Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
137/09.0TELSB.P1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ADELAIDE MAGALHÃES SEQUEIRA
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
BURLA QUALIFICADA
BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS
NULIDADE DE ACÓRDÃO
DUPLA CONFORME
CONFIRMAÇÃO IN MELLIUS
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 05/19/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :
I - O arguido foi julgado em 1.ª instância pela prática em concurso efectivo, de um crime de burla qualificada e de um crime de branqueamento, tendo sido condenado em cúmulo jurídico na pena única de 7 (sete) anos e 10 (dez) meses de prisão, e interpôs recurso para o tribunal da Relação do Porto, o qual analisou e decidiu todas as questões de natureza criminal aí suscitadas, e confirmou aquela decisão, procedendo a uma redução da pena aplicada pela prática do crime de burla qualificada, para 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, e a uma redução da pena única para 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, estando-se assim perante uma situação de dupla conforme parcial (confirmação “in mellius”).
II - A confirmação in mellius ao integrar um juízo confirmativo obsta a que o STJ conheça do recurso interposto do acórdão do tribunal da Relação, face ao disposto no art. 432.º, n.º 1, al. b), com referência à al. f), do n.º 1, do art. 400.º, ambos do CPP, por tal decisão ser irrecorrível, na parte em que confirma a condenação da 1.ª instância, e não aplica uma pena superior a 8 anos de prisão.
III - O arguido invoca a aplicação da al. f), do n.º 1, do art. 400.º do CPP, na redacção que tinha à data da prática dos factos (2004), para a admissibilidade do seu recurso. Contudo, quanto à aplicação da lei no tempo, refere o art. 5.º do CPP que a lei processual é de aplicação imediata sem prejuízo dos actos realizados na vigência da lei anterior. Não fornecendo o legislador um critério para estabelecer as fronteiras da expressão “agravamento sensível” utilizada na al. a), do n.º 2, foi proferida a decisão de uniformização de jurisprudência no acórdão do STJ, de 18-02-2009, da qual constitui antecedente lógico o pressuposto de que é o momento em que se profere a decisão de que se pretende recorrer que constitui o elemento essencial para aferir da admissibilidade do respectivo recurso.
IV - O TC já se pronunciou sobre esta questão não tendo julgado inconstitucional o art. 5.º, n.º 2, al. a), do CPP, conjugado com o art. 400.º, n.º 1, al. f), na redacção da Lei n.º 48/2007, quando interpretados no sentido de que deve ser aplicada ao recurso a interpor pelo arguido a lei que estiver em vigor na data da prolação da decisão em 1.ª instância (Acórdão do TC n.º 456/16, de 14-07-2016, Proc. nº 426/16, 2.ª Secção)
V - E, tendo por assente que o recurso interposto pelo arguido não é admissível para o STJ, esta instância não pode proceder a uma nova reapreciação da matéria de facto, nem a uma alteração sobre a decisão que a fixou, uma vez que esta já foi duplamente confirmada, não pode proceder a uma apreciação de questões processuais (seja a valoração das declarações prestadas em inquérito, seja a apreciação da admissibilidade da constituição da assistente), nem pode proceder a uma apreciação de questões de direito (seja a qualificação jurídica dos factos, seja a lei penal aplicável, seja a aplicação do disposto nos arts. 72.º e 73.º do CP, nem tão-pouco pode conhecer de questões novas que não foram objecto de decisão por parte do tribunal da Relação, uma vez que os recursos se destinam a apreciar a decisão de que se recorre.
VI – E, relativamente à parte cível, o acórdão recorrido determinou que a 1.ª instância se pronunciasse sobre os 118 factos alegados no PIC deduzido pela assistente, tendo considerado que relativamente a este segmento da decisão ocorreu uma omissão de pronúncia já que lhe competia relativamente a estes factos dá-los como provados, não provados, ou prejudicados, face ao já provado relativamente à matéria de facto da acusação.
VII - Sendo possível uma apreciação e uma decisão autónomas no plano civil e no plano criminal (art. 403.º, n.º 1, do CPP), e tendo-se mantido toda a factualidade dada como provada em sede de julgamento da parte criminal, onde o arguido viu asseguradas todas as suas garantias de defesa e o exercício do contraditório, ao ter sido determinado que a 1.ª instância se pronuncie sobre os 118 factos alegados no PIC deduzido pela assistente, após esta pronúncia o arguido poderá novamente recorrer relativamente a este segmento da decisão respeitante à parte cível, que foi separada da parte crime, sendo que esta separação não colide com a unidade e a coerência de tudo o que ficou assente em sede de definição e de imputação da prática do crime de burla qualificada e do crime de branqueamento.
VIII – Assim, o recurso interposto pelo arguido do acórdão do tribunal da Relação do Porto para o STJ terá de ser rejeitado, por motivo de inadmissibilidade legal, nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. f), aplicável por força do disposto no art. 432.º, n.º 1, al. b), 414.º, n.º 2, e 420.º, n.º 1, al. b), todos do CPP, sendo que esta irrecorribilidade determina que todas as questões suscitadas sejam elas de inconstitucionalidade, processuais e/ou substantivas, sejam interlocutórias, incidentais ou finais, não poderão também aqui ser conhecidas.
IX - O TC já apreciou a constitucionalidade da norma do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, na medida em que condiciona a admissibilidade de recurso para o STJ aos acórdãos condenatórios proferidos em recurso pelas Relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 (oito) anos, e decidiu não a julgar inconstitucional, uma vez que o reconhecimento do direito ao recurso enunciado no art. 32.º da CRP não afirma nem pressupõe em parte alguma que deva haver três instâncias e duplo recurso, para mais estando-se perante um dupla conformidade de uma decisão in mellius proferida em 2.ª instância (cfr. Acórdão do Plenário n.º 186/2013, de 04-04-2013). Nem se poderá também considerar que com este entendimento possam ficar em crise quaisquer instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam o Estado Português ao sistema internacional de protecção dos direitos humanos (v.g. art. 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e art. 2.º do Protocolo nº 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (cfr. Acórdão do STJ, de 10-11-2021, in Proc. nº 330/18.5GCTVD.L1.S1).
Decisão Texto Integral:


Proc. nº137/09.0TELSB.P1.S1
5ª Secção Criminal
Supremo Tribunal Justiça

Recurso Penal Acórdão Tribunal da Relação ...)
(crime de burla qualificada e crime de branqueamento; nulidade do acórdão; dupla conforme in mellius; rejeição do recurso)

Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça:

I - RELATÓRIO

1. Os arguidos AA e BB foram julgados no Proc. Comum Colectivo nº 137/09.... do Juízo Local Criminal ..., Juiz ..., da Comarca ..., tenho por acórdão proferido em 28/01/2021, sido condenados:
O arguido AA, pela prática em concurso efectivo, de:
- Um crime de burla qualificada, como autor imediato e sob a forma consumada, p. p. pelos arts. 14º, nº 1, 26º, 202º, al. b), 217º, nº 1, e 218º, n.º 2, al. b), do Cod. Penal consumado em 12/07/2004, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão;
- Um crime de branqueamento, p. p. pelos arts. 14º, nº 1, 26º, e 368º-A, nº 1, e nº 2, e 10º, do Cod. Penal, na redacção vigente à data dos factos e decorrente da Lei nº 11/2004, de 27/03, de acordo com a rectificação nº 45/2004, de 05/06, com último acto praticado em 16/08/2000, como co-autor e sob a forma consumada, na pena de 4 (quatro) anos de prisão;
- Operando o respectivo cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 7 (sete) anos e 10 (dez) meses de prisão.
- O arguido BB, pela prática como co-autor e sob a forma
consumada, de um crime de branqueamento, p. e p. pelos arts. 14º, nº 1, 26º, e 368º-A, nº 1 e nº 2 e 10º, todos do Cod. Penal, na redacção decorrente da Lei nº 83/2017, de 18/08, tendo presente as alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei n.º 94/2017, de 23/08, lei concretamente mais favorável, com último acto praticado em 16/08/2004, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

2. Os arguidos AA e BB interpuseram recurso para o Tribunal da Relação ....[1]

3. O Tribunal da Relação ... proferiu acórdão, em 21/12/2021, que julgou parcialmente procedente o recurso do arguido AA, tendo-o condenado, em concurso efectivo, como autor imediato e sob a forma consumada, pela prática em 12/07/2004, de um crime de burla qualificada, p. p. pelos arts. 14º, nº 1, 26º, 202º, al. b), 217º, nº 1, e 218º, nº 2, al. b), do Cod. Penal, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão, e como co-autor e sob a forma consumada, de um crime de branqueamento, p. p. pelos arts. 14º, nº 1, 26º, e 368º-A, nº 1, e nº 2, e 10º, do Cod. Penal (na redacção vigente à data dos factos decorrente da Lei nº 11/2004, de 27/03, face à rectificação nº 45/2004, de 05/06, cujo último acto foi praticado em 16/08/2004), na pena de 4 anos de prisão, e em cúmulo jurídico, na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão, mantendo, no demais, o acórdão proferido em 1ª Instância quanto à parte criminal [2].


4. O arguido AA[3] interpôs recurso para este Supremo Tribunal apresentando as seguintes conclusões:[4]

Ia. O Tribunal a quo arrasou a decisão da 1ª instância. E ao mesmo tempo declarou que “a parte penal fica definitivamente julgada, nesta instância” (cfr. III - Decisão), assim pretendendo que a sua própria decisão seria irrecorrível na parte penal (pois seria “confirmativa” da decisão da 1a instância na parte penal, o que de modo algum é), mas a lei não consente que qualquer Tribunal (a não ser de última instância) declare as suas próprias decisões irrecorríveis ou definitivas, nem que qualquer decisão judicial (a não ser de última instância) se considere a si mesma definitiva e portanto irrecorrível.

2a. Se há recorribilidade, ou não, depende sim, exclusivamente, de estarem verificados os pressupostos legais para o efeito.

3a. Não se pode tomar como pressuposto um juízo de irrecorribilidade a priori, ou de caso julgado parcial a priori, para, com base nisso, depois se concluir no sentido da irrecorribilidade nos termos do artigo 400º nº 1 alínea f).

4a. Para que não haja tal vício lógico, nem desrespeito da letra da lei, tem de fazer-se ao contrário: fazer-se primeiro uma apreciação global sobre em que medida é que a decisão da 2ª instância confirma no essencial, ou não, a da 1ª instância.

5a. O Acórdão recorrido da Relação ... considerou portanto ter sido cometida omissão de pronúncia, o que, nos termos do artigo 379º nº 1 alínea c) do CPP, é causa de nulidade da decisão da 1ª instância, que, portanto, obviamente é assim não confirmada.

6a. Considerou mesmo o Acórdão recorrido da Relação ... que a decisão de 1ª instância, além de padecer de omissão de pronúncia, ainda padece do vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de Direito previsto no artigo 410º nº 2 alínea b) do CPP. Longe pois de ser confirmatório da decisão da 1ª instância.

7a. E, por assim ser, determinou o Acórdão recorrido a anulação da decisão de 1ª instância quanto à condenação dos Arguidos no Pedido de Indemnização Civil, de modo a que o Tribunal de 1ª instância dê resposta aos referidos 118 factos do PIC que não julgou, devendo, se necessário, abrir audiência para o efeito do conhecimento dos pertinentes factos.

Anular uma decisão, ainda que em parte e em parte autonomizável, não é, evidentemente, confirmar tal decisão.

8a. É certo que o Acórdão recorrido da Relação ... está a referir-se à matéria da chamada ação cível por responsabilidade civil delitual enxertada em processo penal por força do princípio da adesão consagrado no artigo 129º do Código Penal e no artigo 71º do Código de Processo Penal, sendo também certo que, nos termos do artigo 403º nº 2 do CPP, a matéria civil é autonomizável da matéria penal.

9a. Mas o que é fundamental é que, estando em causa todos os factos do PIC, estão necessariamente em causa todos os pressupostos de responsabilidade civil delitual, sendo bem sabido que muitos deles, como a ilicitude, a culpa e os nexos de causalidade são comuns à responsabilidade penal.

10a. E ainda mais importante do que isso é que, no caso concreto, aquele facto acima transcrito que o Tribunal recorrido considerou “imprescindível para efeitos verificar se o prejuízo causado nos autos ao BPN tem repercussão nos créditos cedidos em 23.12.2010 pelo BPN à assistente” e sem o qual “não é possível decidir com segurança o pedido de indemnização civil no sentido da absolvição ou da condenação”, também é imprescindível para a boa decisão da parte penal e sem ele também não é possível decidir com segurança a parte penal no sentido da absolvição ou da condenação.

11a. Efetivamente, tal facto, respeita à questão suscitada no facto provado 27 do descoberto autorizado e portanto quanto à questão penal central no caso sub judice do nexo causal entre a ação enganatória e o suposto engano do BPN, que não existirá se o BPN tiver aprovado o descoberto autorizado sabendo que assim iria beneficiar o AA com um dos dois cheques de € 1.250.000. E esta questão relaciona-se diretamente com a questão que o facto provado 34 necessariamente suscita e que é a de saber porque é que CC endossou o cheque ...40 a BB e mulher para que pudesse ser creditado na conta destes na U... (Suíça), estando então em causa o nexo causal entre a ação do enganado e o prejuízo do ofendido, nexo causal este que terá sido interrompido pela intervenção de CC, a menos que o endosso feito pelo mesmo CC tivesse sido um ato de comparticipação criminosa, o que obviamente não se pode presumir e tem portanto de ser objeto de produção de prova e julgado provado ou não provado.

12a. Neste momento e de todo o exposto o que resulta é uma coisa bem clara e simples: é que a decisão recorrida da 2ª instância, ao decidir como decidiu no seu final e querendo apenas restringir-se à questão civil, assim querendo salvar a irrecorribilidade da parte penal da decisão, na verdade revelou ser manifestamente não confirmativa da decisão da 1ª instância.

13a. Dá-se ainda a circunstância de, quanto à matéria penal, também não ter o Acórdão da Relação …. confirmado a decisão da 1ª instância, quer quanto à medida da pena da burla, quer quanto à medida da pena do concurso.

14a. Bem sabemos que é jurisprudência constante do STJ que um abaixamento da medida concreta da pena é considerado uma “confirmação in mellius”. E quando a única diferença entre a decisão de 2ª instância e a decisão de 1ª instância seja essa, não se põe em causa que não haja recorribilidade da decisão de 2ª instância, nos termos do artigo 400º nº 1 alínea f) do CPP.

15a. O que sucede é que, no caso em apreço, essa diferença cumula com a da já referida anulação da sentença de 1ª instância por omissão de pronúncia e consequente necessidade de nova decisão da 1ª instância, quanto a toda a matéria alegada no PIC e quanto à anulada decisão condenatória em indemnização civil, sendo que nessa matéria se incluem questões com toda a relevância penal, como sejam as dos nexos de causalidade da burla, concretamente entre a ação enganatória e o engano e entre as ações do enganado e o prejuízo do ofendido.

16a. Pelo exposto, dir-se-á o que se quiser, mas lá confirmatório da decisão de 1ª instância é que o Acórdão recorrido da Relação ... não foi.

17a. Razão pela qual o caso dos autos cabe na regra da recorribilidade das decisões judiciais prevista no artigo 399º do CPP e, bem assim, cabe na alínea b) do nº 1 do artigo 432º do CPP, que dispõe que se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça “de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400º".

18a. O Acórdão recorrido do Tribunal da Relação ... fundamentou de forma completamente nova e portanto totalmente diferente as suas decisões, por um lado, quanto à separação entre questão penal e questão civil (V. supra divisão A da Parte Primeira) e, por outro lado, quanto às matérias do descoberto autorizado que consta do facto provado 27 (V. infra Parte Segunda III.3), quanto ao endosso necessariamente pressuposto no facto provado 34 (V. infra Parte Segunda III.4) e quanto à insuficiência da imputação subjetiva (V. infra Parte Segunda III.5).

19a. Portanto as decisões condenatórias, da 1ª e da 2ª instância, apesar de condenarem pelos mesmos tipos penais (e, como tal, nominalmente se poderia dizer que são conformes uma com a outra e que a segunda confirma a primeira), são, na substância da sua fundamentação, muito diferentes e não se pode portanto dizer, com verdade e rigor, para os efeitos do artigo 400º nº 1 alª f) do CPP, que a decisão ora recorrida da Relação confirmou a decisão da 1ª instância.

20a. Assim sendo, há recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 400º nº 1 alínea f) do CPP, por o Acórdão recorrido da Relação ... não ser confirmativo da decisão da 1ª instância que reapreciou, inclusivamente na parte penal.

21a. Verificando-se in casu que o Acórdão recorrido não procedeu a uma condenação do arguido no quadro da mesma fundamentação mas sim com fundamentação diversa da da 1ª instância, o mesmo é, com tal fundamento, recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça por força dos arts. 432º nº 1 alínea b) e 400º nº 1 alínea f) do CPP (a contrario sensu), não só de per si mas também quando conjugado, ex vi artigo 4º do CPP, com o artigo 671º nº 3 do CPC (uma vez que a lei processual penal não define o que é confirmar decisão de 1ª instância).

22a. Argui-se neste sentido que é inconstitucional, por violação do artigo 32º nº 1 da Constituição (que garante que haja sempre pelo menos um grau de recurso) o complexo normativo formado pelo artigo 400º nº 1 al. f) conjugado com o artigo 432º nº 1 al. b) ambos do CPP, sem se considerar também aplicável o artigo 671º nº 3 do CPC ex vi artigo 4º do CPP (uma vez que a lei processual penal não define o que é confirmar a decisão da lª instância), ou seja, quando interpretado tal complexo normativo no sentido de que sejam irrecorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça as decisões de mérito das Relações, proferidas em recurso, que hajam condenado em pena não superior a 8 anos de prisão e inferior àquela em que a 1ª instância condenara (e que, portanto, nessa medida possam ser consideradas decisões “in mellius”), mas o façam com base em fundamentação essencialmente diferente da aduzida pela 1ª instância, já que tais fundamentações novas só terão sido apreciadas num único grau de jurisdição e não terão tido nenhum grau de recurso.

23a. Ou seja, é irrelevante que a decisão proferida pelo Tribunal da Relação o seja “mellius” se o for com base numa fundamentação essencialmente diferente daquela que fora aduzida pela 1ª instância. Porque, se o for com base numa fundamentação essencialmente diferente da aduzida pela 1ª instância, só estará assegurado o duplo grau de jurisdição que o artigo 32º nº 1 da CRP consagra, se tal decisão da Relação for recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça.

24a. Este entendimento baseia-se ainda na importância da fundamentação das decisões tomadas pelos órgãos do Estado com ius imperii que, num Estado de Direito, só são legítimas em face da sua fundamentação ser consentânea com as regras e princípios do Estado de Direito.

Este princípio da essencialidade da fundamentação tem tanta importância nas decisões judiciais que tem consagração constitucional no artigo 205º nº 1 da Constituição.

E tanta importância em decisões judiciais penais que tem consagração no artigo 97º nº 5 do CPP.

A fundamentação das sentenças é imposta no artigo 374º nº 2 do CPP. E a falta de fundamentação é causa de nulidade das sentenças nos termos do artigo 379º nº 1 alínea a) do CPP.

25a. In casu sempre seria admissível recurso do recorrido Acórdão da Relação ….. para o Supremo Tribunal de Justiça nos termos do artigo 432° n° 1 alínea b), conjugado com o artigo 400° n° 1 alínea f), na redação do CPP que vigorava no momento da prática do facto, ou seja da prática dos atos de execução dos factos que constituem o obieto do processo, isto é, de acordo com a redação do artigo 400° n° 1 alínea f) do CPP, na redação que vigorava nos anos de 2003 e 2004 quando o arguido AA assinou, com poderes bastantes de representação do BPN, o contrato de mediação com DD e CC, datado de 13.01.2003; quando, em 30.06.2004, assinou, com poderes bastantes, os dois cheques de € 1.250.000,00 em causa nestes autos, sacados a descoberto na conta da E..., LLC no BPN das Ilhas Caimão; quando, sem poderes bastantes, primeiro acordou verbalmente e depois assinou, com data aposta de 01.07.2004, um denominado acordo de revogação do mesmo contrato de mediação.

26ª. De acordo com a redação do artigo 400º nº 1 alínea f) que vigorava no momento da prática desses atos de execução era admissível, em matéria penal, recurso de Acórdãos das Relações, em recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça, pois a regra da recorribilidade geral, estatuída no artigo 399º do CPP, só era excecionada no artigo 400º nº 1 alínea f) do CPP quanto ao recurso “de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo em caso de concurso de infrações” (ou seja quando o máximo abstrato da pena aplicável não fosse superior a 8 anos de prisão).

27ª. E estava – como está – em causa um processo por crime de branqueamento de capitais que, de acordo com o artigo 368º-A, nº 2, do CP, cominava como pena aplicável, só a esse crime, prisão de 2 a 12 anos (portanto com um máximo abstrato da pena aplicável claramente superior a 8 anos de prisão), sendo que, em concurso de infrações com a prática de um crime de burla qualificada (como sucede no caso em apreço), punível com pena de prisão de 2 a 8 anos, de acordo com o artigo 218º nº 2 do CP, a pena máxima aplicável seria ainda bem superior a 12 anos de prisão (à luz do artigo 77º do CP, na redação que então vigorava, o máximo seria a soma das penas concretamente aplicadas, sendo que o máximo concreto concebível é, como é óbvio, o máximo aplicável), ou seja, a pena máxima aplicável em concurso, teria o máximo de 20 anos de prisão).

28a. Com efeito é inconstitucional a interpretação do artigo 5º nº 2 alínea a) do CPP no sentido de que esta norma regula, nos termos dela constantes, a sucessão no tempo das normas processuais penais materiais, como é o caso das normas sobre os graus de recurso das decisões condenatórias em matéria penal, como o artigo 400º nº 1 alínea f) do CPP, por o artigo 29° n° 4 da Constituição não permitir que, retroativamente relativamente à data dos factos, se aplique lei processual penal nova que diminua para os Arguidos as garantias de defesa que existiam em tal data.

29a. É que o artigo 29° n° 4 da Constituição consagra o essencial das regras aplicáveis à sucessão no tempo de normas penais lato sensu - aí se incluindo as normas processuais penais materiais.

30a. Ora, as normas que definam ou eliminem os graus de recurso de uma decisão condenatória de Ia instância em matéria penal, como o artigo 400° n° 1 alínea f) do CPP, são, sem dúvida, normas processuais penais materiais, desde logo por força do artigo 32º nº 1 da Constituição que dá primazia ao direito ao recurso entre todas as garantias de defesa.

31a. Deve assim declarar-se a inconstitucionalidade do artigo 5.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal, por violação do artigo 29.º, n.º 4, da Constituição, quando interpretado no sentido de permitir a aplicação de lei processual penal nova que implique a ofensa das garantias processuais que existiam para o Arguido no momento da prática do facto, como é o caso da diminuição dos graus de recurso a que se refere o artigo 400º nº 1 alínea f) do CPP, nas suas sucessivas redações normativas. Inconstitucionalidade essa que aqui desde já se argui.

32a. E portanto deve desaplicar-se o artigo 5º nº 2 alínea a) do CPP e aplicar-se diretamente o artigo 29º nº 4 da Constituição.

33a. É inexorável concluir-se que não só o artigo 5º nº 2 alínea a) do CPP, mas também o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 4/2009 publicado em 19.03.2009 são inconstitucionais, por violação do artigo 29º nº 4 da Constituição, quando interpretados como sendo aplicáveis também às normas processuais penais materiais e permitindo que se aplique lei processual penal nova que implique a ofensa das garantias processuais que existiam para o Arguido no momento da prática do facto.

34a. Ora, o caso concreto é justamente de sucessão no tempo de normas processuais penais materiais sobre a eliminação de grau de recurso (para usar a expressão do Conselheiro Henriques Gaspar) ou sobre os graus de recurso (para usar a expressão do Prof. Taipa de Carvalho), às quais se aplica o artigo 29º nº 4 da Constituição (e não o artigo 5º nº 2 alínea a) do CPP).

35a. Em conclusão, deve aplicar-se ao caso em apreço o artigo 400º nº 1 al. f) a contrario sensu, na redação dessa norma que vigorava no momento da prática dos factos. E, de acordo com tal norma, conjugada com o artigo 399º e com o artigo 432º nº 1 alínea b), todos do CPP, o Acórdão do Tribunal da Relação ... de 21.12.2021 é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça.

36a. Verifica-se, assim, que o Acórdão padece de nulidade nos termos do artigo 379.° n.° 1 a) CPP, por absoluta falta de fundamentação da decisão na parte em que qualifica a burla com base na circunstância qualificativa de o arguido fazer da burla modo de vida sem apresentar qualquer motivação de facto, por mínima que seja nesse sentido.

37a. Esta absoluta falta de sustentação na matéria de facto da parte do Acórdão recorrido em que se condena o arguido AA pelo crime de burla qualificada por fazer da burla modo de vida, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. a), conjugado com o artigo 374.º, n.º 2, correspondentemente aplicáveis ex vi artigo 425.º, n.º 4, do CPP, deve ser declarada nula, e eliminada a qualificação da burla nos termos do artigo 218.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal com todas as consequências legais.

38a. Caso se considere que não se está perante uma absoluta falta de fundamentação da decisão recorrida, nesta parte em que condenou o arguido pela prática de um crime de burla qualificada, sendo a circunstância qualificativa o fazer da burla modo de vida, no que não se concede e apenas por dever de patrocínio se equaciona, na medida em que a decisão de Direito que foi proferida não tem qualquer apoio na matéria de facto provada (antes pelo contrário), sempre estaremos perante o vício a que se reporta o artigo 410.° n.° 2 alínea a) do CPP, por ser então manifesta a insuficiência para tal decisão de Direito, da matéria de facto provada.

39a.Vício esse que pode e deve ser conhecido por V. Exas., desde logo, oficiosamente, por se tratar de vício de conhecimento ou indagação oficiosa e porque, configurando ainda uma nulidade atípica (e por isso mesmo não prevista no artigo 379º do CPP), ora se argui tal vício perante V. Exas, requerendo-se que seja declarado este vício em que incorre o Acórdão, alterando-se consequentemente os termos da condenação, com todas as consequências legais.

40a. Na pág. 181 do Acórdão proferido por V. Exas. pode ler-se: «ainda que estejamos perante mera pluriocasionalidade no percurso de vida do recorrente AA, que praticou os factos com cerca de 43 anos e atualmente tem 60 anos de idade, sem notícia de novos crimes».

Tal como já se podia ler a págs. 52 do Acórdão proferido pela 1ª instância, por mais do que uma vez citado (e não refutado, nesta parte) pelo Tribunal da Relação ... (a fls. 103-104 e a fls. 170-171 do Acórdão recorrido), pode ler-se: «Assim, afigura-se que o conjunto dos factos cometidos pelo arguido AA é reconduzível a um particular contexto da sua vida, pelo que não será de atribuir à pluralidade de crimes cometidos um efeito particularmente agravante dentro da respetiva moldura penal conjunta aplicável».

41a. Estamos assim, cumulativamente, perante o vício a que se reporta o artigo 410.° n.° 2 alínea b), 2a parte, do CPP, havendo contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, vício esse que pode e deve ser conhecido oficiosamente e que se argui também perante V. Exas., na medida em que configura uma nulidade atípica do Acórdão recorrido, que deverá portanto ser declarada.

42a. Em qualquer caso, e atentos os vícios acima elencados, a decisão recorrida não se poderá manter, devendo ser substituída por outra que elimine a qualificação do artigo 218.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal com todas as consequências legais.

43a. Está provado, de acordo com os factos provados nº 24 e nº 26, o seguinte:

“24 O arguido AA celebrou o referido contrato no exercício de poderes que lhe foram conferidos por procuração outorgada em 10-05-2002 por EE, na qualidade de Presidente do Conselho de Administração, em representação do B.P.N., nos termos da qual aquele, assinando conjuntamente com outro administrador ou com outro procurador com idênticos poderes, podia praticar os atos aí identificados, nomeadamente assinar quaisquer outros contratos em que o B.P.N. fosse parte.

26. No entanto, em face da previsão do pagamento de uma indemnização pela rescisão do acordo de mediação e da possibilidade colocada de ser o próprio B.P.N. a vender a coleção de quadros, o arguido AA acordou verbalmente com DD e CC a revogação do contrato de mediação com redução da indemnização devida para 1 250 000 EUR e, após, determinou e deu instruções para que em 30-06-2004 fossem emitidos fisicamente no balcão da Foz, no Porto, junto do qual se encontrava sedeado o “Private Banking” do B.P.N., dois cheques no valor de 1 250 000 EUR cada um, mais concretamente:

- Cheque bancário número ...39, à ordem de DD; e

- Cheque bancário número ...40, à ordem de CC”

44a. Mas, como é óbvio, um acordo verbal e tendo como representante do BPN apenas um procurador (o arguido AA) quando a procuração de 10.05.2002, que lhe dera poderes, dispõe que têm que intervir dois procuradores conjuntamente (cfr. facto provado nº 24), não tem a idoneidade jurídica de revogar nem alterar o contrato de mediação celebrado entre o BPN e os mediadores espanhóis, mesmo abstraindo do facto de um contrato escrito só ser revogável por escrito, por ser manifesta a falta de poderes de AA, como representante do BPN, já que este Banco só ficava obrigado com a assinatura de dois procuradores, conforme dispunha a procuração que foi usada e que foi a outorgada em 10.05.2002.

45a.Portanto duas coisas são insofismáveis:

3. existiu esse acordo verbal entre AA e os mediadores espanhóis, o que revela a representação mental e a vontade dessas pessoas singulares, mas

4. o contrato de mediação dos quadros Miró permaneceu inalterado.

46a. Mais tarde, conforme consta do facto provado nº 29 foi celebrado um acordo escrito de revogação do referido contrato de mediação, constando da cláusula 2a n° 1 deste acordo revogatório “Pela revogação ora acordada a Primeira Contraente pagará aos Segundos Contraentes uma indemnização global de 1 250 000 EUR (um milhão e duzentos e cinquenta mil euros)\

47a. Como consta do facto provado n° 30, este acordo revogatório só foi assinado pelo AA, contrariando novamente as disposições da procuração outorgada em 10.05.2002:

“Pese embora do referido documento constem o arguido AA e FF como representantes do B.P.N., o mesmo mostra-se apenas assinado pelo primeiro, contrariando as disposições da referida procuração outorgada em 10-05-2002”.

48a. Incompreensivelmente, quer o Tribunal de 1ª instância quer o Acórdão recorrido do Tribunal da Relação ... não extraíram deste facto a devida e inelutável consequência jurídica, que é a de o contrato de mediação não ter sido alterado, nem revogado através deste “chamado acordo revogatório”.

Pelo contrário, consideraram, contra o Direito, o acordo de mediação revogado ou alterado quanto ao montante devido pelo BPN pela revogação do contrato de mediação, que teria deixado de ser € 2.500.000 e teria passado a ser € 1.250.000. Efeito esse impossível, uma vez que AA assinou sem poderes bastantes.

49a. Suscita-se aqui uma questão prejudicial não penal, a ser decidida nos termos do artigo 7º nº 1 do CPP, no próprio processo penal, que é a da consequência jurídica de só AA ter assinado o acordo revogatório do contrato de mediação, no qual se pretendeu alterar o valor devido pelo BPN por tal revogação, quando a procuração com base na qual ele (AA) tentava representar o BPN exigia a assinatura conjunta de mais um procurador (cfr. outra vez nº 24 dos factos provados).

50a. Se fosse aplicável o Direito Civil português, a resposta ser-nos-ia dada nos artigos 268º e 269º do Código Civil Português, de onde se retiraria a ineficácia do acordo revogatório em relação ao BPN, a não ser que este tivesse sido depois ratificado por quem para o efeito tivesse poderes de representação bastantes. Sendo que não foi provado qualquer facto quanto a uma tal eventual ratificação, da qual aliás os autos não dão a mais pequena notícia ou indício.

51a. Sucede, porém que, de acordo com o Direito Internacional Privado português, o Direito material competente para regular esta questão não é o Direito português, mas sim o espanhol.

52a. Portanto, a lei aplicável à substância e aos vícios do negócio é a lei espanhola, nos termos do artigo 35º do Código Civil português e do artigo 4º nºs 1 e 2 da Convenção de Roma de 19.06.1980 e que prevalece, como lei especial, sobre o disposto nos artigos 41º e 42º do Código Civil português.

53a. Ora o que a lei material espanhola diz é o seguinte, no Código Civil espanhol:

“Artículo 1259.

Ninguno puede contratar a nombre de otro sin estar por éste autorizado o sin que tenga por la ley su representación legal.

El contrato celebrado a nombre de otro por quien no tenga su autorización o representación legal será nulo, a no ser que lo ratifique la persona a cuyo nombre se otorgue antes de ser revocado por la otra parte contratante”.

[tradução do Artigo 1259 do Código Civil espanhol]

Ninguém pode contratar em nome de outro sem estar por este autorizado ou sem que tenha por lei a sua representação legal.

O contrato celebrado em nome de outro por quem não tenha a sua autorização ou representação legal será nulo a não ser que o ratifique a pessoa em cujo nome se outorgue antes de ser revogado pela outra parte contratante].

54a. Quer isto dizer que, de acordo com a lei espanhola e que é a juridicamente aplicável, o acordo revogatório do contrato de mediação, apenas assinado pelo arguido AA, foi um acordo nulo. Pelo que em nada alterou o contrato de mediação. Que continuou a estatuir, na sua cláusula 2a n° 4, que o BPN podia rescindir tal contrato mas mediante o pagamento aos segundos contraentes (os mediadores espanhóis) da quantia de € 2.500.000.

55a. Resulta assim linearmente que, apesar de AA ter acordado invalidamente com os mediadores espanhóis coisa diferente, quando lhes entregou dois cheques no valor de € 1.250.000 cada um, no total de € 2.500.000, entregou-lhes o que lhes era juridicamente devido, de acordo com o contrato de mediação, para que o BPN, como queria, ficasse livre do contrato de mediação e pudesse vender os quadros Miró, sem ter que pagar nada aos mediadores.

56a. Desde logo, juridicamente, o BPN não sofreu qualquer prejuízo.

Tal como não sofreu qualquer prejuízo a E..., LLC, titular da conta de depósitos à ordem junto do BPN Cayman, de onde foram sacados, por descoberto autorizado, os € 2.500.000. Como igualmente não foi prejudicada nem a SLN nem a M... LLC, que, de acordo com o facto provado nº 28, detinham a E..., LLC.

57a. Sendo ambos os cheques de € 1.250.000 devidos aos mediadores espanhóis, eles receberam o que era seu direito receber. E o AA entregou-lhes o que era seu dever entregar-lhes.

58a. Assim sendo nenhum desses quantitativos pode considerar-se, para efeitos do tipo penal da burla (previsto no artigo 217º CP) como “prejuízo”, nem pode considerar-se, para efeitos do tipo penal de branqueamento (previsto no artigo 368º-A CP), “bens provenientes da prática de facto ilícito típico”.

59a. Efetivamente, tais quantias são sim provenientes do cumprimento de uma cláusula contratual, de um contrato validamente celebrado, o que, evidentemente, constitui um ato lícito, razão pela qual, ainda que os factos fossem nominalmente subsumíveis no artigo 217º e no artigo 368º-A do Código Penal (e não o são, pelo menos numa interpretação teleologicamente orientada), sempre, nos termos do artigo 31º nº 1 e nº 2 alínea b) do Código Penal estariam em causa atos lícitos ou seja atos cuja ilicitude está excluída, seja por assim o determinar a ordem jurídica na sua totalidade, seja por consubstanciarem atos praticados no exercício de um direito (direito de cumprir obrigações contratuais, por parte do BPN e de AA, e direito de receber o contratado, por parte dos mediadores espanhóis).

60a. Esta visão jurídica das coisas - que, como se demonstrou, é a correta, pois é a decorrente da aplicação das normas dos vários ramos do Direito implicados ao caso - é ainda perfeitamente consonante com a questão inúmeras vezes suscitada no recurso da decisão da 1ª instância para a Relação ... - talvez imperfeitamente suscitada mas que tinha todo o sentido - e que é a de não ser juridicamente possível o que consta do facto provado 34 que “o cheque número ...40, emitido à ordem de CC, foi depositado na conta n.º ...46 AC, aberta junto da Union Bancaire Privee, doravante U.B.P., na Suíça, a qual é titulada pelo arguido BB e GG, sua mulher”, sem que CC tivesse endossado o cheque nº ...40 de modo a que tal cheque, nos termos dos artigos 14º a 24º da Lei Uniforme relativa aos Cheques (aprovada pela Convenção de Genebra de 19 de Março de 1931, ratificada por Portugal pelo Decreto nº 23.721, de 29 de Março de 1934), pudesse ter sido validamente transmitido, nos termos do facto provado nº 34, à U..., com sede na Suíça, para crédito da conta nº ...46 AC titulada pelo Arguido BB e sua mulher.

61a. É também inelutável que CC se considerou também dono dos € 1.250.000 que a E..., LLC lhe transmitiu. E que foi nesse pressuposto que, por razões não apuradas, o transmitiu a BB e mulher, como resulta do facto provado 34.

62a. Aqui chegados, se, no plano objetivo e do resultado das ações praticadas por AA, os factos julgados provados obrigam a que se conclua que os € 2.500.000 eram devidos aos mediadores espanhóis e foram por estes bem recebidos, não se tendo assim causado prejuízo, nem lesado, ninguém, também impõem a honestidade intelectual e o rigor jurídico que não nos esqueçamos dos factos provados no que respeita à representação mental, à vontade e às ações de AA, praticadas com essa representação mental e com essa vontade, ou seja com esse dolo, maxime o que foi julgado provado, sob os nºs 26, 27, 29, 45 e 48

63a. Temos assim uma contradição insanável da fundamentação da decisão recorrida, nos termos do artigo 410º nº 2 alínea b) e, bem assim, entre a fundamentação e a decisão da matéria de facto, nos termos da mesma alínea - entre, por um lado, os factos 22, 24, 26, 29 e 30 e, por outro lado, os factos provados 31 e 47 - sendo que o vício resulta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum e, bem assim, com o Direito aplicável. Pois ao mesmo tempo diz-se que houve um acordo de revogação, mas, sem podres de um dos outorgantes, esse acordo não é válido nem eficaz.

64a. Considera-se ao mesmo tempo que houve prejuízo para o BPN, porque só tinha que pagar € 1.250.000, mas tem que se considerar não alterado e não revogado o contrato de mediação que estabelece que o que é devido aos mediadores espanhóis é, nesse caso, € 2.500.000. E portanto, tendo o BPN pago o que era devido aos mediadores espanhóis (€ 2.500.000), ninguém teve prejuízo. Mas afirma-se nos factos provados que o BPN teve prejuízo.

65a. Assim sendo deve o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 426º do CPP, mandar baixar os autos à 1ª instância para se sanarem as referidas contradições (maxime entre, por um lado, os factos provados 22, 24, 26, 29 e 30 e, por outro lado, os factos provados 31 e 47), anulando-se pois a decisão penal condenatória proferida pelo Acórdão recorrido da Relação ..., que por sua vez revoga a decisão condenatória do Tribunal de 1ª instância dos ....

66a. Subsidiariamente, e com algum esforço corretivo dos excessos semânticos dos factos julgados provados, que ora são conclusivos em termos factuais ora são conclusivos em termos jurídicos, é possível alcançar-se uma não contradição dos factos provados consistente num fenómeno comum em Direito Penal que é o da não coincidência entre a representação mental dos factos por parte dos agentes (no caso AA) e a realidade objetiva.

Dir-se-á então que resulta dos factos provados que AA quis enganar o BPN, mas não o enganou. Quis prejudicar a E..., LLC, ou o BPN Cayman, ou a SLN, mas não os prejudicou, não tendo também prejudicado os mediadores espanhóis.

67a. A situação não é de erro propriamente dito (em que o agente representa a realidade melhor do que ela é - artigos 16º e 17º do Código Penal) mas dos chamados “erros invertidos” (em que o agente representa a realidade pior do que ela é - tentativa impossível prevista no artigo 23º nº 3 do Código Penal e crime putativo).

68a. Se é certo que, como vimos supra, o contrato de mediação nunca foi alterado validamente e portanto os € 2.500.000 eram devidos aos mediadores espanhóis pelo BPN, pelo que o BPN não sofreu qualquer prejuízo ao pagar-lhes tal quantia, também é verdade que, de acordo com os factos subjetivos provados, AA quis enganar e quis causar prejuízo ao BPN, e quis enriquecer-se indevidamente com € 1.250.000.

69a. Juridicamente temos aqui uma situação de tentativa impossível de burla, nos termos conjugados dos artigos 23º nº 3 e 217º do Código Penal. Mas para sabermos se a tentativa é punível, necessitamos nos termos do artigo 23º nº 3 de saber se é manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente.

70a. Uma vez mais faltam-nos factos provados para que o Tribunal possa decidir se, no caso concreto, a inaptidão do meio empregado pelo agente (AA) foi ou não manifesta, para o que seria necessário que se tivesse provado com que “impressão” teria ficado um terceiro observador dos factos.

71a. Havendo insuficiência para a decisão dos factos julgados provados, nos termos do artigo 410º nº 2 alínea a) do CPP, uma vez mais terá o Supremo Tribunal de Justiça de reenviar os autos para a 1ª instância para julgamento dessa questão factual, nos termos do artigo 426º do CPP, para que se apure se a inaptidão dos meios empregados por AA foi ou não “manifesta”.

72a. Subsidiariamente, para o caso de o Supremo Tribunal de Justiça considerar que estaria em causa uma tentativa impossível em que, nos termos do artigo 127º do CPP e de acordo com a experiência comum, a inaptidão dos meios empregados pelo AA seria não manifesta, então o facto será punível, como tentativa nos termos do artigo 23º nº 2 do Código Penal, o que implica uma redução de 1/3 da pena máxima abstratamente aplicável nos termos do artigo 73º nº 1 alínea a) e que o mínimo abstrato da pena seja reduzido ao mínimo legal, nos termos do artigo 73º nº 1 alínea b), já que, mesmo que o tipo penal aplicável seja o da burla qualificada (veremos adiante que a subsunção feita pelo Tribunal a quo não tem qualquer apoio nos factos julgados provados), nos termos do artigo 218º nº 2 alínea b), o mínimo da pena aí prevista não é igual nem superior a 3 anos de prisão, devendo pois passar a ser o mínimo legal, por força da atenuação especial.

73a. A questão é que, a qualificação da burla feita pelas instâncias, nos termos do artigo 218º nº 2 alínea b) do CP, foi errónea e ilegal, como se demonstrou na divisão II. 1 da Parte Segunda desta Motivação de recurso.

74a. E a tentativa impossível de burla em causa nunca pode considerar-se agravada pelo prejuízo sofrido pelo ofendido (seja nos termos do artigo 218° n° 1 “valor elevado”, seja nos termos do artigo 218° n° 2 alínea a) “valor consideravelmente elevado”), porque, como já vimos, o contrato de mediação nunca foi revogado nem alterado validamente pelo acordo revogatório de 1.07.2004, pelo que os € 2.500.000 eram devidos aos mediadores espanhóis e portanto o desembolso e a entrega dessa quantia a tais pessoas não causou prejuízo nenhum a ninguém.

75a. Ora, estando então em causa uma tentativa impossível de burla simples - o que, como veremos, é o caso - então, conjugando os artigos 23º nº 2, 217º nº 2, 73º nº 1 alínea a) e 23º nº 1, a tentativa em causa é punível mas apenas com pena de prisão até 3 anos, a qual, por sua vez, deve ser reduzida de um terço por a tentativa implicar uma atenuação especial, nos termos do artigo 23º nº 2, sendo portanto punível com pena até 2 anos ! (sem prejuízo do seguidamente que se dirá infra na divisão II.3 da Parte Segunda desta Motivação de recurso sobre o crime de branqueamento).

76a. Não sendo aplicável o tipo qualificado de burla pelas razões referidas e demonstradas em II.1.;

e/ou não podendo proceder-se a uma nova qualificação da burla, por razões de vinculação temática;

e/ou por não poder ser qualificada a burla em função do prejuízo, por ter de se considerar, como demonstrado em II.2., que o contrato de mediação nunca foi validamente revogado nem alterado e portanto eram devidos aos mediadores espanhóis os € 2.500.000 e não apenas 1.250.000, não podendo pois a diferença ser considerada prejuízo emergente de ato ilícito nem do BPN, nem do BPN Cayman, nem da E..., LLC, nem da SLN; só pode ser aplicável ao caso o tipo penal da burla simples que prevê como pena mínima e máxima abstratamente aplicáveis, respetivamente, o mínimo legal (de 1 mês) e o máximo de 3 anos de prisão.

77a. Ora, não sendo a burla crime de catálogo incluído no artigo 368º-A CP, o crime de branqueamento de capitais só pode ter a burla como crime antecedente quando ela seja punível com pena mínima superior a 6 meses ou pena máxima superior a 5 anos de prisão.

78a. Logo, independentemente de subsunções na demais literalidade do referido artigo 368º-A, é assim óbvio que o arguido não pode ser senão absolvido do crime de branqueamento, por não verificação de condição de punibilidade (ou, se classficatoriamente se preferir, por atipicidade) prevista no artigo 368º-A nº 1 in fine.

79a. A ponderação a realizar em termos de medida da pena deverá, sempre, ter presente se os requisitos inscritos nos artigos 72.º e 73.º do Código Penal se encontram verificados ou não, o que o Tribunal a quo não fez (ou não fez nos termos que a lei impõe.

80a. Nestes termos, estamos perante uma inobservância de imposição legal, vício este que é de conhecimento oficioso, sendo o mesmo cominado com nulidade, em concreto por omissão de pronúncia nos termos do artigo 379.º, número 1, alínea c) por força do artigo 425.º, número 4 do Código de Processo Penal, na medida em que o Acórdão deixou de conhecer de matéria a que se encontrava legalmente vinculado.

81a. Verifica-se assim, de forma clara, o preenchimento do artigo 72.º, d) do Código Penal de forma objetiva, não derivando este preenchimento de uma perspetiva subjetiva do Arguido ou de considerações gerais sobre a norma, na medida em que a mesma não deixa margem para dúvidas, é incontornável e é indesmentível!

82a. Os factos foram praticados há (quase) 18 anos - passou-se uma vida entretanto. AA era um homem novo e agora é um sexagenário.

83a. A letra da lei manda apenas atender ao “muito tempo” (a expressão “muito tempo” significa um lapso de tempo muito amplo, excecionalmente longo) sendo que desde o início dos presentes autos e até ao Acórdão proferido decorreram longos 12 anos o que é objetivamente mesmo “muito tempo” e sobre “a prática do crime” sub judice decorreram mais de 17 anos (quase 18), o que é mais tempo ainda!

84a. Por outro lado, está igualmente verificada a “boa conduta” do recorrente: ausência de condenação criminal posterior “percurso de vida do recorrente AA, que praticou os factos com cerca de 43 anos e atualmente tem 60 anos de idade, sem notícia de novos crimes” (cfr. final do ponto 3.8 “Medida da Pena Única).

85a. O prolongamento excessivo do processo pode e deve ser tido em conta na determinação das sanções criminais, no sentido do desagravamento das mesmas, desde que o agente mantenha boa conduta nesse período (cfr. acórdãos TEDH Dzelili v. Alemanha e Foldes and Foldesné Hajlik v. Hungria).

86a. Não existe qualquer elemento de onde resulte que o tempo decorrido “fica a dever-se em grande parte aos esquemas criminosos usados”.

87a. Não existe, por outro lado, nenhum pressuposto de exclusão dos regimes de atenuação relativamente a “crimes de criminalidade económico-financeira”, não existindo igualmente qualquer evidência de que se tratou de um crime “de difícil investigação” e que essa circunstância possa excluir a aplicação do regime de atenuação.

88a. Assim sendo, verifica-se incontornavelmente o preenchimento do artigo 72.º do Código Penal, sendo então aplicável o artigo 73.º do Código Penal quanto à atenuação especial da pena, sendo objetivamente aplicável e de conhecimento oficioso.

89a. Sendo inequívoco o preenchimento do artigo 72.º, número 2, alínea d) e, portanto, do artigo 73.º, número 1, alíneas a) e b) do Código Penal, verifica-se que a moldura penal do caso deve ser reformulada em consonância para se apurar nova medida judicial da pena, o que, não tendo sido feito em conformidade com a lei, constitui uma nulidade, de conhecimento oficioso, por omissão de pronúncia nos termos do artigo 379.º, número 1, alínea c) por força do artigo 425.º, número 4 do Código Processo Penal.

90a. É assim óbvio que a omissão do Venerando Tribunal a quo, em matéria de conhecimento oficioso e à qual estava vinculado no âmbito da ponderação das referidas atenuantes especiais na medida concreta da pena, determina a nulidade do Acórdão em apreço por omissão de pronúncia nos termos do artigo 379.º, número 1, alínea c) por força do artigo 425.º, número 4 do CP.

91a. A não se considerarem procedentes as nulidades e vícios conducentes à atipicidade da conduta do ora requerente à luz do tipo da burla, nomeadamente por quebra do nexo de imputação objetiva - no que não se concede - deverá, então, por virtude da nulidade ora suscitada, em virtude da não aplicação das atenuantes especiais obrigatórias já referidas, que não foram aplicadas, proceder-se à reformulação exigida por lei, da medida da pena, adequada à nova moldura penal abstrata aplicável ao caso em função das referidas atenuantes especiais modificativas.

92a. Valerá igualmente salientar que sendo a pena especialmente atenuada, conforme se viu, tal relevará igualmente para efeitos da suspensão da pena nos termos do artigo 73.º, número 2 do Código Penal, o que igualmente se impõe sob pena de nulidade da decisão a proferir por omissão de pronúncia.

93a. O decurso de (quase) 18 (dezoito) anos sobre os factos por que o Arguido vem condenado, legitima, por si só, e até exige uma efetiva ponderação e alteração das penas parcelares e da pena única aplicadas, tendo em consideração as finalidades que devem presidir à fixação da medida concreta da pena.

94a. Em sede de inquérito, o Arguido AA, prestou declarações perante o Ministério Público, com assistência de advogado, após ter sido advertido nos termos do disposto no artigo 141.º, n.º 4, al. b), do Código de Processo Penal (cfr fls. 1415 a 1424 do Volume IV).

95a. Em audiência de julgamento o Arguido remeteu-se ao silêncio. E, na Ata de Audiência de Julgamento do dia 23.09.2020, exarou-se o seguinte:

“às 09h, 48m, após a realização da chamada, pelo Mmo. Juiz Presidente foi declarada aberta a audiência de julgamento e, de imediato, advertiu os sujeitos processuais que:

- As declarações que serão tidas por examinadas na presente audiência de julgamento sem aqui serem lidas ou ouvidas são as que foram prestadas pelo arguido perante a autoridade judiciária competente, na presença de advogado e após ter sido advertido nos termos do º 141º, n.º 4, al. b), do C.P.P., conforme decorre do art.º 357º, n.º 1, al. b), do C.P.P. (cfr. ponto 5 do despacho de 06-03-2020 com a ref.ª 412858711);”

96a. No Acórdão proferido pelo Tribunal de 1ª Instância, consta da fundamentação sobre a matéria de facto, sob o título “MOTIVOS DE FACTO, INDICAÇÃO E EXAME CRÍTICO DAS PROVAS” (pg

15), que as declarações do Recorrente prestadas em inquérito foram valoradas, não obstante não terem sido reproduzidas, nem examinadas em audiência, conforme segmento decisório que se transcreve:

“No presente caso, foram desde logo valoradas as declarações que o arguido AA prestou em sede de inquérito (cfr. 1415 a 1424 do Volume IV), perante o Ministério Público, com assistência de advogado, após ter sido advertido nos termos do disposto no art.º 141.º, n.º 4, al. b), do C.P.P., sendo que por despacho de 06-03-2020, do qual não foi interposto recurso, foi decidido que as mesmas se considerariam examinadas em audiência de julgamento sem necessidade de aí serem ouvidas …)”.

97a. A valoração das declarações do Arguido prestadas em sede de inquérito, devidamente informado nos termos do artigo 141.º, n.º 4, al. b), do Código de Processo Penal, exige a sua leitura ou reprodução em audiência de julgamento, sob pena dessa valoração constituir prova proibida, nos termos do disposto no artigo 355.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, o que inquina de nulidade insanável o Acórdão da 1ª instância e o processado subsequente.

98aMas ainda que, nos termos dos artigos 356.º e 357.º do Código de Processo Penal, possam ser utilizadas as declarações produzidas em fases anteriores do processo, a interpretação conjugada do disposto no n.º 9 do artigo 356.º aplicável pela remissão do n.º 3 do artigo 357.º, impõe que a sua leitura, visualização ou audição, bem como a sua justificação legal, tenham lugar em julgamento e fiquem a constar da ata.

99aO Acórdão proferido pelo Tribunal Coletivo de 1ª instância, ao valorar as declarações do Arguido AA - e valorou-as inequivocamente na parte do Acórdão recorrido intitulada “Escolha e Medida da Sanção”, ora dizendo-se que AA “negou os factos demonstrados, refugiando-se em ordens verbais dadas por outros”, o que relevou negativamente em termos de prevenção especial negativa, ora dizendo-se que afinal o Tribunal da Relação “não se revê” nesse “segmento da fundamentação da medida das penas” - está assim ferido de nulidade insanável, a qual, sendo de conhecimento oficioso, devia ter sido declarada pelo Tribunal a quo, o que não se verificou.

100a. Nulidade essa que, por não se poder considerar sanada, se comunica ao Acórdão recorrido, no qual se acolheu a valoração de prova proibida, ferindo-o também de nulidade insanável, a qual pode e deve ser agora declarada por V. Exas., Colendos Conselheiros, com as legais consequências de anulação do processado, tendo os autos que baixar à 1ª instância para que se profira nova decisão de mérito que exclua dos meios de prova as declarações prestadas pelo arguido AA na fase de inquérito.

101a. É inconstitucional o complexo normativo das normas conjugadas dos artigos 355.º, n.º 1, 356.º, n.º 9 e 357.º, n.º 3, todos do Código de Processo Penal, na interpretação de que é permitida a valoração em julgamento e para fins condenatórios de declarações do arguido feitas nos termos do artigo 357º nº 1 alínea b) do CPP, sem que a sua leitura ou reprodução seja admitida, por decisão que conste em ata e efetivamente ocorra, por violação dos princípios da imediação, contraditório, da defesa e do processo justo e equitativo, consagrados no artigo 32.º, n.ºs 1 e 5 e 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do artigo 6.º da CEDH.

102a. No caso concreto foi aplicado esse complexo normativo inconstitucional e ele constitui ratio decidendi quer da decisão condenatória da 1ª instância, quer do douto Acórdão da Relação ….. ora sub judice que confirmou tal decisão condenatória.

103a. Argui-se por isso aqui e agora tal inconstitucionalidade, devendo o referido complexo normativo ser desaplicado e reformuladas em conformidade as decisões da 1ª e da 2ª instância, ou seja tendo de haver anulação do processado e devendo os autos baixar à 1ª instância para que se profira nova decisão de mérito que exclua dos meios de prova as declarações prestadas pelo arguido AA na fase de inquérito.

104a. De onde se extrai que os valores em causa foram debitados na conta da E..., LLC e portanto, a ter havido prejuízo, esta sociedade americana é que sofreu o prejuízo patrimonial causado.

105a. O que o BPN Cayman fez foi conceder um financiamento à E..., LLC, tendo sido este financiamento feito sob a forma de descoberto autorizado, o que consubstancia uma forma de financiamento contratual.

106a. E então o prejuízo que o BPN (rectius o BPN Cayman) sofreu foi um prejuízo causado por incumprimento contratual e não por facto ilícito, estando portanto desde logo fora do âmbito do princípio de adesão.

107a. A conclusão não deixa de ser surpreendente uma vez que o Acórdão acaba a concluir que: “o prejuízo patrimonial causado foi produzido

na esfera patrimonial do BPN”, quando pelos dados factuais em que se louva, devia era concluir que o prejuízo tinha sido causado na esfera da E..., LLC - de cujo património saiu o dinheiro que lhe foi emprestado (por descoberto autorizado) pelo BPN Cayman - ou na esfera patrimonial da SLN que detém a E..., LLC através da M... LLC, que detém o BPN Cayman e que detém o BPN.

108a. Esta afirmação representa uma simplificação (“na esfera patrimonial do BPN”) que é contrariada pela matéria de facto, e que é juridicamente inadmissível, por fazer tábua rasa da personalidade jurídica de vários dos intervenientes (a E..., LLC, a SLN, o BPN Cayman e o BPN não é tudo a mesma coisa) e por confundir prejuízo emergente de facto ilícito com prejuízo emergente de incumprimento contratual.

109a. Assim, deve salientar-se que em nenhuma parte da matéria de facto existe referência a esta “detenção do BPN Cayman pela SLN”, existindo mesmo, conforme se acabou de evidenciar, uma contradição insanável da fundamentação e também entre a fundamentação e a decisão da matéria de facto, vícios esses previstos no artigo 410.º n.º 2 alínea b) do CPP que podem e devem ser conhecidos, desde logo oficiosamente, por V. Exas. e que, por consubstanciarem nulidades atípicas, aqui se arguem.

110a. Ora, é esta tão simplista quanto errónea consideração de que o prejuízo patrimonial foi produzido “na esfera patrimonial do BPN” que permitiu às instâncias que se considerassem, ainda que erradamente, verificados os nexos de causalidade da burla, uma vez que toda a narrativa factual, desse modo erradamente simplista, pretende, de forma totalmente inadmissível, dispensar inclusivamente a parte da matéria de facto que revela que outras entidades tiveram indiscutível intervenção nos factos.

IIIa. O (pretenso) prejuízo decorrente do facto ilícito, a ter existido, só poderia considerar-se ter sido verificado na esfera patrimonial da pessoa coletiva com sede nos Estados Unidos da América (E..., LLC), com conta no BPN Cayman (ou seja, num Banco com sede nas Ilhas Caimão e que não é detido pelo BPN com sede em Portugal), da qual saíram os € 2.500.000.

112a. Ora, para o caso de se entender que tudo fará sentido - no que não se concede - se se tiver em consideração o controlo de certas entidades por outras, então tais controlos societários tinham de constar da matéria de facto provada! Mas não constam!

113a. De igual modo, os meios através dos quais seriam exercidos os controlos de umas entidades sobre as outras, a existirem, tinham de constar da matéria de facto provada. Mas também não constam!

114a. Assim, ao considerar que as entidades envolvidas não necessitam de autonomização na matéria de facto, bastando a alusão à “esfera patrimonial do BPN” (expressão que, no caso concreto, é errónea), resulta patente no Acórdão o vicio de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de Direito nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, vício este que pode e deve ser conhecido, desde logo oficiosamente, por V. Exas. e que, por consubstanciar uma nulidade atípica, aqui se argui.

115a. No douto Acórdão recorrido, o Tribunal da Relação ... considerou, e bem, que: «em parte alguma dos factos provados consta como provado ou não provado o facto que: “para provimento da conta da E... LLC foi-lhe concedido um financiamento através de um descoberto autorizado que, em outubro de 2004, veio a ser regularizado através da sua substituição por uma operação de crédito no montante total de €3.500.000,00, o qual nunca veio a ser regularizado53 [Cf. a título de exemplo os pontos 8,76 a 79 do Mc.] Portanto, em conclusão, no que concerne ao pedido de indemnização civil, verificamos que além dos factos já mencionados e pertinentes para a decisão do PIC o tribunal não se pronunciou sobre qualquer outros factos alegados em número de 118, o que consubstancia uma omissão de pronúncia sobre os referidos factos que lhe competia dar como provados, não provados, ou prejudicados (…). Assim, sem a apreciação dos factos do PIC pelo tribunal a quo não é possível decidir com segurança o pedido de indemnização civil no sentido da absolvição ou da condenação, o que configura além da omissão de pronúncia o vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito, previsto no art. 410º, n.º 1 al. b) do CPP» - cfr. fls. 182-183 do acórdão recorrido [pág. que se inicia com «5. Em 7-12-12 foi registada uma fusão (...)].

116a. Entre o conjunto de 118 factos que se encontram alegados no PIC (todos não julgados provados, nem não provados, nem prejudicados), o Tribunal a quo destacou como sendo um dos factos essenciais, que «em parte alguma dos factos provados consta como provado ou não provado» e sem cuja apreciação «não é possível decidir com segurança o pedido de indemnização civil no sentido da absolvição ou da condenação», o facto nº 78 do PIC acima transcrito, além de outros, como os factos nºs 76, 77 e 79 do mesmo PIC, todos respeitantes ao descoberto autorizado e às condições que o rodearam.

117a. E por isso o Tribunal a quo considerou, e bem, que a falta de resposta a esses factos constantes do PIC, dando-os como provados ou não provados, consubstanciava uma nulidade de omissão de pronúncia, nos termos do art. 379º nº 1 alínea c) do CPP e um vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de Direito, previsto no art.º 410.º n.º 2 alínea a) do CPP.

118ª. Todavia, em flagrante contradição com esta acertada decisão, o Tribunal a quo, erradamente, não julgou que a falta desse mesmíssimo facto nº 78 (e dos demais factos com ele relacionados nºs 76, 77 e 79), ou seja, a falta de qualquer menção na matéria de facto provada ao descoberto autorizado e às circunstâncias que o rodeavam, consubstanciava, para efeitos penais,qualquer vício, designadamente não consubstanciava qualquer insuficiência da matéria de facto ou qualquer omissão de pronúncia.

119ª. Efetivamente não se pode aceitar que o Tribunal a quo considere que não pode decidir, com um mínimo de segurança, se absolve ou condena o arguido no pedido de indemnização civil sem apurar as circunstâncias em que foi feito o referido descoberto autorizado (factos nºs 76 a 79 do PIC, com especial relevo para o facto nº 78), mas possa com um mínimo de segurança condenar o arguido penalmente sem ter apurado esse mesmo facto e demais factos conexos que são até mais relevantes ao nível da matéria penal e concretamente do nexo causal entre a conduta enganatória e o engano de quem faz a disposição patrimonial.

120ª. O Tribunal a quo considerou que tal vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão proferida invocado era improcedente, pois «os factos provados como decorre da decisão de 1ª instância são suficientes para uma condenação segura» - cfr. fls. 128 da decisão recorrida [pág. que se inicia com «A argumentação do recorrente não se coadune (…)].

121ª. Mas fê-lo limitando-se a tecer considerações genéricas sobre os poderes de representação do BPN pelo Arguido e suas competências (art.ºs 12.º e 13.º da matéria de facto provada), não vendo que tais factos que ficaram por apurar são ainda mais importantes para o preenchimento do crime de burla e dos seus nexos causais.

122ª. E portanto, aquilo que se pede  a V.  Exas.,  Colendos Conselheiros, é que reconheçam que a insuficiência da matéria de facto consubstanciada em não ter sido levada à matéria de facto dada como provada as circunstâncias que rodearam o descoberto autorizado concedido à E..., LLC releva antes de mais para o apuramento da responsabilidade criminal do arguido AA, não sendo possível proferir com um mínimo de segurança uma decisão condenatória penal sem que tenham sido apuradas as circunstâncias de tal facto, maxime por que razões e com que conhecimento dos propósitos do arguido AA é que foi tal facto praticado por terceiros, facto esse que interrompe o nexo causal, a menos que se prove (e não pode obviamente presumir-se) que quem autorizou o descoberto estava de acordo que AA ficasse com €1.250.000.

123ª. Pelo exposto, V. Exas. deverão considerar verificado o vício de omissão de pronúncia por parte do Tribunal relativamente a todos os factos que constavam da acusação/pronúncia e que dizem respeito ao descoberto autorizado e demais factos que o rodearam (entre os quais os factos nºs 76 a 79 da acusação/pronúncia), nos termos do art. 379º nº 1 alínea c) do CPP e de um vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de Direito, previsto no art.º 410.º n.º 2 alínea a) do CPP), por não terem sido levados à matéria de facto relevante ara a apreciação da causa qualquer um destes factos respeitantes à existência e circunstâncias do descoberto autorizado.

124ª. Assim se eliminando a flagrante contradição de que padece a decisão recorrida no que toca à decisão sobre a suficiência, ou não, dos factos apurados para a decisão condenatória para efeitos penais e para efeitos civis.

125a. No ponto 26 da matéria de facto provada consta que o arguido AA determinou (sem se dizer quem) e deu instruções (sem se dizer a quem) para que fossem emitidos os 2 cheques à ordem dos mediadores espanhóis, um dos quais CC.

126a. E, no ponto 49 da matéria de facto provada consta que os arguidos AA e BB queriam depositar o montante titulado pelo cheque emitido em nome de CC na conta da titularidade de BB na U..., na Suíça.

127a. Para que se possa dizer que o arguido, através de uma manobra astuciosa, levou alguém que enganou a praticar atos que causassem a essa pessoa ou entidade um prejuízo, não basta fazer constar dos factos dados como provados que o arguido levou a E..., LLC a emitir um cheque à ordem de CC, pois, resultando também provado que o arguido pretendia depositar esse cheque na conta de BB, essa emissão do cheque à ordem de CC, por si só, é um facto inidóneo à causação de prejuízo, pois, por si só, sem endosso, jamais conduziria ou permitiria o seu depósito na conta de BB.

128a. E portanto essa emissão do cheque nominativo, em nome de CC, seria inidónea à causação de prejuízo e à obtenção de enriquecimento ilegítimo! O que novamente suscitaria a questão de estarmos perante uma tentativa inidónea ou impossível (V. supra II.2).

129a. Necessário era que tivessem sido dados como provados factos de onde resultasse claro o nexo causal entre a conduta astuciosa do arguido e os atos de disposição patrimonial em auto-lesão praticados pelo enganado e entre esses atos e o prejuízo do ofendido (este, suscetível de ser gerador de um enriquecimento ilegítimo para o arguido ou para terceiro).

130a. Ora nada disto consta dos factos dados como provados: nem a quem, de acordo com o plano criminoso, seria entregue o cheque emitido à ordem de CC: se ao tomador do cheque, CC, se ao arguido AA, ou se a um terceiro; ou por que via o referido cheque seria (de acordo com o plano criminoso supostamente concebido pelo arguido AA) depositado na conta de BB: se através da aposição de um endosso pelo próprio AA, se através de uma instrumentalização do titular CC conducente a que este mesmo fizesse o endosso do cheque ou ainda se através da obtenção do conluio de CC que assim faria o endosso do cheque dando o seu acordo e participando na execução do alegado plano imputado a AA.

131a. Não havendo prova de que CC era comparticipante (o que obviamente não se pode presumir), só se pode concluir que a sua intervenção interrompe o nexo de imputação objetiva entre o ato do enganado e o prejuízo.

132a. Pelo exposto, o Acórdão sub judice padece do vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão proferida nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, vício este que pode e deve ser conhecido, desde logo oficiosamente, por V. Exas. e que, por consubstanciar uma nulidade atípica, aqui se argui.

133a. Ao não se ter pronunciado sobre os factos respeitantes ao endosso, o Tribunal a quo incorreu ainda no vício de omissão de pronúncia prevista no artigo 379º nº 1 alínea c) do CPP, vício que deverá ser declarado por V. Exas. com todos os legais efeitos.

134a. De acordo com o estatuído no artigo 283.º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal, da Acusação / Pronúncia devem constar os factos integradores dos elementos objetivo e subjetivo do tipo incriminador imputado ao agente, sob pena de nulidade. A verificação dos elementos objetivos e subjetivos do tipo, traduzidos em factos alegados na Acusação constitui, pois, um pressuposto inultrapassável da verificação do crime, sendo que a ausência de factos integradores daqueles elementos, não permite a imputação de uma conduta ilícita típica.

135a. No que respeita aos elementos subjetivos do crime, incluem-se os factos que caracterizam o dolo do tipo, mas também o dolo da culpa, no qual se integra a consciência ética ou dos valores e a atitude do agente face aos bens jurídicos protegidos pela norma incriminadora. Não constando tais factos da Acusação ou na Pronúncia, não pode o Tribunal inferi-los a partir dos elementos objetivos ali vertidos, sob pena de se admitirem presunções de dolo, o que não é admissível.

136a. Na decisão sobre a matéria de facto não se deu como provado que o arguido agiu deliberadamente, mas apenas que:

“50. Os arguidos agiram de forma livre, consciente, sabendo que as sua condutas eram proibidas e punidas por lei penal.”.

137a. Ou seja, não obstante terem sido dados como provados alguns factos subjetivos não deu como provado que o Recorrente agiu “deliberadamente”, ou seja que o facto tenha consubstanciado uma ação voluntária dominável pela vontade.

138a. O que tudo decorre expressamente do texto da decisão recorrida, verificando-se, em conformidade, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício que, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal se deve ter por verificado.

139a. Esta omissão determina, por si só, a absolvição do Arguido em relação a ambos os crimes por que foi condenado, por insuficiente prova deste elemento subjetivo.

140a. Pois dúvidas não podem existir de que, mesmo que os factos alinhados na Acusação/Pronúncia descrevessem todos os elementos subjetivos do crime, a verdade é que não foram dados como provados todos os factos que integram o conceito de crime.

141a. A consequência da ausência ou insuficiência de factos subjetivos integradores do conceito de crime é, necessariamente, a absolvição do Arguido dos crimes por que foi condenado.

142a. Tendo o Tribunal a quo incorrido numa errada apreciação do Direito ao ter considerado que o acórdão da 1ª Instância não padecia de nulidade por alteração de factos subjetivos (a que se refere a divisão III.5 desta Motivação de recurso), sem que tivesse sido dado cumprimento ao disposto no artigo 359º e, subsidiariamente, no artigo 358º do CPP, V. Exas. deverão, suprindo tal erro de julgamento, considerar verificada a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do art. 379º do CPP, com as demais consequências legais.

143a. Foi cometido um crasso erro de Direito ao ter-se admitido como assistente quem jamais podia ter sido considerado o ofendido da burla, ou seja, o titular do bem jurídico concreto - património - tutelado pelo tipo penal em causa, pois a Parvalorem não existia sequer nem ao tempo da prática dos factos nem ao tempo da produção do resultado típico.

144a. Assim, é manifesto que, em termos jurídicos, é indefensável a admissão e a manutenção da Parvalorem nos presentes autos como assistente.

145a. Não se pode deixar pois de julgar nula, porque ilegal por ser manifestamente violadora do art. 68º nº 1 al. a) do CPP, a intervenção da Parvalorem nos presentes autos sob as vestes de Assistente, nulidade essa que deverá ser declarada por V. Exas., Colendos Conselheiros, com efeitos desde a primeira intervenção relevante desta entidade como assistente no processo.

146ª. Em face de terem passado (quase) 18 anos da data dos factos, seja qual for a decisão que venha a ser proferida por esse Colendo Tribunal, é absoluta a imperatividade da aplicação da atenuante especial modificativa, prevista no artigo 72º nº 2 alínea b) CP (conforme já acima circunstanciadamente exposto em II.4)

Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas., Venerandos Conselheiros, deverá ser julgado procedente o presente recurso, absolvendo-se o Arguido ou, subsidiariamente, anulando-se a decisão condenatória do Tribunal da Relação ... e ordenando a remessa dos autos para a 1ª instância, não só para julgamento de todos os factos alegados no PIC (como fora determinado pelo Tribunal da Relação ...), mas também para julgamento das questões de facto necessárias para aboa decisão da causa em matéria penal, onde não tenha intervenção a ilegítima Assistente Parvalorem e onde não seja valorada a prova anteriormente ilegalmente valorada.

Num duplo grau de subsidiariedade, deverá ser revogado o acórdão recorrido e sanadas as nulidades de que o mesmo padece, só podendo o arguido ser condenado, pela prática de um crime de burla simples na forma tentada (devendo ser sempre absolvido da prática do crime de branqueamento de capitais), numa pena especialmente atenuada e suspensa na sua execução.

Só assim será, no caso em apreço, respeitado o Direito e feita JUSTIÇA!

6. O recurso foi admitido por legitimidade do recorrente, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, nos termos do disposto nos arts. 401º, nº 1, al. b), 407º, nº 2, al. a), 406º, nº 1 e 408º, nº 1, al. a), todos do Cod. Proc. Penal - cfr. despacho judicial de 23/02/2022.

7. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação ... respondeu ao recurso, na parte em que ora interessa, da seguinte forma[5]:

B. Da admissibilidade do recurso

a). Na apreciação do pedido de indemnização cível o Acórdão recorrido não é confirmatório

Para contornar a disposição da alínea f), do n.º 1, do art.º 400.º do Código de Processo Penal, o recorrente começa por referir que tendo o Acórdão do Tribunal da Relação ... de que recorre entendido, em sede de apreciação do pedido de indemnização cível, que a decisão de 1ª instância, além de padecer de omissão de pronúncia, ainda padece do vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de Direito previsto no artigo 410º nº 2 alínea b) do CPP (cfr. conclusão 6), logo não poderia ser tido como confirmatório.

Apesar de reconhecer que estando em causa todos os factos do PIC, remata de imediato referindo que estão necessariamente em causa todos os pressupostos de responsabilidade civil delitual, sendo bem sabido que muitos deles, como a ilicitude, a culpa e os nexos de causalidade são comuns à responsabilidade penal (cfr. conclusão 9).

Na conclusão seguinte, distorcendo o que se afirmou no Acórdão do Tribunal da Relação ... a propósito das deficiências encontradas na apreciação do pedido de indemnização cível em que o arguido foi condenado, tenta arrastar o que se referiu sobre a matéria cível, atribuindo-lhe efeitos no foro penal.

Ora, em causa está em primeiro lugar a necessidade de decidir com segurança no que se refere à legitimidade da assistente Parvalorem se arrogar ao pagamento do peticionado a título de indemnização cível pelo crime de burla praticado pelo arguido.

Por isso se entende no Acórdão do Tribunal da Relação ...:

“(…) da comparação do itinerário que a Parvalorem faz na sua resposta para justificar a sua legitimidade para deduzir o PIC com o alegado no PIC e os factos provados pertinentes, em parte alguma dos factos provados consta como provado ou não provado o facto que: “para provimento da conta da E... LLC foi-lhe concedido um financiamento através de um descoberto autorizado que, em outubro de 2004, veio a ser regularizado através da sua substituição por uma operação de crédito no montante total de €3.500.000,00, o qual nunca veio a ser regularizado.

Deslocando a argumentação para uma suposta relevância da decisão no sentido do Tribunal de primeira instância clarificar a questão da legitimidade da assistente e se pronunciar sobre os factos que a mesma aduziu no seu petitório, o arguido tenta suscitar uma questão lateral, irrelevante para a discussão do crime de burla que cometeu.

Contudo, o Tribunal da Relação ... no seu Acórdão exprime com sólida argumentação os fundamentos que sustentam a confirmação da decisão proferida pelo Juízo Central Criminal ..., referindo designadamente a fls. 151 e 152;

Efetuado o percurso pelos elementos constitutivos do crime de burla, sobretudo pelo elemento objectivo “prejuízo patrimonial” e volvendo ao caso concreto, constata-se que os factos provados nos autos revelam a existência de erro ou engano provocado astuciosamente pelo arguido/recorrente, que foi determinante da prática pelo BPN, de actos [emissão dos dois cheques, um deles no montante de 1.250.000,00€ não destinado à indemnização por rescisão do contrato de mediação, como lhe foi feito crer] que lhe causaram prejuízo patrimonial à data.

A questão, nesta sede e neste momento é esta, como podemos fazer esta afirmação?

Podemos fazer esta afirmação tendo em conta os factos provados em 1 a 5 e 20, 21, 22, 24 e 26 a 29, de onde decorre que os 41 quadros foram adquiridos através de “Z... LLC”, com sede em ..., ..., ..., ..., ..., Estados Unidos da América, que era detida pela “M... LLC” que, por sua vez, era detida pela S.L.N. A venda não foi faturada à ... H... LLC, mas sim ao BPN, todas sociedades detidas pela Sociedade Lusa de Negócios, SGPS, S.A, sendo ainda certo que o emitente da factura foi “N... LTD”, pelas razões que constam no facto 21.

Em face do facto de todas as sociedades que intervieram no contrato de aquisição pelo lado do comprador serem detidas pela SLN e de a compra ter sido faturada ao BPN, temos por adquirido que este era o seu formal e verdadeiro proprietário, qualidade com que se arrogou no contrato de mediação e que assumiu ao emitir os cheques para o cumprimento da cláusula de rescisão. Qualidade que também foi assumida pelo recorrente quer no contrato de mediação quer no acordo de rescisão, embora neste sem obedecer ao que estava estipulado previamente em procuração.

Daqui decorre que o BPN Cayman e as restantes sociedades do grupo, onde se inclui a “E..., LLC” - facto 27 - eram sociedades detidas pela SLN que detinha o BPN e sociedades veículo do BPN, S.A., utilizadas para prossecução dos seus respetivos interesses.

Assim, conclui-se que o prejuízo patrimonial causado foi produzido na esfera patrimonial do BPN. As vicissitudes posteriores relativas à cessão deste crédito não interferem na consumação do crime, quando muito interferem na caraterização do crédito invocado pela Assistente Parvalorem em consequência do prejuízo destes autos sofrido pelo BPN, questão que se situa no plano estrito do PIC.

Estão verificados os elementos constitutivos do crime de burla pelo recorrente AA., nos termos considerados na primeira instância.

O mais uma vez convocado vicio da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, não faz qualquer sentido neste âmbito, sem prejuízo do que diremos em sede do PIC.

Improcede esta questão.[6].”

No recurso refere-se que foi determinado que o Tribunal de 1ª instância dê resposta aos referidos 118 factos do PIC que não julgou (cfr. conclusão 7), enquanto no Acórdão do Tribunal da Relação ... se expressa que o tribunal não se pronunciou sobre qualquer outros factos alegados em número de 118, o que consubstancia uma omissão de pronúncia sobre os referidos factos que lhe competia dar como provados, não provados, ou prejudicados, em vista do já provado relativamente à matéria de facto da acusação.

Na verdade, no pedido de indemnização cível que deu entrada em 5-07-2019 no Departamento Central de Investigação e Acção Penal de Lisboa (cfr. carimbo aposto no documento), a assistente Parvalorem invocou vários factos nos cento e dezoito artigos que constituem a peça processual.

Muitos desses factos nada interessam para estes autos (cfr. por exemplo os factos constantes dos artigos 28.º a 52.º). Por outro lado, muitos outros factos constantes da petição foram dados como provados ou não provados, sendo que se entendeu que o Tribunal de primeira instância deveria ter referido isso no Acórdão.

Em nada o que consta do pedido de indemnização cível tem relevância para a questão criminal que foi decidida com segurança em função da factualidade dada como provada na primeira instância e confirmada no Tribunal da Relação ....

b). Na fundamentação da matéria penal o Acórdão recorrido não é confirmatório

Como bem refere o arguido na conclusão 14, é jurisprudência constante do STJ que um abaixamento da medida concreta da pena é considerado uma “confirmação in mellius”. E quando a única diferença entre a decisão de 2ª instância e a decisão de 1ª instância seja essa, não se põe em causa que não haja recorribilidade da decisão de 2ª instância, nos termos do artigo 400º nº1 alínea f) do CPP[7].

A seguir refere que o Acórdão recorrido do Tribunal da Relação ... fundamentou de forma completamente nova e portanto totalmente diferente as suas decisões , por um lado, quanto à separação entre questão penal e questão civil (V. supra divisão A da Parte Primeira) e, por outro lado, quanto às matérias do descoberto autorizado que consta do facto provado 27 (V. infra Parte Segunda III.3), quanto ao endosso necessariamente pressuposto no facto provado 34 (V. infra Parte Segunda II I.4) e quanto à insuficiência da imputação subjetiva (V. infra Parte Segunda III.5) (cfr. conclusão 18) para vislumbrar numa alegada diferença na fundamentação um motivo para apoiar a sua tese de que não estamos perante uma decisão confirmatória.

Ora, como resulta do trecho do Acórdão do Tribunal da Relação ... que acima transcrevemos e de todo o Acórdão, em matéria penal a decisão é efectivamente confirmatória, usando os mesmos elementos de prova e os fundamentos do Acórdão do Juízo Central Criminal ..., à excepção do que se refere à medida da pena em que beneficia o recorrente.

Compreende-se a nuance do apelo à pretensa diferença na fundamentação para contrariar alguma uniformidade na doutrina[8] e na jurisprudência quanto à questão da irrecorribilidade das decisões confirmatórias nos termos do cit. art.º 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, pelo menos abre caminho para discutir a questão no Tribunal Constitucional como parece resultar do afirmado na conclusão 22.

c). Aplicação da norma da alínea f), do nº 1, do art. 400º do Código de Processo Penal na redacção que tinha à data da prática dos factos.

Ao longo de onze conclusões (entre a 25 e a 35), o recorrente insurge-se contra a interpretação dada pelos Tribunais Superiores quanto à aplicação das normas processuais penais.

Na verdade, decisões como a do Ac. STJ de 29-09-2010, proferido no proc. n.º 234/00.8JAAVR.C2.S1[9],

- O Ac. do STJ n.º 4/2009, de 18-02, publicado no DR, I Série, de19-03-2009, fixou jurisprudência no sentido de que, em matéria de recursos penais, no caso de sucessão de leis processuais penais, é aplicável a lei vigente à data da decisão proferida em 1.ª instância.

VI - A decisão de 1.ª instância, no caso vertente, foi proferida em 2009. Nessa data estava já em vigor a versão do CPP resultante das alterações que nele foram introduzidas pela Lei 48/07, de 29-08, como decorre do seu art. 7.º.

Ou a do Ac. STJ de 18-06-2008, proferido no proc. n.º 08P1624[10]

I - A lei reguladora da admissibilidade do recurso – e, por consequência, da definição do tribunal de recurso – será a que vigorar no momento em que ficam definidas as condições e os pressupostos processuais do próprio direito ao recurso (seja na integração do interesse em agir, da legitimidade, seja nas condições objectivas dependentes da natureza e conteúdo da decisão: decisão desfavorável, condenação e definição do crime e da pena aplicável), isto é, no momento em que primeiramente for proferida uma decisão sobre a matéria da causa, ou seja, a da 1.ª instância.

Não merecem o acordo do arguido que parece também aqui encontrar motivo para trazer à discussão da causa o Tribunal Constitucional (cfr. conclusões 31 a 34).

Para nós não se verificam quaisquer inconstitucionalidades, apenas a razoável aplicação das leis referentes ao Processo Penal que são adjectivas e não substantivas. No demais concluímos que não é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

C. Das outras questões suscitadas

a). Da qualificativa do crime de burla

Nas conclusões 36 a 42 o arguido detém-se na apreciação da qualificativa considerada tanto no Acórdão proferido no Juízo Central Criminal ... como naquele de que se arroga ao direito de recorrer.

Ora, vejamos o que terão pretendido os Tribunais quando consideraram que a burla praticada pelo arguido era qualificada. Assim, no Acórdão proferido no Juízo Central Criminal ... referiu-se o seguinte:

“Comete o crime de burla quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial (cfr. art.º 217.º, n.º 1, do C.P.), que será qualificado se o prejuízo patrimonial foi de valor consideravelmente elevado (cfr. art.º 217.º, n.º 1, al. a), do C.P.), isto é, aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto (cfr. art.º 202.º, al. b), do C.P.). (…)

Por seu turno, a expressão valor consideravelmente elevado assume o sentido que lhe é dado pelo art.º 202.º, al. b), do C.P., ou seja, aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto.

Ora, até 19-04-2009 uma unidade de conta correspondia à quantia monetária equivalente a ¼ da remuneração mínima mensal mais elevada, garantida, no momento da condenação, aos trabalhadores por conta de outrem, arredondada, quando necessário, para a unidade de euros mais próxima, ou se a proximidade fosse igual, para a unidade de euros imediatamente inferior, sendo atualizada trienalmente, com início em 1 de janeiro de 1992, automaticamente, atendendo-se para o efeito à remuneração mínima que, sem arredondamento, tivesse vigorado no dia 1 de outubro do ano anterior (cfr. arts. 5.º, n.º 2, e 6.º, do Decreto-Lei n.º 212/89, de 30 de junho, tendo presente as alterações introduzidas no primeiro preceito legal referido pelo art.º 31.º do Decreto-Lei n.º 323/01, de 17 de dezembro). Atento o art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 320-C/2002 de 30-12, cifrava-se em 356, 60 EUR o valor da remuneração mínima mensal mais elevada que vigorava em 01-10-2003, pelo que a UC entre 2004 a 2006 era de 89 EUR.

II. DOS CRIMES COMETIDOS

Atenta a matéria de facto considerada provada, constata-se que o arguido AA determinou a que fossem emitidos pelo B.P.N. dois cheques de 1 250 000 EUR cada, ainda na vigência do referido “contrato de mediação”, adotando, pois, uma conduta que, de acordo com as regras da experiência e os parâmetros ético-sociais vigentes no sector de atividade em causa, era e foi adequada a criar a falsa convicção de que o valor devido a título de indemnização pela revogação daquele contrato de mediação se cifrava em 2 500 000 EUR, conforme neste estabelecido, quando, na verdade, o arguido AA já havia acordado na sua redução para a quantia 1 250 000 EUR.

Deste modo, o arguido AA, através da sua conduta, veiculou para o B.P.N. uma visão falsa ou deturpada da realidade, isto é, de que o valor devido pela indemnização pela revogação do “contrato de mediação” se cifrava em 2 500 000 EUR, quando na realidade era apenas devida a quantia global de 1 250 000 EUR, o que fez com que o B.P.N. caísse em erro quanto ao valor efetivamente devido pela referida revogação e, por força do mesmo, efetuasse disposições patrimoniais de valor global superior ao que era efetivamente devido a esse título.

Acresce que o arguido AA atuou dolosamente (cfr. art.º 14.º, n.º 1, do C.P.), com o intuito concretizado de integrar na sua esfera o montante de 1 250 000 EUR a que sabia não ter direito, causando ao B.P.N. um prejuízo de igual montante.

Na medida em que o arguido AA tinha o domínio objetivo do facto e a vontade de o dominar, tendo tomado a execução nas suas próprias mãos, de tal modo que só dele dependia o se e o como da sua realização, deverá ser punido como autor imediato (cfr. art. 26º 1ª parte, do CP.).

Deste modo, é objetiva e subjetivamente imputável ao arguido AA, a prática, como autor imediato e sob a forma consumada, de 1 crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 14.º nº 1, 26.°, 202.º, al. b), 217.º, nº1, 218.º, n° 2, al. b), do CP.

Após referir que o Tribunal a quo fundamentou a subsunção dos factos ao crime de burla qualificada do seguinte modo no Acórdão do Tribunal da Relação ... transcrevem-se os considerandos da primeira instância, fornecendo-se a seguir a perspectiva do Tribunal Superior, em todo coincidente com o que antes havia sido referido. Aliás, confirma-se na totalidade a leitura feita no Acórdão do Juízo Central Criminal ... quanto à integração dos factos provados no crime de burla agravada.

Esta coincidência foi tal que se refere o mesmo lapso de escrita cometido na primeira instância quando se referiu a alínea b) do art.º 218.º, do Código Penal enquanto se pretendeu nomear a alínea a) do mesmo preceito. Na verdade, a agravação resulta do valor consideravelmente elevado alvo de apropriação, à data da prática dos factos e não por eventual habitualidade do arguido.

Aliás, não se pode interpretar de outra forma quando em ambas decisões, referindo as normas incriminatórias se nomeia a alínea b) do art.º 202.º do Código Penal - Para efeito do disposto nos artigos seguintes considera-se valor consideravelmente elevado: aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto.

Para nós é evidente o lapso de escrita (certamente por arrasto da referência à alínea b) do art.º 202.º referido) pelo que, face à fundamentação da decisão e às demais normas invocadas, deverá interpretar-se o que se escreveu na norma incriminatória a referência à alínea a) do art.º 218.º do Código Penal.

b). Da “questão prejudicial” não penal e do prejuízo

A partir do ardil astucioso que o arguido urdiu para enganar quem lhe pagava o salário, i. é, os responsáveis do “Banco Português de Negócios, SA”, na sua peça recursiva especula quanto a um dos instrumentos que utilizou no ardil que forjou. Assim, suscita uma questão lateral cuja relevância para a questão a decidir se consubstancia unicamente em ter sido um instrumento utilizado na burla praticada pelo recorrente (cfr. conclusões 43 a 53).

Como acima referimos e resulta do que transcrevemos do Acórdão recorrido, o arguido fez crer os responsáveis pelo “Banco Português de Negócios, SA” que teriam de pagar aos mediadores espanhóis dois milhões e quinhentos mil euros a título de indemnização pela cessação do contrato de mediação que, pela sua mão, tinham celebrado com o referido banco.

Contudo, tinha já acertado com os referidos mediadores que receberiam apenas um milhão e duzentos e cinquenta mil euros por tal rompimento do contrato através de um instrumento para o qual não tinha poderes para subscrever.

Sem discutir a forma como foram pagas importâncias tão avultadas (de valor consideravelmente elevado) a quem parece não ter feito nada para as receber, a questão reduz-se ao facto de o acordo celebrado pelo arguido com os espanhóis consistir apenas numa forma de convencer os mediadores espanhóis a abrirem mão de metade daquilo a que tinham direito.

Concomitantemente, esse acordo constitui também um importante meio de prova contra o arguido, demonstrando que convencera os espanhóis a contentarem-se com metade do que constava do contrato de mediação como indemnização pela sua quebra. Porventura será o “rabo de fora que o gato tinha escondido”.

Na linha de que o acordo celebrado com os mediadores espanhóis, segundo a lei espanhola, aplicável in casu, é nulo, o arguido prossegue tentando demonstrar que sendo assim, o Banco Português de Negócios, SA não sofreu prejuízo pois sempre devia pagar os dois milhões e quinhentos mil euros a título de indemnização (cfr. conclusão 54).

Apesar de no Acórdão do Tribunal da Relação ..., recorrendo aos ensinamentos do Professor Doutor A. M. Almeida Costa, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, vol. 2, se ter já explicado ao arguido o que é uma burla, tomamos a liberdade de prosseguir a lição, invocando o que consta da mesma obra a pags. 283 - 287 a propósito do que é ou em que consiste a noção de prejuízo.

A opinião dominante na actualidade advoga um conceito objectivo-individual de dano patrimonial (individuell-objektiven Schadensbegriff. De acordo com a tese em apreço, o prejuízo devera determinar-se através da aplicação de critérios objectivos de natureza económica a concreta situação patrimonial da vítima, concluindo-se pela existência de um dano sempre que se observe uma diminuição do valor económico por referência a posição em que o lesado se encontraria se o agente não houvesse realizado a sua conduta. Esta a tese avançada pela generalidade dos adeptos da assinalada (supra § 6) teoria "económico-jurídica" de património (apesar das divergências no plano terminológico, com uma ampla exemplificação, cf SAMSON, JA 1989 510-1, LACKNER, LV) § 263 143 ss., S / S / CRAMER § 263 108 ss., M/S / Matwald II/1 451ss. e SAMSON/GIINTHER, SK5 § 263 133ss).

A perspectiva exposta é, também, a que melhor se ajusta à noção jurídico-criminal de património, atrás defendida (supra § 7). No confronto com a compreensão "económico-jurídica", a posição adoptada apenas implica diferenças pontuais acerca das situações integradoras do conceito de património e não já quanto aos critérios de determinação do dano patrimonial. (...)

§ 9 Saliente-se, de outra parte, que, no quadro do entendimento da burla como um "delito de intenção" (Ahsichtsdelikt - supra § 4 e infra § 23), e igualmente a aludida concepção jurídico-criminal de património (supra § 7) que preside à definição do enriquecimento (próprio ou alheio) procurado pelo agente através da pratica do crime. Ainda que de modo implícito, já no âmbito do CP de 1886 um sector da doutrina portuguesa aderia à mencionada perspectiva económico-jurídica de patrim6nio (cf., por todos, SOUSA E BRITO, SJ 1983 159-60). Na actualidade, aquela orientação parece, ao menos como ponto de partida, encontrar correspondência na letra do nº 1 do art. 217º. Aí se estabelece, entre os requisitos da burla, que o sujeito activo pretenda obter um "enriquecimento ilegítimo" -- expressão que combina os critérios económico e axiológico-jurídico característicos da tese económico-jurídica de património (adoptando esta orientação, cf. LEAL-HENRIQUES / SIMAS SANTOS 11 539-40 e J. A. BARREIROS, cit. 154-6). Pelos mesmos motivos indicados, supra § 7, parece, todavia, que, também no domínio em análise, deve valer a concepção jurídico-criminal de património. Além de compatível com o elemento gramatical do art. 217º, esse o único entendimento que, como se viu, se adequa às finalidades do direito penal.

§ 10 Para um melhor esclarecimento da perspectiva exposta, passam a enunciar-se, a título exemplificativo, algumas situações integradoras do conceito de património:

- direitos subjectivos patrimoniais (…)

- expectativas jurídicas (…)

- expectativas fácticas (…)

- prestações judicialmente não exigíveis, correspondentes as chamadas obrigações naturais, (…)

-certas pretensões fundadas em negócios jurídicos inválidos ou ineficazes, desde que a disponibilidade do devedor para cumpri-los lhes confira utilidade económica e, sobretudo, a situação resultante de tal cumprimento não se mostre em si mesma, atento o seu conteúdo intrínseco, desaprovada pelo direito, i. e., materialmente injusta.

Como se pode verificar o conceito jurídico-criminal de património onde é provocado o prejuízo é muito mais vasto do arguido pretende fazer crer, englobando também os valores que o Banco Português de Negócios SA foi obrigado a despender devido ao esquema criminoso montado pelo seu funcionário que enganou tudo e todos.

Apesar do que defende o recorrente, entendemos que ficou mais do que demonstrado que o Banco Português de Negócios, SA não tinha de pagar os dois milhões e quinhentos mil euros aos mediadores espanhóis a título de indemnização. Assim, ao levar o referido banco a emitir os dois cheques de um milhão e duzentos e cinquenta mil euros, o arguido causou um prejuízo e recebeu para si uma vantagem de valor igual ao de um desses cheques.

Pelo exposto, cai pela base a fantasiosa construção feita pelo recorrente ao longo das conclusões 57 a 65, sendo também certo que não se vislumbra qualquer contradição ou vício na matéria dada como provada.

Por outro lado, o que se invoca nas conclusões 66 a 71, dá como assente uma construção que, como demonstramos, é perfeitamente insustentável. Na realidade, ficou mais do que evidente que o arguido induziu os responsáveis do Banco Português de Negócios SA a pagar o que não estava a ser exigido, apoderando-se de metade do que o banco entregou devido ao engano por si provocado.

Neste contexto não faz qualquer sentido a tese que apresenta de que resulta dos factos provados que AA quis enganar o BPN, mas não o enganou. Quis prejudicar a E..., LLC, ou o BPN Cayman, ou a SLN, mas não os prejudicou, não tendo também prejudicado os mediadores espanhóis (cfr. conclusão 66).

Tal como também não colhe que ocorra insuficiência para a decisão dos factos julgados provados, nos termos do artigo 410º nº 2 alínea a) do CPP (cfr. conclusão 71), apenas mais uma tentativa do recorrente remeter, sem qualquer razão, para a primeira instância o processo.

c). Da punição da burla nos termos do art. 23º nº 2 do Código Penal

Continuando com a fantasia alicerçada nas construções atrás referidas, o arguido adianta a hipótese de, face à suposta inaptidão dos meios empregados pelo AA seria não manifesta, então o facto será punível, como tentativa nos termos do artigo 23º nº 2 do Código Penal, o que implica uma redução de 1/3 da pena máxima abstratamente aplicável nos termos do artigo 73º nº 1 alínea a) e que o mínimo abstrato da pena seja reduzido ao mínimo legal, nos termos do artigo 73º nº 1 alínea b), já que, mesmo que o tipo penal aplicável seja o da burla qualificada (cfr. conclusão 72). Prosseguindo com a “tentativa” de fazer acreditar na sua arrevesada construção a fim de evitar a punição pelo crime de branqueamento (cfr. conclusão 76).

Como para nós é óbvio que o arguido deverá ser punido pelo crime de burla agravada em função do valor consideravelmente elevado da quantia de que se apoderou e também deverá ser punido pelo crime de branqueamento pois ficaram igualmente demonstrados todos os elementos constitutivos desse ilícito criminal.

d). Da aplicação do disposto nos art.s 72º e 73º do Código Penal

Entende o arguido que deveria ter sido considerada em seu benefício a circunstância atenuante a que se refere a disposição da alínea d), do n.º 2, do art.º 72.º, do Código Penal (cfr. conclusão 79).

Assim, o Tribunal, ao não ter observado o que considera uma imposição legal, incorreu no vício este que é de conhecimento oficioso, sendo o mesmo cominado com nulidade, em concreto por omissão de pronúncia nos termos do artigo 379.º, número 1, alínea c) por força do artigo 425.º, número 4 do Código de Processo Penal, na medida em que o Acórdão deixou de conhecer de matéria a que se encontrava legalmente vinculado (cfr. conclusão 80).

Ora, vejamos como encarou o Tribunal da Relação ... a circunstância atenuante para a qual o arguido apela,

Como decorre do artigo 40º do CP, as finalidades da punição, quer dizer, as finalidades das penas são a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial. «Umas e outras devem coexistir e combinar-se da melhor forma e até ao limite possíveis, porque umas e outras se encontram no propósito comum de prevenir a prática de crimes futuros.»

Com a finalidade da prevenção geral positiva ou de integração do que se trata é de alcançar a tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto. No sentido da tutela da confiança das expectativas de todos os cidadãos na validade das normas jurídicas e no restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime.

A medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos é um «acto de valoração in concreto, de conformação social da valoração legislativa, a levar a cabo pelo aplicador à luz das circunstâncias do caso. Fatores, por isso, da mais diversa natureza e procedência – e, na verdade, não só factores do “ambiente”, mas também fatores diretamente atinentes ao facto e ao agente concreto – podem fazer variar a medida da tutela dos bens jurídicos». Do que se trata – e uma tal tarefa só pode competir ao juiz – «é de determinar as referidas exigências que ressaltam do caso sub iudice, no complexo da sua forma concreta de execução, da sua específica motivação, das consequências que dele resultaram, da situação da vítima, da conduta do agente antes e depois do facto, etc.».

Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva, devem actuar as exigências de prevenção especial. A medida da necessidade de socialização do agente é, em princípio, o critério decisivo do ponto de vista da prevenção especial.

A medida da pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa (artigo 40.º, n.º 2, do CP), mas, a culpa tem a função de estabelecer «uma proibição de excesso», constituindo o limite inultrapassável de todas as considerações preventivas. A aplicação da pena não pode ter lugar em medida superior à suposta pela culpa, fundada num juízo autónomo de censura ético-jurídica. O que se censura em direito penal é a circunstância de o agente ter documentado no facto – facto que é expressão da personalidade – uma atitude de contrariedade ou de indiferença (no tipo-de-culpa doloso) perante a violação do bem jurídico protegido.

Os concretos fatores de medida da pena, constantes do elenco, meramente exemplificativo, do n.º 2 do artigo 71.º do CP, relevam tanto pela via da culpa como pela via da prevenção.

Nos crimes em causa nos autos, no caso, ambos do âmbito da criminalidade económico-financeira, as exigências de prevenção geral positiva são sempre elevadas porque a violação dos bens jurídicos, património e contra a administração da justiça são hodiernamente fortemente repudiados pela comunidade. E, por essa razão, a estabilização contra-fáctica das expectativas comunitárias na afirmação do direito exige uma reação adequada do sistema formal de administração da justiça, traduzida na aplicação de penas capazes de restabelecer a paz jurídica abalada pelos crimes e de assegurar a confiança da comunidade na prevalência das normas.

Apontando no sentido de uma redução das exigências de prevenção especial há um significativo conjunto de circunstâncias, relativamente a ambos os arguidos.

Relativamente ao arguido AA: a ausência de antecedentes criminais, sendo o recorrente uma pessoa [nascida .../.../1961] atualmente com 60 anos de idade e ao tempo dos factos com cerca de 43 anos de idade e a sua boa inserção familiar, profissional e social, atualmente ainda na vida ativa no mundo dos negócios (…)

Relativamente ao arguido AA, no caso concreto, o grau de ilicitude dos crimes é muito elevado, visto que a atividade criminosa do arguido decorreu num período que por aproximação se fixa em cerca de dois meses, intervalo de tempo em que praticou dois crimes, a quantia de que se apropriou excede em muito a quantia necessária para considerar qualificada a burla, como certeiramente deu conta o tribunal a quo, acrescendo ainda uma grave violação dos deveres que sobre si impendiam enquanto Diretor do Private Banking. (…)

Acresce, sobressair em relação a ambas as atuações a forma elaborada da execução do crime, a dificultar de forma invulgar a sua investigação, sedo que como se escreve no Ac. do TRL de 18.07.2013, «Quanto mais eficiente e sofisticada for a conduta de branqueamento mais grave e perigoso é o atentado ao bem jurídico protegido com esta incriminação.»

Ambos os arguidos actuaram com dolo direto, embora a culpa do arguido AA seja elevada, pois claramente é o mentor dos crimes, já que é com o crime de burla que inicia todo o itinerário criminoso e são os seus conhecimentos e consequente vontade de aproveitamento das circunstâncias contratuais que despoletam todos os comportamentos criminosos provados nos autos. (…)

Relativamente aos motivos da actuação. Enquanto relativamente ao arguido BB, não podemos ir além de um interesse derivado de uma relação privilegiada com o arguido AA com quem mantinha negócios de obras de arte, o que não remete inequivocamente para qualidades desvaliosas da sua personalidade; em relação ao arguido AA há claramente uma motivação na ganância, no ganho ilícito, o que projeta nos factos qualidades desvaliosas da sua personalidade.

O arguido AA prestou declarações de algum relevo para a descoberta da verdade material durante o inquérito, atenta a motivação da convicção do Tribunal.

Nenhum dos arguidos beneficia das importantes atenuantes, arrependimento sincero ou confissão dos factos.

Entendemos não ser de levar em conta o tempo entretanto decorrido, atenta a forma de execução do crime altamente obstaculizadora da investigação. E muito menos será de contabilizar a favor do arguido - de qualquer dos arguidos - a época em que os factos ocorreram e o clima de confiança e crescimento económico que o país e o mundo atravessavam, já que este clima de confiança se podia ser considerado em crimes onde houvesse, por exemplo, um investimento mais agressivo ou afoito, nunca será de considerar para efeitos da prática de crimes. O oportunismo nunca poderá ser considerado uma atenuante.

Consideramos que as penas aplicadas ao Recorrente/arguido AA sofrem de algum desfasamento entre elas mesmo que se considere que devem situar-se cerca do ponto médio da pena abstrata e levado em atenção que o crime principal é o crime de burla qualificada e o crime de branqueamento o crime instrumento por visar dissimular os proveitos obtidos.

Concordamos inteiramente com a valoração justa e equilibrada que o Tribunal da Relação ... fez da conduta do arguido, incluindo aquela posterior aos factos. O juízo do Tribunal obedeceu ao comando do n.º 1, do art.º 72.º, do  Código  Penal  ponderando  em concreto a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.

Do exposto resulta que tendo valorado equilibradamente as todas as circunstâncias que rodearam a prática dos factos criminosos pelo arguido, fundamentando devidamente a decisão, o Acórdão do Tribunal da Relação ... não enferma de qualquer vício, pelo que não tem qualquer razão o invocado nas conclusões 79 a 93 do recurso do arguido.

e). Da valoração das declarações prestadas em inquérito

Nas conclusões 94 a 103 o recorrente aborda não só a valoração dada às declarações que prestou no inquérito no Acórdão do Juízo Central Criminal ... e no Acórdão do Tribunal da Relação ..., como manifesta o entendimento no sentido de que é inconstitucional o complexo normativo das normas conjugadas dos artigos 355.º, n.º 1, 356.º, n.º 9 e 357.º, n.º 3, todos do Código de Processo Penal, na interpretação de que é permitida a valoração em julgamento e para fins condenatórios de declarações do arguido feitas nos termos do artigo 357º nº 1 alínea b) do CPP, sem que a sua leitura ou reprodução seja admitida, por decisão que conste em ata e efetivamente ocorra, por violação dos princípios da imediação, contraditório, da defesa e do processo justo e equitativo, consagrados no artigo 32.º, n.ºs 1 e 5 e 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do artigo 6.º da CEDH (cfr. conclusão 101).

No que se refere àquela que parece ser a principal preocupação do recorrente – levar o processo ao Tribunal Constitucional – não se nos afigura de todo que lhe assista razão em clamar a inconstitucionalidade do entendimento perfilhado e praticado no Tribunal de primeira instância que depois foi confirmado no Tribunal da Relação ....

Tal como resulta da fundamentação da matéria de facto constante do Acórdão do Juízo Central Criminal ... que aqui damos por reproduzida, o procedimento adoptado respeitou as normas processuais e os direitos do arguido, não merecendo qualquer censura.

No que se refere à valoração dada em sede de medida da pena, o recorrente reclama a existência de uma nulidade referindo a dado passo que o Acórdão proferido pelo Tribunal Coletivo de 1ª instância, ao valorar as declarações do Arguido AA – e valorou-as inequivocamente na parte do Acórdão recorrido intitulada “Escolha e Medida da Sanção”, ora dizendo-se que AA “negou os factos demonstrados, refugiando-se em ordens verbais dadas por outros”, o que relevou negativamente em termos de prevenção especial negativa, ora dizendo-se que afinal o Tribunal da Relação “não se revê” nesse “segmento da fundamentação da medida das penas” – está assim ferido de nulidade insanável, a qual, sendo de conhecimento oficioso, devia ter sido declarada pelo Tribunal a quo, o que não se verificou (cfr. conclusão 99).

Acrescentando ainda que nulidade essa que, por não se poder considerar sanada, se comunica ao Acórdão recorrido, no qual se acolheu a valoração de prova proibida, ferindo-o também de nulidade insanável, a qual pode e deve ser agora declarada por V. Exas., Colendos Conselheiros, com as legais consequências de anulação do processado, tendo os autos que baixar à 1ª instância para que se profira nova decisão de mérito que exclua dos meios de prova as declarações prestadas pelo arguido AA na fase de inquérito (cfr. conclusão 100).

Ora, neste segmento da intrincada argumentação do arguido, entrelaçando vícios que entende existirem nos Acórdãos com inconstitucionalidades, tal como cremos que não existe qualquer inconstitucionalidade, também não vislumbramos qualquer nulidade.

O Tribunal da Relação ... no Acórdão proferido afirmou que não se revê no segmento da fundamentação da medida das penas onde se escreve:

«Ora, o arguido AA negou os factos demonstrados, refugiando-se em ordens verbais dadas por outros, o que, quanto a ele em particular, eleva a fasquia das necessidades de prevenção especial negativa (…)

Embora as declarações prestadas em inquérito por um arguido não possam valer como confissão (cfr. art.º 357.º, n.º 2, do C.P.P.), o certo é que nem aí arguido AA admitiu os factos. Acresce que o arguido BB nunca prestou declarações sobre os factos que lhe eram imputados.

Acrescentando posteriormente que o arguido AA prestou declarações de algum relevo para a descoberta da verdade material durante o inquérito, atenta a motivação da convicção do Tribunal.

O que consta das duas decisões é apenas uma divergência quanto ao valor do depoimento do arguido que face à leitura feita na primeira instância é mais prejudicial aos seus interesses. Por outro lado, às avessas do que pretende o arguido, não se tratando de prova proibida inexiste qualquer motivo para se invocar qualquer nulidade.

Assim, salvo melhor opinião, não será com esta argumentação que o processo prosseguirá para o Tribunal Constitucional e/ou de volta à primeira instância.

f). Da determinação da entidade que sofreu o prejuízo

Nas conclusões 103 a 124 o arguido tenta deslocar a discussão da sua prática criminosa para a concretização não só da entidade em concreto que terá sofrido o prejuízo, como também para as relações existentes entre as várias pessoas colectivas que intervieram no caso e permitiram ao arguido locupletar-se com um milhão e duzentos e cinquenta mil euros.

No alongamento da discussão sobre as entidades com intervenção no pagamento da quantia em discussão, o recorrente não se coíbe de afirmar que é tão simplista quanto errónea consideração de que o prejuízo patrimonial foi produzido “na esfera patrimonial do BPN”, como se refere no Acórdão recorrido.

Contudo, esquece ou tenta fazer esquecer que os elementos do tipo legal do crime de burla a que se refere o n.º 1, do art.º 217.º, do Código Penal - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial (…).

Em complemento desta noção básica do tipo legal em causa, permitimo-nos transcrever o que consta do Código Penal, volume II, 2.ª edição, pág. 539, onde Leal Henriques e Simas Santos citando Nelson Hungria recordam,

Deve notar-se, no que se refere ao sujeito passivo, que nem sempre se verifica coincidência entre a pessoa induzida em erro ou enganada e a pessoa titular do património lesado. «Sujeito passivo, portanto, é o que vem a sofrer, realmente o prejuízo. Se o enganado é titular de direito real sobre a res captada, o sujeito passivo tanto será ele quanto o titular da propriedade. Pode mesmo acontecer que, em tal caso, o agente do crime seja o próprio dominus, v.g .: o devedor pignoratício obtem, mediante engano, que o credor lhe confie a coisa empenhada, frustrando-se a garantia do débito (sujeito passivo, obviamente, é o credor)» (NELSON HUNGRIA, op. cit., 211) .

Neste contexto, permitiu-se o Tribunal da Relação ... considerar que dispunha de todos os elementos para se pronunciar sobre a questão criminal. Na verdade, tinha provas mais do que suficientes para considerar que o arguido, com a sua conduta, tinha provocado um prejuízo patrimonial através do engano em que induzira os responsáveis do Banco Português de Negócios, SA, auferindo assim de uma vantagem pecuniária de valor consideravelmente elevado.

Ao contrário do que pretende o recorrente, as diversas entidades envolvidas no pagamento das quantias fazem parte da esfera patrimonial do Banco Português de Negócios, SA e ficou demonstrado na matéria de facto dada como assente todo o caminho percorrido para o arguido obter a sua vantagem patrimonial. Em questão resta ficar devidamente documentado na decisão a legitimidade da Parvalorem para receber a indemnização bem como a melhor definição dos factos alegados pela assistente na petição.

g). Da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão

Nas conclusões 125 a 133 o recorrente argumenta que o Acórdão do Tribunal da Relação ... incorreu no vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão proferida nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP e que ao não se ter pronunciado sobre os factos respeitantes ao endosso, o Tribunal a quo incorreu ainda no vício de omissão de pronúncia prevista no artigo 379º nº 1 alínea c) do CPP pois entende que para que se possa dizer que o arguido, através de uma manobra astuciosa, levou alguém que enganou a praticar atos que causassem a essa pessoa ou entidade um prejuízo, não basta fazer constar dos factos dados como provados que o arguido levou a E..., LLC a emitir um cheque à ordem de CC, pois, resultando também provado que o arguido pretendia depositar esse cheque na conta de BB, essa emissão do cheque à ordem de CC, por si só, é um facto inidóneo à causação de prejuízo, pois, por si só, sem endosso, jamais conduziria ou permitiria o seu depósito na conta de BB (cfr. conclusões 132, 133 e 127, respectivamente).

Nas conclusões 134 a 142 volta a invocar a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (…), nos termos do artigo 410.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal desta feita porque entende que na decisão sobre a matéria de facto não se deu como provado que o arguido agiu deliberadamente, mas apenas que: “50. Os arguidos agiram de forma livre, consciente, sabendo que as sua condutas eram proibidas e punidas por lei penal.” (cfr. conclusões 138 e 136, respectivamente).

Quanto a nós estes aspectos focados são manifestamente impertinentes, resultando apenas do propósito de evidenciar alguns pormenores e trazê-los à discussão para fazer esquecer o mais importante.

Contudo, nos factos dados como provados e na respectiva fundamentação ficou demonstrada a prática pelo arguido de factos integráveis nos tipos legais dos crimes de burla e de branqueamento de capitais e se ele estava livre e consciente e sabia o que fazia, seria redundante afirmar que o fez deliberadamente.

Se dúvidas ainda ficarem a pairar quanto ao elemento subjectivo dos crimes pelos quais foi condenado, a leitura dos itens 47 a 49 dos factos dados como provados certamente esclarecerá o arguido que o Tribunal entendeu e inequivocamente considerou que actuou deliberadamente.

h). Da constituição como assistente da Parvalorem

O arguido vem nesta altura e erradamente considerar que a Parvalorem não deveria ter sido admitida como assistente. A indigência argumentativa com que sustenta a sua derradeira questão espelha a falta de razão de tão inoportuna alegação.

Por todo o exposto entende o Ministério Público junto deste Tribunal da Relação ... que o recurso não deverá sequer ser admitido, mas, na hipótese de assim não se considerar, sempre deverá o recurso improceder dado que a decisão recorrida se mostra devidamente fundamentada de facto e de direito e não viola qualquer norma jurídica”.


8. A assistente Parvalorem, SA também respondeu ao recurso no qual rebateu todas as questões colocadas pelo arguido AA no recurso por si apresentado, concluindo pela sua inadmissibilidade legal, que o acórdão recorrido não padece de qualquer nulidade, por falta de fundamentação, no que concerne à qualificação do crime de burla, tendo ocorrido um mero lapso de escrita quanto à sua qualificação, indicando-se a al. b), do nº 2, do art. 218º do Cod. Penal, ao invés de se indicar a al. a) do seu nº 2, que não se verifica o vício da insuficiência da matéria de facto provada, que as penas parcelares e a pena única aplicadas mostram-se correctas, face ao grau de ilicitude, à duração do ilícito, aos crimes em causa, à quantia subtraída, e ao facto de ter violado os deveres que sobre si impendiam enquanto Director do Private Banking, que o tribunal podia ter valorado as declarações prestadas em sede de inquérito, e que tem plena legitimidade para intervir nestes autos enquanto assistente, não tendo sido deduzida qualquer oposição aquando da sua constituição.

9. O Sr. Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal emitiu parecer, nos termos do art. 416º do Cod. Proc. Penal, sintetizando-o nos seguintes termos:
Como tem sido pacificamente entendido pela jurisprudência do S.T.J., os poderes de cognição do nosso mais Alto Tribunal estão, nos casos das alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 400.º do C.P.P., delimitados negativamente pela medida das penas aplicadas pelo Tribunal da Relação. No caso da alínea e), se a pena aplicada não for superior a 5 anos, não é admissível recurso. No caso da alínea f), não é admissível recurso se ocorrer uma situação de verificação de dupla conforme, isto é, se as penas aplicadas, em confirmação da decisão da 1ª instância, não forem superiores a 8 anos de prisão.
Da conjugação das referidas disposições resulta, assim, que só é admissível recurso de acórdãos das Relações proferidos em recurso que apliquem penas superiores a 8 anos de prisão ou que apliquem penas superiores a 5 anos e não superiores a 8 anos em caso de não confirmação da decisão da 1ª instância. Esta regra é aplicável quer se trate de penas singulares, aplicadas em caso da prática de um único crime, quer se trate de penas que, em caso de concurso de crimes, sejam aplicadas a cada um dos crimes em concurso (penas parcelares) ou de penas conjuntas aplicadas aos crimes em concurso.
A existência de dupla conforme, inclui a confirmação in mellius”, ou seja, a decisão da Relação que, como sucede neste caso, confirma o acórdão da 1ª instância, melhorando a situação do condenado, na medida em que reduziu a pena que lhe tinha sido aplicada na 1ª instância pelo crime de burla qualificada.
A confirmação in mellius integrando um juízo confirmativo “é relevante para os efeitos da al. f) do nº 1 do artigo 400.º do CPP” e garante o duplo grau de jurisdição consagrado pelo artigo 32.º, n.º 1, da CRP, não havendo, assim, violação do direito ao recurso, nem tão pouco dos direitos de defesa do arguido (artigos 32.º, n.º 1, e 20.º, n.º 1, da CRP)[11].
O regime de recursos para o S.T.J. definido pelas normas dos artigos 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), e 432.º, alínea b), do C.P.P., efectiva, de forma adequada, a garantia do duplo grau de jurisdição, traduzida no direito de reapreciação da questão por um tribunal superior, quer quanto a matéria de facto, quer quanto a matéria de direito, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, enquanto componente do direito de defesa em processo penal, reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam internacionalmente o Estado Português ao sistema internacional de protecção dos direitos fundamentais (artigos 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, e 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção Para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais).
O artigo 32.º, n.º 1, da C.R.P., não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição, isto é, um duplo grau de recurso em relação a quaisquer decisões condenatórias.
Resultam claras, afigura-se, as razões legais que obstam ao conhecimento do recurso interposto para este S.T.J. pelo arguido AA, e, também, porque é que a sua insubsistência não atenta contra qualquer garantia constitucional que lhe fosse devida.
Assim, preceituando o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do C.P.P. que não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos, não resulta ser admissível o recurso interposto para o S.T.J., uma vez que, e como se referiu, o arguido, ora recorrente, foi condenado pelo Tribunal da Relação ..., em confirmação da decisão da 1ª instância, nas penas parcelares de 5 anos e 6 meses de prisão, pelo crime de burla qualificada, e de 4 anos de prisão, e na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão.
E esta irrecorribilidade abrange todas as questões que com essas infracções penais se prendam.
É basta a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça que consagra tal entendimento, de forma pacífica e reiterada ao longo do tempo.
Considere-se, a título meramente exemplificativo, o acórdão de 08-10-2014 (Processo n.º 81/14.0YFLSB.S1, 3ª Secção, Relator: Conselheiro Maia Costa, in www.stj.pt) (…):
No mesmo sentido, ainda os acórdãos de 02-12-2015 (Proc. n.º 5887/05.8TBALM.L1.S1 – 3.ª Secção, Relator: Conselheiro João Silva Miguel, in www.stj.pt), de 13-04-2016 (Processo n.º 294/14.4PAMTJ.L1.S1 – 3.ª Secção, Relator: Conselheiro Pires da Graça, in www.stj.pt), ou de 02-05-2018 (Processo n.º 51/15.0PJCSC.L1.S1, 3ª secção, Relator: Conselheiro Manuel Augusto de Matos, in www.stj.pt).
E, do passado mês de Setembro, o acórdão de 22-09-2021 (Processo nº 90/16.4JBLSB.C1.S1, 3ª secção, Relator: Conselheiro Paulo Ferreira da Cunha, ainda não publicado) (…):
Pelo exposto, resultando do Acórdão do Tribunal da Relação ... sob recurso a existência de uma dupla conforme parcial, isto é, que houve um duplo juízo condenatório quanto às questões de facto e de direito que a defesa entendeu colocar no seu recurso, sendo reduzida uma das penas de prisão que lhe foi imposta, contendo-se todas elas, parcelares e unitária, em limite inferior a 8 anos, deverá ser rejeitado, por legalmente inadmissível, o recurso interposto pelo arguido AA, a tanto não obstando o despacho que, sem restrição, o admitiu, já que tal decisão não vincula o tribunal superior, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), 414.º, n.º 2 e n.º 3, e 420.º, n.º 1, alínea b), do C.P.P.
Sem embargo, e para finalizar, dir-se-á que sempre se acompanhariam as considerações tecidas na resposta ao recurso do Ministério Público no Tribunal da Relação ..., as quais, pelo rigor, propriedade, clareza e acerto, suscitam a mais completa adesão, nas múltiplas vertentes aí equacionadas apresentadas, dispensando qualquer outra reflexão, pelo que sempre deveria ser julgado improcedente o recurso em apreço.
Nestes termos, e secundando as posições do Ministério Público no Tribunal da Relação ... e da assistente Parvalorem, S.A., emite-se parecer no sentido de dever ser rejeitado, por legalmente inadmissível, o recurso interposto pelo arguido AA, ou, assim não se entendendo, de dever ser o mesmo julgado improcedente. b), e nº 3, do Cod. Proc. Penal.

10. O arguido AA foi notificado nos termos do art. 417º, nº 2, do Cod. Proc. Penal, e reiterou tudo o que já tinha invocado no recurso por si apresentado defendendo que o mesmo é admissível para este Supremo Tribunal, não obstante se ter verificado uma confirmação “in melius”, não se tendo, contudo, verificado que o acórdão proferido pela Relação seja confirmativo da decisão proferida pela 1ª Instância, “(…) enquanto conjunto constituído pela fundamentação da decisão e pelo seu dispositivo, devendo a síntese contida no acórdão da Relação ser confirmativa da síntese contida na decisão de 1ª instância (…)” e invocando o Ac. TC nº 125/2022, de 03/02/2022, proferido no Proc. nº 1330/2021, no que respeita à declaração da nulidade insanável por terem sido valoradas em julgamento e na decisão condenatória da 1ª Instância as declarações por si apresentadas na fase de inquérito, sem que as mesmas tenham sido lidas, reproduzidas, ou examinadas em audiência[12].

11. Colhidos os vistos, e atendendo a que não foi requerida a realização de audiência, o processo foi presente à conferência para a emissão de decisão.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A – Dos Factos

Resulta do acórdão da 1ª Instância a seguinte decisão sobre a matéria de facto, que foi totalmente confirmada pelo Tribunal da Relação ..., no seu acórdão de 21/12/2021:
I.
1. “Banco Português de Negócios, S.A.”, doravante B.P.N., pessoa coletiva número 503159093, atualmente com sede na Avenida António Augusto Aguiar n.º 132, em Lisboa, foi constituída por deliberação registada em 31-05-1993 e tinha como objeto social o exercício de atividades consentidas por lei aos Bancos.
2. Desde então, EE exerceu as funções de Presidente do Conselho de administração da sociedade em causa até renunciar a tal cargo, o que foi registado em 07- 04-2008.
3. O B.P.N. era detido pela “SLN – Sociedade Lusa de Negócios, SGPS, S.A.”, doravante S.L.N.
4. O B.P.N. veio a ser nacionalizado, tendo assumido a natureza jurídica de entidade pública empresarial, registada em 06-01-2009.
5. Em 07-12-2012 foi registada uma fusão através de transferência global do património entre o B.P.N. e o “Banco BIC Português, S.A.”, pessoa coletiva número 507880510, passando o B.P.N. a denominar-se “Banco BIC Português, S.A.”.
6. “Parvalorem, S.A.”, aqui assistente e demandante, pessoa coletiva com o número 509522491, com sede na Avenida Fontes Pereira de Melo, n.º 51, 5.º piso, fração F, Avenidas Novas, em Lisboa, foi constituída por deliberação registada em 01-10-2010 e tem por objeto a prestação de serviços de consultoria, prestação de serviços administrativos, de aprovisionamento, operacionais e informáticos, aquisição para a sociedade de títulos ou de créditos e correlativa gestão de carteira de títulos ou de créditos pertencentes à sociedade e aquisição de imóveis para revenda no âmbito destas atividades.
7. Em 23-12-2010 o B.P.N. cedeu à aqui assistente e demandante, que aceitou, diversos créditos sobre vários devedores, entre os quais se encontravam os créditos sobre “E..., LLC” no montante global de 4 844 019 EUR.
8. AA, aqui arguido, exerceu as funções de Diretor Geral do “Private Banking” do B.P.N. entre 26-03-1999 e 11-12-2008.
9. O departamento do “Private Banking” do B.P.N., que era dirigido pelo arguido AA, estava sediado nas instalações do B.P.N. do ....
10.Por sua vez, no ano de 2004, o departamento da região norte do “Private Banking” era coordenado por HH ao passo que o departamento do “Private Banking” da região sul era dirigido por FF.
11.Enquanto Diretor Geral do “Private Banking” o arguido AA dependia diretamente do Presidente do Conselho de Administração do B.P.N., pelo que lhe cabia proceder ao acompanhamento personalizado e especializado do segmento de clientes particulares de alto rendimento, por forma a dar resposta às necessidades financeiras desses clientes.
12.Ao arguido AA, por força das competências que lhe estavam atribuídas enquanto Diretor Geral do “Private Banking”, cabia a definição das políticas de atuação comercial, gerindo globalmente a atividade do negócio, o estabelecimento e acompanhamento do cumprimento dos objetivos comerciais definidos e a dinamização da captação de clientes e negócios.
13.Enquanto Diretor do “Private Banking” do B.P.N. cabia ainda ao arguido AA, entre outras competências, estabelecer os objetivos comerciais da Direção em causa, em articulação com o Presidente do Conselho de Administração, coordenar e controlar a atividade dos órgãos que compunham a estrutura da Direção a que presidia e a qualidade desenvolvida pela mesma, negociar, participar na aprovação ou propor para aprovação operações bancárias dos clientes, de acordo com os respetivos poderes delegados, bem como assegurar a representação do Banco, junto de entidades externas, no âmbito da sua área de atuação.
14.Em janeiro de 2003, o arguido AA tinha autonomia para tomar decisões quanto a operações de crédito até ao montante de 450 000 EUR, sendo que, no que respeita a operações de crédito no seio do “Private Banking”, tinha autonomia para tomar decisões em operações até 150 000 EUR.
15.FF exerceu as funções de II do “Private Banking”, região sul, do B.P.N., e dependia funcionalmente do arguido AA.
16.BB, aqui também arguido, é presidente do Conselho de Administração da sociedade “C..Galeria., S.A.”, pessoa coletiva número ..., com sede na Rua ..., nesta cidade ..., cujo objeto é o comércio a retalho de obras de arte.
17.A referida sociedade teve, entre 05-05-1988, data do registo da sua constituição, e 12-12-2007, a denominação “C…. – I….., S.A.”.
18.O arguido BB tinha relações privilegiadas com o “Private Banking” do B.P.N., que era cliente da sociedade “C…Galeria., S.A.”, e AA, que comprou e vendeu obras de arte a esta sociedade.
19.A sociedade “C...Galeria, S.A.” era igualmente cliente do B.P.N., tendo em 28-06-2001 celebrado com este banco contrato de abertura de crédito através do qual o segundo abriu à primeira uma linha de crédito até 500 000 EUR que veio a sofrer alterações.
II.
20.Em data anterior a 13-01-2003, pelo preço de 17 000 000 EUR, foram adquiridos 41 quadros do pintor Joan Miró através de “Z... LLC”, com sede em ..., ..., ..., ..., ..., Estados Unidos da América, que era detida pela “M... LLC” que, por sua vez, era detida pela S.L.N.
21.A venda não foi faturada à “Z... LLC”, mas sim ao B.P.N., sendo ainda certo que a emitente da fatura foi “N... LTD”, com a sede em ..., ..., Suíça, que havia celebrado em 09-12-2002 com “K... INC”, com sede em ..., ..., ..., ..., Ilhas Virgens Britânicas, de que era beneficiário JJ, KK e LL, um contrato de comissão para que aquela “N... LTD” interviesse na venda dos ditos quadros.
III.
22.Relativamente aos referidos quadros, o arguido AA e MM, em representação do B.P.N., e DD e CC, assinaram um documento intitulado “contrato de mediação”, em que o B.P.N. figurava como primeiro contraente e estes como segundos contraentes, no qual foi aposta a data de 13-01-2003, com o seguinte teor:
“Considerandos
1. Que o Primeiro Contraente é legítimo proprietário de uma coleção constituída por 41 (quarenta e um) quadros originais do pintor espanhol Joan Miró, quadros esses devidamente numerados e inventariados na lista anexa a este contrato, dele fazendo parte integrante,
2. Que a referida propriedade se constituiu por aquisição a N..., S.A., CH – 1807 ..., Suíça, no dia 3 de janeiro de 2003,
3. Que, tendo por objeto a coleção de quadros referida no ponto primeiro dos considerandos, as partes formalizam o presente contrato de mediação a fim de se proceder à venda da mesma, nos termos das cláusulas seguintes e demais legislação aplicável:
Cláusula Primeira
O Primeiro Contraente confere a exclusividade na mediação da venda da coleção de quadros do pintor Joan Miró a que se fez referência no ponto primeiro dos considerandos, de forma indistinta e solidária, aos Segundos Contraentes.
Cláusula Segunda
1. O prazo do presente contrato será de 12 meses, a partir do fim da exposição de Joan Miró no Museu Pompidou, de Paris.
2. O presente contrato considera-se prorrogado por sucessivos períodos de um ano, e nas mesmas condições, enquanto que, por algumas das partes, não for denunciado nos termos do número seguinte.
3. Qualquer das partes tem a faculdade de denunciar o presente contrato, bastando para tanto, uma comunicação escrita enviada à outra parte, com a antecedência mínima de um mês em relação ao termo inicial do contrato ou de qualquer das suas renovações.
4. O Primeiro Contraente poderá, a todo o tempo, proceder à rescisão do presente contrato, mediante o pagamento aos Segundos Contraentes da quantia de 2 500 000 (dois milhões e quinhentos mil) EUR.
Cláusula Terceira
O valor mínimo de venda da coleção de quadros fixa-se na quantia de 22 500 000 EUR (vinte e dois milhões e quinhentos mil euros), pelo que os Segundos Contraentes não poderão propor a qualquer comprador interessado, um valor inferior a tal quantia. (...)”
23.A exposição dos ditos quadros no Centro Pompidou, em Paris, teve efetivamente lugar entre 03-03-2004 e 28-06-2004.
24.O arguido AA celebrou o referido contrato no exercício de poderes que lhe foram conferidos por procuração outorgada em 10-05-2002 por EE, na qualidade de Presidente do Conselho de Administração, em representação do B.P.N., nos termos da qual aquele, assinando conjuntamente com outro administrador ou com outro procurador com idênticos poderes, podia praticar os atos aí identificados, nomeadamente assinar quaisquer outros contratos em que o B.P.N. fosse parte.
25.Sucede que o uso dos poderes concedidos pela referida procuração não foi precedido de prévia e formal autorização ou decisão superior, nomeadamente no que respeita à celebração do “contrato de mediação”, por parte do Conselho de Administração do B.P.N.
26.No entanto, em face da previsão do pagamento de uma indemnização pela rescisão do acordo de mediação e da possibilidade colocada de ser o próprio B.P.N. a vender a coleção de quadros, o arguido AA acordou verbalmente com DD e CC a revogação do contrato de mediação com redução da indemnização devida para 1 250 000 EUR e, após, determinou e deu instruções para que em 30-06-2004 fossem emitidos fisicamente no balcão da Foz, no Porto, junto do qual se encontrava sedeado o “Private Banking” do B.P.N., dois cheques no valor de 1 250 000 EUR cada um, mais concretamente:
- Cheque bancário número ...39, à ordem de DD; e
- Cheque bancário número ...40, à ordem de CC.
27. Os ditos cheques foram assinados pelo arguido AA e HH e sacados a descoberto sobre a conta BPN Cayman número ...01, titulada por “E..., LLC”, sediada em ..., ..., ..., .... de ..., ..., nos Estados Unidos da América.
28. A “E..., LLC” era detida pela “M... LLC” que, por sua vez, era detida pela S.L.N.
29. O arguido AA, DD e CC, assinaram um documento intitulado “acordo de revogação”, em que o B.P.N. figurava como primeiro contraente e estes como segundos contraentes, no qual foi aposta a data de 01-07-2004, com o seguinte teor:
“Considerando:
1. Que a Primeira e Segundos Contraentes celebraram no dia 13 de janeiro de 2003 um contrato de mediação;
2. Que por circunstâncias várias as partes ora contraentes estão interessadas em pôr termo ao contrato de mediação suprarreferido, é celebrado e reciprocamente aceite o presente acordo de revogação do contrato de mediação, o qual se rege pelo clausulado subsequente:
Cláusula Primeira
Pelo presente contrato, as partes ora contraentes revogam, por mútuo acordo, o contrato de mediação celebrado, e que entre ambas até agora vinha vigorando, com efeitos a partir de 1 de julho de 2004.
Cláusula Segunda
1. Pela revogação ora acordada a Primeira Contraente pagará aos Segundos Contraentes uma indemnização global de 1 250 000 EUR (um milhão e duzentos e cinquenta mil euros).
2. Os Segundos Contraentes declaram que receberam nesta data a quantia referida no número anterior, servindo o presente contrato de quitação. (...)”
30. Pese embora do referido documento constem o arguido AA e FF como representantes do B.P.N., o mesmo mostra-se apenas assinado pelo primeiro, contrariando as disposições da referida procuração outorgada em 10-05-2002.
31. Assim, pese embora tivesse sido convencionada uma indemnização no valor de 1 250 000 EUR, o B.P.N. emitiu meios de pagamento, pressupostamente destinados aos referidos mediadores, no valor de 2 500 000 EUR, por força da conduta de AA.
IV.
32. Em 02-07-2004 o cheque número ...39 foi apresentado para depósito, tendo em 05-07-2004 sido depositado na conta número ...43, junto do B.P.N. Cayman, titulada por DD.
33. Em 05-07-2004, e a partir da dita conta, foi determinada uma transferência bancária da quantia de 416 666 EUR, correspondente a um terço do montante de 1 250 000 EUR, para a conta B.P.N. Cayman número ...26 titulada por CC.
34. Por seu turno, o cheque número ...40, emitido à ordem de CC, foi depositado na conta n.º ...46 AC, aberta junto da Union Bancaire Privee, doravante U.B.P., na Suíça, a qual é titulada pelo arguido BB e GG, sua mulher.
35. Em 13-07-2004, o arguido BB determinou que fosse emitido o cheque número ...48, no valor de 700 000 EUR, sacado sobre a conta da U.B.P. número ...46, de que era titular, à ordem da “C...Galeria, S.A.”.
36. Em 19-07-2004 o referido cheque veio a ser depositado na conta do BPI número ...01, titulada pela sociedade “C..Galeria., S.A.”, que o arguido BB tinha poderes para movimentar.
37. O arguido BB determinou que o cheque n.º ...48, no valor de 700 000 EUR fosse contabilizado como tendo sido debitado na conta contabilística “...5 – B.P.I. – Dep. Ordem” por contrapartida a crédito em 14-07-2004 da conta contabilística “...15 – NN”.
38. Assim, o referido movimento foi inscrito na contabilidade da “C..Galeria, SA. como se fosse o pagamento da fatura n.º ...33, no valor de 700 000 EUR, contabilizada em 30-06-2004, emitida em nome de um cliente designado NN.
39. Por sua vez, em 05-08-2004, foi emitido, por determinação do arguido BB, sobre a referida conta n.º ...46 AC, aberta junto da U.B.P., na Suíça, o cheque número ...00, no valor de 1.150 000 EUR, a favor de “C...Galeria, S.A.”.
40. Em 11-08-2004 o referido cheque veio a ser depositado na supramencionada conta do BPI, titulada pela sociedade “C...Galeria, S.A.”.
41. O arguido BB determinou que o cheque n.º ...00 no valor de 1 150 000 EUR, fosse contabilizado como tendo sido debitado na conta contabilística “...5 –B.P.I. – Dep. Ordem” por contrapartida a crédito em 06-08-2004 da conta contabilística “...15 – NN”.
42. Assim, o referido movimento foi inscrito na contabilidade da “C..Galeria, SA. se fosse o pagamento parcial da fatura n.º ...00, no valor de 1 395 000 EUR, contabilizada em 19-12-2003, emitida em nome de um cliente designado NN.
43. O arguido BB fez os seguintes pagamentos, através de cheques sacados sobre a referida conta do BPI titulada por aquela sociedade “C..Galeria, SA.”, a favor do arguido AA, no montante total de 925 000 EUR, sob o pretextode corresponderem a aquisições de quadros a este último, e determinou que fossem justificados contabilisticamente sob o pretexto de corresponderem à liquidação das mesmas, debitando a conta ...06 relativa ao arguido AA:

Vendas Particulares
Data

Descrição
20-07...93400 00006-07-2004V/Venda Particular
10-08...0650 00027-02-2004   VFA n.º 1
12-08...08250 00031-05-2004V/Venda Particular
13-08...09225 00019-07-2004V/Venda Particular

44. O arguido BB fez ainda um outro pagamento ao arguido AA, através do cheque n.º ...07 sacado sobre a conta número ...01 do BPI, também titulada pela sociedade “C...Galeria, S.A.”, no valor de 325 000 EUR, sob o pretexto de corresponder a um pagamento a um fornecedor, OO, mulher do arguido AA, relativo a uma venda particular, contabilizada em 30-04-2004.
45. Assim, o arguido BB logrou fazer chegar à esfera do arguido AA a quantia total de 1 250 000 EUR, que corresponde à totalidade do montante titulado no cheque número ...40 do B.P.N., depositado na conta da U.B.P. na Suíça, também titulada por BB.
V.
46. O arguido AA sabia que, no desempenho das suas funções, cabia-lhe exercer as mesmas obedecendo aos mais elevados padrões de integridade e honestidade pessoais, cumprindo todas as disposições em vigor aplicáveis à atividade a que estava afeto.
47. O arguido AA agiu sabendo e querendo fazer crer ao B.P.N. que o valor devido a título de indemnização pela revogação do contrato de mediação se cifrava em 2 500 000 EUR, conforme neste estabelecido, quando já havia acordado na sua redução para a quantia 1 250 000 EUR, assim determinando a que fossem emitidos pelo B.P.N. dois cheques de 1 250 000 EUR cada, ainda na vigência do referido acordo, com o intuito concretizado de integrar na sua esfera o montante de 1 250 000 EUR a que sabia não ter direito, causando ao B.P.N. um prejuízo de igual montante.
48. Os arguidos sabiam que o montante titulado pelo cheque emitido em nome de CC foi emitido pelo B.P.N. com fundamento no engano em que foi induzido pelo arguido AA.
49. Os arguidos AA e BB agiram de comum acordo e em comunhão de esforços, sabendo e querendo depositar o montante titulado pelo cheque emitido em nome de CC numa conta pessoal na Suíça do arguido BB, posteriormente transferi-lo para outra conta da sociedade “C...Galeria, S.A.”, contabilizar nesta tal valor com referência a um cliente que não havia estado na origem de tal pagamento e depois fazer chegar tal quantia à esfera do arguido AA, sob o pretexto de corresponder a pagamentos de aquisições de obras de arte a este e a um outro pagamento à mulher deste como se fosse uma fornecedora, com o intuito de dissimular a origem ilícita do referido montante.
50. Os arguidos agiram de forma livre e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
VI. (…)
VIII.
73. Não são conhecidos antecedentes criminais aos arguidos.
FACTOS NÃO PROVADOS (tendo da mesma forma presente que “a elencação dos factos (...) não provados refere-se apenas aos factos essenciais à caracterização do crime e circunstâncias relevantes para a determinação da pena e não aos factos inócuos (...)” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 19-03-2014, processo n.º 811/12.4JACBR.C1, in www.dgsi.pt):
Não se provaram quaisquer outros factos para além ou em contradição com os factos assentes, nomeadamente, que:
I.
1. O B.P.N. tenha sido constituído em 31-05-1999 (cfr. 1.º do despacho de acusação);
2. A “C...Galeria, S.A.” tenha sido constituída em 05-05-1980 (cfr. 15.º do despacho de acusação);
III.
3. O procedimento instituído no B.P.N. para emissão de cheques de contas de entidades offshore era habitualmente serem os mesmos emitidos em Lisboa e entregues a EE ou a PP (cfr. 72.º do despacho de acusação);
IV.
4. O arguido BB tenha ficado com uma parte daquela quantia de 1.250.000 EUR ttitulada pelo cheque bancário número ...40 emitido à ordem de CC (cfr. 61.º do despacho de acusação);
5. O cheque número ...00 tenha sido depositado na referida conta em 10-08-2004 (cfr. 85.º do despacho de acusação); e
6. A suposta venda particular no valor de 400 000 EUR tenha a data de 05-07-2004 (cfr. 92.º do despacho de acusação)”.

B – Do Direito

O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, nas quais o mesmo sintetiza as razões de discordância com o decidido e resumem o pedido por si formulado (art. 412º, do Cod. Proc. Penal), sem prejuízo dos poderes de conhecimento quanto a vícios da decisão recorrida, e a nulidades processuais não sanadas, a que se refere o art. 410º, nº 2, e nº 3, do Cod. Proc. Penal, bem como quanto a nulidades da sentença previstas no art. 379º, nº 2, do Cod. Proc. Penal[13] .

B.1. Da admissibilidade do recurso da matéria crime

O Ministério Público junto do Tribunal da Relação ..., a assistente Parvalorem, SA, e o Ministério Público junto deste Supremo Tribunal, nas respostas apresentadas ao recurso interposto pelo arguido AA, suscitam desde logo a incompetência deste Supremo Tribunal para o seu conhecimento, questão que deverá desde logo ser apreciada, não obstante o mesmo ter sido admitido[14].

Vejamos então da admissibilidade do recurso

O art.º 399º do Cod. Proc. Penal enuncia o princípio geral que “É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei”.

O art. 432º do Cod. Proc. Penal define o critério de recorribilidade para o Supremo Tribunal estabelecendo, entre o mais, o seu nº 1, al. b), que se recorre para este tribunal de “decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações em recurso, nos termos do artigo 400º”.

Por seu lado, o art.º 400º do Cod. Proc. Penal, dispõe no nº 1, que: “Não é admissível recurso:
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”.

Por fim, o art. 434º do Cod. Proc. Penal, refere que os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se ao reexame da matéria de direito, sem prejuízo do conhecimento dos vícios enunciados no art. 410º, nº 2, e nº 3, do Cod. Proc. Penal, face à redacção da Lei nº 94/2021, de 21/12.[15]

De acordo com estas disposições legais, ao Supremo Tribunal, enquanto tribunal de revista, compete-lhe apenas, e nos casos expressamente previstos na lei, conhecer da aplicação do direito, não podendo designadamente sindicar a valoração das provas que já foi feita na 1ª Instância, e que foi totalmente confirmada no Tribunal da Relação, sob pena de proceder a um terceiro grau de jurisdição, que só é permitido nas situações enunciadas no citado art. 434º do Cod. Proc. Penal[16]

O arguido AA invoca a aplicação da al. f), do nº 1, do art. 400º do Cod. Proc. Penal, na redacção que tinha à data da prática dos factos, para a admissibilidade do seu recurso.[17]

Ora, relativamente à aplicação das normas processuais penais no tempo, invocamos o Ac. STJ de 29/09/2010, em cujo sumário se lê que:
“VI - O Ac. do STJ n.º 4/2009, de 18-02, publicado no DR, I Série, de 19-03-2009, fixou jurisprudência no sentido de que, em matéria de recursos penais, no caso de sucessão de leis processuais penais, é aplicável a lei vigente à data da decisão proferida em 1.ª instância.
VII - A decisão de 1.ª instância, no caso vertente, foi proferida em 2009. Nessa data estava já em vigor a versão do CPP resultante das alterações que nele foram introduzidas pela Lei 48/07, de 29-08, como decorre do seu art. 7.º.
VIII - É o art. 432.º do CPP que define a recorribilidade das decisões penais para o STJ. De forma directa, nas als. a), c) e d), do seu n.º 1; de modo indirecto, na al. b) do mesmo número, através da referência às decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas Relações, em recurso, nos termos do n.º 1 do art. 400.º.
IX - Estando aqui em causa um recurso interposto de um acórdão de um Tribunal da Relação proferido em recurso, perante um recurso em segundo grau, portanto, a norma a ter em conta é a daquela al. b).
X - Ora, o Tribunal da Relação confirmou as penas parcelares fixadas pelo Tribunal de 1.ª instância de 7 anos e 5 meses de prisão e 8 meses de prisão, bem como confirmou a pena conjunta de 7 anos e 10 meses de prisão por que o arguido foi condenado. Como assim, a al. b) do n.º 1 do art. 432.º remete-nos para a al. f) do n.º 1 do art. 400.º.
XI - A Lei 48/07 alterou substancialmente esta disposição legal: se antes, era a pena aplicável o pressuposto (um dos pressupostos) da (ir)recorribilidade dos acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, agora esse pressuposto passou a ser o da pena concretamente aplicada.
XII - No caso de concurso de crimes, pena aplicada é tanto a pena parcelar cominada para cada um dos crimes como a pena conjunta. Assim, no caso de concurso de crimes, só são recorríveis as decisões das Relações que, incidindo sobre cada um dos crimes e das correspondentes penas parcelares, ou sobre a pena conjunta, apliquem ou confirmem pena de prisão superior a 8 anos(sublinhado nosso).

Com efeito, quanto à aplicação da lei no tempo, refere o art. 5º do Cod. Proc. Penal que a lei processual é de aplicação imediata sem prejuízo dos actos realizados na vigência da lei anterior. Não fornecendo o legislador um critério para estabelecer as fronteiras da expressão “agravamento sensível” utilizada na al. a), do nº 2, foi proferida a decisão de uniformização de jurisprudência no já citado Ac. STJ de 18/02/2009, da qual constitui antecedente lógico o pressuposto de que é o momento em que se profere a decisão de que se pretende recorrer que constitui o elemento essencial para aferir da admissibilidade do respectivo recurso[18].

O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta questão não tendo julgado inconstitucional o art. 5º, nº 2, al. a), do Cod. Proc. Penal, conjugado com o art. 400º, nº 1, al. f), na redacção da Lei nº 48/2007, quando interpretados no sentido de que deve ser aplicada ao recurso a interpor pelo arguido a lei que estiver em vigor na data da prolação da decisão em 1ª Instância.[19]

No caso, o arguido AA foi julgado em 1ª Instância em 28/01/2021, e interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação ... o qual analisou e decidiu todas as questões de natureza criminal aí suscitadas, tendo confirmado a decisão proferida em 1ª Instância[20], procedendo contudo a uma redução da pena aplicada pela prática do crime de burla qualificada consumado em 12/07/2004, para 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, e a uma redução da pena única para 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, ou seja, manteve o acórdão proferido em 1ª Instância quanto à parte criminal, apenas com a redução de uma das penas parcelares aplicadas, e da pena única.

Ora, a existência de uma situação de dupla conforme parcial, inclui a confirmação “in mellius”, ou seja, inclui uma decisão do Tribunal da Relação que confirma o acórdão da 1ª Instância, melhorando a situação do arguido ao reduzir-lhe a pena que lhe tinha sido aplicada na 1ª Instância[21].

Desta forma, a confirmação in mellius ao integrar um juízo confirmativo obsta a que este Supremo Tribunal conheça do recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação, face ao disposto no art. 432º, nº 1, al. b), com referência à al. f), do nº 1, do art. 400º, ambos do Cod. Proc. Penal, por tal decisão ser irrecorrível, na parte em que confirma a condenação da 1ª Instância, e não aplica uma pena superior a 8 anos de prisão.

E, tendo por assente que o recurso interposto pelo arguido AA não é admissível para este Supremo Tribunal, esta Instância não pode proceder a uma nova reapreciação da matéria de facto, nem a uma alteração sobre a decisão que a fixou, uma vez que esta já foi duplamente confirmada[22], não pode proceder a uma apreciação de questões processuais (seja a valoração das declarações prestadas em inquérito, seja a admissibilidade da constituição como assistente da Parvalorem), nem pode proceder a uma apreciação de questões de direito (seja a qualificação jurídica dos factos, seja a lei penal aplicável, seja a aplicação do disposto nos arts. 72º e 73º do Cod. Penal), nem tão-pouco pode conhecer de questões novas que não foram objecto de decisão por parte do Tribunal da Relação, uma vez que os recursos se destinam a apreciar a decisão de que se recorre.


E, para que dúvidas não restem quanto à verificação de uma dupla confirmação, veja-se:

1. Quanto ao crime de burla qualificada imputado ao arguido o acórdão recorrido fez constar que[23]:
“Incorre na prática do crime de burla quem “com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial...” - art. 217º, n. º1 do CP.
Os elementos constitutivos do crime de burla descrito no art. 217º, n.º 1, do CP são os seguintes:
- A indução em erro ou engano de uma pessoa (o lesado e/ou burlado) sobre factos.
- O erro ou engano provocado com astúcia.
- Tendente a determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial.
- Com intenção de o agente obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.
Na questão posta está, primordialmente, em causa o elemento constitutivo da existência de prejuízo patrimonial[24].
O bem jurídico protegido no crime de burla é o património, constituindo a burla um crime de dano, que se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro, como, aliás, decorre directamente da própria descrição do artigo 217º, n.º 1, do Código Penal (“... que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial”).
Como enfatiza A. M. Almeida Costa[25] e consoante resulta do n.º 1 do artigo 217º do Código Penal, “a burla recobre situações em que o agente, com a intenção de conseguir um enriquecimento ilegítimo (próprio ou alheio), induz outra pessoa em erro, fazendo com que a última, por esse motivo, pratique actos que causam a si mesma (ou a terceiro) prejuízos de carácter patrimonial”.
O mesmo autor[26]acrescenta que “a burla constitui um crime de dano, que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro”. E esclarece ainda[27] que “a consumação do crime não deriva, apenas, do resultado consistente na saída dos bens ou valores da esfera de disponibilidade fáctica do legítimo titular, exigindo-se, ademais, a verificação de um efectivo prejuízo patrimonial do burlado ou de terceiro”.
E ainda, como refere o mesmo autor, a “burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento. Traduz-se ela na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios. (....) Tratando-se de um crime material ou de resultado, a consumação da burla passa, assim, por um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio), e, depois, entre os últimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial. (...) A qualquer dos momentos em que se desdobra o duplo nexo de imputação objectiva subjazem os pressupostos da chamada teoria da adequação (art. 10º, nº 1 do CP)”[28] sobre a base de uma prognose objectiva e feita a posteriori, mediante o juízo atento de um observador objectivo que estabeleça se cabe contar com o resultado efectivamente produzido.
O prejuízo patrimonial relevante para efeitos do tipo objectivo do crime de burla corresponde a um empobrecimento do lesado - do burlado ou de qualquer terceiro -, que vê a sua situação económica diminuída, e efectivamente diminuída quando comparada com a situação em que se encontraria se não tivesse ocorrido a situação determinante da lesão. A medida do empobrecimento efectivo será, deste modo, avaliada pela diferença patrimonial entre o “antes” e o “depois”, tendo como contraponto económico-material (e não típico nem jurídico) o enriquecimento, próprio ou de terceiro, procurado pelo agente do crime.
O crime de burla constitui um delito de intenção em que o agente procura obter um “enriquecimento ilegítimo” à custa de uma transferência de natureza e de efeitos patrimoniais.
Todavia, não obstante, se exija que o agente actue com essa intenção de enriquecimento, a consumação do crime não depende da efectivação desse enriquecimento, verificando-se logo que ocorre o prejuízo patrimonial do burlado ou de terceiro.
Efetuado o percurso pelos elementos constitutivos do crime de burla, sobretudo pelo elemento objectivo “prejuízo patrimonial” e volvendo ao caso concreto, constata-se que os factos provados nos autos revelam a existência de erro ou engano provocado astuciosamente peloarguido/recorrente, que foi determinante da prática pelo BPN, de actos [emissão dos dois cheques, um deles no montante de 1.250.000,00€ não destinado à indemnização por rescisão do contrato de mediação, como lhe foi feito crer] que lhe causaram prejuízo patrimonial à data.
A questão, nesta sede e neste momento é esta, como podemos fazer esta afirmação?
Podemos fazer esta afirmação tendo em conta os factos provados em 1 a 5 e 20, 21, 22, 24 e 26 a 29, de onde decorre que os 41 quadros foram adquiridos através de “Z... LLC”, com sede em ..., ..., ..., ..., ..., EstadosUnidos da América, que era detida pela “M... LLC” que, por sua vez, era detida pela S.L.N. A venda não foi faturada à ... H... LLC, mas sim ao BPN, todas sociedades detidas pela Sociedade Lusa de Negócios, SGPS, S.A, sendo ainda certo que o emitente da factura foi “N... LTD”, pelas razões que constam no facto 21.
Em face do facto de todas as sociedades que intervieram no contrato de aquisição pelo lado do comprador serem detidas pela SLN e de a compra ter sido faturada ao BPN, temos por adquirido que este era o seu formal e verdadeiro proprietário[29], qualidade com que se arrogou no contrato de mediação e que assumiu ao emitir os cheques para o cumprimento da cláusula de rescisão. Qualidade que também foi assumida pelo recorrente quer no contrato de mediação quer no acordo de rescisão, embora neste sem obedecer ao que estava estipulado previamente em procuração.
Daqui decorre que o BPN Cayman e as restantes sociedades do grupo, onde se inclui a “E..., LLC” - facto 27 - eram sociedades detidas pela SLN que detinha o BPN e sociedades veículo do BPN, S.A., utilizadas para prossecução dos seus respetivos interesses.
Assim, conclui-se que o prejuízo patrimonial causado foi produzido na esfera patrimonial do BPN. As vicissitudes posteriores relativas à cessão deste crédito não interferem na consumação do crime, quando muito interferem na caraterização do crédito invocado pela Assistente Parvalorem em consequência do prejuízo destes autos sofrido pelo BPN, questão que se situa no plano estrito do PIC.
Estão verificados os elementos constitutivos do crime de burla pelo recorrente AA, nos termos considerados na primeira instância.
O mais uma vez convocado vicio da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, não faz qualquer sentido neste âmbito, sem prejuízo do que diremos em sede do PIC.
Improcede esta questão”.

Ora, relativamente a esta questão, como bem refere o Sr. Procurador-Geral Ajunto no Tribunal da Relação[30] “(…) confirma-se na totalidade a leitura feita no Acórdão do Juízo Central Criminal ... quanto à integração dos factos provados no crime de burla agravada.

Esta coincidência foi tal que se refere o mesmo lapso de escrita cometido na primeira instância quando se referiu a alínea b) do art.º 218.º, do Código Penal enquanto se pretendeu nomear a alínea a) do mesmo preceito. Na verdade, a agravação resulta do valor consideravelmente elevado alvo de apropriação, à data da prática dos factos e não por eventual habitualidade do arguido. Aliás, não se pode interpretar de outra forma quando em ambas decisões, referindo as normas incriminatórias se nomeia a alínea b) do art.º 202.º do Código Penal - Para efeito do disposto nos artigos seguintes considera-se valor consideravelmente elevado: aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto.

Para nós é evidente o lapso de escrita (certamente por arrasto da referência à alínea b) do art.º 202.º referido) pelo que, face à fundamentação da decisão e às demais normas invocadas, deverá interpretar-se o que se escreveu na norma incriminatória a referência à alínea a) do art.º 218.º do Código Penal (…)” (sublinhado nosso).

Assim, o alegado pelo arguido AA, nos pontos 38, 39 e 40 das conclusões apresentadas, ao considerar que o acórdão recorrido o condenou pela prática de um crime de burla qualificada através da qualificativa de fazer da burla modo de vida não poderá ser atendida face a toda a fundamentação acima transcrita.

Refira-se que o acórdão recorrido quando escreve na pag. 179 estar-se perante uma mera pluriocasionalidade no seu percurso de vida, ter praticado os factos com cerca de 43 anos e ter actualmente 60 anos de idade sem notícia de novos crimes, e o acórdão em 1ª Instância quando escreve que “(…) o conjunto dos factos cometidos pelo arguido AA é reconduzível a um particular contexto da sua vida, pelo que não será de atribuir à pluralidade de crimes cometidos um efeito particularmente agravante dentro da respetiva moldura penal conjunta aplicável”, estas referências prendem-se com a determinação da medida da pena única a aplicar, nada tendo a ver com a qualificativa da al. b) “o agente fizer da burla modo de vida”, do nº 2, do art. 218º do Cod. Penal.

Assim, verifica-se estar-se perante um lapso de escrita (ocorrido no 2º § da pag. 184), quando aí se refere: “- Condenar AA, em concurso efetivo: 1. - como autor imediato e sob a forma consumada, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, 202.º, al. b), 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. b), do C.P., consumado em 12-07-2004, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão (…)”, perante toda a fundamentação do acórdão recorrido, que se baseia na prática por parte do arguido, em concurso efectivo, como autor imediato e sob a forma consumada de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, 202.º, al. b), 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), do Cod. Penal.


2. Quanto ao crime de branqueamento imputado ao arguido o acórdão recorrido fez constar que[31]:
Atenta a matéria de facto considerada provada, constata-se que o arguido BB depositou aquela quantia numa conta de que era titular na U.B.P. na Suíça, daí a transferiu para uma outra titulada pela sociedade “C...Galeria, S.A.” de que era Presidente do Conselho de Administração, onde contabilizou tal valor como sendo um pagamento de um cliente que não havia estado na origem de tal movimento, tendo depois feito chegar tal quantia à esfera do arguido AA sob o falso pretexto de corresponderem à contrapartida de aquisições a este de quadros e a um pagamento à sua mulher, criando a aparência de que era uma fornecedora daquela sociedade.
Mais resulta da matéria de facto provada que ambos os arguidos sabiam que o B.P.N. se havia desapossado da dita quantia com fundamento no engano em que foi induzido pelo próprio arguido AA, tendo os arguidos levado a cabo as ditas condutas dolosamente (cfr. art.º 14.º, n.º 1, do C.P.), tendo agido com o intuito de dissimular a origem ilícita da referida quantia.
Nessa situação era aos arguidos AA e BB que pertencia o domínio funcional do facto, ambos tendo contribuído objetivamente para a execução dos factos de forma indispensável à sua realização, não sendo a intervenção de cada um deles uma mera participação na execução por outrem do crime, pelo que nessas situações se está no campo da coautoria (cfr. art.º 26.º, 3.ª parte, do C.P.).
Na verdade, a coautoria tem sempre subjacente a si um acordo prévio que se projeta na realização objetiva do facto, sendo certo que não é necessário que tal acordo seja expresso bastando que o mesmo se verifique de forma tácita (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-09-1993, in Boletim do Ministério da Justiça, 429, pág. 488; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18-03-1993, in Coletânea de Jurisprudência, 1993, Tomo II, pág. 195).
Por seu turno, é necessário que a atuação de cada um dos agentes seja elemento do todo indispensável à produção do resultado, embora possa ser apenas parcial, já que não é necessário que cada um deles intervenha em todos os atos a praticar para a obtenção daquele resultado (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29-01-1992, in Boletim do Ministério da Justiça, 423, pág. 269).
No entanto, torna-se indispensável que pela reunião desses elementos se conclua que todos os agentes contribuíram objetivamente para a realização típica do crime em causa, projetando a consciência e vontade de colaboração na realização do resultado típico do mesmo (cfr. COSTA, José de Faria, in “Formas do Crime”, Jornadas de Direito Criminal, CEJ, pág. 170), pois só então cada arguido será responsável pelo resultado global verificado como se fosse autor singular do mesmo.
Deste modo, é objetiva e subjetivamente imputável aos arguidos AA e BB, a prática, como coautores e sob a forma consumada, de 1 crime de branqueamento, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, 368.º-A, n.ºs 1, 2, e 10, do C.P., na redação decorrente da Lei n.º 11/2004, de 27 de março, de acordo com a retificação n.º 45/2004, de 05-06, vigente à data dos factos, a que correspondem os arts. 368.º-A, n.ºs 1, 2, e 10, do C.P., na redação decorrente da lei n.º 59/2007, de 04-09, 368.º-A, n.ºs 1, 2, e 10, do C.P., na redação decorrente da Lei n.º 83/2017, de 18-08, e 368.º-A, n.ºs 1, 2, 3, e 12, do C.P., na redação decorrente da Lei n.º 58/2020, de 31-08
Vejamos.
Os pressupostos que servem de fundamento à argumentação dos recorrentes não se verificam. Com efeito, os factos praticados pelo recorrente AA são subsumíveis ao crime de burla qualificada, tal como entendido na 1ª instância.
A argumentação do recorrente BB no sentido de que desconhecia que o valor titulado pelo cheque era proveniente de ilícito típico e, nesse pressuposto, a sua atuação, ao depositar o cheque na conta da Suíça e transferi-lo, posteriormente, para a conta da C... Galeria, não teve como fim dissimular a origem ilícita do valor titulado pelo cheque; nem como fim evitar que o autor ou participante dessas infrações fosse criminalmente perseguido ou submetido a uma reação penal, não tem amparo nos factos provados.
Assim, não tendo os recorrentes contrariado a interpretação dos preceitos jurídicos efetuada pelo Tribunal, interpretação com a qual concordamos, entendemos que os factos praticados por ambos os arguidos se subsumem ao crime de branqueamento tal como entendeu o tribunal a quo.
Improcede esta questão de ambos os recursos”

Entendendo-se que o arguido AA foi devidamente punido pela prática do crime de burla agravada em função do valor consideravelmente elevado da quantia de que se apropriou, também deverá ser punido pelo crime de branqueamento pois ficaram igualmente demonstrados todos os elementos constitutivos deste ilícito criminal, o qual foi duplamente confirmado, em termos da sua qualificação jurídica e da medida da pena aplicada.

3. Quanto ao PIC deduzido pela assistente Parvalorem SA, o acórdão recorrido fez constar que:
“Em 23-12-2010 o B.P.N. cedeu à aqui assistente e demandante, que aceitou, diversos créditos sobre vários devedores, entre os quais se encontravam os créditos sobre “E..., LLC” no montante global de 4 844 019 EUR.
27.Os ditos cheques foram assinados pelo arguido AA e HH e sacados a descoberto sobre a conta BPN Cayman número ...01, titulada por “E..., LLC”, sediada em ..., ..., ..., .... de ..., ..., nos Estados Unidos da América.
28. A “E..., LLC” era detida pela “M... LLC” que, por sua vez, era detida pela S.L.N.
Ora, da comparação do itinerário que a Parvalorem faz na sua resposta para justificar a sua legitimidade para deduzir o PIC com o alegado no PIC e os factos provados pertinentes, em parte alguma dos factos provados consta como provado ou não provado o facto que: “para provimento da conta da E... LLC foi-lhe concedido um financiamento através de um descoberto autorizado que, em outubro de 2004, veio a ser regularizado através da sua substituição por uma operação de crédito no montante total de €3.500.000,00, o qual nunca veio a ser regularizado (53 Cf. a título de exemplo os pontos 8,76 a 79 do PIC).
Portanto, em conclusão, no que concerne ao pedido de indemnização civil, verificamos que além dos factos já mencionados e pertinentes para a decisão do PIC o tribunal não se pronunciou sobre qualquer outros factos alegados em número de 118, o que consubstancia uma omissão de pronúncia sobre os referidos factos que lhe competia dar como provados, não provados, ou prejudicados, em vista do já provado relativamente à matéria de facto da acusação.
Ocorre que nos factos alegados há matéria de facto 54 (Cf. por exemplo os pontos mencionados na nota anterior) sem qualquer resposta ou apreciação, imprescindível para efeitos verificar se o prejuízo causado nos autos ao BPN tem repercussão nos créditos cedidos em 23.12.2010 (55 data aposta no documento n. 2. com o PIC a fs 1808) pelo BPN à assistente. Sem se apurar se nos créditos cedidos se incluía (56 Vide Anexo 1 - Identificação de créditos, págs. 1823 a 1842, Vol. V, documentos juntos com o PIC), ou não, o prejuízo causado pelos factos praticados ao BPN, a cessão de créditos desgarrada não confere qualquer direito à assistente.
Assim, sem a apreciação dos factos do PIC pelo tribunal a quo não é possível decidir com segurança o pedido de indemnização civil no sentido da absolvição ou da condenação, o que configura além da omissão de pronúncia o vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito, previsto no art. 410º, n.º 1 al. b) do CPP.
Pelo exposto, relativamente apenas à apreciação dos factos alegados no pedido de indemnização civil tem de anular-se a decisão para que, pelo mesmo tribunal, seja dada resposta aos artigos do PIC e, se necessário for abrir a audiência para o efeito do conhecimento dos pertinentes factos.
Nesta parte, procede o recurso do recorrente AA”

Assim, relativamente à parte cível o acórdão recorrido determinou que a 1ª Instância se pronunciasse sobre os 118 factos alegados no PIC deduzido pela assistente Parvalorem, tendo considerado que relativamente a este segmento da decisão ocorreu uma omissão de pronúncia já que lhe competia relativamente a estes factos dá-los como provados, não provados, ou prejudicados, face ao já provado relativamente à matéria de facto da acusação.


Contudo, relativamente à parte criminal estamos perante um duplo juízo condenatório por parte do acórdão recorrido que, relativamente às questões de facto e de direito que o arguido AA colocou no seu recurso da decisão proferia em 1ª Instância as confirmou totalmente, à excepção da medida da pena parcelar aplicada pela prática do crime de burla qualificada e da pena única que foram diminuídas.

Sendo possível uma apreciação e uma decisão autónomas no plano civil e no plano criminal (art. 403º, nº 1, do Cod. Proc. Penal), e tendo-se mantido toda a factualidade dada como provada em sede de julgamento da parte criminal, onde o arguido AA viu asseguradas todas as suas garantias de defesa e o exercício do contraditório, ao ter sido determinado que a 1ª Instância se pronuncie sobre os 118 factos alegados no PIC deduzido pela assistente Parvalorem[32], após esta pronúncia o arguido poderá novamente recorrer relativamente a este segmento da decisão respeitante à parte cível que foi separada da parte crime, sendo que esta separação não colide com a unidade e a coerência de tudo o que ficou assente em sede de definição e de imputação ao arguido da prática do crime de burla qualificada e do crime de branqueamento.

E, resultando da decisão proferida no acórdão recorrido que o Tribunal em 1ª Instância terá que apreciar o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente Parvalorem SA donde constam 118 factos que terão que ser dados como provados, não provados, ou prejudicados, em vista do já provado relativamente à matéria de facto da acusação, esta apreciação é autónoma da responsabilidade criminal, a qual como vimos já foi duplamente confirmada.

Ora, “VI - Como se refere em Ac. deste STJ de 10-07-2008, interdependência das acções significa que mantêm a independência nos pressupostos e nas finalidades (objecto), sendo a acção penal dependente dos pressupostos que definem um ilícito criminal e que permitem a aplicação de uma sanção penal, e a acção civil dos pressupostos próprios da responsabilidade civil; a indemnização de perdas e danos emergente de um crime é regulada pela lei civil (art. 129.º do CP) nos respectivos pressupostos e só processualmente é regulada pela lei processual penal. A interdependência das acções significa, pois, independência substantiva e dependência (a «adesão») processual da acção cível relativamente ao processo penal.

VII - Com o exercício da acção civil o que está em causa no processo penal é o conhecimento pelo tribunal de factos que constam da acusação e do respectivo pedido de indemnização e que, consequentemente, são coincidentes no que refere à caracterização do acto ilícito. Atributo próprio do pedido cível formulado será o conhecimento e a definição do prejuízo reparável”[33].

Dito isto, dúvidas não restam que estamos perante um acórdão condenatório, proferido em sede de recurso pelo Tribunal da Relação, que confirmou uma decisão proferida em 1ª Instância, e que aplicou penas de prisão não superior a 8 anos, sendo que “(…) a jurisprudência deste STJ foi-se densificando no sentido de que a dupla conforme assenta na identidade de factos, qualificação jurídica e a aplicação de pena igual à aplicada pela decisão de 1.ª instância. Mais afirma a mesma jurisprudência, que a dupla conforme continua a verificar-se quando a Relação, mantendo-se a identidade de factos e qualificação jurídica, reduza a pena de prisão aplicada em medida não superior a 8 anos[34]. (sublinhado nosso).

Ora, o reexame da existência ou inexistência de algum dos vícios decisórios enunciados nas als. do nº 2, do art. 410º do Cod. Proc. Penal só poderia ser realizado e detectado por iniciativa própria deste Supremo Tribunal, de forma a evitar que a decisão de direito se tivesse apoiado em matéria de facto manifestamente insuficiente, se tivesse fundado em erro de apreciação da prova, ou tivesse sido assente em juízos contraditórios, e que por força da existência de qualquer um destes vícios, o acórdão recorrido tivesse proferido uma decisão incorrecta em termos de direito, situação que no caso não se verificou.

Assim, este Supremo Tribunal não pode, enquanto tribunal de revista, aqui funcionar como uma 2ª Instância de recurso, uma vez que está impedido de se intrometer nesta parte da decisão, face ao disposto no citado art. 434º do Cod. Proc. Penal.

Daí que só se possa concluir que o recurso interposto pelo arguido AA do Acórdão do Tribunal da Relação ... para este Supremo Tribunal terá de ser rejeitado, por motivo de inadmissibilidade legal, nos termos do art. 400º, nº 1, al e f), aplicável por força do disposto no art. 432º, nº1, al. b), ambos do Cod. Proc. Penal.

E, uma vez que se considera estarmos perante uma situação de dupla conforme não sendo, portanto, admissível recurso para este Supremo Tribunal do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ..., esta irrecorribilidade determina que todas as questões suscitadas sejam elas de inconstitucionalidade, processuais e/ou substantivas, sejam interlocutórias, incidentais ou finais, não poderão também aqui ser conhecidas.[35]

Por fim, caberá referir que o Tribunal Constitucional já apreciou a constitucionalidade da norma do art. 400º, nº 1, al. f), do Cod. Proc. Penal, na medida em que condiciona a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça aos acórdãos condenatórios proferidos em recurso pelas Relações, que confirmem decisão de 1ª Instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 (oito) anos, e decidiu não a julgar inconstitucional.

Com efeito, a Constituição da República ao reconhecer o direito ao recurso no seu art. 32º, nº 9, não afirma nem pressupõe em parte alguma que deva haver três instâncias e duplo recurso, para mais se se está perante dupla conformidade de uma decisão in mellius proferida em 2ª Instância.

Assim, o Tribunal Constitucional pronunciou-se pela conformidade constitucional deste regime, o que sucedeu, nomeadamente, no Ac. do Plenário nº 186/2013, de 04/04/2013[36]. Nem se poderá considerar com este entendimento que possam ficar em crise quaisquer instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam o Estado Português ao sistema internacional de protecção dos direitos humanos (v.g. art. 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e art. 2º do Protocolo nº 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais)[37].

Desta forma, a rejeição do recurso interposto pelo arguido AA, por inadmissibilidade legal, não afronta nenhum direito fundamental, uma vez que “(…) não é exacto que possa inferir-se do direito fundamental de acesso à justiça, plasmado no art. 20º da Constituição, um amplo direito de acesso a um terceiro grau de jurisdição a exercitar pelo STJ, sem que ao legislador e à jurisprudência seja legítimo delimitar ou filtrar, em termos proporcionais e adequados, os litígios em que deva intervir em via de recurso ainda o STJ: na verdade, o acesso à justiça e a tutela judicial efectiva bastam-se com a obtenção de uma decisão jurisdicional, em tempo útil, sobre os litígios de direito privado, sendo certo que no caso a sentença proferida foi objecto de reapreciação pela 2ª instância, que manteve inteiramente o sentido decisório questionado pelo recorrente; ora, não está seguramente compreendido naqueles princípios fundamentais um direito de aceder ao STJ sempre que a parte vislumbre alguma nuance ou alteração menor na fundamentação jurídica seguida pelas instâncias (…)”[38] .

Para além do mais, e relativamente a esta matéria o Tribunal Constitucional tem afirmado repetidamente “caber na discricionariedade do legislador definir os casos em que se justifica o acesso à mais alta jurisdição, desde que não consagre critérios arbitrários, desrazoáveis ou desproporcionados[39]

Posto isto, decide-se rejeitar o recurso interposto pelo arguido AA do Acórdão do Tribunal da Relação ... para este Supremo Tribunal, por motivo de inadmissibilidade legal, nos termos dos arts. 400º, nº 1, al. f), aplicável por força do disposto no art. 432º, nº 1, al. b), 414º, nº 2, e 420º, nº 1 al. b), todos do Cod. Proc. Penal, sendo que a sua admissão não vincula este tribunal (art. 414º, nº 3, do Cod. Proc. Penal), ficando, como já se disse, prejudicado o conhecimento de todas as questões suscitadas.

Cabe tributação, nos termos prevenidos no art. 513º, do Cod. Proc. Penal, e no art. 8º e Tabela III anexa do Regulamento das Custas Processuais.

III - DECISÃO

Nos termos expostos, acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:
- Rejeitar o recurso interposto pelo arguido, por motivo de inadmissibilidade legal;
- Condenar o arguido em taxa de justiça, no montante de 8 UC´s, e no pagamento da importância de 5 UC´s, nos termos do art. 420º, nº 3, do Cod. Proc. Penal;
- Após trânsito remeta ao Tribunal da Relação ..., face ao teor do requerimento aí apresentado pelo arguido em 18/01/2022 (referência ...93), e para apreciação do lapso de escrita ocorrido no 2º § da pag. 184 do acórdão recorrido (art. 380º, nº 2, do Cod. Proc. Penal).

Supremo Tribunal de Justiça, 19 de Maio de 2022
(Processado em computador, revisto pela relatora (art. 94º, nº 2, do Cod. Proc. Penal)

Adelaide Sequeira (Relatora)
Maria do Carmo Silva Dias
Eduardo Loureiro

__________________________________________________________


[1] No acórdão do Tribunal da Relação … constam identificadas as seguintes questões a decidir relativamente ao recurso interposto pelo arguido AA da decisão proferida em 1ª Instância:
“- Nulidade da sentença - artigo 379º, n.º 1 al. b) -, por alteração sem comunicação dos factos relativos ao dolo, factos 98 a 106 da acusação e 46 a 50 [48 e 49] da sentença.
- Nulidade por omissão de pronúncia - art. 379º, n.º 1 al. c) do CPP – por falta de ponderação de circunstâncias quer nas penas parcelares, quer na pena única. Inconstitucionalidade.
- Impugnação da matéria de facto e vícios da decisão.
- Insuficiência da matéria de facto provada – art. 410º, n.º 2 a) do CPP: existência de um endosso no cheque; Intervenção dos intermediários espanhóis.
- Erro na matéria de facto dada como provada; inexistência de prova quanto a um acordo anterior com os intermediários espanhóis; Inexistência de erro ou engano sobre factos no momento da emissão dos cheques; inexistência de erro ou engano sobre os factos - o necessário envolvimento (substancial) do BPN; existência de uma verdadeira relação comercial entre os arguidos.
- Alteração da matéria de facto.
- Subsunção dos factos ao crime de burla; existência de prejuízo?
-. Subsunção dos factos ao crime de branqueamento de capitais.
-. Penas: Excessividade e desproporcionalidade das penas parcelares e única. Valoração inadmissível do silêncio do recorrente.
-. Pedido de indemnização civil”.
[2] O Tribunal da Relação …. também condenou o arguido BB, como co-autor, e sob a forma consumada, de um crime de branqueamento, p. p. pelos arts. 14º, nº 1, 26º, e 368º-A, nº 1, nº 2 e 10º, do Cod. Penal, na redacção decorrente da Lei nº 83/2017, de 18/08, tendo presente as alterações introduzidas ao Cod. Penal pela Lei nº 94/2017, de 23/08, porque concretamente mais favorável, cujo último acto foi praticado em 16/08/2004, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 (quatro) anos.
O Tribunal da Relação ….. também determinou que o Tribunal em 1ª Instância se pronunciasse sobre os 118 factos alegados no pedido de indemnização deduzido pela assistente Parvalorem, tendo considerado que relativamente a este segmento da decisão ocorreu uma omissão de pronúncia já que lhe competia relativamente a estes factos dá-los como provados, não provados, ou prejudicados, face ao já provado relativamente à matéria de facto da acusação.
[3] Arguiu também nulidades e outros vícios (como inconstitucionalidades) do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, em 18/01/2022 (referência citius 330793), que não chegaram a ser objecto de apreciação, por ter sido entretanto interposto recurso para este Supremo Tribunal.
[4] Transcrição do texto tal como apresentado.
[5] Transcrição do texto sem terem sido observados os espaços originais entre os respectivos parágrafos e com numeração diferente das notas de rodapé.

[6] Todos os sublinhados neste trecho do Acórdão que transcrevemos são da nossa lavra.

[7] Ver entre outros Ac. STJ de 29-03-2012, proferido no proc. n.º 18/10.5GBTNV.C1.S1, consultável em: www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/11363ead40f0cdf380257a3000494096?OpenDocument

I - No caso em apreço estamos perante uma situação que configura uma confirmação pelo Tribunal da Relação em relação à decisão de 1.ª instância. Significa o exposto que somos reconduzidos à questão da denominada reformatio in mellius. Tal tema, suscitado a propósito da admissibilidade de recurso – art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP – tem sido objecto de um tratamento maioritário por parte da jurisprudência do STJ, afirmando a existência de uma confirmação parcial em situações similares, pelo menos até ao patamar em que se situa a sua convergência.

II  - Deverá considerar-se existente tal confirmação in mellius, para efeito do normativo em causa, quando a decisão do tribunal superior vai ao encontro do pedido formulado e, por essa forma, sempre se pode afirmar que a decisão de recurso confirma a consistência que assiste à decisão recorrida e que a pena aplicada constitui um marco a considerar em termos de recorribilidade. Tal confirmação sucede até ao ponto em que as duas decisões – recorrida e de recurso – convergem. No caso vertente verifica-se que a uma pena de 6 anos de prisão necessariamente efectiva se sucedeu no tribunal superior uma pena de 5 anos de prisão suspensa na sua execução. Face ao exposto é manifesta a integração do normativo do art. 400.º, n.° 1, al. f), do CPP. O recurso interposto não é admissível no segmento criminal.
[8] Ver Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2.ª edição, pag 1020: A questão da dupla conforme em função do limite abstracto da moldura penal do crime não foi pacífica depois da revisão do CPP de 1998, sendo defendidas na jurisprudência teses diferentes a propósito da definição do que se deveria considerar "pena aplicável" : o TC pronunciou-se no sentido da compatibilidade com a CRP da irrecorribilidade dos acórdãos condenatórios proferidos em recurso pelo TR que confirmassem decisão de primeira instância em processo por crime a que fosse aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções, e designadamente quando apena máxima aplicável ao cúmulo não ultrapassasse os oito anos de prisão (acórdãos do TC n.' 435/ 2001 e n.° 104 / 2005), quando as penas parcelares máximas aplicáveis a cada um dos crimes não fossem superiores a oito anos, mas a pena máxima aplicável ao cúmulo ultrapassasse os oito anos de prisão (acórdãos do TC n.° 189/2001 e n.° 490/ 2003), ou quando as penas parcelares máximas aplicáveis a cada um dos crimes fossem superiores a oito anos de prisão, mas a pena máxima aplicada ao cúmulo não ultrapassasse os oito anos de prisão (acórdãos do TC n.° 541 /2003, n.° 495 /2003, n.° 102/ 2004, e n.° 640 / 2004, mas contra o acórdão n.° 628/2005, que foi posteriormente revogado pelo acórdão n.° 64/ 2006). 10. Dando o Tribunal Constitucional a máxima liberdade de conformação ao legislador neste tocante, o legislador escolheu, na Lei n.° 48/2007, o critério da pena concreta com o fito de "restringir o recurso de segundo grau perante o Supremo Tribunal de justiça aos casos de maior merecimento penal" (ver a motivação da proposta de lei n.° 109/X). Assim, não admitem recurso os acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações que apliquem pena não privativa da liberdade, como não admitem recurso os acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações que confirmem decisão da 1.a instância e que apliquem pena de prisão não superior a oito anos.

[9] Consultável em www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/49f301155916dbfb80257873003bf4ee?OpenDocu ment
[10] Consultável em www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/349de3230c2807ed8025747f0031b41e?OpenDocu ment
[11] Cfr. acórdão do S.T.J, de 07.04.2022 (processo n.º 24/19.4JBLSB.L1.S1, 5ª Secção)
[12] Tendo sido decidido neste Ac. TC “Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, ambos da Constituição, a norma extraída dos artigos 355.º, n.ºs 1 e 2, e 356.º, n.º 9, aplicável ex vi do disposto no n.º 3 do artigo 357.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual podem valer em julgamento as declarações do arguido a que se refere o artigo 357.º, n.º 1, alínea b), do referido Código, sem que tenha havido lugar à sua reprodução ou leitura em audiência, por decisão documentada em ata”.
[13] Cfr. Ac. STJ de 22/04/2021, in Proc. nº 302/17.7PATVD.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt., e Ac. STJ de 09/10/2019, in Proc. nº 3145/17.4JAPRT.S1, Rel. Cons. Raúl Borges.
[14]Admissão que não vincula este Supremo Tribunal face ao disposto no art. 414º, nº 3, do Cod. Proc. Penal 
[15] Não contendo esta Lei nº 94/2021, qualquer norma transitória que contemple a sua aplicação no tempo, as questões relativas às regras de interposição de recurso interposto de decisão proferida pelo tribunal colectivo em 1.ª Instância para o STJ, devem ser resolvidas à luz do disposto no art. 5º do Cod. Proc. Penal, que regula a aplicação da lei processual penal no tempo, e que refere que a nova lei não é de aplicação imediata nos processos iniciados anteriormente à sua vigência se daí resultar um agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido ou uma quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo.
[16] Sendo que no caso, não têm aqui aplicação, as alterações introduzidas aos arts. 432º e 434º do Cod. Proc. Penal, através da citada Lei nº 94/2021, de 21/12.
[17] Cfr. conclusões (entre a 25 e a 35), nas quais se insurge contra a interpretação dada pelos Tribunais Superiores no que concerne à aplicação das normas processuais penais.
[18] Cfr. o Ac. STJ de 22/05/2013, in Proc. nº 210/09.5JBLSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt., onde se lê que: “A lei reguladora da admissibilidade dos recursos é a que vigora no momento em que ficam definidas as condições e os pressupostos processuais do próprio direito ao recurso (seja na integração do interesse em agir, da legitimidade, seja nas condições objectivas dependentes da natureza e conteúdo da decisão: decisão desfavorável, condenação e definição do crime e da pena aplicável), isto é, a decisão de primeira instância”, ou seja, no momento em que primeiramente for proferida uma decisão sobre a matéria da causa. No mesmo sentido, cfr. o Ac. de 05/08/2016, in Proc. nº 35/11.8GCFLG.P1.S1, e o Ac. STJ de 23/11/2016, in Proc. nº 736/03.4TOPRT.P2.S1.acessíveis em www.dgsi.pt .
[19] Cfr. o Ac. TC nº 456/16, de 14/07/2016, Proc. nº 426/16, 2.ª Secção, acessível em www.dgsi.pt., que, na respectiva fundamentação, refere “Como se diz na decisão reclamada, a questão de constitucionalidade colocada neste recurso já foi objeto de múltiplas decisões do Tribunal Constitucional, todas no sentido da não inconstitucionalidade da norma questionada (v.g. Acórdãos n.º 645/09, 276/10, 215/11, 321/12, 486/12 e 726/13, acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt), não existindo razões para o Tribunal alterar esta posição consolidada” 
[20] Quanto à matéria de facto dada como provada e a todos os vícios com ela relacionados e quanto à qualificação jurídica dos factos.
[21] Cfr. o Ac. STJ de 17/02/2022, in Proc. nº 18/20.7JELSB.L1.S1, o Ac. STJ de 13/01/2022, in Proc. nº 3/19.1T9SRE.C1.S1, o Ac. STJ de 02/12/2021, in Proc. nº 17/18.9F1PDL.L1.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt,  também neste sentido, Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, Coimbra: Almedina, 3ª Edição Revista, pag. 1231, em anotação ao art. 400º do Cod. Proc. Penal.
[22] No caso, a matéria de facto já foi duplamente confirmada e uma nova reapreciação, seja em termos amplos (erro-julgamento), seja no âmbito dos vícios do art. 410º do Cod. Proc. Penal (erro-vício), não poderá fundamentar um recurso interposto para este Supremo Tribunal, face ao disposto nos arts. 432º, nº 1, al. b), e 400º, nº 1, als. e), e f), do Cod. Proc. Penal - cfr. Ac. STJ de 03/02/2021, in Proc. nº 99/16.8JELSB.L1. S1, acessível em www.dgsi.pt.
[23] Transcrição da pag. 149 a 153 do acórdão recorrido mas com numeração diferente das notas de rodapé.
[24] Embora o recorrente continue a colocar questões de facto numa questão de direito.
[25]Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 275.
[26] Ob. citada, pág. 276.
[27] Mesma obra, pág. 277.
[28] Ob. citada, págs. 293 a 295.

[29] Vejam-se os documentos comprovativo da ordem de transferência do BPN para N….. LTD do valor de 17.000.000,00€ (volume II do Apenso Temático I, doc 30´022) e a fatura da N…… LTD ao BPN fls. 139 a 148 do Volume I. com a identificação dos 41 quadros.
[30] Posição igualmente sustentada pelo Sr. Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal.
[31] Pag. 159 e 160 do acórdão recorrido.
[32] Em 05/07/2019, através do Requerimento citius 1710902

[33] Cfr. sumário do Ac. STJ de10/12/2008, Proc. 08P3638, Relator Santos Cabral, acessível em www.dgsi.pt. 
[34] Cfr. sumário do Ac. STJ de 10/03/2022, in Proc. nº 212/18.0T9NZR.C2.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[35] Cfr. Ac. STJ de 23/03/2022, in Proc. nº 2808/13.8TAVNG.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[36] Publicado no DR, 2.ª Série, de 09/05/2013.
[37] Cfr. neste sentido o Ac. STJ de 10/11/2021, in Proc. nº 330/18.5GCTVD.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt
[38] Cfr. Ac. STJ de 17/02/2021 (Rel. Gabriel Catarino), citado no Ac. STJ de 19/05/2021, Proc. nº 170/11.2TAOLH.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt. A conformidade à Constituição da chamada dupla conforme tem sido uniformemente e amplamente validada pelo Tribunal Constitucional, vejam-se, a título de exemplo, os Acs. nº 659/2018, de 12/12, nº 212/2017, de 02/05, nº 687/2016, de 14/12, nº 239/2015, de 29/04, nº 107/2015, de 11/02, nº 269/2014, de 25/03, nº 186/2013, de 04/04, nº 189/2001, de 03/05, nº 451/2003, de 14/10, nº 495/2003, de 22/10, nº 640/2004, de 12/11, nº 649/2009, de 15/12. E, ainda no tocante à reformatio in mellius, o Ac. TC nº 32/06 e a Decisão Sumária nº 99/16, que não julgou inconstitucional a norma do art. 400º, nº 1, al. f) do Cod. Proc. Penal na interpretação de que não é admissível o recurso de acórdão condenatório proferido, em recurso, pela Relação, que reduza a pena de prisão aplicada em 1ª instância para pena de prisão não superior a 8 (oito) anos. Também, a Decisão Sumária nº 35/2010, onde não se julgou inconstitucional a “norma extraída do disposto no art. 400.º n.º 1, al. f) e no art. 432.º, n.º 1, al. b) do C.P.P, no sentido ou interpretação em que se entendeu por confirmativo um acórdão proferido pela Relação, cuja subida ao S.T.J. fora admitida pelo mesmo Tribunal, que aplica uma pena de oito anos de prisão quando a decisão de 1ª instância condena em nove anos de prisão”. Também o Ac.TC nº 263/2009, de 25/05, Proc. nº 240/09, o Ac. TC nº 551/2009, de 27/10, Proc. nº 280/09, o Ac. TC nº 645/2009, de 15/12, Proc. nº 846/2009, o Ac. TC nº 174/2010, de 04/05, Proc. nº 159/2010, e também versando ainda que indirectamente sobre esta matéria, o Ac. TC nº 713/2021, de 17/09, Proc. nº 826/2021, todos acessíveis em www.dgsi.pt., que remete para o link do Tribunal Constitucional
[39] Cfr. o Ac. TC nº 357/2017, in www.tribunalconstitucional.pt