambiária do título.

Para além disso, que, sendo a execução instaurada pelo beneficiário da livrança (que lhe foi entregue em branco, isto é, incompleta) e tendo o avalista intervindo na celebração do pacto de preenchimento (o que permite situá-lo ainda no domínio das relações imediatas), tal como o subscritor, lhe é possível opor ao beneficiário a excepção material de preenchimento abusivo do título (assim, por exemplo, os acórdãos de 19 de Junho de 2007, 4 de Março de 2008, 17 de Abril de 2008, ou 9 de Setembro de 2008, disponíveis em www.dgsi.pt como procs. nºs 07A1811, 00A727, 07A4251, 08A1999, respectivamente) e, naturalmente, outros meios de defesa relativos à relação extra-cartular que os liga.

Cabe-lhe então o ónus da prova em relação aos factos constitutivos daquela excepção, ou destes outros meios de defesa, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 342º do Código Civil (assim, por exemplo, os acórdãos de 24 de Maio de 2005, 14 de Dezembro de 2006, disponíveis em www.dgsi.pt como procs. nºs 05A1347 e 06A2589 ou o já citado acórdão de 17 de Abril de 2008).

À mesma conclusão se deve assim chegar quanto à possibilidade de o avalista questionar a validade do pacto de preenchimento em que interveio; todavia, e independentemente de saber em que termos se teria de processar a intervenção do avalizado, parte no mesmo pacto, a verdade é que a respectiva anulação forçaria a análise do pacto tácito que a subscrição de uma livrança em branco sempre implica, retirando então ao avalista a legitimidade para discutir um eventual preenchimento abusivo.

6. O oponente invoca a nulidade do pacto de preenchimento da livrança, constante do documento junto aos autos a fls.92, por “indeterminabilidade do seu objecto” (artigo 280º do Código Civil). Sustenta serem transponíveis para o aval “os motivos, normas e princípios que presidiram à prolação do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ, de 23/01/2001”.

No entanto, e como este Supremo Tribunal já observou no seu acórdão de 3 de Junho de 2007 (disponível em www.dgsi.pt como proc. nº 07A205), em termos que se subscrevem. “diz o artº 280º, nº 1 do C. Civil que é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja… indeterminável. E o acórdão uniformizador de jurisprudência nº 4/2001, de 23.1.2001 (DR I-A Série, de 8.3.2001) decidiu que é nula, por indeterminabilidade do seu objecto, a fiança de obrigações futuras, quando o fiador se constitua garante de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado intervenha.
Todavia, não se deve confundir o aval com a fiança, sendo ininvocável no caso vertente a doutrina do citado acórdão uniformizador, já que o regime da fiança é diferente do relativo ao aval. É preciso não perder de vista que o recorrente não foi demandado como fiador do negócio jurídico subjacente à livrança, mas como avalista da subscritora desta, como garante apenas da obrigação cambiária assumida pela subscritora, desencadeando o aval uma obrigação, independente e autónoma, de honrar o título cambiário, ainda que só caucione outro co-subscritor – princípio da independência do aval (artº 32º, aplicável ex vi artº 77º, ambos da LULL. Como refere Ferrer Correia (Lições de Direito Comercial, Letra de Câmbio, 1966, vol. III, pág. 195 e segs.), a responsabilidade do avalista não é subsidiária da do avalizado, mas solidária, pelo que ele não goza do benefício da excussão prévia, mantendo-se a sua obrigação, nos termos do § 2º do artº 32º da LULL, mesmo no caso de a obrigação por ele garantida ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma, não se comunicando a nulidade intrínseca da obrigação avalizada à do avalista, assistindo ao avalista, se pagar o título, o direito de regresso contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude do título (artº 32º, § 3º da LULL).
A data do vencimento, o local do pagamento e o valor não constavam da livrança aquando da emissão dela e do aval, mas ficaram determinados com o completo preenchimento do título de crédito, sendo irrelevantes as relações extracartulares.
Como se escreveu no acórdão de 5.12.2006, no processo 2.522/06 (com relato do Cons. Urbano Dias), o regime da fiança é diferente do relativo ao aval, tendo aquela a ver com a obrigação principal, substantiva, dependente da respectiva causa, ao passo que o aval representa a obrigação cartular, nada tendo a ver com a relação subjacente, só se consolidando o aval no mundo dos negócios após o completo preenchimento do título em branco, momento em que se constitui como dívida cambiária perfeitamente determinada.
Naufraga a nulidade do aval por alegada indeterminabilidade do objecto, visto que do simples exame da livrança preenchida se comprova, sem necessidade de recurso a quaisquer elementos externos, qual o montante da responsabilidade do avalista.”

Não procede, de igual forma, a indeterminabilidade sustentada na “distância intelectual e dominial a que se encontrava, no momento do seu preenchimento, o avalista” ou na “distância temporal em que o mesmo ocorreu, face à subscrição da livrança”. Tais questões, aliás, não têm autonomia relativamente, por um lado, à questão de saber se a perda da qualidade de sócio e a renúncia à gerência da sociedade avalizada se repercute na subsistência do aval e, por outro, à da vinculação “ad aeternum”, na terminologia do recorrente.

Ora, nem a perda da qualidade de sócio da sociedade avalizada, nem a renúncia à gerência, por parte do avalista, podem ser invocadas como causa de ineficácia do aval, já que nada foi acordado nesse sentido (cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 11 de Setembro de 2007, disponível em www.dgsi.pt) ou, como o recorrente sustenta, de indeterminabilidade da convenção de preenchimento da livrança, já que em nada afecta a possibilidade de identificação do objecto negocial.

Quanto à invocada vinculação “ad aeternum”, será analisada de seguida.

Não procede, pois, a nulidade da convenção de preenchimento da livrança, por indeterminabilidade do seu objecto.

7. O recorrente sustenta ainda que “deve sempre considerar-se válida a desvinculação ad nutum do avalista face a eventual inexistência de convénio ou acordo nesse sentido”.

A análise desta questão só tem utilidade neste recurso se puder entender-se como tal a declaração enviada ao exequente por carta registada de 13 de Julho de 2001, cujo teor se encontra transcrito no ponto 6. da lista de factos provados; é aliás, o que o recorrente sustenta, afirmando que das regras de interpretação dos negócios jurídicos, constantes dos artigos 236º e segs. do Código Civil, “não pode a declaração deixar de ser entendida como vontade de denunciar o contrato de garantia que constitui a dação de aval”.

Entende-se que o artigo 17º da Lei Uniforme não impede o avalista de opor esta excepção ao exequente.

No entanto, aquela declaração não pode valer como denúncia do “contrato de garantia que constitui a dação de aval”, pese embora estar provado que, com o envio desta carta e com o silêncio por parte do exequente, o oponente considerou “resolvida” a questão da sua responsabilidade como avalista.

Dentro dos limites em que o Supremo Tribunal de Justiça pode pronunciar-se sobre a interpretação de declarações de vontade, e na falta de prova de que o exequente sabia que, com tal declaração, o oponente estava a pôr unilateralmente fim ao contrato, não pode retirar-se dessa declaração tal significado. Há que ter em conta que não estava em causa um negócio respeitante apenas a ambos, mas um contrato também celebrado com o avalizado – o contrato de garantia, como refere o recorrente.

Aliás, ainda que tal sentido pudesse ser atribuído à declaração, bastava esta última consideração para excluir a possibilidade de se haver por validamente denunciado o contrato de constituição do aval.

Não procede, pois, a pretensão de que a “autorização de preenchimento da livrança no que ao recorrente concerne” caducou em virtude da “desvinculação assim operada”, não podendo também por este motivo considerar-se abusivo o preenchimento da livrança (artigo 10º da Lei Uniforme).

Sempre se acrescenta que, neste domínio, haver como possível a denúncia, por não ter sido estipulado, nem prazo para a obrigação do avalista, nem a exclusão daquela faculdade, equivaleria a negar a validade de livranças subscritas sem que “a época do pagamento”  (artigo 75º da Lei Uniforme) estivesse indicada à data da subscrição, impedindo-a de valer como título cambiário ainda que fosse posteriormente completada, nos termos do artigo 10º da mesma Lei.

            E que o afastamento da pretensão do oponente não equivale a admitir obrigações perpétuas. A responsabilidade do avalista mede-se em função da responsabilidade do avalizado (nº 1 do artigo 32º da Lei Uniforme). No domínio das relações imediatas, como é o caso neste recurso, nada impede a discussão correspondente: aqui, – o tempo do direito de preenchimento mede-se pelo tempo do contrato garantido.

Ora, todos os direitos disponíveis se extinguem pelo decurso do tempo – por prescrição ou por caducidade.

8. Do que se disse não resulta qualquer interpretação inconstitucional das normas dos artigos 10º ou 17º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças. Em caso algum se chega à violação do direito de acesso à tutela jurisdicional efectiva, como sustenta o recorrente, louvando-se no artigo 20º da Constituição.

Com efeito, entende-se, tal como o recorrente, que do artigo 17º não resulta que, no caso presente, não se deva considerar imediata a relação entre o avalista e o beneficiário, nos termos expostos; e não se crê que o artigo 10º impusesse a conclusão de que ocorreu preenchimento abusivo, com base nos motivos apontados pelo recorrente.

9. O recorrente alega ainda a violação da regra imposta pelo nº 2 do artigo 762º e pelo artigo 334º do Código Civil, sustentando a infracção, pelo exequente, dos “deveres acessórios de conduta, nomeada e principalmente dos de informação e esclarecimento”.

Não se põe evidentemente em causa que sobre o exequente, como sobre qualquer contraente em geral e, em particular, sobre a “parte forte, económica e juridicamente”, nos termos desenvolvidos pelo recorrente nas suas alegações, impendessem deveres especialmente reforçados de “esclarecimento” ou de informação”.

No entanto, da existência desses deveres não poderia, seguramente, retirar-se o significado de que o exequente estava obrigado a responder à carta de 13 de Julho de 2001, sob pena de se considerar o avalista como desvinculado da correspondente garantia; a tanto se oporia, desde logo (e independentemente das considerações já feitas), o disposto no artigo 218º do Código Civil.

Para além disso, não se encontra base suficiente para, tendo em conta a matéria de facto provada, entender que a infracção de tais deveres pudesse levar à conclusão de que o preenchimento da livrança foi abusivo, nos termos do disposto no artigo 10º da Lei Uniforme.

10. Finalmente, cumpre observar que não se encontra razão para a afirmação de que ocorre qualquer restrição ao “ recurso a todos os meios de defesa”, como sustenta o recorrente, em infracção do princípio constitucional da igualdade.

11. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente.

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)

Salvador da Costa

Lázaro Faria