Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
158/2000.L1.S1.
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SILVA GONÇALVES
Descritores: USUCAPIÃO
BOA FÉ
POSSE TITULADA
CONTRA-PROMESSA
TRADITIO
INVERSÃO DO TITULO DE POSSE
PUBLICIDADE DO REGISTO
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
DIREITO DE RETENÇÃO
PROCURAÇÃO
Data do Acordão: 03/01/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1. A presunção derivada do registo cede mesmo relativamente a terceiros pela aquisição fundada em usucapião.

2. A propriedade conferida com base na usucapião não está dependente de qualquer outro circunstancialismo juridicamente relevante que surja ao lado do seu processo aquisitivo e que só aparentemente poderá interferir neste procedimento de consignação de direitos; porque se trata de uma aquisição originária, o decurso do tempo necessário à sua conformação faz desaparecer todas as incidências que neste processo eventualmente possam ter surgido.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA, LDA., pessoa colectiva n.º 0000000000, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Loures sob o número 0000 e com sede na Avenida ........... Quinta ..........., Sacavém, instaurou, em 10/03/2000, a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário (reivindicação de propriedade) contra BB, residente na ..........., n.º........., ........, Costa da Caparica, pedindo, em síntese, que o Réu seja condenada no reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a aludida fracção, na respectiva entrega do imóvel e no pagamento de indemnização, a título de danos pela privação do uso da fracção, correspondente a quantia de Esc. 100.000$00, por cada mês - contados desde a data da aquisição e até à efectiva entrega - acrescida de juros de mora sobre tal montante.

*
A Autora, alega, para tanto e em síntese, o seguinte:

1) Ser proprietária da fracção autónoma que corresponde ao ......., letra ......., T............, parte habitacional, Bloco ......, sito na ............., n.º .........., Costa da Caparica, por a ter adquirido, em 27/8/98, no âmbito de processo de execução fiscal, em que era executada a sociedade CC, LDA.".

2) O Réu é detentor da aludida fracção por a ter ocupado sem qualquer título contra a vontade da aludida sociedade, sua anterior proprietária.

3) Desde que adquiriu a fracção que solicita ao Réu a sua entrega, o que até à presente data ainda não ocorreu.

Citado o Réu BB através de carta registada com Aviso de Recepção (fls. 47 e 48), veio o mesmo contestar a acção nos moldes constantes de fls. 49 e seguintes, alegando, em síntese, que, em 14/4/78, celebrou contrato-promessa com a anterior proprietária, no qual prometeu comprar e esta prometeu vender-lhe a fracção aqui em causa, pelo preço de Esc. 1.350.000$00, o qual foi integralmente pago.

Desde essa mesma data que passou a ocupar a casa, o tem feito de forma ininterrupta até à presente data, actuando sempre como seu proprietário.

Por a então vendedora lhe ter comunicado, em 1980, que não podia celebrar o contrato definitivo por não dispor da quantia necessária para pagar o distrate da hipoteca, aceitou o aumento do preço para Esc. 3.350.000$00, sendo então celebrado um novo contrato.

Nessa ocasião foi paga a diferença de preço, não tendo, porém, por factos imputáveis a vendedora, celebrado a respectiva escritura pública.

Conclui, pois, que adquiriu a propriedade da aludida fracção por usucapião, o que, em reconvenção, pede que seja reconhecido e declarado.

E, mesmo que assim não se entenda, a presente acção terá de improceder, pois foi-lhe reconhecido judicialmente, o direito de retenção sobre a aludida fracção para garantia do dobro do que prestou.

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A Autora apresentou réplica, nos termos constantes de fls. 72 e seguintes, na qual impugnou os factos alegados pelo Réu, que integrariam a excepção peremptória invocada bem como fundariam o pedido reconvencional formulado e, nessa medida, pediu que fosse julgada improcedente, quer aquela como a reconvenção deduzida pelo mesmo.
Veio então a ser designada Audiência Preliminar, onde foi proferido despacho saneador, que consta de fls. 141 e seguintes, onde foi admitida a referida reconvenção, fixada a Matéria de Facto Assente e elaborada a Base Instrutória (32 artigos), que não foram objecto de recurso mas sim de reclamação pela Autora, no início da Audiência de Discussão e Julgamento, que foi indeferida, por não admissível processualmente, conforme ressalta de fls. 269 a 271.
As partes ofereceram os seus meios de prova, tendo a Autora requerido a gravação da Audiência de Discussão e Julgamento, o que foi deferido pelo tribunal de 1.ª instância (fls. 152 a 155 e 157, 159 a 162 e 178 e 179).
Procedeu-se à realização da Audiência de Discussão e Julgamento com observância do legal formalismo (fls. 267 a 273, 304 a 306 e 32 e 323), tendo os artigos da Base Instrutória merecido as respostas constantes de fls. 324 a 327, que foram objecto de reclamação pelo Réu, tendo o erro de escrita invocado sido rectificado.
A Autora apresentou alegações de direito, conforme resulta de fls. 331 e seguintes.             
*

Foi então proferida a sentença de fls. 380 e seguintes, datada de 16/02/2005, onde foi decidido o seguinte:

Pelo exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e julga-se improcedente a reconvenção e, consequentemente:

- Condena-se o Réu a reconhecer o direito de propriedade da Autora sobre a fracção em causa;

- Condena-se o Réu a restituir de imediato à Autora a referida fracção, livre e desocupada de pessoas e bens, no estado que a ocupou;

- Condena-se o Réu a pagar à Autora uma indemnização correspondente a Euros 374,10 por cada mês de ocupação da fracção, desde 01/02/2000 até efectiva entrega da fracção liquidando-se a indemnização devida nesta data em Euros 22.446 (vinte e dois mil quatrocentos e quarenta e seis Euros);

- Condena-se o Réu a pagar juros de mora, calculados de acordo com a taxa supletiva legal, sobre a quantia em dívida, desde a data do vencimento de cada mensalidade até integral pagamento;

- Absolve-se a Autora do pedido reconvencional contra si deduzido.

Custas por Autora e Réu na proporção do respectivo decaimento.

Registe e Notifique”. 


*
O Réu veio, a fls. 396 e em 07/03/2005, interpor recurso de apelação desta sentença judicial, que depois de admitido, a fls. 398, seguiu a sua normal tramitação, com a apresentação de alegações a fls. 409 a 425 (Réu) e 428 a 476 (Autora) e sua subida a este Tribunal da Relação de Lisboa, onde veio a ser julgado através do Acórdão de fls. 488 a 505, datado de 20/03/2007, que, em síntese, decidiu o seguinte:

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a sentença recorrida, pelo que julgam improcedente a acção, absolvendo em conformidade o Réu dos pedidos contra ele deduzidos. Julgam ainda procedente o pedido reconvencional e, em consequência, declaram reconhecida a aquisição da propriedade, pelo Réu, por usucapião, sobre a fracção......,...... andar, letra....., ........ zona, parte habitacional, Bloco Poente ou Bloco ....., do prédio sito na............, n.°...., Costa da Caparica, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Almada, sob a ficha n.° 00000000, freguesia da Costa da Caparica, declarando extinto o direito da Autora sobre o referido imóvel e ordenando o cancelamento da respectiva inscrição (apresentação 0000000000).

Custas (do recurso e da acção) pela Autora.”

*
A Autora, inconformada com tal Aresto do Tribunal da Relação de Lisboa interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 515) que, depois de ter sido admitido (fls. 517) e instruído com as alegações das partes (fls. 521 a 574 e 598 a 607, veio a ser decidido por Acórdão de fls. 622 e seguintes e com data de 6/11/2007, nos moldes seguintes:    

Em conformidade o exposto, decide-se:

- Ordenar a baixa do processo a Relação para ampliação da matéria de facto no sentido de se apurar a intenção das partes no acto de tradição e exercício dos poderes de facto sobre o andar entregue, como ficou mencionado, e para novo julgamento da causa, de harmonia com o disposto no citado n.º 2 do art.º 730.º.

- Colocar as custas do recurso sobre as Partes (uma ou ambas) segundo o critério que vier a ser fixado a final.”

*
Tendo o processo baixado ao Tribunal da Relação de Lisboa, veio esta a proferir o Acórdão de fls. 643 a 645, datado de 4/03/2008, com o seguinte teor decisório:
“Assim sendo e em obediência ao douto Acórdão do STJ, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em anular a decisão de 1.ª instancia a fim de se proceder à ampliação da matéria de facto, aditando a matéria seleccionada na base instrutória os pontos assinalados nos termos e para os fins referidos naquele Acórdão do STJ.”
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Os presentes autos baixaram então ao tribunal da 1.ª instância, onde, em obediência ao determinado pelo tribunal de recurso, aditou a Base Instrutória de fls. 144 a 147 com mais 8 artigos, que não foram objecto de reclamação por Autora e Réu, e realizou, com observância do legal formalismo, Audiência de Discussão e Julgamento complementar (fls. 732 e 733 e 759 a 763), depois de admitir, a fls. 679, os Requerimentos de Prova apresentados pelas partes em cumprimento do disposto no artigo 512.º do Código de Processo Civil (fls. 660 e 669 a 671).
A nova factualidade controvertida mereceu a Decisão sobre a Matéria de Facto constante de fls. 776 e 77, que não foi alvo de reclamação pelas duas partes presentes.
As partes apresentaram alegações de direito, nos termos do artigo 657.º do Código de Processo Civil, conforme ressalta de fls. 781 a 801 (Autora) e 802 e seguintes (Réu).
Foi então proferida nova sentença, a fls. 822 e seguintes, com data de 6/08/2010, em que, em síntese, foi decidido o seguinte:

“Face ao exposto, julga-se a presente acção improcedente por não provada e, em consequência absolve-se o Réu dos pedidos contra si formulados.

Julga-se a acção reconvencional procedente, por provada e, em consequência, decide-se:

a) Reconhecer a aquisição da propriedade pelo Réu, por usucapião, sobre a fracção "....", ..... Andar, letra ..., ........ zona, parte habitacional, Bloco Poente ou Bloco ..., do prédio sito na............, n.º...., Costa da Caparica, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Almada, sob a ficha n.º 00000000000, freguesia da Costa da Caparica;

b) Declarar extinto o direito da Autora sobre o referido imóvel a ordenando o cancelamento da respectiva inscrição (apresentação 00000000).

Custas a cargo da Autora. Registe e notifique.”

Inconformada, recorreu a autora para a Relação de Lisboa que, por Acórdão datado de 06.10.2011 (cfr. fls. 900 a 922), confirmou a sentença recorrida.   

 Novamente inconformada recorreu para este Supremo Tribunal a autora AA, LDA, apresentando as seguintes conclusões:

     1. O acórdão recorrido não fez a correcta aplicação e interpretação do direito aos factos dados como assentes; Já que,

     2. Não é a simples assinatura de um contrato-promessa, ainda que acompanhada do pagamento da totalidade do preço e da tradição da coisa prometida, que origina, por si só, a existência de uma posse caracterizada pelo "corpus" e "animus";

     3. E não é pelo facto de, concomitantemente à assinatura de um contrato promessa o Recorrido ter pago o preço total da coisa e de se ter dado a tradição, sobretudo nas circunstâncias em que tal ocorreu - demonstrativas de uma total ausência do elemento subjectivo - que a utilização da fracção poderá ser interpretada como consubstanciando uma posse conducente à aquisição por usucapião;

     4. E mesmo havendo pagamento integral do preço, não demonstrou ser merecedor do tratamento EXCEPCIONAL que a jurisprudência e a doutrina vêm reconhecendo em alguns casos específicos e especiais, dado que não fez prova de quaisquer outros factos que evidenciassem um animus próprio de quem age investindo na titularidade de um direito de propriedade, não tendo por isso, uma verdadeira posse tendente à aquisição por usucapião. Isto é, não fez prova dos factos integrantes do conceito de posse;

     5. Pelo contrário, está abundantemente provado nos autos que o RECORRIDO sempre agiu como mero detentor da fracção desde 1978, quando:

       a. O promitente vendedor entregou as chaves da fracção e anuiu na sua utilização por mera tolerância;

       b. O Recorrido iniciou a utilização da fracção por mera autorização do promitente vendedor e, assim, sabendo que estava a utilizar o imóvel mediante autorização e por mera tolerância do promitente vendedor;

       c.  O Recorrido depois de celebrar em 1978 um contrato no qual pagou 1.350.000$00, celebrou um novo contrato promessa em 1980, tendo ali pago o preço da fracção na sua totalidade, o que revela que até à celebração do segundo contrato seria um mero detentor;

       d. Sempre foi intenção do Recorrido celebrar a escritura prometida;

       e. Nunca pagou Sisa, nem provou que pagou quaisquer outras despesas inerentes à propriedade ou utilização do imóvel,

       f.   Intentou em 22 de Novembro de 1985 uma acção de condenação contra a promitente vendedora, pedindo a restituição do sinal em dobro e o reconhecimento do direito de retenção sobre a fracção pelo crédito resultante do incumprimento definitivo do contrato-promessa; em consequência,

       g. Requereu a resolução do contrato promessa, o que a sentença veio a declarar; e,

       h. Executou a sentença, registando uma penhora sobre a referida fracção, em 16.12.1988, para garantia do crédito resultante do inadimplemento do contrato promessa;

       i.   O entendimento do Tribunal da Relação levaria então à absurda situação em que ao Recorrido seria reconhecido um direito de aquisição da fracção por usucapião - como injustificadamente pretende - e, simultaneamente, o direito ao sinal em dobro - como lhe foi reconhecido pela sentença cuja acção entrou em Tribunal em 22.11.85;

       j.   Após o reconhecimento do direito de retenção, a posse que o Recorrido faz da fracção é necessariamente precária, na medida em que passa a deter a coisa só até que seja obtido o pagamento do crédito - a voluntas está afastada do pensamento e atitude do Recorrido;

       k. A fracção foi objecto de três penhoras, uma das quais registada pelo Recorrido, e em todas elas foi nomeado um terceiro como fiel depositário a quem foi confiada a fracção, o que interromperia qualquer prazo que eventualmente estivesse em cômputo;

       1. O Recorrido aceitou uma procuração irrevogável com poderes a seu favor para realizar a escritura prometida consigo mesmo.

     6. Quando aceitou a procuração, em 16.06.1993, cessou o direito de retenção que o Recorrido detinha sobre a fracção, passando então a detenção a ser ilegítima; a não se entender assim,

     7. Por ter havido venda judicial (compra da Recorrente) - nos termos do n.º 2 do art.° 824 do C.Civil - a fracção foi vendida livre de direitos e garantias que a oneravam e, por assim ser, extinguiu-se o direito de retenção e com ele, passando a detenção que o Recorrido fazia da fracção, a ser ilegítima e abusiva;

     8. Por assim ser, é devida indemnização à Recorrente pela utilização que o Recorrido fez da fracção a partir da data em que foi interpelado para a devolução, em 01.02.2000, com os respectivos juros;

     9. O Recorrido nunca inverteu o título da posse de forma a transformar a mera detenção em posse. Assim sendo, nunca poderia adquirir o direito real de propriedade através da usucapião.

     10. Posto isto, fez o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa incorrecta interpretação e aplicação do disposto nos artigos 1251, 1253, 1258, 1259, 1260,1263,1287,1290,1295 do C. Civil. Pelo que,

     11. O douto acórdão recorrido decidiu mal ao julgar procedente a apelação e, em consequência, ao considerar a acção improcedente.

     Termina pedindo que seja revogado o acórdão recorrido e, em consequência, seja julgada a acção procedente.


Contra-alegou o recorrido BB pedindo a manutenção do decidido.

     Corridos os vistos legais cumpre decidir.


         As instâncias consideraram provados os factos seguintes:

1 - O direito de aquisição da fracção correspondente ao .... andar .... - .... zona parte habitacional - Bloco Poente ou Bloco .... - destinado a habitação, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Almada, sob o n.º0000000000000, encontra-se inscrito a favor da Autora desde 27/8/1998, por compra a CC, LDA." - Alínea A);

2 - Por escritura pública de 15/6/98, realizada no 2.º Cartório Notarial de Setúbal, DD e EE, na qualidade de gerente da sociedade "FF - ESTABELECIMENTO DE LEILÕES, LDA." que outorga na qualidade de mandatário judicial nos autos de execução fiscal n.º 0000000000, em que é penhorada da sociedade "CC, LDA.", e GG e HH, que outorgam na qualidade de gerentes e em representação da sociedade "AA, LDA" declararam os primeiros que, pelo preço de Esc. 34.225.000$00, que declararam já recebido, vendem à sociedade representante dos 2.ºs outorgantes, entre outras fracções identificadas na respectiva escritura, a fracção autónoma designada pelas letras "FT" correspondente ao... andar ... – 3.ª zona parte habitacional, Bloco...., destinada a habitação, com o valor patrimonial correspondente a 1.018.368$00 e que corresponde ao preço de sete milhões, quinhentos e cinquenta mil escudos, e os segundos declaram que aceitam para a sociedade, sua representante, o presente contrato - Alínea B);

3 - Por acordo escrito datado de 14/4/78, CC, LDA., como promitente vendedor e BB, como promitente-comprador, declaram entre si celebrar o contrato promessa de compra e venda constante de fls. 61 dos autos, nos termos do qual a primeira contraente declarou ser dona do .... andar ..... Bloco ..... - ...., sito no centro cívico das Terras da Costa da Caparica, e nessa qualidade promete vender ao segundo contraente o referido andar pelo preço de Esc. 1.350.000$00, declarando ter recebido nessa data como sinal e pagamento total a quantia de Esc. 1.350.000$00 - Alínea C);

4 - Consta ainda do acordo referido em C) que a escritura de compra e venda será celebrada no prazo de 90 dias a contar da data de registo da constituição da propriedade horizontal na respectiva Conservatória e que "a cave do edifício não faz parte dos bens comuns do prédio pelo que este contrato não dá qualquer posse na referida área" e ainda que "todos os encargos com a transacção, serão da conta do promitente-comprador, assim como a sua quota-parte das despesas com a manutenção do prédio logo que elas existam, nomeadamente: taxa de saneamento, Contribuição Predial, ordenado da porteira, conservação de elevadores, energia eléctrica, etc." - Alínea D);

5 - Por acordo escrito datado de 21/7/80, CC, LDA., como promitente vendedor e BB, como promitente-comprador, declaram entre si celebrar o contrato promessa de compra e venda constante de fls. 108 dos autos, nos termos do qual a primeira contraente declarou ser dona do ...Andar .... - Bloco ..... - A, sito no centro cívico das Terras da Costa da Caparica, e nessa qualidade promete vender ao segundo contraente o referido andar pelo preço de Esc. 3.350.000$00, declarando ter recebido nessa data como sinal e pagamento total a quantia de Esc. 3.350.000$00 - Alínea E);

6 - Do acordo referido em E), consta ainda:

- A escritura será celebrada até ao dia 21/7/81, devendo a promitente vendedora avisar o promitente-comprador, com pelo menos 8 dias de antecedência, do local e hora;

- A cave do edifício não faz parte dos bens comuns do prédio pelo que este contrato não dá qualquer posse na referida área. Além da cave, toda a zona comercial e terraços da mesma, ao nível do 1.º andar poderão sofrer as alterações que convenham à 1.ª promitente, dando-lhe esta o destino que entender, podendo até nestas áreas comuns, ceder acessos a outros prédios.

- As áreas comuns poderão também ser alteradas de acordo com os interesses da promitente vendedora.

- Todos os encargos com a transacção, serão da conta do promitente-comprador que fica autorizado desde já a ocupar o andar - Alínea F);

7 - A constituição da propriedade horizontal relativa ao prédio onde se integra a fracção referida em A), foi registada em 11/9/79 - Alínea G);

8 - Em 19/9/86 foi registada uma penhora sobre a fracção referida em A), efectuada em 18/9/86, em execução movida pela Fazenda Nacional contra CC, LDA. - Alínea H);

9 - Em 27/1/94 foi registada uma penhora sobre a fracção referida em A), efectuada em 30/11/93, em execução movida pela Fazenda Nacional contra CC, LDA. – Alínea I);

10 - A fracção descrita em A) corresponde à fracção "FT" - art. 1.º;

11 - Os Réus têm habitado a fracção, dela retirando proveitos próprios - art.º 3.º;

12 - Contra a vontade da Autora - art.º 6.º;

13 - O valor das rendas correntes no mercado habitacional para uma fracção equivalente à fracção referida em A) é de cerca de 75 a 80 mil escudos - art.º 8.º;

14 - Desde a aquisição da fracção que a Autora tem contactado os Réus para que este procedessem à entrega daquela, livre e devoluta de pessoas e bens - art.º 9.º;

15 - O mandatário judicial da Autora enviou carta registada ao Réu, com aviso de recepção, para que este devolvesse a fracção que ocupa - art.º 10.º;

16 - Os Réus não responderam a tal carta que foi devolvida com indicação de "não reclamada" mas com aviso de recepção assinado e datado - art.º 11.º;

17 - Os Réus também não responderam a carta que com o mesmo conteúdo lhes foi enviada, sob registo, datada de 1/2/2000 - art.º 12.º;

18 - O preço da prometida venda, referida em C), no valor de Esc. 1.350.000$00, foi pago integralmente no acto de outorga do contrato dando a vendedora quitação - art.º 13.º;

19 - A escritura de compra e venda não foi logo celebrada por não estar ainda registada a constituição de propriedade horizontal sobre o prédio, o que só veio a acontecer em 11/9/1979 - art.º 14.º;

20 - Uma vez que o preço estava integralmente pago, o andar pronto a habitar e a casa que o Réu habitava anteriormente (sótão do Café ........) prestes a ser demolida para construção de um novo edifico (o actual edifício ........), a vendedora entregou ao Réu, naquela data, as chaves do andar - art.º 15.º;

21 - Razão pela qual foi estipulada a cláusula 7.ª do contrato referido na al. D) - art.º 16.º;

22 - Pelo que o Réu, a sua falecida mulher e a recém-nascida filha do casal, II, mudaram de imediato para o andar dos autos, nele passando a ter instalada a sua economia familiar - art.º 17.º;

23 - Aí dormindo, tomando as suas refeições e recebendo os seus amigos e familiares, desde então - art.º 18.º;

24 - Aí nasceu o 2.º filho do casal -JJ - art.º 19.º;

25 - Aí faleceu a sua mulher - art.º 20.º;

26 - Aí tem o Réu continuado, ininterruptamente, a viver com os dois filhos e com a sua mãe que, após a morte da sua mulher, veio viver com ele - art.º 21.º;

27 - Entretanto, em 1980, a vendedora, alegando não poder celebrar a escritura do andar por não ter disponibilidade para pagar o distrate da hipoteca que onerava o prédio, propôs ao Réu uma correcção do preço de venda do andar, uma vez que o imobiliário se tinha entretanto valorizado - art.º 22.º;

28 - O Réu aceitou o aumento do preço, que passou a Esc. 3.350.000$00, tendo sido celebrado um segundo contrato, tendo o Réu pago de imediato a diferença e o vendedor dado a quitação da totalidade do novo preço - art. 23°;

29 - Mantendo-se o Réu e a sua família na utilização ininterrupta do andar dos autos desde 1978 - art.º 24.º;

30 - A vendedora continuou porém a não outorgar a escritura nem expurgou a respectiva hipoteca - art.º 25.º;

31 - O Réu alertou a leiloeira "FF, ESTABELECIMENTOS DE LEILÕES, LDA" que outorgou a escritura referida em B), para a situação como mandatária para a venda, através de carta registada com A/R, em 12/10/1995 - art.º 26.º;

32 - Foi unicamente a grave situação económica e financeira da CC LDA. que não permitiu distratar a hipoteca e posteriormente levantar a penhora e outorgar a escritura definitiva como foi sempre sua intenção - art.º 27.º;

33 - A sociedade vendedora chegou mesmo, posteriormente, a outorgar procuração irrevogável a favor do Réu, mandatando-o para celebrar escritura de venda do andar consigo próprio, confirmando de novo que as contas entre ambos estavam regularizadas - art.º 28.º;

34 - O Réu não pagou a SISA que era devida - art.º 30.º;

35 - O Réu requereu a penhora da fracção referida em A), no processo n.º 1087/85 que correu termos na 1.ª Secção do 3.º Juízo Cível da Comarca de Almada, não tendo sido nomeado depositário, mas sim um terceiro - art.º 31.º;

36 - O Réu tinha conhecimento das penhoras efectuadas sobre o andar referido em A) - art.º 32.º;

37 - Na data referida em C), a sociedade "CC"entregou as chaves da fracção aqui em causa ao Réu - art.º 33.º;

38 - Desde a data mencionada no artigo que antecede, o Réu passou a viver na fracção - art.º 34.º;

39 - No convencimento de que esse andar lhe pertencia - art.º 35.º;

40 - O que ocorreu de forma continuada - art.º 36.º;

41 - À vista de toda a gente - art.º 37.º;

42 - Sem a oposição de ninguém, à excepção da Autora, nos moldes da presente acção - art.º 38.º;

43 - Os condóminos, vizinhos, amigos e conhecidos do Réu consideram-no dono do andar dos autos - art.º 39.º;

44 - No momento em que outorgou o contrato referido em C) e recebeu da CC, LDA. o andar dos autos, o Réu actuou no convencimento de que não lesava o direito de outrem - art.º 40.º.

               São estas as questões postas no recurso:

     1. Saber se estão verificados, a favor do recorrido, os requisitos de aquisição da propriedade do imóvel reivindicado pelo recorrente;

      2. Averiguar se estão conferidos os pressupostos legais referentes ao pedido de reivindicação do imóvel formulado pela sociedade recorrente.

     Questiona a recorrente que, conforme foi entendimento das instâncias, o réu tenha adquirido, por força da posse continuada do prédio desde 14.4.1978 e do instituto da usucapião, o direito de propriedade sobre o prédio que a demandante reivindica, sobrepondo-se tal aquisição originária à aquisição derivada decorrente da venda judicial do mesmo prédio à autora.

Vejamos se lhe assiste razão.

I. De acordo com o art. 1251° do Código Civil, a posse é concebida como o poder de facto que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.

A lei portuguesa veio consagrar, assim, a concepção subjectivista de posse,[1] sendo possuidor aquele que, actuando por si ou por intermédio de outrem (art. 1252° n.º l CC), além do "corpus" possessório tem também o "animus possidendi" que se caracteriza pela intenção de exercer sobre a coisa um direito real próprio.

Distingue a lei diferentes espécies de posse - titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta (art.º 1258.º do C.Civil) - a cada uma delas ligando efeitos também diversificados.

A este propósito saliente-se que, como está consagrado no artigo 1287.º do C.Civil, "a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião".

Quer isto dizer que a usucapião, uma forma de constituição de direitos reais, designadamente o direito de propriedade, apoia-se numa situação de posse - corpus e animus - exercida em nome próprio, durante os períodos estabelecidos na lei e revestindo os caracteres que a lei lhe fixa, pública, contínua, pacífica, titulada e de boa fé.

Remontando já este instituto à Lei das 12 Tábuas, (usus auctoritas fundi biennium coeterarum rerum annus esto) a noção de usucapião é actualizada e definida por Menezes Cordeiro[2] como "a constituição, facultada ao possuidor, do direito real correspondente à posse, desde que esta, dotada de certas características, se tenha mantido pelo lapso de tempo fixado na lei".

O prazo de usucapião é diferente consoante a natureza da coisa de cuja aquisição se trate e varia conforme as características da posse sobre ela exercida.

Assim, o prazo capaz de legitimar a aquisição do direito de propriedade sobre uma coisa imóvel, não havendo registo de título nem de posse e esta seja de boa fé, é de 15 (quinze) anos - art.º 1296.º do C.Civil.

Presumindo-se de boa fé a posse titulada e de má fé a não titulada - a posse adquirida com violência é sempre de má fé (art.º 1260.º, n.º 2 e 3, do C.Civil).
     A posse diz-se de boa fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem (art.º 1260.º, n.º 1, do C.Civil), ou seja, o possuidor, quando começa a gozar a coisa, não merece que seja apodado de malfazejo se actua na convicção de que não está a prejudicar outrem.
     Como afirma Menezes Cordeiro (in ob. citada; pág. 675) é de boa fé a posse que, não sendo, na sua origem, violenta, se tenha constituído pensando o possuidor:
- que tinha, ele próprio, o direito;
- que ninguém tinha direito algum sobre a coisa.
     Nos termos do disposto no artigo 7.º do C.R.Predial, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.

Mostrando-se que a autora/recorrente tem registada em seu favor a aquisição do prédio relativamente ao qual se arroga ser a legítima proprietária, a lei estabelece uma presunção - tantum juris, ou seja, sempre elidível - no sentido de que é ela a proprietária deste imóvel tal qual como do registo consta.
 
Como ficou provado, desde 14.4.1978 que o réu passou a viver na fracção na fracção "FT", .....Andar, letra ....,..... zona, parte habitacional, Bloco Poente ou Bloco ...., do prédio sito na............, n.º ...., Costa da Caparica, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Almada, sob a ficha n.º000000000, freguesia da Costa da Caparica, no convencimento de que esse andar lhe pertencia, de forma continuada, à vista de toda a gente, sem a oposição de ninguém (à excepção da autora nos moldes da presente acção); e os condóminos, vizinhos, amigos e conhecidos do réu consideram-no dono do andar dos autos, sendo certo que no momento em que outorgou o contrato-promessa - em 14/4/78 - e recebeu da CC, L.DA o andar dos autos, o réu actuou no convencimento de que não lesava o direito de outrem.

     Sendo de 15 anos o prazo relativamente ao qual o Código Civil permite a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre imóveis (artigo 1296.º) quando, muito embora não haja registo do título nem da mera posse (como acontece no caso sub judice) o possuidor está de boa fé, dúvidas não podemos ter de que a posse se manteve por tempo suficiente para poder ser atribuída ao recorrido, por usucapião, a invocada aquisição do prédio, uma vez que o réu adquiriu, ao fim de 15 anos, ou seja, em 14 de Abril de 1993, a propriedade sobre o prédio reivindicado nos autos, como bem anota o acórdão recorrido.

     II. Contesta recorrente que a outorga do contrato-promessa, ainda que acompanhada do pagamento da totalidade do preço e da tradição da coisa prometida, origina, por si só, a existência de uma posse caracterizada pelo "corpus" e "animus".

     Para a recorrente estas mencionadas circunstâncias não são susceptíveis de conferir ao recorrido a posse do imóvel e a sua aquisição por usucapião.

          Não acompanhamos este entendimento assim gizado pela recorrente.

     Esta temática trazida até nós pela recorrente - saber se poderá conceber-se como possuidor o promitente-comprador que obteve a “traditio” da coisa objecto do contrato-promessa e se detém durante muito tempo no uso e fruição dela em moldes equiparáveis ao do seu dono, tudo porque surgiram, entretanto, entraves à outorga da escritura prometida realizar - constitui a hodierna preocupação doutrinária e, igualmente, copiosamente ventilada na nossa jurisprudência.

O princípio geral de direito, comummente aceite pelos tratadistas (v.g. Manuel Rodrigues; A Posse; pág. 236 e segs.) e definido no nosso direito como "a posse não se transmite por mero efeito do contrato", também oriundo do ancestral direito romano, vem sofrendo, paulatinamente, derrogações assinaláveis; e, pelo menos em duas hipóteses, a posse se transmite inequivocamente por contrato: - na traditio brevi manu (transferência da posse a favor do detentor por acordo com o anterior possuidor) e no constituto possessório (o possuidor passa a detentor, transferindo a sua posse para terceiro, por acordo, prevista no artigo 1264.º n.º1 e 2, do C.Civil) - Menezes Cordeiro; Direitos Reais; II Volume; pág. 758.

     No contrato-promessa caracterizado por haver a "traditio" para o adquirente do imóvel prometido vender, concretiza e torna efectivo a favor do promitente-comprador o direito de retenção sobre ele relativamente ao crédito (v.g. sinal em dobro ou valor do imóvel) que este possa, eventualmente, vir a ter contra o promitente-vendedor no caso de este se recusar, infundadamente, a cumprir.

     Neste entendimento o promitente-comprador, para quem foi conferida a tradição da coisa prometida vender, tem dela a sua posse legítima - e não meramente precária - se e enquanto não se constatar haver incumprimento culposo da sua parte.

     Este conjunto de princípios tem vindo a ser seguido desde há já muito tempo pela jurisprudência do nosso Supremo Tribunal de Justiça (Ac. de 4.12.1984; BMJ; 342.º; 347 - Ac. de 25.2.1986; BMJ; 354.º; 549 - Ac. de 16.5.1989; BMJ; 387.º; 579 - Ac. de 07.03.1991; BMJ; 405.º; 456) e tem tido também o apoio da doutrina (Menezes Cordeiro; BMJ; 306.º; 44/46 - Calvão da Silva; Sinal e Contrato-Promessa; pág. 112).

     Se é certo que a assinatura do contrato-promessa não é merecedora de, por si só, privilegiar o promitente-comprador de passar a exercer o “corpus” e o “animus sobre a coisa prometida vender - o contrato promessa, só por si, não é susceptível de transferir a posse ao promitente-comprador (Pires de Lima e Antunes Varela; Código Civil Anotado; II, pág. 6/7), também é verdade que em muitos dos casos, circunstancialmente pontificados, o promitente-comprador aparece nesta vivência jurídica como um autêntico possuidor, excepcionalmente lhe devendo ser conferida esta evidenciada qualidade - depende fundamentalmente de uma ponderação casuística que valore adequadamente os termos e o conteúdo do negócio, as circunstâncias que o rodearam e as vicissitudes que se seguiram à sua celebração (Ac. STJ de 12.7.2011; disponível em www.dgsi.pt).

    Estamos nesta situação quando o promitente-comprador, uma vez posto a usufruir o imóvel age, não em nome do promitente-vendedor mas em nome próprio (uti dominus), com intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real, mais precisamente quando a “res” é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já e quando, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade.

     Havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo (a fim de, v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício de um direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade, não há qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse (Ac. STJ de 29.11.2011; disponível em www.dgsi.pt).

         Estas reflexões aplicam-se invariavelmente ao caso “sub judice”.

    Aquela situação excepcional que faz consentir ao promitente-comprador, a quem lhe é entregue a coisa antes da celebração do negócio translativo, os atributos do corpus possessório e do animus possidendi, realiza-se no nosso caso: o preço da prometida venda foi pago integralmente no acto de outorga do contrato-promessa; a vendedora entregou ao réu, naquela data, as chaves do andar e o réu e a sua família nele passaram a instalar a sua economia comum; alegando a vendedora que não podia celebrar a escritura do andar por não ter disponibilidade para pagar o distrate da hipoteca que onerava o prédio, o réu aceitou o aumento do preço, que passou a Esc. 3.350.000$00, tendo sido celebrado um segundo contrato e o réu pago de imediato a diferença; a sociedade vendedora chegou mesmo, posteriormente, a outorgar procuração irrevogável a favor do réu, mandatando-o para celebrar escritura de venda do andar consigo próprio.

    Havemos de concluir, assim, que o réu/recorrido e a sua família desenvolveram no imóvel que lhes foi entregue uma posse em nome próprio e, por isso, não vêm nada a propósito as considerações que a recorrente faz acerca da falta da inversão do título de posse porquanto, pressupondo esta uma oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possui (art.º 1265.º do C.Civil), porque a materialização em seu proveito do prédio concretizada pelo recorrido resultou de actos que caracterizam a posse em nome próprio, se não pode falar sequer de tal figura jurídica.

       III. As regras atinentes à publicidade do registo não têm função constitutiva, mas antes declarativa: - afirma-se comummente entre nós que o registo é declarativo, o que é traduzido na gíria forense pela afirmação de que o registo não dá nem tira direitos.[3]
Não é, assim, fazendo apelo à disciplina reguladora do regime da publicidade que a questão "sub judice" se poderá clarificar em proveito da autora.
Oiçamos o que diz Oliveira Ascensão:[4]
É preciso não esquecer que a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião. Esta em nada é prejudicada pelas vicissitudes registais; vale por si; por isso o que se fiou no registo passa à frente dos títulos substantivos existentes mas nada pode contra a usucapião.
No conflito entre direitos incompatíveis sobre o prédio, valem as regras substantivas; mas se alguém praticou um acto de aquisição a título oneroso e de boa fé e beneficia da fé registal, passa a ter um direito que derrota o verdadeiro titular; nada pode porém contra a usucapião, a última ratio na solução de conflitos entre adquirentes de direitos reais, que o titular verdadeiro pode aqui invocar nos termos gerais.

Desde há muito que a nossa jurisprudência se tem encaminhado neste sentido doutrinal,[5] de modo a sentenciar-se que a presunção derivada do registo cede mesmo relativamente a terceiros pela aquisição fundada em usucapião[6].

      Logrou o réu/recorrido provar que adquiriu por usucapião o prédio que identifica, nos termos do que vem descrito nos artigos 1287.º e 1288.º, ambos do C.Civil, e, por isso, o recurso terá de improceder.

     Está, assim, abolida a presunção que o disposto no artigo 7.º do C.R.Predial consagra.

     IV. Queixa-se a recorrente de que as circunstâncias que se operaram no acto da entrega do imóvel ao recorrido e nas ocorrências que neste contexto se lhe seguiram, pontualmente discriminadas nas alíneas a. a l. do ponto 5. das suas conclusões do recurso, o que se verifica é que o recorrido sempre agiu como mero detentor da fracção desde 1978.

         Não lhe assiste, porém, razão.

    Esta especificada temática foi já bem aprimoradamente exposta no acórdão recorrido e a este pormenorizado tratamento damos a nossa aquiescência.

     A este propósito aproveitamos tão-só para lembrar o seguinte:

     A usucapião constitui um modo de aquisição originária, ou seja, é uma forma de constituição de direitos reais e não uma forma de transmissão e, por isso, os direitos que nela tenham a sua origem não sofrem em nada com os vícios de que possam eventualmente padecer os anteriores proprietários sobre a mesma coisa (Menezes Cordeiro; Direitos Reais; II; pág.684).

    Quer isto dizer que a propriedade conferida com base na usucapião não está dependente de qualquer outro circunstancialismo juridicamente relevante que surja ao lado do seu processo aquisitivo e que, só aparentemente poderá interferir neste procedimento de consignação de direitos.

          Porque se trata de uma aquisição originária, o decurso do tempo necessário à sua conformação faz desaparecer todas as incidências que neste processo eventualmente possam ter surgido - a posse que interessa para efeitos de usucapião não é a posse causal, ou seja, a posse conforme com um direito que inques­tionavelmente se tem e de que representa simples exteriorização; é a posse formal, correspondente a um direito que comprovadamente se não tem ou que poderá não se ter, mas cujos poderes se exercem como sendo um titular, posse vista com abstracção do direito possuído, algo com existência por si, susceptível de conduzir, pela via da usucapião, à aquisição do direito, caso não se seja, já, senhor dele (Galvão Telles, O Direito, 121.º - 652).

V. Continuando, invoca a recorrente que, ao aceitar a procuração - em 16.06.1993 - cessou o direito de retenção que o recorrido detinha sobre a fracção, passando então a detenção a ser ilegítima.

     Mais uma vez a razão não está do lado da recorrente.

     1. O direito de retenção de que fala a recorrente consubstancia um direito concedido ao credor que detém certa coisa que deva restituir a outrem, de a não entregar ao seu destinatário enquanto este não satisfizer o seu crédito, desde que se verifique alguma das relações de ligação de interesses entre o crédito do possuidor e a coisa que deva ser restituída e a que a lei confere essa tutela - arts. 754.º e 755.º C. Civil.

     Estamos perante a evidência de um direito real de garantia - e não de um direito real de gozo - e que, por isso,  quem desfruta desta prerrogativa legal é-lhe conferido um poder sobre a coisa  que está na sua posse, mais precisamente, é-lhe adjudicado o direito de reter essa "res" e que representa uma garantia directa e especialmente consentida pela lei.

     Trata-se de um "direito absoluto" que produz efeitos contra todos ("erga omnes") e, porque imbuído das características de sequela ("etiam si per mille manus ambulaverit"), o seu titular pode acompanhar a coisa independentemente de quaisquer vicissitudes onde quer que ela se encontre, traduzindo o poder do titular do direito real de actuar sobre a coisa que lhe foi afectada, na medida necessária ao exercício dos poderes que sobre ela lhe são conferidos…[7]

2. A noção de procuração é-nos dada pelo estatuído no n.º 1 do art.º 262.º do C.Civil: - diz-se procuração o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos.

     Trata-se de um acto jurídico unilateral (Raul Ventura; ROA;1981; 3.º;672), através do qual alguém confere a outrem poderes de representação, tendo por consequência que, se o procurador celebrar o negócio jurídico para cuja conclusão lhe foram dados esses poderes, o negócio produz os seus efeitos em relação ao representado (Vaz Serra; RLJ; 112.º; 222).

    No caso de o procurador agir no seu exclusivo interesse, ele não actua no contexto dos seus poderes próprios e em seu nome pessoal, porquanto o seu posicionamento se circunscreve, sempre e exclusivamente, nos limites da acção em nome do “dominus” - na nossa ordem jurídica, a procuração no interesse exclusivo do procurador não deve ser vista como implicando ou resultando de uma transmissão da posição jurídica do dominus", isso porque o interesse do dominus não é essencial para a representação, nem para a procuração, sendo certo que quando o procurador age com base em procuração no seu exclusivo interesse, age em nome do “dominus” e sobre a sua esfera jurídica, que não na sua e em seu nome próprio.[8]

        Como se vê a outorga da procuração irrevogável a favor do Réu, mandatando-o para celebrar escritura de venda do andar consigo próprio, porque lhe não conferiu a propriedade do imóvel sem a realização da escritura real de venda, nenhuma alteração provocou na relação entre a sociedade vendedora e o recorrido.

     Igualmente, o direito de retenção que o recorrido usufruía até ser satisfeito o seu crédito, em nada podia interferir no procedimento causal projectado para a aquisição do imóvel por usucapião.

     Estes destacados episódios não podiam interferir no modo como o recorrido alcançou a aquisição da fracção por usucapião.

VI. Nas acções de reivindicação incumbe ao autor demonstrar que tem o direito de propriedade sobre a coisa reivindicada e que esse direito se encontra na posse ou detenção do demandado; e é tudo quanto basta para que a entrega judicial da coisa se faça ao reivindicante.

Só assim não acontecerá se o detentor da coisa demonstrar possuir direito real ou obrigacional que faça obstar ao exercício pleno do direito de propriedade, direito que consubstancia uma excepção peremptória (art.º 493.º, n.º 3, do C.P.Civil) e que o réu pode invocar no processo em seu proveito, nos precisos termos do preceituado no artigo 1311.º, n.º 2, do C. Civil.

Como demonstrado está, o imóvel reivindicado pela recorrente é pertença do recorrido.

Sendo assim, como sentenciaram as instâncias, improcede a acção e procede o pedido reconvencional formulado pelo demandado/recorrido.

 Concluindo:

1. O princípio geral de direito, comummente aceite pelos tratadistas e definido no nosso direito como "a posse não se transmite por mero efeito do contrato", vem sofrendo, paulatinamente, derrogações assinaláveis; e, pelo menos em duas hipóteses, a posse se transmite inequivocamente por contrato: - na traditio brevi manu (transferência da posse a favor do detentor por acordo com o anterior possuidor) e no constituto possessório (o possuidor passa a detentor, transferindo a sua posse para terceiro, por acordo, prevista no artigo 1264.º n.º1 e 2, do C.Civil)

2. Se é certo que a assinatura do contrato-promessa não é merecedor de, por si só, privilegiar o promitente-comprador de passar a exercer o “corpus” e o “animus” integrantes da posse sobre a coisa prometida vender, também é verdade que em muitos dos casos circunstancialmente pontificados, o promitente-comprador aparece nesta vivência jurídica como um autêntico possuidor, excepcionalmente lhe devendo ser conferida esta denotada qualidade.

     3. Estamos nesta situação quando o promitente-comprador, uma vez posto a usufruir o imóvel age, não em nome do promitente-vendedor mas em nome próprio (uti dominus), com intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real;

     4. E tudo isto porque o preço da prometida venda foi pago integralmente no acto de outorga do contrato-promessa; a vendedora entregou ao réu, naquela data, as chaves do andar e o réu e a sua família nele passaram a instalar a sua economia comum; a sociedade vendedora chegou mesmo, posteriormente, a outorgar procuração irrevogável a favor do réu, mandatando-o para celebrar escritura de venda do andar consigo próprio.
5. No conflito entre direitos incompatíveis sobre o prédio, valem as regras substantivas; mas se alguém praticou um acto de aquisição a título oneroso e de boa fé e beneficia da fé registal, passa a ter um direito que derrota o verdadeiro titular; nada pode porém contra a usucapião, a última ratio na solução de conflitos entre adquirentes de direitos reais, que o titular verdadeiro pode aqui invocar nos termos gerais.
5. Desde há muito que a nossa jurisprudência se tem encaminhado neste sentido doutrinal, de modo a sentenciar-se que a presunção derivada do registo cede mesmo relativamente a terceiros pela aquisição fundada em usucapião.

6. A propriedade conferida com base na usucapião não está dependente de qualquer outro circunstancialismo juridicamente relevante que surja ao lado do seu processo aquisitivo e que só aparentemente poderá interferir neste procedimento de consignação de direitos.

7. Porque se trata de uma aquisição originária, o decurso do tempo necessário à sua conformação faz desaparecer todas as incidências que neste processo eventualmente possam ter surgido.

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.


Custas pela recorrente.


             Supremo Tribunal de Justiça, 1 de Março de 2012.

Silva Gonçalves (Relator)

Ana Paula Boularot

Pires da Rosa

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[1] Saliente-se, contudo, a tese defendida por Menezes Cordeiro no sentido de uma orientação objectivista do nosso Código Civil (in A Posse; Perspectivas Dogmáticas Actuais; pág. 54 e segs.)
[2] in Direitos Reais, II Volume; pág. 670.
[3] Prof. Oliveira Ascensão; Reais; 5.ª edição; pág. 359.
[4] Obra citada; pág. 382 e 385.
[5] Ac. do STJ de 9/01/97, in CJSTJ, 1997, Tomo I, página 37
[6] Ac. do STJ de 3/06/92, in BMJ 418º, 773.
[7] José Oliveira Ascensão; Obra citada; pág. 625.
[8] Pais de Vasconcelos ; A Procuração Irrevogável”; pág. 107.