Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
492/08.0TTLMG.P1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: PINTO HESPANHOL
Descritores: DESPEDIMENTO COM JUSTA CAUSA
DEVER DE LEALDADE
CONCORRÊNCIA DESLEAL
Data do Acordão: 09/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIRIEITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS/ PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES/ CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES
DIREITO DO TRABALHO - DIREITOS, DEVERES E GARANTIAS DAS PARTES - CESSAÇÃO DO CONTRATO/ POR INICIATIVA DO EMPREGADOR
Doutrina: - JÚLIO GOMES, Direito do Trabalho, vol. I, Relações Individuais de Trabalho, Coimbra Editora, 2007, p. 535.
- MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, 12.ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 231-234, 237.
- ROMANO MARTINEZ, Direito do Trabalho, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, p. 500.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.OS 1 E 2, 762.º, N.º2.
CÓDIGO DO TRABALHO (CT/2003): - ARTIGOS 119.º ALÍNEA E), 121.º, N.º 1, ALÍNEA E), 396.º, 429.º, 435.º, N.OS 1 E 3, 436.º, 437.º E 439.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 53.º
LEI N.º 99/2003, DE 27-8: - ARTIGOS 3.º, N.º1, 8.º, N.º 1.
LEI N.º 7/2009, DE 12-2: - ARTIGO 7.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 9/4/2008, PROCESSO N.º 3388/07;
-DE 10/9/2008, PROCESSO N.º 722/08, DA 4.ª SECÇÃO; AMBOS DISPONÍVEIS EM WWW.DGSI.PT, (DOCUMENTOS N.OS SJ20080409033884 E SJ20080910007224, RESPECTIVAMENTE).
Sumário :
1. Sendo o trabalhador sócio de sociedade comercial com objecto social idêntico à do empregador, ambas se dedicando à actividade de realização de funerais, aquele, com o comportamento adoptado, violou, culposamente e de forma grave, o dever de guardar lealdade ao empregador, previsto no artigo 121.º, n.º 1, alínea e), do Código do Trabalho de 2003, na dimensão da proibição de concorrência, tendo afectado a relação de confiança que deve existir entre empregador e trabalhador e gerando fundadas dúvidas sobre a idoneidade futura do desempenho das funções.

2. A violação do dever de lealdade, na dimensão da proibição de concorrência, não exige ou implica a efectividade de prejuízos para o empregador, nem o efectivo desvio de clientela, sendo suficiente um desvio potencial.

3. Neste contexto, não sendo exigível a manutenção da relação contratual, verifica-se justa causa para o despedimento, o qual é lícito, não tendo o autor direito a receber qualquer compensação, nem indemnização em substituição da reintegração ou por danos não patrimoniais, pois tais efeitos dependem da ilicitude do despedimento.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

                                                    I

1. Em 2 de Dezembro de 2008, no Tribunal do Trabalho de Lamego, Secção Única, AA ajuizou acção declarativa, com processo comum, emergente de contrato de trabalho contra a AGÊNCIA FUNERÁRIA BB, Lda., pedindo que fosse declarada a ilicitude do seu despedimento e a condenação da ré a pagar-lhe (i) as retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão, (ii) as quantias atinentes a férias e subsídios de férias e de Natal que se venham a vencer, (iii) indemnização equivalente a 45 dias de retribuição base por cada ano completo decorrido desde a data do início do contrato até ao trânsito em julgado da decisão judicial, no valor de € 18.487,50, (iv) € 1.299,72, a título de retribuição de férias e subsídio de férias, (v) € 230,68, relativos à retribuição pertinente a 7 dias de férias não gozados a que tinha direito no ano da cessação do contrato de trabalho, (vi) € 599,86, referente a subsídio de Natal proporcional ao tempo de serviço prestado no ano da cessação do contrato de trabalho, (vii) € 3.000, a título de compensação pelos danos não patrimoniais, e (viii) € 20.482, atinentes a trabalho suplementar prestado desde a contratação até à data da suspensão preventiva, em 30 de Julho de 2008, mais tendo peticionado (ix) a condenação da ré «a regularizar as quotizações devidas à segurança social tendo em conta os valores reais de rendimentos auferidos pelo A.».

Alegou, em resumo, que foi contratado pela ré, no ano de 1991, e que, em 29 de Outubro de 2008, foi alvo de despedimento, o qual é ilícito, em primeiro lugar, porque o respectivo procedimento disciplinar é inválido por ofensa do princípio do contraditório e, em segundo lugar, por inexistência de justa causa.
Mais aduziu que, desde 1991, trabalhava, de segunda a sexta-feira, das 9h00 às 12h30 e das 14h30 às 19h00 e, ao sábado, das 9h00 às 13h00, pelo que, atento o trabalho prestado ao sábado, realizava 5 horas semanais de trabalho suplementar.

A acção, contestada pela ré, foi julgada parcialmente procedente, tendo a sentença da primeira instância declarado a ilicitude do despedimento e condenado a ré a pagar ao autor (a) € 10.816,66 a título de indemnização por antiguidade, (b) € 220,32, a título de férias e subsídio de férias relativos ao ano de cessação do contrato, (c) € 19.956,88, a título de trabalho suplementar prestado e não pago, desde 1991, (d) € 2.000, a título de indemnização por danos morais e, ainda, (e) «a quantia que vier a ser liquidada, a título de retribuições que o autor deixou de auferir desde 2 de Novembro de 2008 até ao trânsito em julgado da presente decisão, à razão de € 550,00 mensais, acrescida de juros de mora desde a data do transito em julgado da presente decisão até efectivo e integral pagamento».

2. Inconformada, a ré endereçou recurso de apelação ao Tribunal da Relação do Porto, que proferiu acórdão, com o dispositivo que se passa a transcrever:

                    «Em face do exposto, acorda-se em conceder parcial provimento ao recurso, em consequência do que se decide:
                       A. Revogar a sentença recorrida na parte em que declarou ilícito o despedimento e em que condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 10.816,66 a título de indemnização por antiguidade, a de € 2000,00 a título de indemnização por danos morais e a quantia que vier a ser liquidada, a título de retribuições que o autor deixou de auferir desde 2 de Novembro de 2008 até ao trânsito em julgado da sentença, acrescida de juros de mora nela referidos, sentença essa que é substituída pelo presente acórdão, julgando a acção, nessa parte, improcedente e absolvendo a Ré de tais pedidos.
                       B. Revogar a sentença recorrida na parte em que condenou a Ré a pagar ao A. a quantia de € 19.956,88 a título de trabalho suplementar prestado e não pago desde 1991, a qual é substituída pelo presente acórdão, em que se decide:
                             b.1.  Absolver a Ré do pedido relativo ao pagamento de trabalho suplementar relativo ao período de 07.05.1991 a 01.12.2003;
                             b.2.  Condenar a ré a pagar ao A. o trabalho suplementar prestado pelo A. desde 02.12.2003 até à data do despedimento, cuja liquidação se relega, nos termos dos arts. 661.º, n.º 2, e 378.º, n.º 2, do CPC, para incidente de liquidação.
                      C.  No mais não impugnado no recurso, mantém-se a sentença recorrida.
                     Custas por ambas as partes, em ambas as instâncias, na proporção do decaimento e que se fixa, provisoriamente, em 16% para o A. e em 84% para a Ré, a corrigir, sendo caso disso, em função da liquidação que venha a ser efectuada.»

É contra a sobredita decisão que o autor agora se insurge, mediante recurso de revista, ao abrigo das seguintes conclusões:

                  «1.º    Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão da Relação na parte em que revogou a douta sentença proferida em primeira instância e que havia condenado a R. a pagar ao autor a quantia de € 10.816,66 a título de indemnização por antiguidade, a de € 2.000,00 a título de indemnização por danos morais e a quantia que vier a ser liquidada, a título de retribuições que o autor deixou de auferir desde 2 de Novembro de 2008 até ao trânsito em julgado da sentença.
                      2.º  Fundamentando tal decisão no facto dado como provado sob o ponto 16 ― “O autor é titular de uma quota no valor de € 250,00, na sociedade ‘Agência Funerária CC Lda.’ desde 3 de Fevereiro de 1999”,
                      3.º  Assim entendendo que não obstante os demais factos dados como provados ― 17, 19, 20, 21, 24, 25, 26, cujo teor se dá por integralmente reproduzido ocorreu violação do dever de lealdade na vertente de obrigação de não concorrência, uma vez que o A. não demonstrou como lhe competia que havia dado conhecimento de tal facto à Entidade patronal e ainda porque não obstante constar provado que não ocorreu qualquer desvio de clientela, que o autor nunca exerceu qualquer actividade na Agência Funerária CC e ainda que a R. tenha sofrido qualquer prejuízo com a actividade daquela, ao constituir-se como sócio de tal sociedade, colocou-se na posição, enquanto sócio dessa sociedade, [de] concorrer com a actividade da R. e de com isso fundar legítima dúvida quanto à idoneidade do seu comportamento.
                      4.º  Julgamos pois que o facto dado como provado sob o ponto 16, por si só, desacompanhado de quaisquer outros factos que aliás vieram imputados ao A. em sede de Nota de Culpa é deveras insuficiente para que o A. violou o dever de lealdade para com a entidade patronal, na vertente da obrigação de não concorrência, nem se mostrando juridicamente relevante atentos os factos provados sob os pontos 17, 19, 20, 21, 24, 25 e 26, que no fundo são aptos a afastar a imputada infracção de exercício de concorrência desleal.
                      5.º  Acresce que, inexistindo qualquer outro facto que se possa imputar ao A. como violador do dever de não concorrência, a alegada infracção, a existir, o que não se concede, ocorreu já no ano de 1999,
                      6.º  Pois, não se provou outro qualquer facto integrador da infracção imputada de concorrência desleal, nem que durante qualquer período de tempo tenha exercido nessa sociedade qualquer actividade, tenha auferido qualquer rendimento ou tenha tido qualquer intervenção seja a que título for.
                      7.º  O que coloca a questão da caducidade do procedimento disciplinar na medida em que teve o seu início muito após a prática da mesma,
                      8.º  De forma que, atento o disposto no art.º 372.° n.º 2 e para do mesmo retirar as respectivas consequências, importa determinar a quem competia fazer prova do conhecimento da infracção.
                      9.º  No douto acórdão que se recorre atribui-se tal ónus ao A., consequentemente dando-se por não verificada a excepção de caducidade do procedimento disciplinar.
                    10.º Não podemos concordar, entendemos humildemente que se por um lado cabe ao trabalhador o ónus da prova do decurso do prazo normal para promover o procedimento disciplinar, por outro lado, nos termos do art.º 342.° n.º 2 do Código Civil cabe à entidade patronal o ónus da prova dos factos impeditivos da eficácia da caducidade, como por exemplo o conhecimento tardio dos factos susceptíveis de integrar a infracção disciplinar.
                    11.º Acresce que, dado que além de figurar como sócio da sociedade o que remonta ao ano de 1999 nenhum outro facto consta como provado coloca-se ainda a questão da caducidade da infracção disciplinar do 372.° n.º 2 uma vez que prazo da prescrição da infracção — um ano ― aplica-se a qualquer infracção disciplinar, independentemente do seu conhecimento, por parte da entidade empregadora, contando-se desde a prática da mesma se for de execução instantânea, e só começando a correr após findar o último acto que a integra, se estiver em causa uma infracção continuada.
                    12.º No caso dos autos, sendo a infracção imputada apenas o facto de constar como sócio da Sociedade CC Lda., nada mais ressaltando dos factos dados como provados, julgamos que a infracção se mostra instantânea e como tal o prazo de prescrição da mesma começou a contar daquela data, e por isso há muito que se encontra prescrita,
                    13.º Mas ainda que se entenda que a mesma tem a natureza de continuada, não obstante o A. se ter mantido sócio até aos dias de hoje, o último acto que ocorreu foi precisamente a aceitação de figurar como sócio na Sociedade, o que nos remonta igualmente para o ano de 1999 e nos permite concluir pela prescrição da eventual infracção disciplinar.
                    14.º Não podemos pois [deixar] de demonstrar total perplexidade pelo facto de se dar como verificada a violação do dever de lealdade na vertente da violação da obrigação de não concorrência com base no facto dado como provado no ponto 16, tanto mais que os demais factos dados como provados permitem afastar a violação de tal dever ― 17, 19, 20, 21, 24, 25, 26.
                    15.º Tais factos, dados como provados, só por si dão por afastado qualquer outro acto que haja sido praticado pelo A., subsequente à constituição/aceitação da sociedade, o que nos remonta mais uma vez para a questão da prescrição da infracção disciplinar, que diga-se julgamos na nossa humilde opinião e pelas razões expostas inexistir.
                    16.º Julgamos pois que para que no caso em apreço houvesse actividade concorrencial ainda que apenas potencialmente desviante de clientela, teria que se dar como provado qualquer acto positivo por parte do Autor, quer fosse no que respeita a angariação de clientes, desvio de clientela de uma para outra sociedade, exercício efectivo da actividade no interesse da Sociedade, não se podendo bastar para dar por provado o exercício de actividade concorrencial, o facto de constar como sócio de uma Sociedade, cuja actividade é idêntica e que dista a cerca de 50 km.
                    17.º Aliás diga-se a julgar-se lícito o despedimento simplesmente com base na prova do facto constante do ponto 16 da douta sentença, mostra-se inútil todo e qualquer acto que teve lugar neste processo, na medida em que face à prova documental junta aos autos e ainda a aceitação expressa do A. desse facto como verdadeiro, estaria o Tribunal de Primeira Instância desde logo em condições de proferir sentença condenatória.
                    18.º Em conclusão, atentos os factos dados como provados nos pontos 17, 19, 20, 21, 24, 25, 26, os quais se dão por integralmente reproduzidos, os mesmos não permitem considerar violado o dever de lealdade do trabalhador para com a entidade patronal, na medida em [que] dos mesmos resulta por demais evidente que o autor era apenas um sócio de fachada daquela agência funerária, ficando ainda por demonstrar qualquer prejuízo por parte da entidade empregadora, nomeadamente com a actividade daquela sociedade, até porque a mesma nem sequer actuava naquela área geográfica, e ainda por demonstrar ficou a prática de qualquer acto por parte do autor que violasse os deveres de lealdade para com a entidade patronal, uma vez que se demonstrado ficou que não ocorreu qualquer desvio de clientela, que o autor nunca exerceu qualquer actividade na Agência Funerária CC e ainda que a R. tenha sofrido qualquer prejuízo com a actividade daquela.
                    19.º De forma que, julgamos ser de concluir, em face dos factos dados como provados e não provados pela ilicitude do despedimento e em consequência na condenação da R. na indemnização do A. na quantia de € 10.816,66, a título de indemnização por antiguidade, e ainda na quantia de € 2.000,00 a título de indemnização por danos morais e ainda na quantia que vier a ser liquidada, a título de retribuições que o autor deixou de auferir desde 2 de Novembro de 2008 até ao trânsito em julgado da sentença. Foram assim violados por erro de interpretação os art.s 121° n.º [1], al. e), 372.° n.º 1 e 2, 396.° n.º 1 e 3, 415.° n.º 3, 435.° e 436.° do Código de Trabalho, aprovado pela Lei 99/2003 de 27 de Agosto, e ainda 342.° n.º 2 Código Civil.»

A ré não contra-alegou.

Neste Supremo Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta emitiu parecer, no qual levantou a questão prévia do não conhecimento do objecto do recurso no concernente às questões da caducidade do procedimento disciplinar e da prescrição da infracção disciplinar, que não foram «objecto de apreciação pelas instâncias, pelo que se tratam de questões novas, não passíveis de serem objecto [de] apreciação neste S.T.J., uma vez que os recursos são vocacionados para reapreciar questões e não para as apreciar ex novo», e, doutra parte, pronunciou-se pela improcedência do recurso de revista quanto à aduzida inexistência de justa causa para o despedimento, parecer que, notificado às partes, não motivou qualquer resposta.

3. No caso vertente, as questões suscitadas são as que se passam a enunciar, segundo a ordem lógica que entre as mesmas intercede:

                 Se o procedimento disciplinar foi exercido para além do prazo de 60 dias subsequentes àquele em que a entidade empregadora teve conhecimento da infracção (conclusões 5.ª a 10.ª e 19.ª, na parte atinente, da alegação do recurso de revista);
                 Se prescreveu a infracção disciplinar reportada ao facto do autor constar como sócio da Agência Funerária CC, Lda. (conclusões 11.ª a 13.ª, 15.ª e 19.ª, estas nas partes atinentes, da alegação do recurso de revista);
                 Se não ocorre justa causa para o despedimento do autor (conclusões 1.ª a 4.ª e 14.ª a 19.ª, na parte atinente, da alegação do recurso de revista).

Corridos os «vistos», cumpre decidir.

                                              II

1. Importa começar por apreciar a questão prévia que vem suscitada pela Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta neste Supremo Tribunal, sem resposta das partes, apesar de terem sido notificadas do atinente parecer, no tocante ao não conhecimento do objecto do recurso quanto às questões da caducidade do procedimento disciplinar e da prescrição da infracção disciplinar.

É certo que o autor, nos artigos 27.º a 33.º da petição inicial invoca aquelas excepções, a que a ré respondeu, nos artigos 29.º e 30.º da respectiva contestação; no entanto, o tribunal de primeira instância omitiu qualquer pronúncia acerca daquelas questões, sendo que o autor não arguiu a correspondente nulidade perante o tribunal de primeira instância, nem em sede de ampliação do âmbito do recurso de apelação, pelo que não foram examinadas no acórdão recorrido.

Ora, os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais (artigos 676.º, n.º 1, e 690.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), através dos quais se visa reapreciar e modificar decisões e não criá-las sobre matéria nova, salvo quanto às questões de conhecimento oficioso, o que não é o caso.

Assim, procede a sobredita questão prévia, pelo que este Supremo Tribunal não conhecerá das questões vertidas nas conclusões 5.ª a 13.ª, 15.ª e 19.ª, estas nas partes atinentes, da alegação do recurso de revista.

2. O tribunal recorrido deu como provados os factos seguintes:

Da petição inicial:
1) A R. é titular de uma Agência Funerária, sita na …, em S. ...;
2) Em 7 de Maio de 1991, a R., admitiu ao seu serviço, mediante contrato de trabalho verbal, para exercer as funções indiferenciadas (Tec. Serviços) mais concretamente tratar de todos os assuntos relacionados com a realização de funerais, recebendo dinheiro dos clientes e todos os serviços afins, o autor;
3) Laborando no aludido estabelecimento, de segunda a sexta das 9 horas às 12,30 horas e das 14,30 horas às 19 horas e aos sábados das 9 horas às 13 horas;
4) Mediante a retribuição mensal de € 550,00 mensais líquidos;
5) Por carta datada de 28/07/2008, a R. comunicou ao A., a sua intenção de proceder ao seu despedimento com justa causa, com base nos fundamentos indicados na nota de culpa;
6) Na nota de culpa, o A. é acusado de:
a) Ser titular de uma quota social no valor de € 250,00 da Agência Funerária CC Lda., Sociedade por Quotas com sede na Rua ..., … em ..., desde 03 de Fevereiro de 1999;
b) Que dessa sociedade obtém rendimentos;
c) Que tem interesse directo na empresa;
d) Que a sua esposa, DD, é também titular de uma outra quota de igual valor;
e) Que, na qualidade de trabalhador da R. e tendo sido contactado para realizar serviço de funeral de EE, falecido em …2008, na freguesia de ... do concelho do Porto, remeteu tal serviço para a sociedade de que é sócio;
f) Assim tendo prejudicado gravemente os interesses patrimoniais e comerciais da empresa;
g) Que requereu uma certidão de nascimento do falecido junto da C.R.C. de S.J. ... e instruído o processo;
h) Que no dia 17/07/2008, durante a manhã, no estabelecimento da R., afirmou para os familiares de FF, falecida no dia …2008, no Lar da 3.ª Idade de S. ... de que o estabelecimento da R. era muito careiro;
i) Atitude que alegam ter repetido durante a viagem ao aeroporto do Porto, para levantar o corpo de GG, falecido na Suíça, perante o irmão do falecido, HH, residente em Palmela;
j) Que o A. retirava dinheiro da caixa, sem autorização da R., imputando-lhe que a última vez que o fez foi em meados do mês de Junho de 2008, em dia não apurado, retirando € 10,00;
k) Que o A. tinha por prática corrente encerrar o estabelecimento na hora de expediente e ficar na rua ou ir para o café nas proximidades, facto que alegam ter ocorrido no dia 30/06/2008, pelas 16 horas;
7) Na nota de culpa, a R. informou o autor de que tinha concluído que o comportamento do A. tornava imediata e praticamente impossível a manutenção do vínculo laboral;
8) O A. respondeu à nota de culpa, contestando, integralmente as acusações formuladas e respectivos fundamentos, concluindo pela improcedência e imediato arquivamento do procedimento disciplinar;
9) O A. arrolou as seguintes testemunhas:
1.II;
2. JJ;
3. HH;
4. KK;
5. LL;
6. MM;
7. NN;
8. OO;
9. PP;
10. QQ;
11. RR;
12. SS;
13. TT;
10) Em 12 de Setembro de 2008, foi enviada uma comunicação ao Exmo. Sr. Instrutor do Processo no sentido de indicar as testemunhas a serem inquiridas e bem assim aos factos sobre os quais deveriam responder;
11) Marcada a inquirição de testemunhas para o dia 7 de Outubro de 2008, estiveram presentes, o mandatário da R. e a do A.;
12) Na audição das testemunhas constatou-se que o Instrutor não estava familiarizado com a tramitação do processo disciplinar e que o Instrutor não usava palavras que pudessem facilitar a compreensão dos factos pelas testemunhas;
13) O autor, por acreditar que não houve por parte do Instrutor do Processo a isenção/competência necessária para conduzir o processo disciplinar, arguiu a sua nulidade, por carta enviada 15/10/2008;
14) Foi com profunda tristeza e mágoa que o A. deixou de laborar para a R., para a qual há 17 anos vinha prestando a sua força laboral, sendo com orgulho que sempre a defendeu e a quem com honra se orgulhou de pertencer;
15) A entidade patronal, no procedimento disciplinar, informou o autor que só no dia 17.07.2008 tomou conhecimento, aquando da entrega de uma certidão do registo comercial, de que o autor era titular da quota referida em 6), a);
16) O autor é titular de uma quota no valor de € 250,00, na sociedade «Agência Funerária CC, Lda.», desde 3 de Fevereiro de 1999;
17) O nome do autor figura na sociedade não exercendo aí qualquer actividade;
18) [facto eliminado pelo Tribunal da Relação];
19) Daí a razão de figurar como sócio naquela sociedade, pois acedeu ao pedido de uma sua cunhada;
20) O autor não auferiu qualquer dividendo da sociedade Agência Funerária CC, SA, sendo que, nos termos das actas das Assembleias Gerais desta relativas à apresentação, discussão e aprovação do Balanço e Contas do Exercício referentes aos anos de 1999 a 2008 e que constam dos documentos de fls. 304 a 306, uma parte dos resultados (5%) foram afectos a reservas legais e, o restante, transferido para resultados transitados [redacção conferida pelo Tribunal da Relação];
21) Nunca negociou directamente ou por interposta pessoa qualquer actividade da sociedade;
22) [facto eliminado pelo Tribunal da Relação];
23) Existiam agências funerárias em Ervedosa do Douro, Tabuaço e Pinhão [redacção conferida pelo Tribunal da Relação];
24) A agência funerária CC situa-se em Foz Côa que dista cerca de 50 km de São ...;
25) E os principais concorrentes da R. situam-se nas suas proximidades ou seja, Ervedosa do Douro, Pinhão, Tabuaço, Penedono, que distam da vila de São ... entre 5 a 30 quilómetros;
26) A esposa do arguido não exerce qualquer actividade na citada empresa pois possui uma actividade comercial na vila de S. ...;
27) O autor, em Junho de 2008, retirou € 10,00 da caixa, a título de vale, dando conhecimento à ré, embora não estivesse autorizado a tal;
28) Tal quantia seria a descontar no vencimento mensal, constituindo uma prática habitual no seio da empresa, situação que ocorreu por mais de uma vez;
29) A partir do dia 30 de Julho de 2008, o A. deixou de trabalhar, após notificação da nota de culpa e consequente suspensão preventiva como trabalhador;
30) Tendo sido despedido, em 29-10-2008, data em que recepcionou a decisão de despedimento;
31) Nos meses de Julho a Outubro de 2008 foi paga ao autor a retribuição base de € 555,00;
32) Os recibos de vencimento sempre foram emitidos pelo valor base de € 555,00;
33) Depois do despedimento a R., pagou ao A., os seguintes valores:
      – Subsídio de férias: € 185,00;
      – Subsídio de Natal: € 462,50;
34) A instauração do procedimento disciplinar afectou a honra e consideração do autor no meio em que vive;
35) As acusações em que a ré assentou o procedimento disciplinar ofenderam a honra e consideração do autor, pessoa considerada e estimada por todos;
36) O A. sempre foi conhecido e respeitado no meio, como pessoa trabalhadora e honesta;
37) O autor sentiu humilhação e vergonha pelos factos imputados;
38) Vive num meio pequeno onde o assunto foi deveras comentado;
39) Tudo isto afectou e continua a afectar as relações do autor com familiares e amigos, que o vêem permanentemente desalentado e com grande frustração e desânimo.
Da contestação:
40) A inquirição de testemunhas arroladas pelo autor [foi presenciada] pelo Mandatário da Ré, bem como pelo Mandatário do autor;
41) As testemunhas, no essencial, afirmavam desconhecer os factos, não porque não entendiam as perguntas, mas porque desconheciam efectivamente os factos que o A. pretendia provar;
42) As perguntas eram compreendidas pelas testemunhas;
43) Não tendo havido, naquele momento, qualquer reclamação por parte destes, nem dos Mandatários presentes, em representação das partes;
44) O autor não indicou os factos a que cada uma das testemunhas haveria de responder;
45) Nem as distribui em conformidade com a prova que pretendia produzir;
46) Vindo a fazê-lo, só em 12/09/2008;
47) As rasuras foram feitas na presença das testemunhas, por elas consentidas e sugeridas e o seu depoimento só depois foi assinado;
48) No momento da inquirição, a mandatária do autor nada referiu nem reclamou;
49) A ré tomou conhecimento de que o autor enquanto seu funcionário consta como sócio da Agência Funerária CC, Lda., sociedade por quotas, com sede na Rua ..., n.º 5, ...;
50) A Gerência da empresa de que o A. é sócio é exercida pela sua cunhada (irmã da sua mulher) UU e marido VV;
51) O autor requereu certidão de nascimento do falecido EE junto da Conservatória do Registo Civil de São ...;
52) A empresa de que o autor é sócio exerce a mesma actividade de realização de funerais e colocação de campas mortuárias;
53) O A. mantém a sua quota social na empresa CC, Lda.;
54) O autor pretende abrir uma agência funerária, em S. ..., tendo já requerido em 19/11/2008 à C.M. de São ..., vistoria para o efeito numa das lojas do A., Rua …, S. J. da ...;
55) Nas declarações de rendimentos referentes aos exercícios dos anos de 2002 a 2007, que constam dos documentos que constituem fls. 163 a 224, a Ré declarou, sob a rubrica «Prestação de serviços», os seguintes valores:
– 2002: [€] 20.157,16;
– 2003: [€] 35.016,70;
– 2004: [€] 58.620,50;
– 2005: [€] 43.701,70;
– 2006: [€] 7.197,90;
– 2007: [€] 34.894,00 [facto aditado pelo Tribunal da Relação].

Eis o acervo factual a considerar para resolver a questão nuclear do recurso.

3. O recorrente defende, em substância, que os factos dados como provados nos pontos 17, 19, 20, 21, 24, 25, 26 não permitem considerar violado o dever de lealdade do trabalhador para com a empregadora, já que dos mesmos resulta que «era apenas um sócio de fachada daquela agência funerária, ficando ainda por demonstrar qualquer prejuízo por parte da entidade empregadora, nomeadamente com a actividade daquela sociedade, até porque a mesma nem sequer actuava naquela área geográfica, e ainda por demonstrar ficou a prática de qualquer acto por parte do autor que violasse os deveres de lealdade para com a entidade patronal, uma vez que [ficou demonstrado] que não ocorreu qualquer desvio de clientela, que o autor nunca exerceu qualquer actividade na Agência Funerária CC e ainda que a R. tenha sofrido qualquer prejuízo com a actividade daquela», pelo que o despedimento é ilícito, impondo-se a «condenação da R. na indemnização do A. na quantia de € 10.816,66, a título de indemnização por antiguidade, e ainda na quantia de € 2.000,00 a título de indemnização por danos morais e ainda na quantia que vier a ser liquidada, a título de retribuições que o autor deixou de auferir desde 2 de Novembro de 2008 até ao trânsito em julgado da sentença».

O tribunal de primeira instância decidiu que a matéria de facto provada não permitia concluir ter sido violado o dever de lealdade: por não se ter provado que a ré apenas tivesse tido conhecimento de que o autor era sócio da sociedade em questão na data em que promoveu o seu despedimento, sendo que sobre ela recaía o ónus da prova; porque se demonstrou ser o autor apenas um «sócio de fachada», a pedido de uma sua cunhada devido a um mero lapso quanto ao número de sócios necessários para criar uma empresa desse género; porque não se provou que a ré haja sofrido qualquer prejuízo com a actividade da referida empresa já que a mesma não actuava na mesma área geográfica da ré; e porque não se provou que o autor alguma vez haja desviado clientela ou prejudicado a ré fosse de que forma fosse.

Diversamente, o acórdão recorrido considerou que «o A. violou o dever de lealdade, na vertente da obrigação de não concorrência desleal, e que esse comportamento é susceptível de determinar a perda, por parte da Ré, da indispensável confiança depositada no Autor, assim determinando a inexigibilidade de manutenção da relação laboral e constituindo, dessa forma, o comportamento do A., justa causa para o despedimento».
3.1. A proibição dos despedimentos sem justa causa recebeu expresso reconhecimento constitucional no artigo 53.º da Lei Fundamental, subordinado à epígrafe «Segurança no emprego» e inserido no capítulo III («Direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores»), do Título II («Direitos, liberdades e garantias») da Parte I («Direitos e deveres fundamentais»).

No plano infraconstitucional, estando em causa um despedimento efectuado em 29 de Outubro de 2008, portanto, em plena vigência do Código do Trabalho de 2003, que entrou em vigor no dia 1 de Dezembro de 2003 (n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto), atento o disposto nos artigos 8.º, n.º 1, da Lei n.º 99/2003, e 7.º, n.º 1, da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, aplica-se o regime jurídico acolhido naquele Código, diploma a que pertencem os demais preceitos a citar adiante, sem menção da origem.

De harmonia com o preceituado no artigo 396.º constitui justa causa de despedimento «[o] comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho» (n.º 1).

O conceito de justa causa formulado neste normativo integra, segundo o entendimento generalizado tanto na doutrina, como na jurisprudência, três elementos: a) um elemento subjectivo, traduzido num comportamento culposo do trabalhador, por acção ou omissão; b) um elemento objectivo, traduzido na impossibilidade da subsistência da relação de trabalho; c) o nexo de causalidade entre aquele comportamento e esta impossibilidade.

Ora, verifica-se a impossibilidade prática da subsistência da relação laboral, quando se esteja perante uma situação de absoluta quebra de confiança entre a entidade patronal e o trabalhador, susceptível de criar no espírito do empregador a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta daquele.
Na concretização do critério geral para determinação da justa causa, o n.º 3 do artigo 396.º indica alguns comportamentos do trabalhador que podem configurar justa causa de despedimento, indicação que assume natureza exemplificativa.

Por outro lado, os deveres do trabalhador são listados no artigo 121.º, sendo que o incumprimento baseado no comportamento ilícito e culposo do trabalhador tanto pode proceder do desrespeito de deveres principais, como o dever de realizar o trabalho com zelo e diligência [alínea c)], de deveres secundários, como o dever de velar pela conservação e boa utilização dos bens relacionados com o seu trabalho [alínea f)], ou de deveres acessórios de conduta, deduzidos do princípio geral da boa fé no cumprimento das obrigações, acolhido no n.º 2 do artigo 762.º do Código Civil e reiterado no artigo 119.º do Código do Trabalho, figurando, entre eles, o dever de guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios [alínea e)], que são apenas afloramentos do dever de lealdade, como flui do termo «nomeadamente» aí utilizado.

Como afirma MONTEIRO FERNANDES, «em geral, o dever de fidelidade, de lealdade ou de “execução leal” tem o sentido de garantir que a actividade pela qual o trabalhador cumpre a sua obrigação representa de facto a utilidade visada, vedando-lhe comportamentos que apontem para a neutralização dessa utilidade ou que, autonomamente, determinem situações de “perigo”(-) para o interesse do empregador ou para a organização técnico-laboral da empresa(-)», sendo que «o dever geral de lealdade tem uma faceta subjectiva que decorre da sua estreita relação com a permanência de confiança entre as partes (nos casos em que este elemento pode considerar-se suporte essencial de celebração do contrato e da continuidade das relações que nele se fundam)» e que, encarado de um outro ângulo, «apresenta também uma faceta objectiva, que se reconduz à necessidade do ajustamento da conduta do trabalhador ao princípio da boa fé no cumprimento das obrigações», «com o sentido que lhe é sinalizado pelo art. 119.º/1 CT», donde promana, «no que especialmente respeita ao trabalhador, o imperativo de uma certa adequação funcional — razão pela qual se lhe atribui um cariz marcadamente objectivo — da sua conduta à realização do interesse do empregador, na medida em que esse interesse esteja “no contrato”, isto é, tenha a sua satisfação dependente do cumprimento (e do modo do cumprimento) da obrigação assumida pela contraparte» (Direito do Trabalho, 12.ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 231-234).

Tal como estipula o n.º 2 do artigo 396.º, «[p]ara apreciação da justa causa deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes».

Nesta conformidade, a determinação em concreto da justa causa resolve-se pela ponderação de todos os interesses em presença, face à situação de facto que a gerou. Há justa causa quando, ponderados esses interesses e as circunstâncias do caso que se mostrem relevantes — intensidade da culpa, gravidade e consequências do comportamento, grau de lesão dos interesses do empregador, carácter das relações entre as partes —, se conclua pela premência da desvinculação.

Por conseguinte, o conceito de justa causa liga-se à inviabilidade do vínculo contratual, e corresponde a uma crise contratual extrema e irreversível.

Refira-se que, na acção de impugnação do despedimento, o ónus probatório cabe ao trabalhador quanto à existência do contrato de trabalho e ao despedimento, recaindo sobre o empregador quanto à verificação da justa causa de despedimento (artigos 342.º, n.os 1 e 2, do Código Civil e 435.º, n.os 1 e 3, do Código do Trabalho).

3.2. Resulta da matéria de facto provada que a ré é titular de uma Agência Funerária, sita na Av. ..., em S. ..., e que, em 7 de Maio de 1991, admitiu o autor ao seu serviço, mediante contrato de trabalho verbal, para exercer funções indiferenciadas (Tec. Serviços) mais concretamente tratar de todos os assuntos relacionados com a realização de funerais, recebendo dinheiro dos clientes e todos os serviços afins [factos provados 1) e 2)].

Também se apurou que:

             «16) O autor é titular de uma quota no valor de € 250,00, na sociedade «Agência Funerária CC, Lda.», desde 3 de Fevereiro de 1999;
               17) O nome do autor figura na sociedade não exercendo aí qualquer actividade;
               19) Daí a razão de figurar como sócio naquela sociedade, pois acedeu ao pedido de uma sua cunhada;
               20) O autor não auferiu qualquer dividendo da sociedade Agência Funerária CC, SA, sendo que, nos termos das actas das Assembleias Gerais desta relativas à apresentação, discussão e aprovação do Balanço e Contas do Exercício referentes aos anos de 1999 a 2008 e que constam dos documentos de fls. 304 a 306, uma parte dos resultados (5%) foram afectos a reservas legais e, o restante, transferido para resultados transitados;
               21) Nunca negociou directamente ou por interposta pessoa qualquer actividade da sociedade;
               23) Existiam agências funerárias em Ervedosa do Douro, Tabuaço e Pinhão;
               24) A agência funerária CC situa-se em … que dista cerca de 50 km de São ...;
               25) E os principais concorrentes da R. situam-se nas suas proximidades ou seja, Ervedosa do Douro, Pinhão, Tabuaço, Penedono, que distam da vila de São ... entre 5 a 30 quilómetros;
               26) A esposa do arguido não exerce qualquer actividade na citada empresa pois possui uma actividade comercial na vila de S. ...;
               27) O autor, em Junho de 2008, retirou € 10,00 da caixa, a título de vale, dando conhecimento à ré, embora não estivesse autorizado a tal;
               28) Tal quantia seria a descontar no vencimento mensal, constituindo uma prática habitual no seio da empresa, situação que ocorreu por mais de uma vez;
               50) A Gerência da empresa de que o A. é sócio é exercida pela sua cunhada (irmã da sua mulher) UU e marido VV;
               52) A empresa de que o autor é sócio exerce a mesma actividade de realização de funerais e colocação de campas mortuárias;
               53) O A. mantém a sua quota social na empresa CC, Lda.»

Face ao mencionado acervo factual, impõe-se concluir que o trabalhador, com o comportamento adoptado, violou, culposamente e de forma grave, o dever de guardar lealdade ao empregador, previsto no artigo 121.º, n.º 1, alínea e), do Código do Trabalho aplicável, na dimensão de não concorrência desleal, e que tal conduta, nas circunstâncias concretas apuradas, tornou, pela sua gravidade e consequências, imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral.

Na verdade, tal como foi decidido no acórdão recorrido:

                    «4.2.2. No caso, o A. era sócio de uma outra sociedade com objecto social idêntico ao da Ré, ambas se dedicando à mesma actividade. Ora, afigura-se-nos que tal facto é, em si mesmo e em abstracto, susceptível de configurar concorrência desleal e violação do dever de lealdade, tanto mais que nem o A. alegou, ou se provou, que tivesse dado conhecimento de tal facto à ré, informação que se lhe impunha que tivesse prestado à ré em observância dos seus deveres de lealdade, boa-fé e transparência. Por outro lado, entendemos que era ao A. que competia o ónus de alegar e provar que a Ré já tinha, desde momento anterior ao do procedimento disciplinar, conhecimento de tal facto e/ou de que, ao menos, lho havia comunicado quando se tornou sócio da sociedade CC.
                      O A., ao constituir-se como sócio de tal sociedade, e ainda que não haja praticado actos de desvio de clientela, colocou-se em posição de poder, enquanto sócio dessa sociedade, concorrer com a actividade da Ré e de, com isso, fundar legítima dúvida quanto à idoneidade do seu comportamento. E a isso nem obsta a circunstância de ambas as sociedades terem sede em áreas geográficas distintas. Nada na lei impede que a Ré actue em ... ou que a Agência Funerária CC actue em S. ..., sendo que nem a distância, de cerca de 50 km, entre as duas localidades  é assim tão grande que inviabilize a actuação dessas empresas na área em que não têm a sua sede.
                      Por outro lado, mas não menos importante, não se provou a justificação invocada pelo A. para se ter tornado sócio da referida sociedade, justificação essa que, como já se disse em sede de reapreciação da matéria de facto e para onde se remete, não tinha cabimento. O A. era sócio de tal sociedade desde 1999, sendo que, apenas em Agosto de 2001, com o DL 206/2001, de 27.07, é que se tornou obrigatória a existência de quatro trabalhadores. E, para além disso, tal exigência foi revogada em 2005 (DL 41/2005, de 18.02), pelo que a ser, por aquela razão, mero “sócio de fachada”, poderia e deveria, então, ter deixado de o ser, o que, não obstante, não ocorreu.
                      Por fim, é irrelevante que não se tenha provado a existência ou inexistência de rendimentos retirados da actividade da sociedade CC e, bem assim, que se tenha provado que o A. não retirou dividendos. A violação do dever laboral de não fazer concorrência desleal ao empregador ocorre mesmo que da actividade não se retire rendimento e, quanto aos dividendos, se o A. os não retirou foi porque assim foi deliberado pelos sócios, entre os quais, na maioria das assembleias gerais (de 2000 e de 2003 a 2008), o A. se encontrava presente.
                      Entendemos, pois, que o A. violou o dever de lealdade, na vertente da obrigação de não concorrência desleal, e que esse comportamento é susceptível de determinar a perda, por parte da Ré, da indispensável confiança depositada no Autor, assim determinando a inexigibilidade de manutenção da relação laboral e constituindo, dessa forma, o comportamento do A., justa causa para o despedimento.
                      Refira-se que à justa causa do despedimento não obsta a antiguidade do A., tendo em conta a gravidade do comportamento que, aliás e diga-se, perdurou por largo período de tempo, e sendo certo que a quebra da confiança não admite graduações.
                      Assim sendo, e nesta parte, procedem as conclusões do recurso, devendo a sentença recorrida ser revogada no segmento que tem por objecto a declaração da ilicitude do despedimento e a condenação da Ré nas consequências legais daí decorrentes (indemnização de antiguidade e retribuições que o A. deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da sentença) e a Ré absolvida de tais pedidos.
                      5. Quanto à segunda das imputações efectuadas ao A., da matéria de facto provada resulta que o A., em Junho de 2008, retirou € 10,00 da caixa, a título de vale, dando conhecimento à ré, embora não estivesse autorizado a tal, quantia essa que seria a descontar no vencimento mensal, constituindo uma prática habitual no seio da empresa, situação que ocorreu por mais de uma vez.
                      Afigura-se-nos que tal comportamento, embora não constitua justa causa para o despedimento (uma vez que tal ocorreu com o conhecimento da Ré, teve lugar a “título de vale” e seria descontado na retribuição), consubstancia todavia infracção disciplinar, na medida em que, embora com o conhecimento da Ré, o A. a isso não estava autorizado.»

Tudo ponderado, sufragam-se as considerações transcritas e confirma-se o julgado, neste preciso segmento decisório.

3.3. E não se diga que os factos provados 17), 19), 20), 21), 24), 25) e 26) «são aptos a afastar a imputada infracção de exercício de concorrência desleal».

Na verdade, tal como é reconhecido pela doutrina, para que haja violação do dever de não concorrência por parte do trabalhador não é necessário que se verifique um desvio efectivo da clientela ou parte da clientela do empregador, «bastando um desvio meramente potencial» (JÚLIO GOMES, Direito do Trabalho, vol. I, Relações Individuais de Trabalho, Coimbra Editora, 2007, pp. 535), sendo que, como refere ROMANO MARTINEZ, «viola o dever de não concorrência, o trabalhador que, pela sua actuação, tenha potenciado um desvio de clientela», não se exigindo «que exista um prejuízo efectivo para o empregador, nem este tem de fazer prova de um desvio de clientela» (Direito do Trabalho, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, p. 500), porque, no confronto de uma situação concreta com o dever de não concorrência, o requisito elementar da hipótese de concorrência reside na «possibilidade factual do desvio de clientela», conforme sublinha MONTEIRO FERNANDES (ob. cit., p. 237) ― e tal possibilidade verifica-se no caso concreto, como evidencia o aresto recorrido.

Refira-se que, nesta mesma linha de entendimento, este Supremo Tribunal tem vindo a entender que a violação do dever de lealdade, na dimensão da proibição de concorrência, não exige ou implica a efectividade de prejuízos para o empregador, nem o efectivo desvio de clientela, sendo suficiente um desvio potencial (cf., entre os mais recentes, os acórdãos de 9 de Abril de 2008, Processo n.º 3388/07, e de 10 de Setembro de 2008, Processo n.º 722/08, da 4.ª Secção, disponíveis em www.dgsi.pt, documentos n.os SJ20080409033884 e SJ20080910007224, respectivamente).

Neste contexto, o autor, com o seu comportamento grave e culposo, pôs em crise a permanência da confiança em que se alicerçava a relação de trabalho e que, insubsistindo, torna imediata e praticamente impossível a respectiva manutenção, que não é razoável exigir à empregadora, verificando-se justa causa para o despedimento.

É, assim, lícito o despedimento, não tendo o autor direito a receber qualquer compensação, nem indemnização em substituição da reintegração ou por danos não patrimoniais, porquanto tais efeitos dependem da ilicitude do despedimento (artigos 429.º, 436.º, 437.º e 439.º do Código do Trabalho de 2003), pelo que improcedem as conclusões 1.ª a 4.ª e 14.ª a 19.ª, na parte atinente, da alegação do recurso de revista.

                                             III

Pelo exposto, decide-se negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas da revista a cargo do recorrente.

Anexa-se o sumário do acórdão, nos termos do artigo 713.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto.

Lisboa, 12 de Setembro de 2012


Pinto Hespanhol (Relator)

Fernandes da Silva

Gonçalves Rocha